Parecem indianos na cor e na feição: a lenda negra e a indianização dos
portugueses
Parecem indianos na cor e na feição: a lenda negra e a indianização dos
portugueses
"They look like Indians in their color and feature": the
"black legend" and the indianization of the Portuguese
Ângela Barreto Xavier*
*Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail:
angela.xavier@ics.ul.pt
ABSTRACT
This article focuses on the linkages between mimesis, Indianization of the
Portuguese established in India from the 16th century, and the development of a
black legend on the Portuguese empire. In which ways the going native of the
Portuguese was perceived and presented, internally and externally, as
undesirable? How did this perception contributed to produce a negative idea of
the Portuguese behavior in colonial context? And in which ways the going native
was associated with the conviction that the Portuguese were unable to govern
themselves (since they could not control their passions, their inner nature),
and therefore, incapable of governing the others? The Travel Account of the
Voyage of the Sailor Jan Huyghen van Linschoten to the Portuguese East India,
first published in Holland in 1596, is a good place to start with in order to
discuss these questions. By analyzing Linschoten's treatise, as well as its
inspirations and reverberations in the next centuries, I intend to contribute
to the making of a genealogy of the black legend of the Portuguese empire,
identifying its origins in the first decades of the 16th century.
Keywords: mimesis, empire, black legend, Portugal, India.
Partindo do pressuposto de que existem muitas semelhanças entre as dinâmicas da
mimesis e da nativização (going native), neste ensaio procurarei mostrar de que
forma é que a indianização dos portugueses (entendida, precisamente, como uma
forma de nativização) foi sendo apresentada como algo de indesejável, tanto
interna quanto externamente, contribuindo para gerar uma imagem negativa dos
portugueses em situação colonial, alimentando, por essa via, a constituição da
sua lenda negra.[1] Também me interessa saber como é que essa nativização foi
associada à ideia de que os portugueses eram incapazes de se governarem a si
mesmos (i. e., de controlarem as suas paixões, de autodisciplinarem a sua
natureza) e, por conseguinte, de governarem os outros, um outro tópico
recorrente na narrativa da lenda negra.[2]
A lenda negra portuguesa participa, como é sabido, de uma lenda negra mais
vasta, coroada pela Espanha, mas abrangendo todo o Sul da Europa.[3] À
semelhança da lenda espanhola, os argumentos inicialmente utilizados para
formular a lenda negra portuguesa identificam-se, em primeiro lugar, na
reflexividade interna quinhentista. Apenas mais tarde os mesmos argumentos
foram adotados, sintetizados, sistematizados e disseminados por agentes de
potências rivais (Holanda, Inglaterra, França), favorecendo a emergência de um
conjunto de regras mais ou menos estáveis que governaram a representação
pública destas regiões, suas gentes e processos históricos. Em contraste com a
lenda espanhola, comandada pela tópica da crueldade e do sangue, nas
explicações providenciadas a partir de finais do século XVI sobre o império
português sobressaíram temas como a facilidade com que os portugueses se
envolviam com as populações dominadas e a corrupção do seu aparelho político-
administrativo (Chaturvedula 2010; Boogart 2003; van Veen 2000). No que diz
respeito ao primeiro aspeto, os portugueses vieram a ser acusados de imitar as
populações indianas, não só desposando mulheres locais, como adotando muitos
dos seus comportamentos. Para muitos, estas escolhas revelavam que os
portugueses não tinham domínio de si, sendo, por consequência, incapazes de
governarem os outros, o que explicava o seu rápido declínio imperial.
Ironicamente, este mesmo tema da destreza social e sexual dos portugueses
tornou-se, no século XX, um dos principais ícones do oposto da lenda negra,
sendo convocado para explicar a sustentabilidade da presença imperial
portuguesa nas diferentes partes do globo. Apesar de ser constituída, também
ela, por um feixe de tópicos, muitos deles alimentados pela épica, pela
literatura e pela poesia, envolvendo nomes tão incontornáveis para a construção
de uma comunidade imaginada de portugueses como os de Luís de Camões, António
Vieira, ou Fernando Pessoa, a lenda áurea assentou, em grande medida ' e
graças às teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre e sua receção interna
', na exaltação dos comportamentos que os portugueses tendiam a ter nos
trópicos, capazes, como nenhum outro europeu, de estabelecer diálogos
produtivos com os povos que colonizavam, permitindo ao regime salazarista
apresentar o imperialismo português como sendo diferente dos demais (Cardão
2012; Castelo 1998; Souza 2000).
Que essa singularidade portuguesa ' a ser verdadeira ' não terá sido
propriamente singular pode depreender-se da leitura do livro de Barbara Fuchs,
Mimesis and Empire, no qual o mesmo cenário de diálogos produtivos em contexto
colonial emerge, mas agora a partir de um conjunto de casos envolvendo
espanhóis, índios, muçulmanos, e ingleses. A Fuchs interessou saber como é que
mimesis e identidade se articularam em contexto colonial, quer no que dizia
respeito à identidade do colonizador, quer das identidades disponibilizadas aos
colonizados. Um dos objetivos de Fuchs foi demonstrar que, na época moderna,
a mimesis funcionava como um instrumento que desafiava as identidades nacionais
e imperiais, um mecanismo de inclusão social e uma forma de preservação da
diferença face às pressões para a homogeneização ' quer pelos modos de imitação
do colonizador pelo colonizado, quer pelo seu inverso (Fuchs 2001, veja-se
a introdução e a conclusão).[4]
O enfoque que aqui se desenvolve distancia-se tanto do luso-tropicalismo de
Freyre e seus seguidores quanto do otimismo mimético de Fuchs. Ao invés, o que
se explora nas próximas páginas são as tensões geradas pelas práticas da
mimesis no contexto colonial indiano da época moderna, acompanhadas da
preocupação com a sua regulação. Apesar de olhadas com alguma simpatia por um
olhar pós-moderno, e apesar de, na Europa da época moderna, a mimesis também
ser, como Fuchs notou, um dispositivo que permitia estabelecer diálogos
produtivos com a diferença, as práticas miméticas em territórios coloniais
podiam abrir caminho a duas situações indesejáveis para boa parte das mulheres
e homens dos séculos XVI e XVII: a má imitação e a dissolução da diferença
entre colonizador e colonizado (o que alterava a hierarquia e a distância
constitutivas da própria relação imperial, pondo em causa a sua permanência).
