Nostalgia for the Future: West Africa after the Cold War
Charles Piot, Nostalgia for the Future: West Africa after the Cold War, Chicago
e Londres, The University of Chicago Press, 2010, 200 páginas, ISBN:
9780226669649.
Pedro Pestana Soares
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal,
pestanasoares@gmail.com
Decorreram onze anos desde que Charles Piot publicou Remotely Global: Village
Modernity in West Africa, obra em que propôs um reenquadramento da supostamente
remota ruralidade africana, sublinhando a sua fluidez e abertura ao exterior
e pondo em evidência a plasticidade com que cria as suas próprias regras e
instrumentos para interagir com um mundo global e reclamar nele o seu lugar.
Mas uma década apenas parece ter sido suficiente para, em Nostalgia for the
Future, o Togo ' e a África Ocidental ' surgirem de tal forma transfigurados
que, para o autor, os instrumentos e paradigmas teóricos da antropologia pós-
colonial se arriscam a tornar-se obsoletos.
Um dos fatores que contribui para a marcada diferença nestes dois retratos do
Togo começa por ser a sua abrangência geográfica. Se Remotely Global era um
trabalho centrado na cultura kabre do Norte rural do país, Nostalgia for the
Future abre os seus horizontes também aos espaços urbanos do Sul, não apenas
pela necessidade de compreender o campo em relação com a cidade, algo que se
tornou incontornável com a crescente mobilidade e interdependência entre ambos,
mas também por as cidades se terem constituído como portas de entrada de alguns
dos grandes agentes de transformação das últimas décadas. E é nestas
transformações, nas novas soberanias, formas emergentes de poder, resistências
difusas e ainda incoerentes, imaginários religiosos e recusa da tradição e da
cultura híbrida (pág. 8; tradução minha), que a África Ocidental surge agora
como um terreno novo e, de certa forma, inesperado, quase irreconhecível em
certos contextos, para o antropólogo.
Face às insuficiências que identifica nos estudos africanos e na antropologia
pós-colonial, Piot apela às contribuições de outras áreas do saber e encontra
no trabalho de Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (2000), um modelo útil
para sistematizar as transformações das últimas décadas ' incluindo no que
concerne à transição das soberanias rígidas e verticais das épocas colonial e
pós-colonial para as relações de poder horizontais, mais flexíveis e difusas,
da contemporaneidade. Mas, ainda que o Império de Hardt e Negri nos possa
ajudar a teorizar sobre este novo território, quais são os conteúdos e
especificidades culturais que acompanham estas mudanças no Togo e na África
Ocidental, ou seja, de que forma responderam os togoleses ao final da Guerra
Fria e à profunda crise que o acompanhou?
Para responder a esta questão, o autor começa por explorar as consequências
imediatas da retirada dos interesses internacionais da África Ocidental durante
os anos 1990. A transformação do Estado patrimonial num regime de simulacro,
subsistindo graças ao espetáculo e à dramaturgia, teve como efeito mais
imediato o abandono das responsabilidades estatais nos campos social e de
desenvolvimento, o que, sublinha o autor, conduziu a uma das mais dramáticas
transformações na história recente de África: o fim do sistema de indirect rule
nas zonas rurais, iniciado durante a época colonial e perpetuado sensivelmente
nos mesmos moldes durante o período pós-colonial e até ao final da Guerra Fria.
Consequentemente, as chefias e gerontocracias que há muito governavam as
aldeias entraram em declínio, o vasto aparato cerimonial que concedia
autoridade aos chefes e anciãos passou a ser rejeitado e a democracia e os
direitos do homem entraram no discurso quotidiano da generalidade dos
togoleses.
