La Mesure des Sens: Les Anthropologues et le Corps Humain au XIXéme siècle
Nélia Dias
La Mesure des Sens: Les Anthropologues et le Corps Humain au XIXéme siècle
Paris, Aubier, 2004, 357 páginas.
O estudo de Nélia Dias, que pretendo aqui apresentar, sendo um trabalho
lucidamente empírico, coloca-nos perante um problema teórico que me parece de
extrema dificuldade e para o qual as respostas são quase sempre lacunares e
insuficientes. De algum modo, este problema está subjacente a uma parte
importante do pensamento social e político desde Thomas Hobbes, pelo menos.
Trata-se de pensar as recursividades e analogias de natureza epistémica e
política entre o corpo individual e o corpo colectivo. Ou, de outro modo, de
que forma é que o conhecimento e práticas dos lugares do corpo se traduzem
politicamente. Assim, não é por acaso que este transporte faz de Thomas Hobbes
o primeiro sociobiólogo, como reclama o filósofo cognitivista e darwiniano
Daniel Dennett em Darwin's Dangerous Idea (1995: 453). Porque em Thomas Hobbes
há um apelo a uma teoria naturalista acerca da moral e, concomitantemente, uma
translação de sentido político que faz de uma sociedade o resultado de tal
declinação naturalista. Esta pretensão é certamente um dos aspectos mais
insistentes da modernidade: uma vontade política que assume que conhecer é
poder ou, ainda, que aquilo que é ' essa ordem factual em que se abastece o
mundo e que cumpre a um estilo de pensamento e suas extensões exumar ' regulará
imperiosamente o deve, isto é, o modo de gerir indivíduos e colectivos de
indivíduos. Tudo isto faz supor que a relação entre conhecimento e regulação é
inegociável e que devemos deixar os modos de regulação da pólis nas mãos dos
especialistas, dos sacerdotes do templo, isto é, dos sábios ou, se quisermos,
de um certo tipo de sábios: os cientistas. São eles que sabem o que é, logo é
através deles que devemos regular o que deve ser no plano ético-moral e no
plano político.
Não resisto aqui a citar Thomas Hobbes e o seu Leviathanno original: Reasonis
thepace; Encrease ofScience, the way; and the Benefit of man-kind, theend
(1981 [1651], Parte I, cap. 5, pp. 21-22).
É tendo em conta esta tendência moderna que não nos abandonou ainda e que
certamente não nos irá abandonar tão cedo (apesar dos seus acentos trágicos que
a história do século XX, em particular, denuncia de forma impiedosamente
ímpar), que o livro de Nélia Dias deverá ser lido, porque a investigadora
mostra-nos um dos modos em que isto se desdobrou num determinado contexto
cultural e científico do século XIX: a França da segunda metade desse século.
Mostra-nos também como esta pulsão moderna não admitiria a ambiguidade da sua
consagração metafórica ' esse enlace analógico e impreciso entre corpo
individual e corpo político ' e que toda a ambiguidade teria de ser expurgada
do sistema através de uma estratégia rigorosamente localizadora e
especificadora. Como?
O livro é uma análise sincrónica de um domínio discursivo específico. Trata-se
de mostrar como a segunda metade do século XIX assistiu a um denodado exame dos
órgãos dos sentidos em que se impunha fundamentalmente realizar uma
topobiologia dos sentidos. Estamos perante uma espacialização e hierarquização
no corpo de uma ordem sensorial. Como explicita Nélia Dias, o exame dos
sentidos e da hierarquia em que se fundam articula-se discursivamente com uma
matriz de oposições politicamente significativas que demonstram, justamente, a
recursividade entre corpo individual e corpo colectivo. Assim, a partição entre
hemisférios esquerdo e direito do cérebro desdobrava-se numa assimetria de
faculdades e atribuições: razão/instinto, cor azul/cor vermelha, homem/animal,
civilizado/primitivo, homem/mulher. Dir-se-ia que estamos perante um episódio
clássico em que a topobiologia faz supor ou traduz todo um conjunto de
aproximações analógicas entre diversos domínios que vão da classificação
sensorial à taxonomia racial e à estratificação social. O livro de Nélia Dias
demonstra-nos a extrema capilaridade entre discursos científicos e políticos
numa certa concepção de modernidade que, à partida, parece reclamar a autonomia
de tais esferas. Daí que, metodologicamente, o universo de domínios discursivos
relevantes seja vastíssimo: antropologia, fisiologia, psicologia, filosofia,
medicina e literatura assumem aqui uma importância decisiva na produção do
argumento. Mais uma vez estamos perante uma leitura impressiva da hibridez
fundamental da modernidade. Algo que aproxima Nélia Dias de Bruno Latour (1997
[1991]) e, de modo muito específico (dado o alcance da sua análise e a natureza
dos materiais em que tal análise se abastece), de Anne Harrington (1987).