Com o objetivo de explorar estas questões, as páginas que se seguem obedecem ao
seguinte itinerário: em primeiro lugar, o leitor é convidado a partilhar uma
muito sucinta reflexão em torno da ordem da imitação e seus entendimentos na
época moderna. Em seguida, providencia-se uma síntese das imagens gizadas sobre
as práticas miméticas dos portugueses no Itinerario: Voyage ofte schipvaert van
Jan Huygen van Linschoten naar Oost ofte Portugaels Indien, de Jan Huyghen van
Linschoten, um holandês ao serviço da coroa de Portugal que residiu em Goa no
último quartel do século XVI.[5] As reverberações negativas que as imagens
veiculadas por Linschoten tiveram nos séculos posteriores ' e seus possíveis
significados ' serão o objeto das secções seguintes.
Dada a profusão de documentação que poderia ser compulsada para fazer a
genealogia de um tema tão vasto, esta reflexão tem um caráter explicitamente
introdutório.[6] E mesmo correndo o risco de ser acusada de impressionismo
analítico, utilizo aqui documentação oriunda de séculos muito distintos, por
esta permitir uma apreensão diacrónica das modalidades que foram sendo
assumidas pela lenda negra do império português. Acredito que uma visão
panorâmica poderá servir de contexto a futuras discussões, permitindo regressar
à análise destes processos constituintes de algum do senso comum que ainda hoje
partilhamos acerca dos processos de nativização no império português.
Mimesis e imitatio na época moderna
Escrever sobre experiências miméticas em contexto histórico coloca-nos perante
uma variedade de problemas, o primeiro dos quais decorre da distância que se
interpõe entre o objeto de investigação ' i. e., o campo lexical do vocábulo
mimesis em situações pretéritas e aquelas situações em que este se manifestou '
e o conceito operativo de mimesis selecionado pelo investigador, vinculado a
uma determinada teoria social sobre o papel damimesis nas organizações sociais.
Se, por um lado, é este conceito operativo que predetermina a abordagem do
objeto, por outro, cabe ao investigador ser capaz de traduzir a linguagem
passada, tornando visíveis as fronteiras que separam passado e presente. O
exercício é tanto mais difícil quanto as palavras utilizadas são frequentemente
as mesmas. Daí a utilidade dos próximos parágrafos, que visam clarificar alguns
usos da categoria mimesis na época moderna.
O primeiro aspeto que importa salientar é que estes usos tiveram lugar no
âmbito de um outro paradigma epistemológico, profundamente marcado pela teoria
aristotélica do conhecimento, e por práticas quase irredutíveis ao nosso olhar.
Nesse contexto de grande alteridade relativamente aos dias de hoje, a mimesis
tinha uma dignidade epistemológica e ética, uma ubiquidade que se foi perdendo
nos séculos seguintes ' apesar de o seu restabelecimento enquanto conceito
operativo recuperar, em muitos casos, sentidos anteriores (Tarde 1962). Lembrar
que, depois da Bíblia, o livro que maior circulação teve na época moderna se
intitulava Imitatio Christi evidencia o peso que a imitação (versão latina da
mimesis) teve no período em causa, bem como o modelo que, em primeiro lugar, se
devia imitar. Muitos outros títulos que utilizavam o vocábulo imitatio (sem
considerar uma variação deste género, que era a literatura especular, também
com enorme sucesso na época) podiam ser compulsados, de modo a corroborar esta
ideia inicial, mas creio que este caso é suficientemente sugestivo para
sustentar a tese que pretendo defender (von Habsburg 2011).
No início da época moderna, mais do que mimesis (transliteração da palavra
grega μίμησις), era a versão latina, a imitatio, a polarizar o conjunto de
teorias e práticas relativas à replicação, reprodução, e representação de
ideias e comportamentos. Também diferentemente do mundo contemporâneo pós-
piagetiano, no qual a conjunçãomimesis / imitatio foi relegada para um estádio
propedêutico do conhecimento, até ao século XVIII estas categorias
constituíram-se como as principais modalidades de conhecimento e de
aprendizagem, permitindo transferir / traduzir conhecimentos e práticas e, por
essa via, constituir e construir a realidade social.
Essa transferência, quer de conhecimentos quer de práticas, podia processar-se
tanto de uma área de saberes para outra, quanto de uma para outra região, de
uma para outra pessoa. Evocando um caso relacionado com o tema que é aqui
objeto de análise, isso implicava, por exemplo, que as expansões imperiais dos
cristãos potenciassem a imitação dos cristãos por aqueles que não o eram '
apesar de na prática ter significado, ainda que indesejadamente, o contrário.
Este modelo, transversal a toda a Europa da época moderna, católica ou
protestante, e aqui sumarizado de forma muito grosseira, não era isento de
ansiedade cultural. Apesar da sua natureza eminentemente reprodutora, a
estabilidade que a ordem da imitatio tendencialmente configurava era posta em
causa por uma série de fatores.
Em primeiro lugar, o próprio processo de imitação encerrava uma deslocação. A
replicação de um modelo raramente era perfeita, pelo que sobrava sempre uma
margem para a diferença (ideia posteriormente desenvolvida por Gabriel Tarde),
podendo subverter, até ironicamente, a finalidade do processo, como Homi Bhabha
inspiradamente lembrou (Tarde 1962; Bhabha 1994). Essa possibilidade era maior
quando as transferências de modelos se processavam de um para outro contexto
discursivo (da pintura para a poesia, do teatro para a pintura, da poesia para
o teatro), ou de um para outro contexto cultural, como de Portugal para a
Índia, ou da Espanha para o Peru (Greenblatt 1980; Melehi 2010).
