Sofrimento social: idiomas da exclusão e políticas do assistencialismo
Sofrimento social: idiomas da exclusão e políticas do assistencialismo
Chiara Pussetti* e Micol Brazzabeni**
*Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-IUL), Instituto
Universitário de Lisboa, Portugal; chiaragemma.pussetti@gmail.com
**Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-IUL), Instituto
Universitário de Lisboa, Portugal; brazzabeni.mic@gmail.com
Social suffering: languages of exclusion and welfare policies
ABSTRACT
The concept of social suffering has emerged in recent decades as a new paradigm
in social sciences and as a particularly appropriated lens to look at the deep
relationships between the subjective experience of malaise and the broader
historical and social processes. This article and the contributions gathered in
this dossier aim to address social suffering from three different basic points
of view: 1) the paradoxical form by which power is taken from or given to the
people; 2) the appropriation, by the institutions that create the conditions
for that suffering to take place, of "salvific" theories about the
usefulness of suffering in order to achieve a greater and future well-being of
humanity; 3) the evidence of the extent to which care and cure, the welfare-
state, humanitarian protection, or even rights can be manipulated and
intertwined in the definition and organization of the modalities of national
belonging or exclusion, to the extreme reduction of the individual to his
"bare life".
KEYWORDS: social suffering, agency and subjectivity, welfare policies.
O primeiro debate sobre sofrimento social e individual que estabelecemos com os
autores do presente dossiê decorreu no painel Vivenciar o sofrimento social:
suas ambiguidades e articulações, por nós organizado, no IV Congresso da
Associação Portuguesa de Antropologia (APA), que teve lugar em Lisboa em
setembro de 2009. Os autores aqui reunidos aceitaram o desafio de sugerir novos
elementos de reflexão sobre a temática do sofrimento social que tem merecido
grande atenção nas últimas décadas nos campos científicos da antropologia, da
sociologia, da psicologia social, como também no âmbito das políticas públicas
e económicas internacionais.
Os contributos provêm de pesquisas de terreno de investigadores e docentes que
exploram o tema nas suas variadas formas e expressões e que se propõem abordar
o conceito de sofrimento social em diálogo com questões de género, saúde
pública, juventude, exclusão social, migração, pertenças identitárias, desvio
social e crime, com especial atenção às suas repercussões nos corpos e nas
palavras dos sujeitos afetados.
O objetivo é examinar as causas sociais e as experiências individuais do
sofrimento em diferentes contextos, focando em particular questões como: a
natureza social e política da doença e do mal-estar; as interfaces entre os
significados da pertença identitária e social dos sujeitos, e os saberes e as
práticas da agenda institucional dirigida às políticas dos cuidados e do
acolhimento; as narrativas subjetivas da dor; a responsabilidade e o
posicionamento ético-político dos antropólogos face à produção e implementação
de formas de violência e sofrimento social.
É intenção dos autores explicitar também as ambiguidades do sofrimento social
através de dois aspetos: por um lado, a análise das intervenções sociais para
aliviar o sofrimento dos sujeitos definidos como vulneráveis e que
frequentemente resultam na sua intensificação; por outro, a problematização das
mesmas intervenções, que classificam os sujeitos em categorias rígidas, através
de mecanismos complexos de patologização, criminalização e exclusão social.
Será dedicada particular atenção às formas locais de agência, individual ou
coletiva, para lidar com a experiência do sofrimento social, de forma a
tentar acompanhar os aspetos processuais da vida social.
