Nos braços de um polvo gentil: burocracia, autoridade, cidadania
Nos braços de um polvo gentil: burocracia, autoridade, cidadania
Vanda Aparecida da Silva*
[1]
Este é um ensaio inspirado em experiências de cidadãos portugueses e
estrangeiros, inclusive a da investigadora estrangeira, no trato com órgãos da
administração pública do país de acolhimento, Portugal. Minha intenção aqui é
compreender alguns dos dispositivos da burocracia na vida cotidiana,
discorrendo sobre alguns usos do sentido de autoridade no âmbito das relações
sociais. O texto inicia-se com notas de uma etnografia autobiográfica,
enquanto examina estas relações e como podem ser afectadas por dinâmicas
complexas de implantação e incorporação de normas burocráticas. O texto traz
elementos que contribuem para a compreensão e reflexão sobre os processos de
aprendizagem da cidadania, e sobre as manifestações e representações de
autoridade numa situação social.
Palavras-chave: burocracia, autoridade, cidadania, administração pública.
In the arms of a kind octopus: bureaucracy, authority, citizenship
This is an essay inspired by experiences of Portuguese and foreign citizens,
including the ones of the foreign researcher who writes it, in dealing with
agencies of the administrative Machine of the host country, Portugal. My
intention is here to understand some devices of the bureaucracy in daily life
and discuss some of the uses of the meaning of authority in social relations.
The text begins with notes of an autobiographic ethnography, while examining
such social relations and the ways they can be affected by complex dynamics of
establishment and incorporation of bureaucratic norms. The text brings elements
that contribute for the understanding and reflection on the processes of
learning citizenship, along with the expressions and representations of
authority in a social situation.
Keywords: bureaucracy, authority, citizenship, management administration.
O que se segue inicia-se como notas de uma etnografia autobiográfica
(Archetti 1999), em que a experiência desta investigadora, na condição de
estrangeira, num processo de aprender a conhecer os códigos do cotidiano da
Máquina burocrática, soma-se ao conjunto de outras de distintos cidadãos
portugueses e estrangeiros. Trata-se de uma abordagem modesta em torno de
questões relacionadas com a burocracia, a autoridade e a cidadania, tecida a
partir de elementos descritivos ao mesmo tempo que procura construir os
parâmetros críticos. Modesta porque, ao buscar olhar mais atentamente para os
episódios vividos numa determinada morada da Máquina burocrática do país de
acolhimento, me vi na condição de ter que questionar minha motivação crítica e
a aplicabilidade de minha reflexão. Sobretudo quando o que se passara poderia
induzir-nos a pensar que todas as moradas da Máquina teriam as mesmas práticas
ou criariam as mesmas dificuldades ao cidadão ou cidadã que dos serviços
públicos necessitassem. Ou seja, para que esta reflexão ganhasse em conteúdo
qualitativo seria importante conhecer a lei que sustenta as práticas da
administração pública do país em questão, e neste momento não se pretendeu
investir nessa via.
Pude de seguida constatar que em outras instituições também poderia obter
informações sobre situações de vulnerabilidade dos cidadãos. Especificamente, o
que se propôs, portanto, foi o desafio de tornar inteligíveis os mecanismos de
forças que anulam, modificam e redefinem a experiência social. Assim, neste
texto dividido em duas partes, a primeira assumindo um tom de cariz
exploratório e a segunda visando uma reflexão ou problematização das situações
descritas, se vê que a partir da experiência de um campo não pensado pode
surgir um campo possível de investigação.
Uma cacofonia entre estranhos
A situação estava constrangedora, pois, como estrangeira portadora de um visto
de Investigação / Trabalho ' Altamente Qualificado com duração de 340 dias e
de uma Bolsa de Investigação de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia,
[2]
já deveria ter um número de identificação fiscal (NIF). Mas não tinha. E
porquê?
A condição de ser uma velha cliente do Banco do Brasil (no Brasil), e após
passar por todos os trâmites internos da burocracia do sistema bancário, mais a
contrapartida da Fundação que declarara que eu receberia mensalmente uma bolsa
X, possibilitou-me abrir uma conta corrente naquele banco, desta feita em
Lisboa. Logo, ao chegar em Lisboa, pude encontrar o depósito correspondente ao
primeiro pagamento do mês do início de minhas atividades de investigação.
Portanto, este dever de providenciar o NIF poderia ser postergado, uma vez
que as bolsas são isentas de impostos.
Desta maneira, a adaptação em Lisboa e o começo das atividades não foram
marcados por tantas burocracias. Algumas ficaram no estado de standby. Mas não
pude deixar de manter uma certa apreensão quanto ao fato de não ter um NIF, uma
vez que, já sabendo de antemão que todo e qualquer cidadão e cidadã que esteja
no mercado de trabalho, obtendo rendimentos ou não, passa a ter que declarar-se
isento ou ver-se às voltas com o respectivo recolhimento dos impostos, não
tardaria que pudesse ser interpelada por causa de meu NIF. Ou seja, num certo
momento de nossa vida adulta passamos a ter o dever de existir activamente para
o Estado. Em contrapartida, espera-se que este nos assegure o nosso direito.
Mas um cidadão ou uma cidadã estrangeiro / a tem direito de existir para um
Estado que também lhe é estrangeiro? Será que este Estado (estrangeiro) deseja
que este outro exista para ele? Como?
Do mito do existir
Reza um mito antigo, muito antigo, difundido entre os povos do Ocidente, que
seria possível abrir vários mundos, ultrapassar fronteiras, despertar sorrisos
ou, simplesmente, encontrar um olhar de cumplicidade entre outros povos de um
continente dito civilizado ao fazermos o uso de algumas palavras mágicas: Bom
dia!, Boa tarde!, Por gentileza, Por favor ou, por fim, Obrigada / o,
Grato / a. Isto seria o primeiro passo para fazermos alguma solicitação a
alguém que vá nos prestar algum tipo de serviço, mesmo que esteja sendo pago
para exercer seu ofício. Até porque o processo que se irá iniciar está marcado
pela imprevisibilidade. O / a estranho / a, neste caso, primeiramente esta
narradora, na busca de uma orientação terá que, antes, fornecer também
informações prévias a seu respeito. Assim, minhas primeiras características são
a aparência física e o meu modo de me portar (Goffman 1993) que, por sua vez,
dirão do meu feitio inicial.