A par desse risco ' e frequentemente engrandecendo esse risco ', erguia-se um
risco ainda maior, o da má imitação, a imitação de maus exemplos, ou a sátira
dos bons exemplos. Esses perigos tinham levado Platão, no tratado A República,
a desvalorizar a imitação enquanto instrumento de aprendizagem, já que esta
tinha de ser constantemente controlada de modo a evitar o contágio e, com ele,
uma epidemia de maus comportamentos. É que os maus, os vilões, os inferiores,
os pagãos e, em última instância, o próprio demónio (que tantas vezes se
apresentava como semelhante a Deus), não eram apenas objeto de imitação no
teatro e na literatura, mas também na vida real, o que tornava essa ameaça um
perigo efetivo. E, como era sabido, a imitação do inferior pelo superior, do
menos digno pelo mais digno, podia gerar um ciclo vicioso, e, dessa forma,
alterar os equilíbrios sociais, conduzindo a transformações indesejadas um
mundo que valorizava, sobretudo, a conservação.
Por fim, os próprios desafios colocados pelas variadas dinâmicas históricas
podiam constituir-se como ameaças à estabilidade da ordem imitativa. São fáceis
de identificar os riscos inerentes às viagens de Colombo e Vasco da Gama, e à
multiplicação de sociedades não europeias em contacto rotineiro com os
europeus. O fascínio que algumas delas, ou alguns dos seus costumes, geravam
entre alguns cristãos podia comprometer ou até dissolver a sua identidade de
partida. Igualmente perturbadora terá sido a fragmentação religiosa que a
Europa experienciou no século XVI, já que a partir desse momento passaram a
rivalizar, de forma muito mais intensa do que anteriormente, vários modelos de
cristandade, e várias formas de imitar Cristo. Ou seja, tanto no interior da
respublica christiana ' com esta competição entre modelos de cristandade ',
quanto no seu exterior ' onde se apresentavam modelos sociais e antropológicos
alternativos ', os europeus depararam, do século XVI em diante, com uma
fragmentação de possibilidades de ser que previamente não ocorria e que
desafiava uma certa homogeneidade da ordem cultural preexistente. Se as regras
da imitação funcionavam relativamente bem num mundo fechado, no qual os modelos
a imitar eram bem conhecidos, como é que se governava a imitação num mundo
móvel, com fronteiras cada vez mais porosas, povoado de pessoas e situações
mais ou menos desconhecidas?
De heróis a desgovernados: a crítica aos portugueses no itinerário de Jan
Huyghen van Linschoten
Em Os Lusíadas, Camões exalta os feitos que os portugueses de finais de
quatrocentos tinham alcançado, comparando-os a egípcios, gregos e troianos, a
Alexandre e a Trajano. Simbolizados por um Vasco da Gama vestido ao modo
hispano, mas com roupa francesa, em tecidos venezianos carmesim, cor que a
gente tanto preza, os heróis portugueses de Camões ostentavam todas as
insígnias de um cristão europeu. No último canto, o poeta aconselha o rei D.
Sebastião a favorecer e a alegrar estes seus vassalos, sempre prontos a vos
servir, a tudo aparelhados que não duvido Que vencedor vos façam, não
vencido. Para Camões, era inquestionável a grandeza dos portugueses, capazes
de superar os modelos clássicos que todos os europeus tentavam imitar. Todavia,
ao pedir a D. Sebastião, no canto X, que não deixasse que os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses possam dizer que são para mandados, mais
que para mandar, os Portugueses, Camões recorda-nos que, na segunda metade do
século XVI, quando estava a escrever Os Lusíadas, rumores negativos já
circulavam no espaço europeu (Camões 1983, c. I, 3.ª est., c. II, 97.ª e 98.ª
est.; c. X, 152.ª est.).
Que os portugueses eram para mandados, mais que para mandar era a provável
conclusão que retiraria um leitor quinhentista ou seiscentista do Itinerário
de Linschoten, já que os portugueses estabelecidos na Índia são aí retratados
como sendo incapazes de se governarem a si mesmos.
Jan Huyghen van Linschoten era um holandês de origem católica (mais tarde
convertido ao protestantismo), da região de Utreque, que partira para a
Península Ibérica em 1576, tendo trabalhado entre Lisboa e Sevilha, no âmbito
do comércio internacional. Sete anos depois, Linschoten viajaria para a Índia
como secretário e guarda-livros do arcebispo D. Vicente da Fonseca, chegando a
Goa em finais de 1583, e aí residindo até 1589. No regresso à Europa,
Linschoten ainda permaneceria dois anos em Angra do Heroísmo, aportando nos
Países Baixos, por fim, em 1592. Foi nessa altura que Linschoten transformou
as suas notas de viagem em vários livros, o mais conhecido dos quais é o já
referido Itinerário, publicado em 1596. É provável que tenha sido então que
Linschoten se converteu ao protestantismo, já que o voltamos a encontrar em
círculos próximos do revoltoso Maurício de Nassau, um dos principais oponentes
da presença católica dos Habsburgo em territórios holandeses (Linschoten 1997
[1596], Introdução; Boogart 2003).
Em apenas três anos após a sua publicação, o Itinerário conheceu traduções em
latim, inglês e alemão, seguidas de traduções francesas e de algumas reedições
holandesas. Dado o seu estatuto de primeiro livro deste tipo escrito por um
europeu do Norte, o Itinerário de Linschoten tornou-se uma fonte autorizada
sobre o império português na Ásia para as audiências transpirenaicas e
protestantes (mas não só). Talvez isso ajude a explicar que esta tenha sido a
obra sobre a Ásia que maior circulação teve na época moderna, e, para alguns, o
texto fundador da lenda negra sobre o império português (Nocentelli 2007;
Boogart 2003; Kamps 2001).[7]
Nos quatro capítulos que dedica às populações de origem portuguesa residentes
na Índia, raras são as referências elogiosas. As descrições são complementadas
por uma série de gravuras que se constituem como uma extensão e interpretação
da própria narrativa. O sucesso das imagens foi tão grande que estas vieram a
ser publicadas à parte, com legendas extraídas do texto original, em jeito de
catálogo, sob o título os Icones, habitus gestusque Indorum ac Lusitanorum per
Indiam viventium (Boogart 2003).