O conceito de sofrimento social emergiu nas últimas décadas como lente
particularmente apropriada para olhar as relações profundas entre a
experiência subjetiva do mal-estar e os processos históricos e sociais mais
amplos. O sofrimento, enquanto sentimento humano, foi por muito tempo imaginado
como uma experiência inata, ligada ao corpo natural e, portanto, universal '
fenómeno pan-humano e pré-cultural, associado aos lugares simbólicos da
interioridade ', pouco interessante, nesse sentido, e ainda menos acessível aos
métodos da análise sociocultural. Este paradigma universalista está ligado a
uma espécie de realismo ingénuo segundo o qual o amor, a chuva, o casamento,
os cultos, as árvores, o sofrimento, a morte, a comida e mil outras formas de
realidade têm o mesmo significado para todos os seres humanos (Bibeau 1995
[1981]: 41).[1]
Todavia, a partir de uma análise mais atenta, o sofrimento revela-se como um
facto especificamente social: o primeiro livro (de uma trilogia) de Kleinman,
Das e Lock (1997) dedicado à questão do sofrimento social inaugura a linha de
pensamento segundo a qual o mal-estar não pode ser observado e explicado
independentemente das dinâmicas sociais e dos interesses políticos e económicos
que o constroem, reconhecem e nomeiam. As interpretações do sofrimento apelam a
uma consciência da história do discurso que as elabora, cujo contexto é sempre
o das relações de poder locais. Necessariamente, um olhar crítico sobre o
sofrimento considera portanto as práticas e estratégias ' produzidas e
sustentadas dentro de um quadro de relações de poder ' que o definem e o
aliviam, avaliando a posição dos interlocutores e a ideologia veiculada pelas
categorias em jogo.
O sofrimento social, nesta perspetiva, resulta de uma violência cometida pela
própria estrutura social e não por um indivíduo ou grupo que dela faz parte: o
conceito refere-se aos efeitos nocivos das relações desiguais de poder que
caracterizam a organização social. Alude, ao mesmo tempo, a uma série de
problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas
fraturas devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência
humana. O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político,
económico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas
de poder podem influenciar as respostas aos problemas sociais. O sofrimento
social é o resultado, em outras palavras, da limitação da capacidade de ação
dos sujeitos e é através da análise das biografias dos sujeitos que podemos
compreender o impacte da violência estrutural no âmbito da experiência
quotidiana.[2]
Comparando as biografias dos indivíduos e grupos que protagonizam as histórias
reunidas neste dossiê, verificamos que o elemento comum é uma relação incómoda
entre sujeito e ordem social: eles partilham a mesma condição de viverem nas
margens de organizações sociais, profundamente desiguais, e de não poderem
negociar os termos da própria existência. Resulta claro neste ponto o nexo
entre violência estrutural, agência e sofrimento social: uma certa configuração
da ordem social restringe a capacidade e a liberdade de escolha de certos
indivíduos ou grupos.
A capability-based approach, proposta por Amartya Sen (2005, 2009),
[3]
sugere que as forças sociais limitam as possibilidades de ação e de escolha
dos sujeitos e conformam as suas experiências quotidianas; noutros termos, a
maior ou menor liberdade das pessoas depende também da maior ou menor
possibilidade de escolherem entre diversas alternativas possíveis. Todas as
etnografias do dossiê salientam, no fundo, de forma mais ou menos explícita, a
relevância da dialética entre sofrimento, liberdade, subjetividade, agência e
responsabilidade ' esta última não só das etnografias dos antropólogos e das
suas análises, mas também dos sujeitos envolvidos na produção, implementação e
disseminação de sofrimento.
O elemento interessante e pertinente da teoria de Sen sobre o desenvolvimento
como liberdade assenta na ligação que o conceito de capabilidade estabelece
entre liberdade e direitos humanos: ao avaliarmos as nossas vidas, temos todas
as razões para estarmos interessados, não apenas no tipo de vida que
conseguimos levar, mas também na liberdade de que realmente dispomos para
escolhermos entre estilos e maneiras de viver diferentes (2009: 227). Desta
forma, as teorias sociais que abordam o sofrimento como o resultado de ações,
comportamentos ou privações internas aos sujeitos esquivam-se a analisar as
oportunidades que os indivíduos têm para alcançarem os seus objetivos e os
processos através dos quais chegam a escolher ou não. De facto, o que é
relevante é a liberdade disponível para efetuar escolhas entre várias opções, e
não tanto ou apenas o que realmente temos ' o que Sen chama culmination
outcomes (2009: 215).