A busca da mediação, da combinação que seja a mais adequada no processo de
interação nas relações sociais, mesmo nos mundos mais massificados e
globalizados, é característica do agir das pessoas na vida cotidiana, manifesta
através de gestos, palavras, emissão de sinais (Martins 1999). Tinha a ilusão
de que para a Máquina burocrática bastava estar consciente de meu dever e
querer existir, bastava chegar até um dos seus fiéis comandados e dizer-lhe:
Por gentileza, quero tirar o cartão do contribuinte; ou, Boa tarde / Bom
dia, quero tirar o cartão de contribuinte, o que é preciso? Esta procura da
palavra, da maneira, do gesto correcto expressa também um certo embaraço, numa
circunstância específica, mas que traduz uma situação e nesta tem-se, a priori,
uma orientação do que é certo e do que é errado, fruto do assentamento da
socialização na composição do manual de boa conduta.
[3]
E na hierarquia dos mundos mantinha a ilusão de que a difusão de uma vontade
individual está assegurada na sociedade moderna, posto que está subentendido
que se conhece os direitos cívicos e sociais de cidadania, l'homme en
société. O mito ainda reverberado por vários povos de outros mundos, desejado
e invejado, diz ainda que aquele / a que honrar seus compromissos e cumprir os
seus deveres descobre outro inimaginável sentimento: o de uma vida livre e
aberta. Para isso, segue o mito, dá-se um outro acontecimento na vida das
pessoas que é a consciência do pertencimento, logo, a consciência de que se é
responsável por seus actos perante toda e qualquer lei.
Ora, mas e quem deseja, assim, ser tão responsável por seus atos, se é tão mais
fácil e vantajoso não ter tantas obrigações, ter quem responda por nós, que não
saibam a nossa morada, se o que dissemos é de fato o que dissemos, se o nome
que assino é verdadeiramente o que foi inscrito nos documentos de certidão de
nascimento, de batismo? Para quê desejar ter tanta consciência de si, quando é
tão mais fácil e menos comprometedor não saber de si, pois também isto não
implica ter que saber do outro?
Mas não teria como não correr o risco, uma vez que passaram a me questionar e o
questionamento daqueles que pediam o meu NIF aumentava a pressão da necessidade
e obrigação de existir para a Máquina burocrática da recolha das Finanças.
Porém, não me fora dito que para conseguir ser inserida no sistema da Máquina
burocrática teria que conhecer os seus tentáculos sugadores.
Como tinha a informação de que as visitas à Máquina são concorridas, saí muito
cedo de casa para concorrer ao seu atendimento. Muitas mulheres e homens,
vindos de todas as partes, de outros países, outros mundos das ex--colónias, do
Terceiro Mundo, e até mesmo pessoas vindas de territórios do Primeiro Mundo,
têm que solicitar uma senha que é emitida por uma de suas máquinas bebés
(baby machines),
[4]
ao premir de um de seus botões, conforme as indicações. Destes cidadãos e
cidadãs, muitos ficam horas à espera de obter um pouco da atenção de um dos
seus fiéis comandados. Há destes que passam por constrangimentos dos mais
agudos, uma vez que ' não conhecendo fluentemente a língua dos que são fiéis
comandados, a língua da pátria de acolhimento ' perdem-se na dificuldade de
comunicar e compreender a informação para uma possível resolução do problema
ou, simplesmente, na solicitação da emissão de um documento, uma certidão, um
atestado, ou um NIF. Às vezes, perde-se completamente a energia e a vontade e
vê-se corpos de todos os tipos e cores, novos e velhos, se arrastando de um
lado para o outro, com olhares desolados, perdidos diante dos guichês muito
parecidos e com números, quase sempre, os mesmos: 01, 02, 03, 04 Mas qual será
o que corresponderá à necessidade do solicitante / do cliente ? Correm os olhos
dos desolados pelos guichês e perdem-se no medo de perguntar por mais uma
informação, na incompreensão de ambos os lados.
Sob esta aura estava num dos endereços da morada da Máquina, com a sensação
de que estava na Roda do Destino
[5]
a ver qual seria a minha sorte naquele dia Fui à baby machine correspondente
à minha solicitação. Todavia, alguma indecisão pairou quando olhei as várias
placas e respectivos guichês com seus números entre pequenas separações.
Apertava o botão da baby machine correcta ? Vamos ver se há algum / a fiel
comandado / a por perto para me dizer se estou no local correcto Nada. Mas a
fila também não estava sendo rápida e havia poucos dos fiéis comandados a dar
atendimento naquele horário.
No limite para existir
O placar luminoso ressoou piscando mais um número. No bilhete que a baby
machine emitira estava marcado: Data: 16 / 05 / 2007, Hora de Entrada: 10:19,
Atendimento previsto às: ' não marcava hora alguma. Havia 100% de chances de
estar enquadrada no tipo de solicitação que estava prestes a fazer. Tinha
poucas possibilidades de que não viesse a atender aos requisitos: passaporte
com visto, OK; contrato de Bolsa de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência
e a Tecnologia, com declaração do valor da bolsa, OK; até um comprovativo de
alojamento tinha à mão, OK. O que poderia dar errado?
Ouvi mais um soar da placa electrónica. Piscou em frente da letra B. Lá estava
ele a piscar B 0049. Levantei-me da cadeira com um semblante de breve alívio.
