Portugal em transe: transnacionalização das religiões afro-brasileiras,
conversão e performances
Ismael Pordeus Jr.
Portugal em transe: transnacionalização das religiões afro-brasileiras,
conversão e performances
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 168 páginas.
Clara Saraiva
IICT e CRIA / FCSH-UNL
Este livro de Ismael Pordeus Jr. surge no seguimento do seu vasto trabalho
sobre religiões afro-brasileiras (e em especial a umbanda) no Ceará e em
Portugal. Organizado como um conjunto de narrativas compostas a partir da
pesquisa encetada em 1995, baseia-se em várias épocas de trabalho em Portugal
ao longo de doze anos, entre as quais se destacam estadias de terreno mais
prolongadas em 1998 e de novo em 2005 e 2007.
Partindo da constatação da recomposição do campo religioso português após o 25
de Abril de 1974, com a subsequente abertura às mais variadas formas de
religiosidade, o autor analisa a expansão das religiões afro-brasileiras no
país e a forma como, passado um quarto de século após a revolução dos cravos,
elas estão a constituir-se como componentes cada vez mais importantes desse
mesmo campo religioso.
O primeiro capítulo fornece o quadro conceptual, identificando e analisando as
perspectivas teóricas que lhe serviram de base, mas sintetizando também as
temáticas que vão funcionar como fio condutor. O autor enumera assim as
questões que serão debatidas ao longo do texto, que se revela multidimensional,
ao entrecruzar as perspectivas teóricas com a descrição etnográfica e o diálogo
com os informantes.
Surgem assim tópicos como o da organização inicial da umbanda no Brasil,
sobretudo no Rio de Janeiro, e os momentos primordiais da sua expansão para os
países do Rio da Prata, seguida da sua travessia do Atlântico e instalação em
Portugal e na Europa, salientando-se o quanto o papel das mulheres migrantes
foi importante nesse processo. Aos aspectos ligados à relevância da possessão
enquanto prática ocial ' segundo as perspectivas teóricas de Berger, Bastide,
Dianteil e Swearingen ', segue-se a explicitação de que as performances rituais
irão ser analisadas à luz de Kristeva (por meio da noção de inter-
ritualidades), Turner (utilizando sobretudo a concepção de liminaridade),
Duvignaud (a perspectiva do ritual olhado enquanto jogo e teatro), Cazeneuve,
Dawsey (no respeitante à leitura da performance como manuscrito), e ainda
Leiris (de novo relativamente à possessão e aos seus aspectos teatrais, e à
possessão olhada como o momento da expressão, p. 14). O autor completa estas
incursões teóricas explicitando o quanto o transe e a possessão codificam
formas não verbais da performance e promovem abertamente a sua eficácia
(p. 15).
A partir desta noção de performance, Ismael Pordeus Jr. explicita como
valoriza, neste seu trabalho, a oralidade performativa, isto é, as entrevistas
e os diálogos encetados com os seus informantes. Seguindo uma orientação
teórica e de escrita já utilizada em outras obras suas sobre as mesmas
temáticas (Uma Casa Luso-Afro-Brasileira comCerteza, 2000; Magia e Trabalho: A
Representação do Trabalho na Macumba, 2000; Umbanda: Ceará em Transe
, 2002), o autor explica que delega na escrita a oralidade performativa dos
diálogos estabelecidos no campo, tal como a própria performance ritual, e que
a escrita é uma narração cuja urdidura inclui várias vozes: a do autor, mas,
principalmente, a voz de todos aqueles que dizem e fazem as religiões afro-
brasileiras em Portugal (p. 15). Passando em revista as perspectivas de
Bakhtine sobre as relações dialógicas e a função da linguagem, afirma optar por
apresentar as narrativas transculturais luso-afro-brasileiras a partir da
óptica bakhtiniana, apresentando a língua do observado e do observador como
uma construção dialógica muito especial, em que o discurso que representa
estabelece uma relação de desmascaramento em relação ao discurso representado
(p. 16). Assim sendo, é através dos relatos e histórias de vida dos informantes
que o autor estabelece essa etnografia dialógica do universo da expansão das
religiões afro-brasileiras em Portugal, advogando a primazia da transcrição
textual e da tradução, e a função dialógica desempenhada pelo intérprete e
pelos informantes privilegiados (p. 39).
O restante do capítulo introdutório trata do cenário da composição e divulgação
da umbanda no Brasil, revendo escritos clássicos (de Nina Rodrigues a Artur
Ramos, Gilberto Freyre, Roger Bastide e Pierre Verger) e outros da história
mais recente da literatura académica sobre essas religiões no seu país de
origem (Renato Ortiz, Diana Brown, Liana Trindade, Vagner Gonçalves da Silva,
Reginaldo Prandi, Giobelina Brumana e Martinez, Erwan Dianteil), e abordando
aspectos ligados à representação de um elemento fulcral nesses contextos, a
figura de Exú, como elemento mediador indispensável entre os homens e os
orixás. A partir da concepção de Exú como herói civilizador (p. 19), Pordeus
Jr. continua, sempre no contexto brasileiro, a explicar a expansão da umbanda e
o seu sucesso no mercado religioso.
É a partir dessa constatação que o autor passa para a análise da
transnacionalidade religiosa como a adopção de formas culturais em mouvance
(p. 23) e para a abordagem do caso português, através da noção de festa aliada
ao transe, pensados ambos como fenómenos de ruptura com o quotidiano.