O sofrimento não entra portanto no quotidiano das pessoas só por mero acaso,
por contingências específicas da vida ou por existirem mecanismos objetivos de
disfunção social. Como afirma Das (1997), nas sociedades contemporâneas, a
violência e o sofrimento infligidos podem ser interpretados como um preço a
pagar pelos indivíduos para vivenciarem sentimentos de pertença identitária e
social ' uma teodiceia secular que funciona quer como instrumento social para
enfrentar as frustrações, quer como instrumento de poder para explicar e
justificar o sofrimento atribuindo-lhe uma alegada utilidade social e
pedagógica (ver Das 1995, 1997; Herzfeld 1992).
Se considerarmos os fenómenos de sofrimento social como factos sociais totais
que acarretam consigo outras e diversas dimensões e questões interligadas '
como as da saúde, do trabalho, do welfare, religiosas, políticas, morais,
legais, éticas, culturais ' e se considerarmos a experiência direta ou indireta
do sofrimento por parte dos indivíduos, conseguimos vislumbrar toda a sua
complexidade enquanto novo paradigma das ciências sociais e, de certa forma, a
sua inefabilidade do ponto de vista fenomenológico. Elizabeth Challinor, no
presente volume, procura pôr em diálogo as abordagens do sofrimento social e as
dimensões subjetivas que permitem analisá-lo mais proficuamente, tentando ainda
situar-se, através de uma etnografia densa, nas tensões entre os aspetos
universais e individuais da experiência humana. A sugestão de que o sofrimento
pode resultar de dinâmicas intersubjetivas de posicionamento social e de uma
matização identitária alerta o nosso olhar para os aspetos processuais do
próprio sofrimento (ver Biehl, Good e Kleinman 2007).[4]
Embora não diretamente abordados pelos autores do dossiê, os estudos sobre
refugiados (e não nos referimos aqui necessariamente ao âmbito mais
institucionalizado dos refugees studies) são exemplos claros e dramáticos de
alguns aspetos que nos interessa introduzir e que estão diretamente ligados à
temática do sofrimento social e da violência estrutural: primeiro, a forma
paradoxal como é retirado ou atribuído o poder às pessoas (ver Harrell-Bond
1999); segundo, a apropriação, por parte das instituições que criam as
condições para que o sofrimento tenha lugar, das teorias salvíficas sobre a
utilidade do sofrimento com vista a um bem-estar maior e futuro da humanidade
(ver Das 1997; e a violência do zelo de Lock 2000); e, finalmente, a
evidência de quanto a assistência, os cuidados, o Estado-social, a proteção
humanitária e até os direitos podem ser manipulados e imbricados na definição e
organização das modalidades de pertença ou exclusão nacional (ver Bauman 2005
[2004]; Van Aken 2005), até ao extremo da redução do indivíduo à sua vida nua
(Agamben 1995).
O que se pretende defender é uma nova forma de olhar para o sofrimento (e para
as pessoas que sofrem) e uma antropologia virada, não somente para a análise
dos mecanismos que criam sofrimento, mas também para a intervenção ao nível
político, social e económico. Esta antropologia pretende investigar e
problematizar as dinâmicas através das quais forças sociais como pobreza,
racismo, diferenças de género, migração, heranças coloniais e exclusão social
são incorporadas como fatores de risco e patologia, recusando um relativismo
extremo como resposta fácil a um universalismo ingénuo e problemático.
De facto, a articulação entre história, política e sociedade está, muitas
vezes, ausente das análises antropológicas que interrogam as linguagens
múltiplas do corpo e do sofrimento; e a erosão destas áreas do saber representa
provavelmente o problema central que uma antropologia do sofrimento, que se
queira crítica e politicamente engajada, deve enfrentar.