Caminhei tentando disfarçar a ansiedade e me preparando para como entoar o meu
pedido: Quero tirar o número de contribuinte. Sentei-me, olhei bem para a
fiel comandada e disse-lhe: Bom dia, eu quero tirar o número do
contribuinte. Não me recordo se a mulher respondeu ao bom dia; entretanto,
foi incisiva no pedido de meu passaporte. Imediatamente saquei de minha pasta o
passaporte e demais documentos que tinha à mão. Ela olhou o passaporte, viu que
tinha visto, estranhou o tipo de visto, mal olhou o contrato de bolseira da
Fundação, abriu o passaporte na folha de carimbos de entradas e saídas do país
de acolhimento e disse-me: Não tem 183 dias de permanência dentro de Portugal;
esteve no Brasil e voltou Isto já não dá 183 dias corridos neste ano de 2007,
dentro de Portugal, não confirma que reside em Portugal. Pergunto: Como
assim, mas eu tenho residência em Lisboa, tenho como comprovar? Ela insiste:
Não tem 183 dias residindo em Portugal. Necessita de um representante fiscal
que resida em Portugal e venha com você aqui e traga o NIF e o BI [bilhete de
identidade]. Aí não haverá problema, damos-lhe o NIF.
Minha palidez deve ter ficado evidente, tal era o meu desapontamento após ter
estado sentada por quase duas horas. Faltava-me a saliva. Provavelmente a
mulher, por algum sentimento de solidariedade, quis tentar atenuar meu
semblante desolado e prontificou-se a atender-me sem ter que me submeter a
outra fila de espera, com a condição de que eu aparecesse naquele dia ainda,
ou, mais tardar, na manhã seguinte com o meu representante fiscal. Pode parecer
ironia, mas perante a certeza que advém de ter 100% de chances de conquistar
alguma coisa, neste processo de aprendizagem das regras de um Estado
estrangeiro (para mim), vi-me contrariada em todas as lógicas da estatística.
Não serei a única no estado do quase-existir
Todavia, a sensação de uma passividade aprisionadora chocava com a minha
indignação. Isto me colocou entre o estado de choque e o espanto. Pelas ruas
comecei a tecer as mais variadas conjecturas: será que é pelo fato de ser
brasileira?, terá posto em causa o meu visto?, será racismo, preconceito?,
pronto, serão reais as dúvidas que pairam acerca da mulher brasileira mestiça,
mulata e ainda por cima solteira?, será que terei que me casar, agora, com um
português?, mas será que tem que ser um português legítimo?, será que terá que
apresentar os resultados das análises de sangue para comprovar que é português,
mesmo? Estaria se passando o que acabara de se passar comigo? Não. Experiência
semelhante também fora vivida por outras pessoas, como na narrativa do trecho a
seguir:
Cheguei à Loja do Cidadão ainda com muito sono às 9 e meia da manhã. [ ] Hoje
consegui pegar uma senha para ser atendida [ ]. Da primeira vez que fui até lá,
não havia mais senhas. Na realidade, eu nem sabia que teria que fazer esse tal
de NIF. [ ] Espera-se muito nesse lugar. Bem, consegui ser finalmente atendida
às 10:40. Dirigi-me ao guichê e expliquei à atendente que gostaria de fazer meu
NIF [ ]. Para minha surpresa, ela disse que somente poderia fazê-lo com o
acompanhamento de um cidadão português. Por um instante, perdi o chão. Como
alguém que chega a um país estrangeiro pode apresentar um cidadão deste mesmo
país, uma vez que possivelmente não conhece ninguém? Argumentei, afinal, que
era estudante, que ficaria em Lisboa somente por alguns meses, que tinha todas
as autorizações possíveis e imagináveis, mas a profissional foi irredutível.
Fiquei muito chateada com esta situação. E agora? Tudo bem, que até conheço uma
pessoa que poderia me acompanhar. Mas seria certamente uma perturbação. Resolvi
ir embora sem discutir e pensar de que forma poderia concretizar esse processo
sem ter que perturbar terceiros [ ] (trecho do diário de campo de Rozeli Maria
Porto, de 05 / 04 / 2007).
[6]
Tinha a obsessão de que teria que ter este tal NIF e sentia um certo alívio,
uma vez que, felizmente, tinha a quem recorrer (quando muitos não têm). Porém,
aquilo tudo sinalizava que alguém seria incomodado, uma vez que teria que
deslocar-se de sua residência ou trabalho para me socorrer para algo que, a
priori, não deveria ser um procedimento com implicação de outrem. Tal
procedimento não era apenas para a obtenção do NIF; fui informada que era usual
para o atendimento de outros tipos de solicitações em outras moradas da
administração da Máquina do Estado.
Tal dinâmica perversa coloca-nos, então, estrangeiros / as e cidadãos e cidadãs
do país de acolhimento, enlaçados pelos braços de um polvo gentil, porém sutil,
uma vez que no seu abraço lentamente exclui-nos ao criar tantos obstáculos para
que se obtenha o que quer que seja, ao mesmo tempo que transforma os / as
cidadãos / ãs em fiscais uns dos outros, os neutraliza e os apaga na
dependência mútua para estar em dia com o dever cívico, logo, de saber-se
pertencente, saber-se cidadão / ã. Se para mim é ruim, isto já foi pior ; ou
então, poderia ser pior Consolemo-nos, então, com desabafos no café.
[7]
Entre desabafos e tentativas de compreender e apreender quais eram os códigos
ou as normas do jogo, outros trechos do diário de campo da citada antropóloga
vêm a somar neste aprendizado:
Retornei então à Loja do Cidadão. Peguei a senha de número 285 sendo que
naquele momento a senha para atendimento era de 174. Aguardei por quase 3 horas
para ser atendida. E o pior era que não sabia que iriam fazer o meu NIF porque
das outras vezes que estive lá a atendente exigia a presença de um cidadão
português para que eu pudesse fazer o documento. [ ] Não fui atendida pela
mesma funcionária dos outros dias, felizmente. Esta me pediu o passaporte e o
endereço. Nada mais. Fez o cartão para mim sem falar em nenhum cidadão
português. Sem nenhum problema. Fiquei feliz e com muita raiva da outra
atendente. Ela me fez perder três tardes naquele lugar estressante. Cheguei lá
às 3 e saí às 6. Fui embora para casa então (trecho do diário de campo de
Rozeli Maria Porto, de 13 / 04 / 2007).