Possibilitados pela abertura religiosa pós-1974, o transe e a possessão
aparecem assim, segundo o autor, como parte integrante das novas religiões em
Portugal, e como elementos importantes na constatação da amplitude actual da
oferta de serviços mágico-religiosos, facilmente visível na imprensa
portuguesa, a que alude. Pelo seu carácter individualista de oferecimento de
serviços, o autor põe estes casos, que denomina, mais uma vez na esteira de
Turner, como anticommunitas, em contraste com a criação de comunidades
religiosas integradas, ilustradas com os casos dos terreiros existentes em
Portugal.
Os capítulos seguintes norteiam-se por uma conjugação feliz das perspectivas
diacrónica e sincrónica que se manterá ao longo de toda a obra, e em que se
entrecruzam, não só os vários testemunhos que o antropólogo foi recolhendo ao
longo do seu percurso de pesquisa, mas também as histórias de vida e percursos
individuais de cada informante.
Na perspectiva diacrónica, num primeiro momento, Pordeus Jr. reporta-se à
instalação dos primeiros terreiros de umbanda em Portugal, quadro em que
salienta a criação do terreiro Ogum Megê, de Mãe Virgínia de Albuquerque
(sublinhando os dois factores importantes na constituição dos primeiros
terreiros: as mulheres e o ciclo migratório), partindo depois para uma
apresentação de outros ritualistas religiosos, explicitando como a partir
desses primeiros casos se deu a multiplicação e a adesão dos portugueses a tais
práticas.
Na aproximação sincrónica, é fornecido o panorama dos diversos terreiros
existentes à data da escrita do texto (2008) no país. Com base no diálogo
estabelecido com praticantes e ritualistas religiosos, tal como foi afirmado no
capítulo inicial, são as histórias de vida de cada um deles que ilustram as
diversas facetas das temáticas exploradas na obra (p. 32). Reforçando o quanto
é importante, na escrita de Ismael Podeus Jr., o cruzamento da teoria com a
exposição, os excertos de entrevistas e as histórias de vida em directo, são
várias as ocasiões em que o leitor é introduzido no universo dos terreiros e
das práticas religiosas pelo discurso directo dos próprios personagens.
É assim que vamos percorrendo esse universo rico de ritualistas e de
experiências vividas, com as histórias de vida das mulheres pioneiras que,
oriundas do seu percurso migratório no Brasil ou noutros espaços, começaram a
dedicar-se a tratar as situações de aflição dos portugueses (para além da de
Virgínia de Albuquerque, aparecem as histórias de Fernanda e Georgete,
Mariazinha, Ema Casimira, Maria Armanda e Teresinha de Goa). Seguem-se dois
capítulos que dão conta das realidades dos actuais terreiros dos arredores da
capital, desde o exemplo de casas que foram inicialmente filiais de casas-mãe,
situadas no Brasil (como é o caso do templo Guaracy de São Paulo), até
terreiros mais autónomos, fruto dos percursos individuais dos seus líderes
religiosos, como o Terreiro de Pai Oxalá e Mãe Iemanjá, em Cortesia, ou a Casa
de Caridade Maria de Nazaré, em Mafra, encimada pela figura da Mãe Virgínia.
A diversidade e riqueza das performances rituais, praticadas maioritariamente
por portugueses, mas em que também surgem ritualistas religiosos brasileiros, é
constatável pelas detalhadas descrições sobre a Jurema em Portugal, e ainda (no
capítulo seguinte) pelas análises relativas a terreiros do Norte do país,
nomeadamente a do Templo de Umbanda Pai Oxalá e Mãe Iansã (Tupomi), na Maia, ou
do Templo de Umbanda Pai Oxalá (Atupo), em Braga.
Os dois capítulos finais tratam do que o autor denomina inter-ritualidades, e
aí são focados aspectos em que se entrecruzam performances católicas (como o
lava-pés de Quinta-Feira Santa num terreiro de umbanda em Lisboa), ou jogos de
adivinhação africanos e afro-brasileiros (como o jogo de búzios e de tarot),
com devoções a santos populares em capelas do litoral nortenho e performances
que ilustram facetas do complexo universo da religiosidade popular portuguesa.
O último caso relatado, acerca do surgimento, no terreiro de Braga, de uma
entidade portuguesa no panteão umbandista, o marinheiro Agostinho, é mais um
exemplo que demonstra o quanto uma variante lusitana das religiões afro-
brasileiras parece estar em plena criação. Isto é ademais afirmado na
conclusão, em que o autor reforça a noção da importância do triângulo África-
Portugal-Brasil, e como o Brasil é olhado como fonte de legitimação (tanto
pelos praticantes como pelos líderes religiosos) no processo de
transnacionalização destas religiões para Portugal.
Se algumas das questões debatidas haviam sido anteriormente focadas em Uma Casa
Luso-Afro-Brasileira com Certeza,elassão aqui retomadas e aprofundadas. A
profusão de descrições pormenorizadas e a opção do autor de fornecer os
discursos directos dos informantes, que nos são apresentados sem passarem pela
peneira crítica do antropólogo, abrem-nos um mundo de experiências vividas e de
realidades etnograficamente muito ricas. Como tal, esta é uma obra de leitura
imprescindível, não só para qualquer analista social que se dedique ao estudo
das religiões afro-brasileiras, mas, de um modo mais geral, para qualquer
interessado na antropologia da religião e no panorama actual da reconfiguração
do campo religioso português.