Bauman (2005 [2004]: 84-85) sublinha como, a partir dos anos 80, assistimos a
uma grande transformação na moderna organização da ordem e do progresso
mundial, cuja consequência fatal, entre outras, se refere à passagem de um
modelo de comunidade inclusivo, inspirado no Estado social', a um Estado
exclusivo, inspirado na justiça penal' e no controle da criminalidade'.[5]
O artigo de Paulo Artur Malvasi é um claro exemplo: a sua etnografia, enquanto
antropólogo e diretor de uma ONG em São Paulo, introduz-nos nas dobras ambíguas
do processo institucional de criminalização das periferias e dos jovens em
risco que nelas habitam. As medidas socioeducativas para jovens marginais
são alvo de uma reflexão militante[6] que procura ver por dentro e desvendar
os processos complexos e contraditórios de uma política institucional dirigida
aos cuidados e à reinserção de indivíduos sob cujo perfil se esconde um
discurso de vitimização das suas vítimas, moralização, psicologização e
medicalização.
A este propósito, Herzfeld (2006 [2001]: 265) interroga-se sobre o papel da
antropologia face a uma reformulação possível do social, no sentido de este se
tornar um lugar de cuidados, acolhimento e conforto e não somente de punição,
culpa e regulamentação. Este, no fundo, é o mesmo apelo de Das (1997) quando
alerta sobre a possibilidade de as ciências sociais facilitarem a reprodução do
silêncio das sociedades face ao sofrimento, como se existisse, denuncia Renault
(2008: 25-26), um efeito em espiral entre a invisibilidade, o caráter
indizível e os obstáculos à mobilização.
Esta antropologia, noutras palavras, socialmente responsável, propõe
interrogar-se incessantemente sobre os seus próprios instrumentos e
interpretações, animada por uma reflexividade que não se limita à questão da
subjetividade do antropólogo, mas que defende o empenho político do
pesquisador. Uma leitura antropologicamente sensível do sofrimento é portanto
uma questão política e uma responsabilidade ética em relação a atores sociais,
tantas vezes silenciados, e que consideramos, antes de tudo, como sujeitos
políticos e morais que, muitas vezes, manifestam sintomas produzidos pela
estrutura social, pelas suas desigualdades ou pelas profundas feridas da
história.
[7]
O poder que se procura analisar, todavia, não entra em jogo somente para
produzir as condições que favorecem a exclusão social, mas também para criar
respostas institucionais e políticas de intervenção adequadas ao sofrimento que
se propõe aplacar. Seguindo a proposta de Fassin (2005, 2006), um dos maiores
desafios atuais consiste em investigar as políticas contemporâneas, não tanto
nas suas instituições e técnicas, quanto no ethos que as anima e que Fassin
(2005) define como ethos da compaixão: trata-se de políticas que se empenham
em aliviar o sofrimento, afastando o olhar das suas próprias causas.
Sofrimento social é, de facto, um conceito muito utilizado hoje, não somente
nas ciências sociais, mas também nos programas governamentais e não
governamentais de apoio social, e que abrange aspetos diferentes relacionados
com a perda de qualidade de vida, podendo ser vivenciado tanto no plano
individual quanto no plano coletivo.
A retórica da qualidade de vida que informa estes programas, entendida em
termos morais, além de materiais, representa a instigação contemporânea de uma
intervenção destinada a uma maior inserção e realização pessoal (empowerment)
das faixas vulneráveis da população, com uma maximização da segurança pública.
A população em risco é também uma população de risco, que ameaça, que
contagia, segundo uma lógica caracterizada, por um lado, por discursos sobre
direitos e empowerment e, por outro, por discursos sobre o contágio e o
controlo (Seidel 1993).
As populações ou os indivíduos em excesso, que todavia permanecem dentro dos
confins dos Estados, necessitam de ser alojados ou, mantendo a metáfora
baumaniana, reciclados, de forma a que a sua anómala estranheza e exclusão
sejam rapidamente reintegradas através dos cuidados e da reabilitação.