De toda forma, confrontava-me com um sentimento ambivalente, pois, ao mesmo
tempo vinha a consciência de que estava momentaneamente privada de cumprir meu
dever, porque este direito não me fora dado, estava temporariamente fora de
serviço; havia outras informações concorrentes que minavam a iniciativa de
contestar, de reclamar, uma vez que colocavam em mim a dúvida quanto ao
procedimento ter sido, exactamente, aquele para comigo: Ora, mas isto é uma
coisa tão simples, diziam-me alguns; Fulano / a esteve aqui e não se passou
nada, foi só chegar ao guichê e pronto!; Ah, deve ter-lhe fornecido
informação errada No SEF (Serviços de Estrangeiros e Fronteiras), outro
comentário: Isto deve ser algum disparate.
[8]
Às tantas, tinha dúvidas se havia interpretado correctamente as palavras da
fiel comandada.
Foi então que resolvi arriscar um telefonema
[9]
para outra morada da Máquina e ouvi, do outro lado, uma voz quase metálica: A
senhora tem que ter um representante fiscal Pergunto: Isto é legal?. E ouço
a voz: Esse tipo de informação não é connosco, esta é a informação que temos.
Se é fato que para se viver no espaço do outro é necessário aceitar as suas
regras, neste território da Máquina de tantos tentáculos e cujos micro-
obstáculos me jogavam de um lado ao outro, qual era a variável que me
vulnerabilizava? Essa pergunta era feita também por outros cidadãos / ãs
estrangeiros / asde nacionalidade brasileira que, como eu, queriam apenas
compreender:
Todavia, não conseguia entender as regras desse jogo perverso. Não existem
regras. É um jogo de cara ou coroa. Dependendo do estado de espírito da
funcionária, ela faz ou não o documento. Conversando com outros pesquisadores
brasileiros, descobri que eles passaram pelo mesmo processo. Só que eles
exigiram fazer o documento na mesma hora e foram até à gerência. Segundo meus
amigos, a gerente baixou uma ordem para que os atendentes fizessem o NIF sem a
necessidade de um cidadão português. Mesmo com este arranjo, pareceu-me que a
ordem perversa no que diz respeito ao atendimento prevaleceu neste órgão. Algo
que se pode resolver para uns e não para outros. Uma regra a partir de
estereótipos desestereotipados (trecho do diário de campo de Rozeli Maria
Porto, de 13 / 04 / 2007)
Atendimento lento
[10]
Na crescente consciência das relações e códigos que não eram visíveis a olho
nu, no cotidiano do mapa social dos / as cidadãos / ãs do país de acolhimento,
começava a desprender-me de meus sentimentos de perplexidade, porque a
experiência de não existir para a Máquina das Finanças, por vezes, é cómoda e
leva-nos a ficar livres das dificuldades burocráticas, para dar início à
tentativa de jogar com as regras do Outro. Diante deste meu novo processo de
aprendizado, que mais fortalecia minha idéia e sentimento do que é ser
cidadão / ã, de não ser mais uma mais igual do que outros, via-me às voltas
com colegas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, entre
manifestações de solidariedade, a tentativa de achar um tempo (no horário de
expediente) e ver quem poderia exercer o papel de meu / minha representante
fiscal.
[11]
No âmbito das relações que se constituem no terreno das organizações públicas,
outros aspectos servem-nos de exemplo. Ao supormos que os fiéis comandados
estão para servir o povo e estes, por sua vez, posicionam-se de maneira
indiferente, se aquele / a que os procura, o / a cliente, recorrer a outra
morada da Máquina, poderá encontrar algo semelhante. Aliado a isto ocorre mais
uma crescente na tensão: o / a cliente
[12]
(em Portugal é denominado utente)
[13]
tem a idéia, na maior parte dos casos, de que o seu problema é sempre o mais
importante, acirrando-se mais quando o / a fiel comandado / a e o cliente
julgam-se superiores socialmente e chocam-se nos seus status sociais (Merton
1966). Para além disso, à nominação que classifica todas as pessoas que
necessitam dos serviços e bens públicos ou privados ' utente ' corresponde a
idéia de que não pagam por estes serviços, logo, a estes se dá
atendimento, enquanto que, subterraneamente, ocorre o contraste com a
representação de cliente que é aquele / a que paga, que frequenta
periodicamente e estabelece algum vínculo mediante pagamento. Ora, cliente ou
utente, não pagam ambos à Máquina?
[14]
Novamente, pela segunda vez, compareço à outra morada da Máquina das Finanças,
desta vez acompanhada de meu representante fiscal.
[15]
Ao lado da baby machine um papel escrito em caneta colorida dizia-nos:
sistema oscilante atendimento lento. Fomos embora. No terceiro dia, retornei
com meu representante fiscal, mais uma vez, à morada da Máquina. Não tardou e
o placar ecoou sinalizando o nosso número. Caminhámos até o guichê e desta vez,
para atender-nos, tínhamos um fiel comandado. Dirigiu a palavra ao meu
representante: O senhor é o representante? O seu cartão de contribuinte e o
seu bilhete de identidade, pediu-lhe com o semblante mais impassível e
austero, provavelmente dada a percepção de minha condição de estrangeira,
minha diferença cultural afirmada pela presença de meu colega ao acompanhar-
me e, talvez, dada a minha imagem mestiça,
[16]
ou, além disso, correspondendo a uma característica peculiar da estrutura da
Máquina, cuja orientação incentiva seus fiéis comandados à ênfase no
carácter impessoal nas relações (Merton 1966: 106; Weber 1966).
Meu colega não teve tempo de tomar qualquer posição que fosse, a não ser a de
atender àquela ordem. Poderia ter entrado muda e saído calada, porque nada me
fora perguntado. Tudo o que interessava o meu solidário colega e
representante forneceu. Inclusive, o seu endereço passou a ser
temporariamente o meu, pois, para os registos da Máquina, passei a existir
(residir) na morada de meu representante. Portanto, para a morada dele seria
remetido o meu cartão do contribuinte. O que mais poderia querer, se as
mulheres portuguesas não estão imunes dos paradoxos de viverem num país que
lhes diz que há igualdade entre homens e mulheres, enquanto na vida cotidiana
se insiste em condicionar este direito? Qual ou quais a(s) garantia(s) para a
Máquina?