No Itinerário, Linschoten explica que os homens portugueses eram frequentemente
casados com mulheres indianas (união que daria origem ao grupo dos casados),
gerando crianças mestiças, geralmente de cor amarelada. Já os filhos de
portugueses e portuguesas nascidas na Índia chamavam-se, em alternativa,
castiços, em quase tudo iguais aos portugueses, embora sejam um pouco
diferentes na cor, porque tendem sempre para o amarelo. Mesmo quando não
tinham sangue indiano, os filhos dos portugueses nascidos na Índia ' segundo o
olhar de Linschoten ' já pareciam indianos! Quanto aos filhos dos mestiços,
estes eram de cor ou feição igual aos naturais da terra ou decanins. Isto
significava que no terceiro grau, todos estes descendentes de portugueses
parecem ser indianos na cor e na feição (Linschoten 1997 [1596]: 148).[8]
Isto é,fosse pela mestiçagem física, fosse pela mestiçagem cultural, após a
terceira geração, os portugueses estabelecidos na Índia dificilmente se
distinguiam dos locais. Curiosamente, no capítulo dedicado aos decanins
(habitantes do Decão), Linschoten, que os representa graficamente na sua nudez,
uma estratégia de representação que contrapunha, a partir do vestuário, a maior
ou menor proximidade ao estado da natureza, descreve-os, ao mesmo tempo, como
sendo iguais aos brâmanes e baneanes na cor e na feição do corpo, sendo
também estes, na feição do rosto, do corpo e dos membros, em tudo iguais aos
da Europa, excetuando a cor (Linschoten 1997 [1596]: 174-177; Boogart 2003).
Espremidas as variadas semelhanças e diferenças físicas que Linschoten
identifica entre as populações originárias e residentes na Índia (e a sua
maior ou menor proximidade às populações da Europa), poder-se-ia dizer que,
numa escala fisionómica, o holandês situava em lugares muito próximos brâmanes,
baneanes, portugueses e europeus. Assemelhar-se a indiano na cor e na feição
não parecia ser, por isso mesmo, muito grave, já que muitos indianos,
excetuando a cor eram em tudo iguais aos habitantes da Europa. O problema é
que essa igualdade da aparência encerrava outras proximidades menos desejadas.
As mulheres de origem portuguesa, por exemplo, andavam nas suas casas com os
cabelos soltos e a cabeça descoberta, e vestidas com uma camisa chamada baju,
que lhes dá abaixo até do umbigo, e que é tão fina que se pode ver todo o corpo
através dela. Para além disso, estas mulheres ostentavam muitos braceletes e
manilhas nos braços, e nas orelhas tinham penduradas correntes cheias de joias
e adornos. Algo de semelhante seria atestado, umas décadas mais tarde, pelo
embaixador espanhol Garcia de Silva y Figueroa, enviado por Filipe III de
Espanha à Pérsia, o qual residiu em Goa durante alguns anos. Talvez por ter
eventualmente lido Linschoten, Figueroa ' cujas reflexões sobre os portugueses
na Índia configuram uma espécie de lenda negra espanhola sobre o império
português ' descreve estas mulheres exatamente da mesma maneira que o holandês,
recordando, ainda, que quando van a entetenerse y bañarse a sus quintas fuera
de la çiudad, usan un trage feissimo, bestial y del todo bárbaro, no menos que
deshonesto, até porque a camisa baju la traen muy abierta por delante hasta
mas abaxo de los pechos, mostrandolos muy patentes y a la vista de todos
(Silva y Figueroa 2011: L. II, 129).
Figueroa afirma discorrer muito sobre mulheres para que se veja quanta
promptitud y facilidad todas las mugeres admiten y abraçan qualseiera
costumbres licenciosas y librés. Esta inclinação tipicamente feminina
facilitava, evidentemente, a indianização das portuguesas, até porque a Índia
era, na imaginação da maioria destes europeus, o berço da sensualidade. O
diplomata acrescentaria que o traje das portuguesas na Índia era muito parecido
com las esclavas negras de Ethiopia que llevan a vender a Portugal e a
Castilla (Silva y Figueroa 2011: L. II, 145-146), observação que antecipa um
outro veio discursivo, o da futura africanização dos portugueses.
O facto de os cuidados com a higiene também se terem indianizado denotava a
intensidade (e intimidade) deste processo. Os casados e seus descendentes
eram em todas as coisas da casa muito limpos e puros e todos os dias vestem
camisas e outras roupas que trazem no corpo lavadas. O mesmo sucedia com as
mulheres, muito limpas e asseadas, tanto na sua casa como na sua pessoa e
corpo: tomavam banho e vestiam roupa limpa quotidianamente. Mais: todas as
vezes que evacuam ou vertem as suas águas e têm relações com o marido, lavam-se
de novo, mesmo se fosse cem vezes num dia e noite (Linschoten 1997 [1596]:
148, 158). Este último enunciado sugeria os exageros sexuais a que estas
mulheres estavam habituadas: não só estimulavam o desejo colonial como eram o
oposto do modelo púdico que tanto a Reforma protestante quanto a Contrarreforma
católica promoviam.
Não apresentando nenhuma imagem sobre as portuguesas nas suas práticas de
higiene ou outras mais íntimas, Linschoten mostrava em toda a sua nudez como é
que as asiáticas faziam a sua higiene, o que permitia aos leitores destes
textos e imagens estabelecerem conexões entre as práticas das indianas e os
comportamentos das portuguesas. Também a imagem bastante anterior do Códice
Casanatense era bem explícita em relação à nudez e aos lavatórios de mulheres,
contribuindo, igualmente, para a formulação dessa tópica sobre o estilo de
nativização das portuguesas na Índia (ver figuras 1 e 2).