O caso de Lucas, analisado por Ana Paula Serrata Malfitano, introduz-nos nos
meandros da legislação brasileira sobre crianças e adolescentes e sobre os
conceitos de tutela / autonomia quando estes colidem com as experiências
subjetivas dos jovens, alvo de políticas sociais específicas. Perder ou
ganhar a possibilidade de construir um percurso de autonomia ' sendo a tutela
assegurada só até à maioridade ' é um dos danos colaterais incalculáveis de
tais políticas, que perpassam as questões ligadas às desigualdades económicas,
arriscando esvaziar, de tal forma, os sentidos teóricos da proteção e da
tutela.
O sofrimento social aparece aqui, por um lado, como um empecilho, que obriga
as instituições a enquadrar médica e psicologicamente os jovens num quadro
sintomatológico normal, para que eles possam ter acesso a algum nível de
cuidado; por outro, surge como uma variável, quase imprevisível, que só pode
ser gerida se o jovem decide aderir a um percurso fortemente
institucionalizado e institucionalizante, no qual, de facto, pode acabar por
encontrar um lugar, mesmo que de sofrimento, no mundo.
Os destinatários das intervenções sociais têm efetivamente poucas formas de
acesso às respostas do Estado. Por um lado, estão relegados para as margens,
sendo ao mesmo tempo vítimas e ameaças da estrutura; por outro, é exatamente
esta posição de exclusão e marginalização que os torna recetores de intervenção
social. A única forma que eles têm de aceder a uma modernidade individualizante
é apresentar uma patologia social: Nguyen (2008) define esta condição como
cidadania humanitária, isto é, a constituição de sujeitos detentores de
direitos e responsabilidades na base de uma específica condição social.
O conceito de cidadania humanitária aproxima-se do conceito de
biolegitimidade proposto por Fassin (2001) para refletir sobre as
contradições das políticas francesas destinadas aos imigrantes não
documentados, inexistentes como detentores de direitos civis, a não ser quando
esteja em jogo a preservação da sua existência orgânica. É enquanto vida nua
(Agamben 1995) que o imigrante (ou o pobre, o marginal, o vulnerável, etc.)
obtém os direitos de cidadão que, de outra forma, lhe seriam negados, e pode
reivindicar com veemência a sua presença na sociedade.
A marginalidade, a dor, a doença, até a morte tornam-se assim terreno para uma
revindicação de direitos, exatamente através da exclusão de uma vida
socialmente significativa. Pandolfi (2005) define a biocidadania como uma
modalidade de inclusão produzida por e produtora de formas subtis de exclusão;
é justamente nas contradições do neoliberalismo global que os excluídos, os
homines sacri (Agamben 1995), assumem diferentes formas, podendo ser
considerados, ao mesmo tempo, vítimas que precisam de ajuda, perigos que devem
ser controlados ou, ainda, agentes de formas inéditas de ação política
(Comaroff 2007). Esta ambivalência justifica uma intervenção maciça nos
segmentos mais precários e indesejáveis da sociedade, que visa ajudar os
sujeitos na construção dos seus próprios projetos de vida para se tornarem
cidadãos bem integrados na ordem social e moral dominante.
Surge nesta lógica uma nova espécie de pacto social entre os marginais, que
devem fazer o possível para se integrarem, e os especialistas (psicólogos,
assistentes sociais, educadores, mas também sociólogos e antropólogos), que se
disponibilizam para aliviar o sofrimento daqueles, ajudando-os a construir
novos projetos de vida.[8] Este pacto particular constitui, nas palavras de
Isabelle Astier (1996: 99), um dispositivo que favorece uma vasta empresa de
exploração da intimidade das pessoas: o destinatário da intervenção social
deve, quer expor a sua própria infelicidade, quer dispor-se a repensar o
passado e a imaginar o futuro, para mudar a precariedade do presente e para
poder obter o apoio esperado.