Algumas questões podem ser aventadas, mas a primeira que me dizia respeito com
aquele não-registo de minha morada, em Portugal, tinha a seguinte mensagem:
coloque-se no seu não-lugar.
[17]
Reclamava a minha condição de estrangeira-imigrante, porém, confrontando meu
reclamar por uma relação, um pertencimento. Esta é a ambiguidade: que a idéia
de viajante não poderia ser interpretada como definitiva dada a condição do
trânsito, uma vez que a possibilidade do viajante é ter para onde retornar; o
sonho acalentado é, em muitos casos, ter e manter uma segunda residência (Augé
1994).
A segunda, implicava mais o meu colega representante, que, a partir deste
episódio, foi chamado à responsabilidade de me recomendar perante a Máquina,
mas, sobretudo, à certificação de que me portaria bem. No contexto em que a
posse de tal documento seria meu dever perante a sociedade, a necessidade de
ter uma testemunha para a efectivação deste dever pode pressupor também um
pacto de (des)confiança,
[18]
ou, ainda, uma cidadania tutelada e afiançada.
[19]
Deste modo, nos comprometia um ao outro, nesta cumplicidade sob matizes das
relações econômicas ou mercantis. Isto, por certo, remonta aos nossos vínculos,
remete-nos à história, cultura e língua comungada, e data da era colonial
(Feldman-Bianco 2002: 167-168).
Entretanto, prosseguir na argumentação unilateral de que esta sociedade é tão-
somente discriminatória e racista com os / as imigrantes, os / as
estrangeiros / as, não faz jus às experiências cotidianas de distintos cidadãos
e cidadãs portuguesas, uma vez que, ao que tudo indica, ninguém está isento da
ação da Máquina O relato da experiência de um outro cidadão
[20]
pode nos fazer pensar mais sobre tal observação, principalmente quando a idéia
de fuga ao fisco lança fumaça de desconfianças. Trata-se de um homem branco,
sexagenário, membro da elite intelectual que, após ter sido internado e tratado
num hospital público da cidade de Lisboa, em sinal de gratidão pelo
atendimento, mas principalmente por sua cura, resolveu fazer a doação de uma
determinada quantia em dinheiro. Tal doação destinava-se à compra de um novo
equipamento para o hospital. Passado algum tempo, este mesmo homem compareceu à
Máquina para lhe declarar toda sua movimentação financeira, incluindo a
informação documentada de que havia efetuado uma doação (em dinheiro) ao
Hospital X. Diante de uma das fiéis comandadas ouviu a seguinte frase: Mas
o senhor doou isso tudo?! Doei, disse o homem. Ah, mas então o senhor será
chamado para esclarecer isto! Mas por quê? Todos os papéis estão aí! Mas
mesmo assim, o senhor terá que explicar como doou este dinheiro todo. Nos dias
que correm sabe-se que o referido homem foi chamado para justificar o seu acto
e a funcionária descobriu que a declaração não era adequada porque não
mencionava a legislação ao abrigo da qual o donativo tinha sido oferecido. E
mais: também não dizia que o doador não tinha recebido nenhuma contrapartida.
Por tudo isso seria necessária uma nova declaração. E aí começou outra história
da família das anteriores, para conseguir que o hospital X lhe passasse uma
declaração adequada, o que aconteceu ao fim de doze dias.
A pergunta poderia ser, então, com que autoridade a fiel comandada questiona
e constrange o homem que declarava sua doação? Será por desconfiança da origem
do dinheiro do citado cidadão português? Ou terá sido, mesmo, uma investida de
autoridade que reclamara para si todo o poder da Máquina?
Para além de um caso individual
A experiência do incidente de ver-se impossibilitado de obter um simples
documento ou ser exaustivamente testado na resolução de algum problema por
empecilhos atribuídos à tecnologia pode servir-nos para ampliar o leque
interpretativo para pensar a sociedade em questão, bem como as relações com a
população e o papel da burocracia. Para Michel Foucault, as relações de poder,
os factos de dominação, as práticas de sujeição não são específicos aos
totalitarismos, também atravessam as sociedades ditas democráticas (2006:
295). Nestes termos, apesar do exemplo singular que detona tal reflexão, a
sutileza dos mecanismos de sujeitar a população às mais variadas situações, por
vezes perversas, exige das pessoas ' oscilando o grau de dificuldades em função
da literacia, da situação financeira, da língua, do estado de saúde ou de
velhice ' o exercício abnegado ou angustiado de perseverar ou abandonar a busca
pela resolução de seus problemas ou reivindicações. Assim, a percepção da
diferença cultural (e também de classe ou género) pode ser um indicador de
discriminação ou preconceito que na relação poderá ocorrer dos modos mais
sutis, sem serem passíveis da sanção social.
O fato de a gerente ter tido a iniciativa de emitir uma ordem para que os
atendentes (os fiéis comandados) fizessem o NIF (aos estrangeiros / as) sem
a presença de um cidadão português, conforme o relato de campo da investigadora
citada, suscita outra indagação. Por quê os atendentes não aderiram, então, à
continuidade do cumprimento da ordem? Temos aí mais uma boa pista. Pensadores
como Max Weber, que tratou a burocracia, ou Robert Merton, sobre a relação
entre a burocracia e a personalidade, são convidados inspiradores para avançar
nesta base empírica. A idéia de costume pode ser interessante para reflectir
acerca da ordem emitida e, posteriormente, não mantida. Em Weber, o
costumeestá em oposição à convenção e ao direito, de tal modo que este é
uma regra que pode, por vezes, não ser seguida ou garantida. O costumeimpõe
uma conformidade com a maioria, uma vez que a validade' de uma ordem
significará, pois, para nós mais do que uma simples regularidade condicionada
pelo costume ou por uma situação de interesses, do decurso da acção social
(Weber 2005: 54).
