Le patrimoine culturel immatériel: Premières expériences en France
Christian Hottin (org.), Le patrimoine culturel immatériel: Premières
expériences en France, Paris, Maison des Cultures du Monde e Babel, 2011, 364
páginas, ISBN: 978-2-7427-8977-1.
Ana Carvalho
CIDEHUS, Universidade de Évora, Portugal, ana.alexandra.carvalho@gmail.com
Este livro de bolso insere-se na coleção Internationale de l’imaginaire (n. s.,
n.º 25), dirigida por Chérif Khaznadar, e constitui o terceiro número dedicado
ao património cultural imaterial (PCI). O primeiro número – Le patrimoine
culturel immatériel: Les enjeux, les problématiques, les pratiques (2004) –
constitui uma das primeiras reflexões sobre os contextos, limites e
potencialidades da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural
Imaterial da UNESCO (2003), e o segundo – Le patrimoine culturel immatériel à
la lumière de l’Extrême-Orient” (2009) – uma perspetiva sobre as experiências
da China, da Coreia e do Japão em matéria de PCI, tidas como políticas-modelo
que moldaram o espírito da Convenção de 2003. Por seu turno, este último livro
versa sobre as primeiras experiências em França na implementação desta
convenção.[1] Tendo como ponto de partida a narrativa oficial da UNESCO (a
França aprovou a convenção em 2006), o livro dá conta, em jeito de balanço, do
trabalho desenvolvido sobre esta matéria no âmbito das políticas públicas dos
últimos quatro anos.
As contribuições contidas no livro são de profissionais de várias instituições
francesas ligadas ao património e de representantes da UNESCO que fazem, assim,
parte da comunidade de especialistas que procura encontrar respostas aos
desafios lançados pela Convenção de 2003, um normativo que aponta para um
conceito mais líquido sobre património, uma perspetiva renovada e dinâmica
sobre salvaguarda e um papel mais ativo das comunidades, seja na identificação
e reconhecimento, seja na sua implicação no processo de proteção deste
património. A tradução destas recomendações implica a revisão do papel das
instituições e dos profissionais, um processo ainda recente para muitos países
e que este livro procura clarificar, dando a conhecer os esforços realizados
pela administração francesa no sentido de adequar as suas políticas e
instrumentos às recomendações da Convenção de 2003.
Com efeito, esta convenção tem sido terreno fértil para a discussão sobre o
conceito de património e tornou-se também objeto de estudo nos últimos anos,
tal como é percetível pelo aparecimento de variadas publicações que atestam
pelo menos duas abordagens: uma baseada na avaliação e balanço das experiências
por parte dos profissionais intervenientes no processo de patrimonialização,
como é o caso deste livro, e outra que se posiciona de forma crítica e
reflexiva sobre a Convenção de 2003 e o seu impacte, problematizando o fenómeno
do património em si mesmo, vinda sobretudo dos antropólogos da academia – veja-
se, por exemplo, C. Bortolotto, A. Arnaud e S. Grenet (orgs.), Le patrimoine
culturel immatériel: Enjeux d’une nouvelle catégorie, publicado em 2011.
O livro organiza-se em duas partes. Um preâmbulo à primeira parte (por Chérif
Khaznadar, Christina Hottin e Sylvie Grenet) serve para contextualizar a
Convenção de 2003, a sua retórica e os princípios de atuação subjacentes à
criação de uma nova categoria de património – o PCI. Ao longo desta primeira
parte é explicado como se operacionalizaram as estratégias para a salvaguarda
do PCI pelo Ministério da Cultura francês, assentes numa lógica de criação de
inventários para identificar o PCI e documentá-lo. Neste âmbito, Sylvie Grenet
descreve as linhas operativas de um novo inventário para o património vivo e o
processo conducente à recolha de várias bases de dados previamente existentes,
no sentido de se fazer um “inventário dos inventários”. Ainda nesta linha,
Véronique Guinouvés descreve as metodologias seguidas no âmbito do projeto de
criação de um portal coletivo sobre património oral que resulta das recolhas de
amadores e profissionais no domínio das ciências sociais e humanas ao longo de
várias décadas. O portal pretende dar visibilidade a um extenso arquivo sonoro
e audiovisual, em grande medida pouco conhecido e disperso por várias
organizações. As iniciativas em torno da acessibilidade a repositórios de
informação são hoje uma tendência que tem a ver também com as potencialidades
que oferecem as novas tecnologias e a Internet para o património/conhecimento/
cultura e que se têm traduzido em muitos projetos de digitalização na Europa e
na criação de bases de dados em rede (p. ex. Europeana). Neste sentido, a
ênfase atual na valorização do PCI permite, assim, o surgimento de projetos,
como é o caso deste portal dedicado ao património oral.