Em suma, eram as mulheres quem se rendia, em primeiro lugar, à luxúria.
Extremamente luxuriosas e salazes ' é assim que Linschoten, um típico
misógino quinhentista, as descreve. Depois de adormecerem o marido com mezinhas
intoxicantes, estas mulheres comiam mãos cheias de cravinho, pimenta, gengibre
e uma substância frita, chamada cachundé, com o propósito de aumentar a
luxúria e de cometerem adultério com os soldados. O problema é que essa mesma
luxúria, semelhante à luxúria das indianas (o que explicava a necessidade
social da sati, a viúva que se imolava após a morte do marido) e das mulheres
em geral, também contagiara os homens portugueses. Os noivos de origem
portuguesa, por exemplo, eram bem capazes de, no dia do casamento, irem para a
cama quando ainda tinham convidados em casa, pois não têm paciência para
esperar tanto tempo como nos nossos países (Linschoten 1997 [1596]: 154, 159;
Nocentelli 2007: 212 e segs.).
Sucumbindo a esse mundo de deleites, os homens portugueses tinham-se tornado
cada vez mais indolentes. Antecipando todos aqueles que, no século XVIII,
descreveriam os espanhóis como sendo muito preguiçosos (Mackay 2006:
Introduction), Linschoten afirmaria que os portugueses, e mestiços na Índia,
não trabalham, ou fazem-no raramente. Mesmo os artesãos recorriam a escravos,
enquanto os patrões andam pelas ruas e se comportam magnificamente como os
melhores. Também os soldados evitavam, sempre que possível, cumprir com as
suas obrigações militares, preferindo arranjar quem os sustentasse (Linschoten
1997 [1596]: 149-150).
O signo que melhor condensava este processo de indianização era, como bem notou
Carmen Nocentelli (2007: 210 e segs.), o palanquim, meio de transporte indiano
que muitos europeus consideravam efeminado, porque ninho de amores desonestos e
estímulo à indolência. Presente no Códice Casanatense, também no Itinerário e
nos Icones aparecem vários palanquins transportando portugueses (homens e
mulheres) e indianos, em representações que recorriam ao mesmo tipo de
enquadramento estético, veiculando a ideia dessa inquestionável rendição dos
portugueses aos modos da Índia (ver figuras 3-5).
Todos estes costumes herdaram dos gentios indianos, dizia
Linschoten, e o mesmo acontecia entre os reinóis, os portugueses
recém-chegados de Portugal, os quais, pelo uso, se acostumam às
maneiras da India, às quais logo sabem aderir maravilhosamente. Por
todas estas razões, conclui Linschoten, hoje em dia na Índia não
se faz guerra com tanto fulgor, nem se conquistam e descobrem terras
novas, como acontecia antigamente, quando só se lutava por louvor e
honra, e para deixar boa fama. Esse louvor, honra e fama que Camões
textualizara em Os Lusíadas transferira-se, ao invés, para outros
europeus ' como os holandeses, por exemplo, prestes a substituir (e a
imitar?) os portugueses na Índia. Provavelmente com um propósito
comparativo, Linschoten inclui no Itinerário uma história exemplar
na qual se contrapunha a atitude de portugueses pouco preocupados com
o serviço do seu rei à virtus dos seus conterrâneos: numa batalha na
Índia, um português abandonara cobardemente o estandarte português,
caindo aquele nas mãos de muçulmanos. Vendo isso, um trombeteiro
holandês ao serviço dos portugueses correria para o meio dos
muçulmanos, protegendo o estandarte durante quase uma hora, matando
muitos dos que o tentavam roubar, conseguindo recuperá-lo, não sem
acabar por perecer abraçado ao mesmo. Estas pequenas histórias
mostravam que o declínio do Estado da Índia não era explicado por
fatores externos, mas sim por razões internas. É que eram os
portugueses a causa do seu próprio mal e fazem a palmatória com que
eles próprios são castigados (Linschoten 1997 [1596]: 156-159, 292,
298).
Linschoten e a lenda negra sobre o império português
As descrições de Linschoten e as conclusões que elas estimulam não se
configuram, apenas, como histórias exemplares ' histórias sobre modos de
conquista, conservação e declínio imperial que podiam servir de aviso aos
futuros colonizadores, alertando-os para os perigos que um mergulho nos
trópicos, e a correspondente dissolução da diferença cultural, podia encerrar.
A par dessas dinâmicas de receção numa época em que o exemplumera central para
modelar comportamentos futuros, as descrições de Linschoten revelam, também, a
descoberta da alteridade dos portugueses a partir de um olhar do Norte da
Europa, olhar não só fundado na rivalidade imperial, mas também na diferença
religiosa e política.
Sob a escrita severa de Linschoten pressentem-se, efetivamente, conceções de
virtude que o holandês não reconhece nos portugueses que encontra na Índia. E é
provável que exemplos como os de Roberto di Nobili e Matteo di Ricci, os
grandes paradigmas da accomodatio jesuíta (ou do homem de muitas faces que o
padre Baltasar da Costa era, como Chakravarti mostra num outro ensaio deste
dossiê), tivessem sido igualmente repugnantes para personalidades como a de
Linschoten, já que estes missionários prescindiam da sua identidade exterior,
adotando a dos seus interlocutores, de modo a facilitarem o diálogo com os
mesmos (semelhantes, nesse aspeto, aos casos de Fuchs), visando alcançar, desse
modo, a sua conversão ao cristianismo. Alternativamente, e à semelhança de
outros que recusavam este tipo de estratégia ' como o grande rival de Nobili, o
também jesuíta Gonçalo Fernandes Trancoso ', Linschoten rejeitava esses modos
de travestimento, essas técnicas de simulação ou dissimulação que, através de
meios que alguns consideravam ínvios (e que outros reputavam, inclusive, de
maquiavélicos) visavam alcançar determinados objetivos religiosos ou políticos.