Robert Merton observa que dentro da burocracia há disposições para inculcar e
fortalecer sentimentos (1966: 101) que farão com que o / a funcionário / a
possa manipular ou moldar o seu grau de submissão a uma norma(ou ordem). A
pressão que a estrutura da Máquina exerce sobre o fiel comandado para que
este seja metódico, prudente, disciplinado no cumprimento de suas funções é
necessária também no âmbito da própria estrutura social, desencadeando a
existência de fortes sentimentos que assegurem dedicação aos próprios deveres,
uma aguda percepção dos limites da própria autoridade e competência e a
realização metodizada das actividades de rotina (Merton 1966: 101). Deste
modo, a disciplina torna-se, na visão de Merton, um fim em si mesmo que
produz a rigidez e a incapacidade de ajustamentos imediatos (1966: 102),
impossibilitando a resolução dos problemas dos cidadãos e cidadãs. Uma ordem
dada por um superior sem uma base que assegure aos fiéis comandados a
confiança no seguimento desta ordem,não chegará à convenção, ao direito
(Weber 2005). Será que, no âmbito da estrutura da Máquina, a inadequação da
orientação não potencia a resistência dos / as fiéis comandados / as à
eficiência, sobretudo diante dos casos particulares? Qual a variável que
vulnerabiliza (a mim e) tantos / as (outros / as) cidadãos / ãs?
Tal variável é ser estrangeiro / a e esta identificação está atrelada a outra
variável que é a da vulnerabilidade. Esta, por sua vez, é contextual e
contingente, pois resulta de subjetividades no cerne de ambíguas, porém,
dinâmicas relações de poder no cotidiano das pessoas, ora pendente para um lado
ora para outro, com maior ou menor inflexão, flutuando e modificando-se.
Avulnerabilidade pode ter cor, sexo, classe e, talvez, idade, mas, neste caso,
o meu aprendizado foi que dentro dos 99% de percentagem que poderia indicar
positividade (posto que tinha a documentação em dia e estava em condições
legais), havia um elemento classificatório que exigiria a necessidade de
negociação: era estrangeira. Tal como tantos outros cidadãos e cidadãs,
portanto, não estava isenta de micro-obstáculos que teria que negociar diante
dos recursos de poder apresentados, deveria demonstrar meu desempenho e
responder aos reflexos de obediência, enquadrando-me conforme o
funcionamento tecnológico dos serviços (Gil 2004). Quando eles funcionam.
Entretanto, se as recordações de cidadãos e cidadãs portugueses emigrados para
o Brasil e brasileiros emigrados para Portugal remetem para experiências que ao
serem relembradas marcam sentimentalmente, também é fato que o processo de
adaptação a toda e qualquer nova situação marca-nos, inicialmente, no plano dos
sentimentos. Desta maneira, é recorrente que a primeira expectativa do / a
imigrante que se encontra legalizado / a, originário / a de país cuja expressão
linguística é a portuguesa, seja a de receber tratamento diferenciado ' se não
pela língua comum, ao menos pela condição de legalizado / a.
Em contrapartida, para os / as cidadãos / ãs do país de acolhimento, neste
caso, Portugal, pertencente à União Européia (UE), as expectativas se sobrepõem
e intensificam-se dado o processo de sucessivos contratempos na adaptação deste
país quanto ao seu estilo de relacionar-se com a UE e com o mundo (Feldman-
Bianco 2002; Cabral 1992). Todavia, o Tratado de Roma, redigido em 1957 e um
dos pilares fundadores da UE, assentava nos princípios da igualdade de
tratamento e da não-discriminação [que] constituíram o primeiro factor
originário de um sentimento de pertença a uma mesma comunidade política, o que
alberga em si a idéia de cidadania, pelo simples facto de que qualquer europeu
tinha o direito de ser tratado da mesma forma que os nacionais do país onde se
encontrasse, o que fazia esmorecer a noção de estrangeiro' (Mendes 2004:
175). Nos dias atuais, as manifestações de estigma contra o imigrante--
estrangeiro influenciam nos processos sociais e desencadeiam dramas sociais
[21]
que, por sua vez, também são vividos por nacionais, cidadãos / ãs portugueses
ou vindos dos países africanos de língua oficial portuguesa, os PALOP (Gusmão
2004; Vala, Brito e Lopes 1999), imigrantes do Brasil ou países do Leste
europeu.
[22]
(Não) Somos iguais na diferença
E o que é ser um / a cidadão / ã no espaço da União Européia? Falar em ser
cidadão / ã é recobrar a idéia de pertencimento e de direito. Assim, se
recorrer à definição clássica encontro o seguinte: é ter direito à vida, à
liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei; é ter direitos civis, [ ]
votar, ser votado, ter direitos políticos (Mendes 2004: 174). Todavia, numa
democracia não há direitos civis sem a garantia dos direitos sociais, tais como
o direito à educação, ao trabalho, a um salário justo, à saúde, a uma velhice
tranquila (2004: 175). Logo, poder gozar de todas as conquistas dessa riqueza
colectiva que é fruto de um longo processo histórico é saber poder exercer os
direitos civis, políticos e sociais, é viver a cidadania plena que, por sua
vez, é a prática democrática. Mas quando as pessoas não podem gozar das
conquistas da sociedade ocidental e vêem-se privadas de seus direitos?
Tal indagação pode remeter para um pensamento de que uns são mais iguais do que
outros e estes outros são aqueles que a priori não correspondem, de alguma
forma, ao estabelecido. Muito além da questão de raça, aquele ou aquela que
esteja fora da norma pode ser vítima de um processo e vir a ser impelido / a
à marginalidade, a viver à margem. Aquele ou aquela que se veja impedido de ser
um membro activo / a, actuante de uma comunidade, não pertence a esta, logo,
não é cidadão / ã. Assim, alojado nas entranhas das instituições, o racismo
permeia também outras relações, a saber, as de género e as de sexualidade. As
suas manifestações podem ir da violência física, em casos de machismo ou
homofobia, à violência mais sutil e silenciosa, a psicológica, manifesta na
indiferença à velhice ou para com o portador de necessidades especiais, ou
ainda na xenofobia.
