Cultura e língua grega em Portugal e outras regiões da península entre os
séculos XV e XVIII (seis momentos para a compreensão e estudo da sua dinâmica)
Cultura e língua grega em Portugal e outras regiões da península entre os
séculos XV e XVIII (seis momentos para a compreensão e estudo da sua dinâmica)
Manuel Cadafaz de Matos*
*Academia Portuguesa da História e Centro de Estudos de História do Livro e da
Edição – CEHLE.
À Colega Prof. M. H. Ureña Prieto, distinta helenista e
investigadora, da Academia Portuguesa da História
Entre os começos do período quatrocentista e meados do século XVIII, a cultura
e a língua grega, a par da latina, estiveram praticamente sempre presentes em
Portugal e na Península Ibérica em geral, nos movimentos das ideias, nos
principais centros de opinião e decisão.
Quer nos meios cultos ' universitários ou não ' quer nos principais focos de
decisão política, o Grego, nesses períodos, nunca foi relegada apenas para uma
condição de língua morta, transportando para um passado arredio e distante.
Esta língua clássica, com efeito, possibilitou sempre ser vista, no essencial,
como uma porta que permitia a abertura a outros patamares, a outras
consciências, enfim, do conhecimento e das civilizações do homem.
Não é possível, pois, analisar ou estudar alguns dos aspectos da cultura
neohelénica no nosso país sem se terem em conta aspectos como o das figuras
helénicas que se fixaram (pelos motivos mais variados) em terras da Península,
quer se trate de Vataça ou Angelina da Grécia ou de João Menelau; o de
intelectuais portugueses, como o humanista Aires Barbosa, que se notabilizaram
no ensino da língua grega mesmo fora de solo pátrio; o de outros intelectuais
como o Duque de Lafões ou D. Manuel Caetano de Sousa, por quem a cultura
helénica foi significativamente acarinhada; ou o de D. Tomás de Almeida,
Director Geral dos Estudos do Reino, que se preocupou em que os caracteres de
língua grega continuassem a ser postos ao serviço dos homens cultos e das
colectividades de ensino.
I
1403: Alguns acertos e dúvidas sobre Vataça e Angelina da Grécia na Península
Ibérica
Remontando seguramente, a um período anterior, não muito distante da fundação
da nacionalidade), a presença de figuras do mundo helénico em Portugal é
detectável ainda no século XII. Neste âmbito histórico detemo-nos aqui,
primeiramente, na aristocrata D.Vataça Lascaris[1]. Tratou-se de uma dama
helénica, proveniente do Império de Niceia ' nascida em Ventimiglia, filha de
Guillermo Pedro (c. 1230-1282), 1º. Conde de Vintimiglia e de Endoxia Lascaris
(esta, por sua vez, filha de Teodoro II Doukas Lascaris, este por seu lado neto
do 1º. imperador de Bizâncio em Niceia, Teodoro I Lascaris). De formação
cultural e religiosa bizantina, ela poderá ter chegado a Portugal c. 1288.
Essa sua chegada à Corte portuguesa ocorreu no séquito que acompanhava D.
Isabel de Aragão, como aia, por ocasião do seu casamento com o rei Dinis de
Portugal. D. Vataça viveu, primeiramente, junto de D. Isabel (de quem se viria
a tornar amiga e confidente). Consumado o casamento desta com D. Dinis (cujo
reinado, como é sabido, se prolongou por 46 anos, entre 1279 e 1325) ' partiu,
na presença de D. Constança, para Castela, onde esta desposou o rei Fernando IV
[2].
Importa assinalar que este apelido, Lascaris, daquela aristocrata relacionada
com Portugal, continuou ao longo dos séculos a ser comum a figuras da
intelectualidade bizantina. Veja-se, o caso de Constantino Lascaris, uma das
eminentes figuras da intelectualidade bizantina na Itália do Renascimento[3].
Pode estabelecer-se, deste modo, um ponto de vista de análise comparativa entre
as duas damas de formação helénica, D. Vataça Lascaris, que já na última década
do século XIII vivia em Portugal; e D. Angelina da Grécia que, como veremos
adiante, chegou à Península Ibérica (proveniente do império bizantino), em
Janeiro ou Fevereiro de 1403, ou seja, cerca de um século depois.
Registe-se que, entretanto, a própria D. Vataça Lascaris passou a assumir um
papel de algum relevo nas negociações políticas entre Portugal e Leão e
Castela. No respeitante a acontecimentos verificados pouco depois, e a um
acordado encontro entre os monarcas peninsulares ' concretizado em Badajoz, em
fins de Abril de 1303[4] ' encontram-se estudadas, para além de algumas
epístolas firmadas por D. Dinis e pelo Conde de Barcelos, as assinadas pela
própria D. Vataça Lascaris[5].