Um aspeto relevante é levantado por Christian Hottin, ao argumentar a distinção
entre o património etnológico e o PCI e, por sua vez, o papel atribuído à
investigação no contexto do que significa a salvaguarda nos moldes propostos
pela convenção. O autor descreve, grosso modo, a política definida para o
património etnológico francês nos últimos trinta anos, fortemente alicerçada no
desenvolvimento de investigação científica, para justificar a criação de um
inventário para o PCI apoiado em programas de investigação (e através das redes
de investigadores e centros de investigação já existentes no âmbito da
antropologia), ainda que de acordo com a convenção os inventários sejam acima
de tudo um instrumento de reconhecimento e possam não estar vinculados à
investigação propriamente dita. Como se pode constatar, no caso francês, a
tradição de trabalho com o património etnológico determinou indelevelmente os
moldes em que se operacionalizou o inventário, em estreita relação com o
desenvolvimento de uma estratégia de investigação e de trabalho de terreno.
Sobre o contexto regional destaca-se o texto de Charles Quimbert, que dá voz ao
trabalho desenvolvido na Bretanha e à forma como se foram esboçando os eixos de
intervenção com relação a uma política favorável à salvaguarda do PCI,
incluindo, ainda, uma abordagem do caso dos ateliês de bordados de Puy-en Velay
e Alençon (perspetiva histórica, funcionamento, candidatura à lista
representativa).
A segunda parte do livro introduz ao leitor uma outra dimensão da Convenção de
2003, designadamente a inscrição de elementos do PCI na categoria de
“património da humanidade”. Efetivamente, a convenção prevê dois instrumentos
principais – uma lista representativa e uma lista de salvaguarda urgente, não
esquecendo uma base de dados de boas práticas, porventura menos conhecida. Além
da experiência francesa na preparação de candidaturas (uma dezena de projetos
foram submetidos ao Ministério da Cultura), aliás, suficientemente ilustrativa
(quem avalia, procedimentos, seleção, critérios, recomendações, prazos,
exemplos, etc.), assume particular interesse o balanço que Cécile Duvelle
(atual chefe de secção do PCI na UNESCO e secretária da Convenção de 2003) faz
da primeira fase de candidaturas às listas, não escondendo as fragilidades e as
expetativas defraudadas do processo, nomeadamente a corrida à lista
representativa em detrimento da lista de salvaguarda urgente, bem como a
marginalidade do catálogo de boas práticas.
Ainda que não perca de vista o sentido crítico (p. ex. no texto de Khérif
Khaznadar), o livro assume, em grande medida, um tom descritivo e, nalgumas
situações, quase operativo. Os anexos são disso reflexo e incluem exemplos de
fichas de inventário e candidaturas, formulários, calendarização, etc. No
entanto, tal pode ser de grande utilidade para todos aqueles que trabalham em
projetos de valorização do PCI e na definição de políticas da sua salvaguarda
nas instituições culturais, seguindo o discurso oficial. Além disso, atendendo
ao caráter experimental e recente destas políticas, publicações como esta são
um contributo válido para relativizar criticamente as várias interpretações de
que a Convenção de 2003 é objeto.
NOTAS
[1] Aprovaram a Convenção de 2003 148 países, comprovando o sucesso deste
normativo (cf. <http://www.unesco.org/eri/la/
convention.asp?KO=17116&language=E>, consultado a 30/4/2013).