Se este é o eixo maior de articulação em que o trabalho de Nélia Dias se
define, paralelamente este trânsito entre a topobiologia e a representação do
corpo social e político foi um projecto que solicitou todo um conjunto de
estratégias e de reflexões epistemológicas que apaixonaram os especialistas da
época. De outro modo, poder-se-ia dizer que esta cartografia de alguns dos
veios, em que se abasteceram os discursos antropológicos oitocentistas sobre os
sentidos, define também a perturbação que os atravessava: a perturbação por um
certo perspectivismo ou consciência dele que se prende afinal com os modos
de ver e sua radical alteridade; a perturbação face às diferenciais aquisições
cognitivas que mecanismos anatomo-fisiológicos descritos como diferentes (e a
diferença aqui poderia ser enunciada como do domínio do patológico ou
teratológico) evidenciavam; a perturbação face à possibilidade de o
conhecimento verdadeiro ser função de uma ordem sensorial que teria de ser
precisada e defendida a todo o custo. Precisar e defender a epistemologia seria
também, e concomitantemente, um modo de precisar e defender uma certa concepção
de sociedade.
Estamos aqui perante um problema que se prende, evidentemente, com algumas das
formulações de Michel Foucault. Aliás, La Mesure des Sens é uma hábil incursão
em território foucauldiano. Aí, para lá da centralidade da noção de
discurso, impõem-se as noções de anotomo-política do corpo humano e de
biopolítica das populações que Foucault irá articular no volume metodológico
da sua História da Sexualidade, isto é, em A Vontade de Saber(1994 [1976]: 141-
47). O conhecimento do corpo-máquina torna-se uma plataforma a partir da qual a
ordem social e demográfica poderá ser cabalmente aferida. Ou seja, Nélia Dias
mostra-nos não apenas as modalidades em que se desdobrava este conhecimento ou
o conjunto de séries discursivas em que o mesmo se instalava, mas também a
relação diagramática que estes conhecimentos ou séries estabeleciam
estrategicamente uns com os outros para produzir uma configuração política '
uma forma de poder-saber (id.: 145) ' acerca do corpo-espécie e suas derivas,
que era assim espacializado e articulado de acordo com definições de identidade
colectiva. Veja-se, a este propósito, o que Nélia Dias escreve acerca da
constituição do Estado num capítulo que destaca a biopolítica das ordens
sensoriais e sua tradução estatística e cartográfica (capítulo 9 de La Mesure
des Sens: pp. 263-80).
O que está aqui em causa é o trânsito entre o corpo individual e o corpo
político. Que tipo de efeitos e de metáforas regem a sua constituição mútua,
num mundo onde as metáforas se encontram permanentemente sob suspeita?