O recuo do Estado e das estruturas de poder pós-coloniais na África Ocidental
criou assim vastas zonas cinzentas ' para Piot, todo o território togolês é
uma zona de progressivo acinzentamento ' de soberanias instáveis e incertas,
onde novos agentes criam relações de poder erráticas e, em larga medida,
imprevisíveis. Contudo, enquanto Hardt e Negri parecem descartar o papel da
religião na conjuntura global pós-Guerra Fria, Piot acredita que essas
transformações não só influem de forma determinante na reconfiguração do
panorama religioso, como são, em grande medida, movidas por ele. Ainda que
dedique todo um capítulo à atuação das ONG como substituto precário da função
social e de desenvolvimento que o Estado desempenhava nessas zonas agora
cinzentas, a importância nuclear que dá às igrejas carismáticas
neopentecostais é claramente superior. Para ele, é na muito acelerada expansão
destas igrejas ao longo das últimas duas décadas que se refletem de forma mais
exemplar as dinâmicas entre tradição e modernidade, entre ruralidade e
urbanidade, que subjazem à morte de uma cultura ' título do último capítulo
do livro ' e prenunciam uma nova era de contornos ainda indefinidos.
O conflito entre as igrejas neopentecostais e as religiões locais, alimentado
por acusações mútuas de feitiçaria, irradiando das cidades para o interior
rural que é último reduto da tradição, surge como consequência, mas também
como motor, de uma cultura em crise e em modo de pânico. Da mesma forma, a
recusa dos neopentecostais em aceitar formas religiosas híbridas e sincretismos
tipicamente pós-coloniais indica uma opção intencional pelo choque e pela
rutura. Para Piot, os imaginários religiosos não são um mero reflexo ou
resposta a uma crise externa, eles são essa crise, não tanto no sentido de a
terem inventado mas antes de se terem apropriado dela, de a terem amplificado e
moldado a seu bel-prazer (págs. 129-130; tradução minha).
É esta ênfase na agência das populações abandonadas ' pelo seu governo, pela
sua cultura, pelas potências internacionais e as ONG ' que leva o autor a
distanciar-se de Jean e John Comaroff, os quais, segundo Piot, atribuem um
papel demasiado passivo às vítimas do neoliberalismo que varreu o continente
africano e da consequente crise de reprodução dos processos sociais. Piot
considera que os togoleses estão plenamente conscientes da sua posição no mundo
contemporâneo, da sua exclusão da modernidade europeia, e que o desejo de
participar nela se traduz numa pletora de novas estratégias que abrem novas
possibilidades entre as ruínas de antigas estruturas de poder que forçavam a
sua submissão.
Como qualquer obra que se assume de charneira, que marca um ponto de rutura
num momento em que o futuro é ainda indefinido e o presente é difuso, maleável
e ambíguo, Nostalgia for the Future corre alguns riscos, principalmente ao
propor um alargamento da análise da situação togolesa a toda a África
Ocidental, e ao assentar num trabalho de campo que nas cidades é
metodologicamente menos consistente do que no interior rural ' algo
compreensível, tendo em conta que, até recentemente, o trabalho etnográfico do
autor no Togo se centrou no mundo rural.
Apesar das suas potenciais lacunas, esta obra de Piot surge como de leitura
essencial ao construir-se, acima de tudo, em torno do desafio e da urgência. Em
primeiro lugar para um continente, ou parte dele, que se debate por responder a
transformações dramáticas nas estruturas e processos sociais que o regiam há
pelo menos um século. Mas também para o africanista e o antropólogo, ao
desafiá-lo a ver a cultura' e a tradição' como atávicas e o pentecostalismo
como progressivo, a avaliar a agência' através da adoção, e não da rejeição,
da euroalteridade, a procurar a política em lugares insuspeitos e a abdicar das
noções familiares que dela conservamos (pág. 10; tradução minha). Despojado
das culturas autóctones albergadas sob o aparato colonial da primeira metade
do século XX, mas também dos hibridismos celebrados pela reencarnação da
antropologia enquanto estudos pós-coloniais, o antropólogo, diz-nos Piot, tem
agora de se comprometer com uma posição em que, para encontrar um caminho
viável para o futuro, terá de sacrificar muito do que, no passado, lhe serviu
de orientação.