Também é fato que nem todas as sociedades estão suficientemente preparadas
para exercitar a democracia, desconstruir relações contaminadas de sujeição e
construir relações de cidadania. Para tal é necessário o conhecimento e o
aprofundamento das práticas democráticas, implicando, assim, o reconhecimento
do poder não mais unilateral, mas bilateral. Daí se pressupõe que haja o
diálogo (a negociação) nas relações sociais ou, como coloca José Gil (2004:
37), o encontro entre o conhecimento da democracia e a prática
democrática, algo que para este pensador se encontra em estado de divórcio.
[23]
Dizer que poderia não ser necessária a presença física de pessoas, moradores de
uma determinada parte do país de acolhimento, implicadas no ato de terem que
testemunhar para efetuar a retirada de qualquer documento de que tem o dever de
ser portadora toda pessoa que trabalha, reside ou venha a querer realizar um
casamento com um / a nacional, eventualmente pode não soar bem aos ouvidos
disciplinados. Entretanto, a dificuldade para se estar em dia com as
obrigações, ou reclamar qualquer direito no interior da Máquina, restringe a
possibilidade de que os nacionais também possam aceitar que as dificuldades
sejam abrandadas aos / às estrangeiro / as. É como se questionassem: Como
dar ou facilitar os direitos aos imigrantes, quando para nós é difícil tê-los?
Numa situação social em que se julga poder dar ou retirar algo a outrem, tem-
se um processo interativo entre os participantes que devem proceder à
observação de algumas normas de decência e justiça. As pessoas são chamadas
a observar tais normas em diferentes situações sociais, sendo que ora uma e
outra poderão ter maior implicação, ora, noutra ocasião, uma e a outra serão
descabidas. Entretanto, as situações sociais implicam em performances, atos de
encenação não para expressar fingimento, mas para as pessoas representarem
aquilo que elas julgam ser (Martins 1999). Isto implica ainda uma certa
construção, uma lapidação no bojo do processo de interação social em que os
participantes aprimoram tal desempenho; há uma responsabilidade mútua entre os
envolvidos e, caso haja uma falha de um destes, poderá ser criado um
constrangimento que estender-se-á aos demais participantes.
Nestes termos, pode-se pensar sobre a idéia de autoridade, sobre o modo como
ela é expressa nas situações mais simples do cotidiano, do que ressalta uma
certa ordem ou a necessidade de controlo nos (dos) relacionamentos entre as
pessoas. Para tanto é necessário não deixar de falar da justiça, da força,
mas sobretudo para destacar que, quase sempre, falar em autoridade é considerar
que há uma força legitimadora ' pode ser moral ou física, mas há uma força.
Acreditar na autoridade enquanto exercício da força pode ser um princípio de
crença marcado pelo que Montaigne denominou de fundamento místico da
autoridade (Derrida 2003). Trabalhar com tal fundamento é oportuno porque pode
levar-nos para um outro elemento muito importante, que é o costume.
[24]
Este, por sua vez, pode ser mantido por várias gerações numa sociedade em
movimento, posto que atrela-se à memória, às bases da socialização e da
construção das identidades pessoais e colectivas. Sobre a expressão fundamento
místico da autoridade, Derrida escreve o seguinte:
[ ] um, diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador, outro, a
comodidade do soberano, outro, o costume vigente; e isto é o mais certo: nada,
segundo a estrita razão, é justo por si; tudo se altera com o tempo. O costume
faz a equidade, pela simples razão de ser recebido; tal é o fundamento
místicoda sua autoridade. Quem a reconduz ao seu princípio, aniquila-a (2003:
21).
Derrida destaca que Montaigne, que distinguia o direito (as leis) da justiça,
dizia que a autoridade das leis era tal que [ ] quem lhes obedece por elas
serem justas, não lhes obedece justamente por onde deve porque [ ] as leis
mantêm-se credíveis, não por serem justas, mas por serem leis (Derrida 2003:
21). As leis têm autoridade, elas têm um crédito de crença que lhes é dado e é
por isso que, de meu ponto de vista, a noção do costume pode abrir uma brecha
para a compreensão do modo como as pessoas podem se apropriar, através das
práticas / ações, do sentido de autoridade ou de extensão de autoridade numa
situação social.
A oscilação do uso e abuso da autoridade enquanto forma de constrangimento
moral ou físico, através da violência, pode servir para pensar sobre as
atitudes protetoras, abusivas e arbitrárias quando se sentem os tentáculos de
uma Máquina burocrática, por exemplo. Será que mudar um costume é ter que
desconstruir uma idéia de direito, é modificar mentalidades, visão de mundo,
modos de ver e ser? O Tratado de Amsterdã (de 1997), que nasce com o propósito
de criar uma Europa dos Cidadãos em detrimento de uma Europa dos Estados,
destaca ainda o princípio da não-discriminação (artigo 13.º), com objetivo de
combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou
crença, deficiência, idade ou orientação sexual (Mendes 2004: 177). Este é um
princípio geral da igualdade, mas o que acontece quando os fatos sociais não
corroboram as leis e corroboram costumes, como a prostituição e o tráfico de
mulheres e menores para fins de escravidão? Será que há diferença? E quando a
dimensão do poder joga com a dimensão subjetiva das pessoas que executam as
leis? Como tratar a dualidade existente entre os representantes da Máquina que
se colocam como autoridade ao mesmo tempo?
Se retomar as experiências vividas quando tentava obter o meu NIF e recuperar a
imagem do fiel comandado com seu semblante austero e indiferente, aliando-as
à experiência do cidadão português que fizera uma doação ao hospital X, com a
fiel comandada na sua atitude de autoridade, é possível destacar algumas
características comuns entre os fiéis comandados: a primeira é a
impessoalidade, a segunda é a de ser um / a representante do poder, a
autoridade, independentemente do cargo que exerce. Ambas podem ser encontradas
nas estruturas da Máquina. Tais atitudes comportamentais correspondem ao que
Robert Merton tratou como disfunções da burocracia, que, conforme o conceito
de Veblen, traduzem-se na incapacidade treinada, ou, ainda, no conceito de
Dewey de psicose ocupacional.