A identificar alguns dos fluxos metafóricos na produção do corpo político,
destacaria aqui o modo como Nélia Dias nos descreve as formas de
representação dosistema nervoso e as suas continuidades e contiguidades com as
formas de representação do sistema político. Socorrendo-se de Hyppolite Taine,
escreve a autora de La Mesure des Sens:
A analogia entre sistema nervoso e sistema político está também presente em
Taine. A descrição figurada que o filósofo dá do sistema nervoso, com os seus
ministérios e os seus centros locais, é à imagem de uma burocracia
centralizada, composta de uma hierarquia de funcionários; longe de ser uma
república de iguais, cada centro local detém uma certa autonomia, sendo dado
que o sistema de centros nervosos na medula e no encéfalo se assemelha ao
sistema de poderes administrativos num Estado (...). E adianta, a propósito de
trinta e um centros espinais, que são outras tantas prefeituras subordinadas a
um ministério que assentam na medula alongada. Cada um destes centros tem o seu
departamento ou território próprio; nele recebe as informações pelos seus
nervos sensíveis; aí dá as ordens pelos seus nervos motores. O primeiro
ministério ocupa toda a medula alongada, isto é o bolbo, a protuberância e
talvez os começos dos pedúnculos cerebrais. (...) Há vários andares
sobrepostos, repartições sensíveis de diversas espécies, repartições motoras,
comunicações que ligam estas repartições entre elas e que se ligam elas
próprias a superiores hierárquicos, seja para transmitirem informações, seja
para receberem ordens. Segue-se em seguida e sobre a medula, o ministério
supremo. (...) Além das informações que lhe transmite a medula alongada, ele
recebe as instruções que trazem os dois primeiros pares de nervos cranianos,
olfativos e ópticos; deste modo todas as impressões sensíveis se reúnem nestas
repartições, e, além disso, através da medula alongada, envia impulsos para
todos os nervos motores. Sobre ele, na cobertura cerebral, instala-se o
soberano. (...) Encontramos em Taine todo um sistema de correspondências ' o
soberano/a cobertura cerebral, o primeiro ministério/a medula alongada, os
departamentos e prefeituras/os centros espinais ' o que não é fortuito quando
conhecemos a admiração que votava à monarquia inglesa e a sua hostilidade à
democracia plebiscitária(pp. 286-7).
Um dos modos de captarmos esta capilaridade entre corpo individual e corpo
colectivo ou de percebermos como é que a anatomo-política do corpo humano e a
biopolítica das populações se constituem mutuamente, nada melhor do que seguir
o percurso das metáforas, parece querer dizer-nos Nélia Dias, numa estratégia
que a aproxima de Hans Blumenberg (1997). O corpo é não somente uma cidade,
neste contexto. Ele é, e à luz do conhecimento produzido acerca do sistema
nervoso, uma cidade que comunica ' algo que a analogia entre o sistema nervoso
e o telégrafo parece acentuar (ver pp. 288-90). A civilização faz supor assim
que a cidade passou a habitar o corpo e que a transitividade controlada entre a
tópica do corpo e a tópica da cidade se tornou um dos esquemas cognitivamente
mais recorrentes. Se os modos de descrever e representar o corpo podem
alimentar os modos de descrever e representar a cidade, e vice-versa, dir-se-ia
também que é neste trânsito que emerge a acção ou, se quisermos, é dentro deste
mecanismo de constituição mútua que as práticas e os modos de agir se tornam
visíveis. Estou aqui a lembrar-me muito soltamente daquilo que nos diz Ian
Hacking sobre isto: novos modos de representar e criar o real potenciam modos
novos de agir (1994). Em suma, as representações são sedutoras, eficazes e,
porventura, perigosas, porque estabelecem relações insuspeitas entre elas que,
em última análise, fertilizam e modulam as acções humanas.
Outras referências:
Blumenberg, Hans, 1997, Shipwreck with Spectator: Paradigm for a Metaphor for
Existence. Cambridge, Massachusetts, Londres, The MIT Press.
Dennett, Daniel, 1995, Darwin's Dangerous Idea: Evolution and the Meanings of
Life. Londres, Penguin.
Foucault, Michel, 1994 [1976], História da Sexualidade I : A Vontade de Saber.
Lisboa, Relógio D'Água.
Hacking, Ian, 1994, The looping effects of human kinds, em Dan Sperber, et
al. (ed.). Causal Cognition: a Multidisciplinary Approach. Oxford, Clarendon
Press, pp. 351-83.
Harrington, Anne, 1987, Medicine, Mind, and the Double Brain. Princeton, NJ,
Princeton University Press.
Hobbes, Thomas, 1981 [1651], Leviathan. Londres, Penguin.
Latour, Bruno, 1997 [1991], Nous n'Avons Jamais Été Modernes: Essai
d'Anthropologie Symétrique. Paris, Éditions La Découverte.
Luís Quintais
Depart.º de Antropologia / Univ. de Coimbra