O sofrimento, a dor, a violência ' enquanto fenómenos sociais, mas também
enquanto instrumentos conceptuais e analíticos ', tal como as intervenções a
seu favor e por eles justificadas, estão a ser cada vez mais submetidos a
processos, por um lado, de progressiva institucionalização, por outro, de
mediatização e hipervisibilização (ver Kleinman e Kleinman 1996), processos que
evidenciam o seu potencial ambivalente e perigoso e a sua relevância enquanto
assunto político, no sentido mais amplo do termo. Não são já algo escondido ou
silenciado, mas, pelo contrário, são expostos, comentados, monitorizados,
estudados ' segundo lógicas que refletem obviamente realidades económicas e de
financiamento e interesses governamentais específicos. Dentro deste quadro de
sofrimento amplificado, multiplicam-se as reuniões profissionais e
científicas, as publicações (este dossiê é um claro exemplo disto mesmo), os
projetos, os pedidos institucionais de formação e expertise específicas, os
dispositivos de avaliação e diagnósticos, os centros de apoio e as organizações
destinadas a responder ao escândalo do sofrimento.
O sofrimento ' comenta ironicamente Jackie Assayag (1999) ' coloniza hoje o
nosso futuro com os seus pesadelos e a análise das respostas disponíveis no
mercado assistencial não pode ignorar as dimensões políticas, económicas e
morais em jogo. A psicologização do social (Fassin 2005) é uma destas
dimensões: a psicologia torna-se o instrumento principal através do qual se
intervém nas situações de pobreza, marginalidade e violência, e os psicólogos
operam para curar as feridas das periferias, dos segmentos marginais da
população. As leituras e as lógicas contemporâneas destinadas a tratar os
sintomas do sofrimento concentram-se hoje mais no léxico do apoio e do
empowerment, criando um consenso geral que desarma a crítica: a compaixão não
tem inimigos.
Como demonstra o artigo de Rubens de Camargo Ferreira Adorno, sobre as
populações em situação de rua, os programas de apoio social gravitam em torno
daquela a que podemos chamar a dicotomia vulnerabilidade / risco. Por um lado,
impõe-se uma representação que costuma relacionar os marginais com o desvio e a
criminalidade, a falta de competências sociais e a insegurança, associando-os,
deste modo, à ideia de risco que eles próprios simbolizam para o resto da
sociedade. Por outro, divulga-se uma imagem dos mesmos sujeitos como pessoas em
dificuldade, vítimas de uma estrutura desigual, necessitados e desprotegidos,
num estado permanente de vulnerabilidade.
As soluções propostas para responder à questão impertinente do sofrimento
social gravitam à volta de ações que têm por objetivo cuidar dos vulneráveis e,
ao mesmo tempo, controlar os riscos desta vulnerabilidade. Estas oscilações
entre representações de vulnerabilidade e risco, de vítimas e criminosos, de
apoio e preocupação, de políticas da piedade e de controlo, tornam-se
particularmente evidentes analisando as intervenções na vida dos imigrantes não
documentados (Fassin 2001), dos pobres urbanos (Geremek 1987 [1978]; Wacquant
1999), ou dos jovens dos bairros sociais (Fassin 2004). Segundo Fassin (2005,
2006), trata-se de uma polarização moral entre compaixão e repressão, onde o
processo de securização se articula com as lógicas da intervenção social.
A Cracolândia paulistana, onde Bruno Ramos Gomes desenvolveu a sua pesquisa,
é um lugar de exposição dos corpos, das ações e da intimidade dos usuários
(os noias) e vendedores de crack que sofrem com a constante presença de
intervenções militares, altamente performáticas e mediatizadas, de vários
agentes da assistência social e da saúde, e de fiscais da vigilância sanitária,
funcionários de companhias de energia elétrica, de gás e saneamento, com vista
à requalificação da área. Todavia, a persistência dos noias na região é
descrita como uma forma de resistência tática que acaba por incorporar, de
facto, a identidade específica que lhes é atribuída e que se torna um valor.
A antropologia, portanto, deverá aceitar o desafio provocador lançado por
Herzfeld (2006 [2001]: 286): queremos, de facto, ceder toda a agência às
agências?