[25]
Ora, na ambivalência das relações entre os fiéis comandados e os clientes
(tratados por utentes) reside uma fonte de conflitos, posto que a insistência
no comportamento estereotipado que a Máquina sustenta, corroborando o mínimo
envolvimento com os problemas individuais, os casos particulares dos
indivíduos, acaba por não corresponder à resolução dos problemas sociais. Ao
contrário, pode manter ou instaurar outros mas, concomitantemente, salvaguarda
a própria estrutura da Máquina burocrática. E talvez seja esta a máxima do jogo
da Máquina. Mas os fiéis comandados não são também cidadãos e cidadãs?
Sílvia Mendes (2004) observa que, no âmbito da configuração da União Européia,
há ecos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,nomeadamente sob os
princípios que se impuseram com a Revolução Francesa. Assim, a Revolução que
teve a Razãocomo símbolo, teve na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
a retirada do aspecto divino como o Deus que provê a todos e delegou ao Homem
uma certa autonomia, de tal sorte que este passasse a viver, politicamente, em
sintonia com o Criador. A partir de então, a nação seria composta pela reunião
voluntária das vontades individuais, porque parte-se do princípio que a
soberania passa a residir na nação (Mendes 2004: 164). Ora, para Hobbes,
aquilo que fundamenta o Estado, o soberano, o Leviathan, e que está no
princípio das relações de poder, é algo que está profundamente enraizado na
idéia de ordem, de paz, do acima da lei, é mais do que a guerra. É algo que
acontece constantemente e em todos os âmbitos, pois é a mais geral de todas as
guerras. Mas que guerra é esta? Do forte contra o fraco? Do novo contra o
velho? Em Hobbes, é o tipo de guerra de todos contra todos, uma vez que não
se trata de uma guerra marcada por diferenças visivelmente estabelecidas.
[26]
Como o formula Foucault, é um estado de diferença insuficiente (2006: 101).
Sendo assim, os indivíduos são iguais, sujeitos de direitos naturais. Mas é
preciso pensar além do modelo jurídico, da lei como manifestação fundamental
do poder e buscar as várias formas de poder, nos seus entrecruzamentos,
especificidades, convergências; ou seja, concebendo o poder a partir das
relações de força, distinguindo as diferentes técnicas de coacção que ela faz
operar (Foucault 2006: 283).
Na sociedade dos indivíduos europeus, marcada por princípios que remontam à
tradição, à sociedade agrária, camponesa, recém-liberta da ditadura
salazarista, que passou de um Estado autoritárioa um Estado democrático, será
que foi possível modificar mentalidades e percepções de mundo? Será que em
alguns espaços não se vê a real expressão da pendularidade do Estado
totalitário presente no Estado democrático, ou práticas democráticas matizadas
do totalitarismo ou vice-versa? Ou ainda, como salienta Adriana Bebiano (2002),
citando uma justificativa de Salazar perante a solicitação da multinacional
Coca-Cola para entrar no território / mercado português, o melhor seria que
Portugal permanecesse no estado de harmonioso atraso?
[27]
Não obstante, no cotidiano, as constantes perturbações que afligem as pessoas
se refletem nas relações interpessoais, nas relações sociais, em diferentes
espaços. A necessidade do silenciamento através do uso da força ou
constrangimento em nome e segundo o princípio da lei, escamoteia o medo e o
estranhamento da igualdade. O discurso da igualdade encontra nele próprio o
limite para justificar-se (Derrida 2003: 24). Se na democracia o que se
pretende é a igualdade na diferença, entretanto, quando as identidades sob
pressão são constrangidas a uma existência de massacre da diferença,
silenciando assim suas características intrínsecas, vê-se repondo o que
Foucault denominaria de biopoder, matando o desejo do outro / estranho e a
si mesmo, porque também se aspira à diferença e, ao identificá-la noutro, a
assimilo e a neutralizo. Logo, a idéia de ser diferente, de ver satisfeita, em
si, a diferença, se torna muito perigosa. Noutra direção, esta mesma idéia pode
também recobrar o desejo da (in)diferença por parte principalmente dos que
reivindicam sua existência na diferença, quando o reconhecimento e a aceitação
da diferença já está interiorizado e, portanto, aquele / a que reconhece o
outro não o faz por imposição ou constrangimento, mas o reconhece na totalidade
do sujeito / indivíduo que existe.
Finalizando, espera-se que estes poucos exemplos de experiências de distintos
sujeitos sociais ' incluindo o meu próprio ' sejam fecundos para se pensar
sobre a compreensão que temos (ou não temos) acerca dos nossos deveres e
direitos, na vida em sociedade, nos dias atuais. No conjunto, quis demonstrar
que os cidadãos e cidadãs, estrangeiros e portugueses, em Portugal, não estão
isentos das malhas ou dos caprichos da Máquina burocrática. Todavia, tal
observação não ameniza ou serve para mascarar as implicações destes mesmos
sujeitos na manutenção do sentido de autoridade numa situação social. Se este
sentido se mantém despótico, talvez a representação que se tem de autoridade,
nesta sociedade ou mesmo em outras, ainda não tenha mudado. Assim sendo, e
porque este ensaio suscita muitas outras indagações à espera de respostas
através de uma pesquisa mais apurada e contrastante com o outro lado da moeda,
o das versões daqueles que formulam as normas, fica aberto, portanto, um
campo para investigar sobre tais marcações presentes nas ações dos sujeitos,
vendo o que fortalece as arbitrariedades e contribui para a domesticação ou o
acirramento dos conflitos, no âmbito das relações de força. Ao fazer este tipo
de sugestão quero simplesmente detonar processos de reflexão e
problematização, suscitando o debate e o estranhamento de práticas e ações
tidas como naturais, subvertendo o cotidiano e as nossas fórmulas para
interpretá-lo, por vezes acomodadas, de tal forma que dos tentáculos do polvo
cheguemos à sua cabeça: o Estado.