[9]
É igualmente provável que as perceções de Linschoten estivessem fundadas na
lembrança de outras imagens igualmente conhecidas da época e estruturantes dos
seus imaginários políticos, como seria o caso de Alexandre Magno, cujos lados
mais sombrios tinham culminado, segundo se dizia, na sua rendição aos costumes
orientais. Segundo muitos dos seus cronistas, esta adesão tornara Alexandre num
verdadeiro déspota, cujo despotismo era similar ao dos bárbaros orientais.
Seria ainda o caso de Marco António, que morrera no Egito no meio da luxúria e
do abraço de Cleópatra, o qual fazia parte da enciclopédia da época, até por
ser um dos exemplos que compunham esse outro best-seller que eram As Vidas
Paralelas, de Plutarco. À semelhança de Alexandre, nas Vidas Paralelas, Marco
António surge como o herói que se transforma em contra-herói. E devido a quê? À
renúncia de si mesmo e correspondente adesão aos costumes orientais (Barletta
2010: 21).
Num mundo composto de imitações, analogias e paralelos, encontrar semelhanças
entre estes exemplos e as vidas dos portugueses estabelecidos na Índia tornava-
se quase inevitável. Aliás, o receio de que as alterações verificadas no corpo
e na alma dos portugueses estabelecidos na Índia fossem permanentes já tinha
levado o bispo de Dume, o dominicano D. Duarte Nunes, a afirmar, em 1520, que
todos Portuguezes mudão nessa terra a calidade, e Nação, pelo que conformes
á terra no modo de viver, não queriam senão seguir a sensualidade.[10] Onze
anos antes, Gil Vicente descrevera no Auto da Índia,de 1509, a estranheza de
uma esposa portuguesa perante o regresso do seu marido, vindo daqueles lugares.
Diria ela: Jesu, quão negro e tostado! Não vos quero, não vos quero. Segundo
Vincent Barletta, talvez um pouco forçadamente, por detrás do espanto desta
mulher também estava a convicção de que não era apenas o corpo, queimado pelo
sol, que se tinha alterado, mas toda a compleição, incluindo os equilíbrios dos
humores (Barletta 2010: 138).
Que o encontro com os trópicos requeria um cuidado particular com o governo do
corpo e da alma tornou-se um tema recorrente da reflexividade portuguesa, já
que desse bom governo de si dependia a própria durabilidade do império nos
termos desejados. Não surpreende, pois, que as reservas de Nunes e de Vicente,
pronunciadas nas primeiras décadas do século em cujos anos finais Linschoten
publicaria o seu Itinerário, fossem partilhadas por boa parte das elites
portuguesas que já tinham criticado os casamentos promovidos por Afonso de
Albuquerque entre portugueses e indianas. Para muitos, essas uniões que
replicavam na Índia o que os romanos tinham feito com as sabinas no Lácio,
visando a constituição de colónias ao estilo de Roma em Goa (a Roma do
Oriente), Cochim, Cananor e outros lugares onde os portugueses tinham
fortalezas, eram as principais responsáveis pela nativização dos portugueses.
Mais grave ainda, as mulheres indianas educavam os seus filhos segundo os
estilos da Índia, o que levava, segundo estes, à indianização de todo o
aparelho imperial português.
Associada aos deficitários recursos demográficos de que o reino de Portugal
dispunha e ao mal-estar gerado pelos perigos que o estabelecimento na Índia
encerrava, a aposta na conversão dos indianos ao cristianismo e sua correlativa
lusitanização surgiria como uma solução alternativa. Através da lusitanização e
ocidentalização dos indianos, não só se pretendia multiplicar os soldados ao
serviço da coroa portuguesa, como conter o ameaçador going native dos
portugueses, repondo a ordem natural, já que doravante seriam os indianos a
imitar os portugueses, e não o contrário (Xavier 2008a, 2008b).
É possível que, no contexto das suas andanças ibéricas, Linschoten tivesse
entrado em contacto com estes sentimentos de mal-estar, formatando as suas pré-
compreensões sobre a situação social de Goa. Rendição da civilidade à barbárie,
do cristianismo ao paganismo, do domínio de si à libertinagem, em suma, e como
Ivo Kamps inspiradamente o descreveu, colonização do colonizador pelo
colonizado ' terá sido essa subversão da ordem natural das coisas a perturbar o
bispo de Dume, a esposa doAuto da Índia, muitos portugueses, e, mais tarde,
Linschoten e outros europeus a caminho da Ásia (Kamps 2001).
Para todos estes autores, aderir maravilhosamente aos costumes dos indianos era
um comportamento indesejável, o qual devia ser, por isso mesmo, erradicado.
Enfim, aquilo que poderia ser objeto de elogio a partir de um olhar pós-moderno
que celebra a hibridez ou, mesmo, a partir de um olhar luso-tropicalista que
exalta a doçura da mestiçagem, contribuiu para gizar, nessa altura, uma imagem
negativa sobre os portugueses e o seu modo de estar no mundo. Era a sua
fraqueza identitária e a sua incapacidade de autodisciplinamento aquilo que
explicava a facilidade com que imitavam os inferiores, degradando, dessa
forma, a sua própria condição.
Reverberações
Esta tópica formulada, a partir de vários lugares, e de forma mais ou menos
impressionista ao longo do século XVI, adquiriu contornos bem mais definidos
nos séculos seguintes, desembocando na idealização dos povos ibéricos
(considerados mais próximos da natureza e mais presos às suas leis) como
partilhando um estádio civilizacional inferior aos dos povos do Norte da Europa
(doravante o modelo da civilidade). Como era sabido, entre estes predominava o
humor fleumático, o qual facilitava o disciplinamento das paixões e o governo
pela razão. Ao invés, portugueses e espanhóis continuavam demasiado dependentes
das suas inclinações naturais, o que os colocava em contraciclo em relação aos
nórdicos.[11] No seu tratado Problemas y Secretos Maravillosos de las Indias
(ocidentais), do século XVI, o médico Juan de Cárdenas alertara, precisamente,
para isso: a condição natural dos ibéricos oscilava entre um humor sanguíneo e
um humor colérico, o que explicava o excesso de paixões que caracterizava estas
gentes (Cárdenas 1591: L. 1, P. 3, cap. 2 ).
A mesma ideia de excesso permeia, também, as explicações que surgem na
L'histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
Européens dans les deux Indes (Amesterdão, 4 vols., 1770) do Abbé Raynal, uma
das bíblias do pensamento enciclopédico e, a partir de finais do século XVIII,
uma das principais fontes de informação sobre as histórias imperiais europeias
anteriores. Nas páginas dedicadas a Portugal, Raynal começa por ser muito
elogioso, comparando os portugueses (como Camões o fizera), a egípcios, gregos,
romanos, descrevendo-os como iluminados e heróis: Quels hommes devoient
être alors les Portugais, e quels ressorts extraordinaires en avoient fait un
peuple d'héros? Contudo, e segundo Raynal, logo após a morte de Afonso de
Albuquerque, em 1515, a cobiça tinha começado a corromper os portugueses,
conduzindo rapidamente à sua degeneração. Reiterando a conclusão de
Linschoten, as referências seguintes aos portugueses na Índia sublinham essa
sua capacidade autodestrutiva, anunciando o tempo em que les Portugais
expierent leur perfidies, leur brigandages et leurs cruautés. Cupidez, ambição
e outros qualificativos similares povoam boa parte das páginas que Raynal
dedica a essas experiências. Raynal refere, em concreto, que na Índia muitos
eram os portugueses que tinham mais de oito concubinas, e aqueles com quem
dançarinas e prostitutas partilhavam mesa e cama (Raynal 1770: vol. 1 ' 26-27,
55-57, 90-91, 128, 162, 190 e segs.). Essa sua propensão tinha sido descrita
por D. Garcia da Silva y Figueroa, no início do século XVII, como una própria
imagen de los saturnales ó bacanales de la antiguedad, tópico com particular
ressonância na época em que Edward Gibbon escreveria a sua The History of the
Decline and Fall of the Roman Empire, publicada seis anos depois da obra de
Raynal e livro através do qual se disseminaria a tese de que também o império
romano (que os portugueses tinham tentado imitar) sucumbira graças à rendição
das suas elites à luxúria! (Serrano Sanz 1903: 596, L. 8; Whelan 2009: 17).
A associação entre ética (neste caso, desgoverno, desrazão, superstição) e
etnia (povos ibéricos, em particular, e do Sul da Europa, em geral) era
reforçada por uma outra variável: a mistura de sangue. Mais ou menos na mesma
altura, Kant defenderia abertamente que por terem muita mistura de sangue
africano, os espanhóis (os ibéricos, em geral?) dificilmente poderiam ser
considerados totalmente europeus. Para o filósofo alemão, a sua diferença
civilizacional era resultado da diferença rácica (Mignolo 2007: 312-313).
Numa época em que as teorias raciais adquiriam cada vez mais peso, a mestiçagem
física e cultural dos ibéricos surgia como mais uma adversidade (Gibson 1971:
129-138).[12] Posteriormente, Hegel não hesitaria em dividir a Europa em três
partes ' o Sul, separado pelos Pirenéus (nele incluindo a Grécia, a Itália e a
Península Ibérica), o coração da Europa (Alemanha, França, Inglaterra), e o
Nordeste europeu (onde se situavam os países eslavos, a Polónia e a Rússia). No
que dizia respeito ao Sul da Europa, e dada a aproximação física e cultural à
África, não surpreendia o seu estado de decadência (Mignolo 2007: 323-324).
Em suma, retomando e reformulando imagens produzidas nos séculos anteriores,
tornar-se-ia cada vez mais consensual que o declínio do império português e dos
próprios portugueses se devia, sobretudo, ao enfraquecimento do caráter das
suas populações, enfraquecimento esse que resultava da facilidade com que
aqueles se adaptavam aos modos de vida das populações que colonizavam, quer
através da mestiçagem física, quer por via da contaminação cultural (e da
rendição à luxúria e à sensualidade).
Alexandre Herculano, Antero de Quental e Oliveira Martins, entre muitos outros
intelectuais oitocentistas, ajudaram a disseminar imagens sobre o império
português que reproduziam, sob muitos aspetos, os argumentos de Linschoten,
Kant, Raynal, Hegel e tantos outros. Apesar de, na História da Civilização
Ibérica, Oliveira Martins reagir contra os discursos negativos sobre os
ibéricos, aí procurando destacar as suas virtudes, ao mesmo tempo considerava
que o império estimulara os vícios, corrompendo o caráter dos portugueses. Uma
das razões últimas para essa corrupção residia na mistura entre portugueses e
povos indígenas, naturalmente inferiores, a qual conduzira à degradação da raça
lusíada (Ramos 1997: 113; Matos 2000: 189 e segs.; Maurício 2005: 92 e segs.).
Essa fraqueza portuguesa manifestava-se, também, na corrupção do aparelho
político-administrativo do império. Um século depois de Oliveira Martins moldar
muita opinião pública através da sua poderosa escrita, num livro essencialmente
baseado no Soldado Prático de Diogo do Couto, e que sugestivamente intitula The
Black Legend of the Portuguese Empire, George D. Winius adotou a tese do
indologista J. C. Heesterman, segundo o qual a corrupção normalmente
identificada como sendo característica dos portugueses era, ao invés,
estrutural a toda a Índia; era indiana. Em O Soldado Prático, escrito no último
quartel do século XVI, Diogo do Couto[13] afirmava que a principal causa dos
inconvenientes que havia no governo da República era a corrupção generalizada
dos oficiais da coroa, do mais alto ' i. e., do vice-rei ', ao mais baixo. Ora,
para Heesterman, o império português dependia, na prática, de uma burocracia
indiana, com a qual, por sua vez, os funcionários portugueses estabelecidos
localmente ' os já referidos casados ' mantinham laços de todo o tipo, até
por se terem unido pela via do matrimónio a muitas famílias locais. Assim
sendo, os portugueses pouco mais tinham feito do que mimetizar os modos
indianos de administrar politicamente um território ' i. e., os portugueses
tinham indianizado a sua administração imperial, quer do ponto de vista dos
agentes escolhidos (muitos deles indianos) quer da sua própria cultura
política. Aceitando o argumento de Hesteerman, Winius concluiu assim que o
império português se tinha, de facto, indianizado. Não apenas pela mestiçagem
física, mas através de uma mestiçagem igualmente estruturante, cultural,
tornando-se ele próprio, literalmente, meio indiano (Winius 1985: 180-185).
Considerações finais
Chegados aqui, interessa tecer algumas considerações em jeito de conclusão. Por
um lado, creio que um exercício genealógico do tipo ensaiado neste texto mostra
que a indianização dos portugueses estabelecidos na Índia desde o início do
século XVI precedeu outros processos de nativização, de going native (caso dos
jesuítas ou dos exemplos ocorridos em contexto britânico), que foram objeto de
boa parte da literatura teórica. Por outro, importa recordar que a tópica da
luxúria e da indolência associadas à indianização dos portugueses viria a fazer
parte da enciclopédia orientalista britânica sobre os indianos. Como nos
lembrou Said, os ingleses (os colonizadores) teriam feminizado as populações
orientais (o que justificava, à semelhança das mulheres, a necessidade de
serem governadas por outrem), contrapondo-as à masculinidade europeia (Said
1978). Nos finais do século XVI essas mesmas características femininas já eram
atribuídas aos colonizadores portugueses, num orientalismo avant la lettre, que
abarcava não apenas os orientais, mas também os portugueses que se tinham
orientalizado![14]
O olhar negativo que transparece do Itinerário de Linschoten deve ser
interpretado, pois, tendo em conta estes contextos teóricos. Mas o olhar de
Linschoten revela algo mais: a descoberta (a invenção?) da alteridade dos
ibéricos por parte dos povos do Norte da Europa, cujas reverberações ainda hoje
se fazem sentir. Para muitos destes, essa alteridade manifestava-se, em
primeiro lugar, numa incapacidade de domínio de si, a qual levava os ibéricos a
diversas manifestações de descontrolo ' quer sexual, quer militar, até mesmo
identitário. Daqui resultava, evidentemente, o desgoverno: o desgoverno de si
(manifestado, por exemplo, na opção por imitar inferiores, i. e., indianos),
o desgoverno dos outros (expresso no precoce declínio imperial).
O olhar de Linschoten dá conta, ainda, das fissuras da ordem da imitação, tal
como ela operava na época moderna. Sabemos que a estabilidade da ordem
imitativa era tanto maior quanto maior fosse o controlo daquilo que era
imitado, permitindo reproduzir (e aperfeiçoar) a ordem natural das coisas.
Ora, as situações coloniais perturbavam estes frágeis equilíbrios, sobretudo
por oferecerem aos viajantes europeus uma variedade de possibilidades
antropológicas, de modos de ser e de estar ' e com elas, a possibilidade de
negação da sua identidade de partida (e os renegados eram o caso mais extremo),
considerada, pela quase totalidade dos europeus daqueles tempos, como sendo
superior. Os portugueses, segundo Linschoten, situavam-se entre aqueles que
mais facilmente se deixavam infetar pelo vírus oriental, o que conduziria à
degradação da sua condição (mais tarde, rácica).
Ironicamente, e como Walter D. Mignolo argutamente assinalou, esta
indianização, feminização, africanização, orientalização, ou tropicalização dos
ibéricos resultava de um efeito boomerang. Ou seja, ricocheteava os mesmos
mecanismos que os ibéricos tinham utilizado para subalternizar as populações
oriundas do exterior das fronteiras da cristandade. Por outras palavras, apesar
das inevitáveis descontinuidades que se podem e devem assinalar entre estas
duas dinâmicas, as lendas negras que os ibéricos foram formulando sobre os
turcos, os africanos, os asiáticos, tinham semelhanças com aquelas que lhes
viriam a ser aplicadas (Mignolo 2007: 315). Mas, ao contrário do que Mignolo
defende, não é nas Luzes que se devem encontrar as raízes deste processo, mas
sim no próprio século XVI. Mais: não foram os europeus do Norte a formular, em
primeiro lugar, esta tópica discriminadora, mas vozes descontentes de
portugueses e espanhóis, frequentemente metropolitanas, revelando que as suas
sociedades não eram monótonas, e que as tensões ocorriam, em primeiro lugar, no
interior dos seus impérios.
Por fim, é igualmente verdade que, tal como os portugueses imitaram os indianos
e se indianizaram, ou os indianos imitaram os portugueses, as várias vidas da
lenda negra do império português muito devem a uma voracidade imitativa, a um
canibalismo textual que foi dando vida própria a velhas imagens, séculos após
séculos. Como se referiu, já em pleno século XX destacam-se os impactos que
estas mesmas imagens tiveram na formulação do luso-tropicalismo, mas também do
seu oposto, isto é: a defesa do caráter racializado das relações imperiais
portuguesas, uma contrarretórica luso-tropicalista para a qual o livro Race
Relations in the Portuguese Empire, de Charles Boxer, muito contribuiu, levando
à formulação de uma lenda negra mais moderna, desta vez a de portugueses
viris e racistas (Pina-Cabral 2012, Roque 2012).[15] Apenas aqui lembradas,
essas outras reverberações e contrarreverberações (e as clivagens ideológicas
para as quais elas podem reenviar) não podem agora ser discutidas, devendo ser
objeto de um outro estudo.