Alguns anos depois esta aristocrata helénica, ainda na companhia da rainha de
Castela, D. Constança, continua a ter alguma preponderância nas negociações
políticas entre Portugal e os reinos de Leão e de Castela[6]. Em 1313, antes da
morte (então ocorrida) daquela rainha castelhana filha de D. Dinis, aquela dama
bizantina continuava a ter um papel decisivo na influência, materializada
epistolarmente, que D. Isabel sua mãe exercia sobre ela.
Algum tempo depois D. Vataça Lascaris acabaria por deixar Castela e se fixar,
definitivamente, no reino de Portugal. Quatro anos depois, D. Vataça tinha uma
pequena corte aristocrática, na fortaleza existente na vila alentejana de
Santiago do Cacém (a qual lhe fora doada pelo rei-esposo da sua protectora)
onde se ocupava a zelar por bens de significativa monta, tal como algumas
propriedades.
Até meados dos 20 ou inícios dos anos 30, daquele século, D. Vataça acompanhou
Isabel de Portugal quando esta se fixou em Coimbra, já então com uma lenda de
mulher muito próxima de Deus. Aqui acabou por vir a falecer, no ano de 1336,
encontrando-se sepultada na Sé Velha de Coimbra[7], onde o seu túmulo, com as
insígnias dos Lascaris (águias bicéfalas) ainda hoje poder ser apreciado. Ele
situa-se não muito distante, afinal, do da sua protectora de sempre, a Rainha
Santa Isabel, que com o seu bordão de peregrina jacobeia permanece no mosteiro
de Santa Clara a Velha.
O túmulo da aristocrata helénica D. Vataça Lascaris, na Sé Velha de Coimbra
(séc. XIV)
Uma outra figura a que a historiografia sobre a helenização da Península
Ibérica não tem dado a devida atenção ' até, em parte, por falta de elementos
disponíveis ' foi Angelina da Grécia, que em 1403 chegou, por via do porto que
serve Sevilha, a terras de Castela.
Os acontecimentos em torno da vida de Angelina da Grécia, pelo menos os que
mais se prendem com a sua vinda para este recanto do globo, gravitam à volta da
embaixada de Castela à Corte de Timour Beg (mais conhecido como Tamerlão), na
Ásia Central, entre 1403 e 1406. Deste acontecimento chegou até nós o relato
pela pena do cronista Ruy Gonzalez de Clavijo.
Entre os antecedentes desta embaixada, segundo registou o historiador castelano
Juan de Mariana, contamse o facto de o turco Bajacet ter atacado os cristãos
de Nicopolis em 1396 e, nesse período, ter feito conquistas nos territórios da
Grécia, da Bulgária, da Sérvia e de Bizâncio[8]. Na sequência de tais
acontecimentos Tamerlão fez guerra a Bajacet, enfrentandose ambas as hostes em
28 de Julho de 1402. Do confronto resultou a derrota deste último ' sabese
que, ali, o exército turco ficou destroçado ' bem como a sua prisão.
Após as devidas negociações, estavam então criadas as condições para Henrique
III de Castela enviar uma embaixada aquele vencedor do inimigo dos cristãos,
Tamerlão. A escolha dos embaixadores recaiu em dois nobres castelhanos que
conheciam bem aquela região, precisamente Payo Gomez de Sottomayor e Hernán
Sánchez Palaçuelos, que para o efeito deixaram o seu país, pelo porto de Cádis,
em 23 de Maio de 1403. A sua chegada a Samarcanda ocorreu mais de um ano
depois, em 8 de Setembro de 1404.
Quanto à embaixada castelhana, subsistem descrições pormenorizadas quer dos
itinerários quer dos principais acontecimentos ocorridos em tal périplo.
Sabese, por outro lado, que por sua parte também Tamerlão, em termos de
reciprocidade, diligenciou no sentido do envio dos seus próprios representantes
diplomáticos ao encontro da Coroa de Castela, mais precisamente de Henrique
III, ou dos seus representantes. Assim Tamerlão designou na circunstância, para
esse efeito, Mahammed alKèchi. É no quadro destas negociações bilateriais que
surge, efectivamente, a figura de Angelina da Grécia.
I‑1. Algumas das repercussões da sua vinda para Castela e da sua fixação na
cidade de Segóvia
Tamerlão considerava Henrique III de Castela como um seu aliado, nas lutas que
continuava a desenvolver no seu império. Envioulhe assim aquela missiva
diplomática, em que lhe dava testemunho da vitória contra o inimigo comum,
Bajacet (o qual, aliás, como prisioneiro, viria a falecer pouco depois), e que
já tinha diligenciado na libertação de vários cristãos[9].
Aquele estratega da Ásia Central confiou então aos seus embaixadores ' a fim de
que fossem entregues ao rei de Castela ' não só
belos presentes compostos de jóias de valor e de duas ou três damas
cristãs de alta linhagem que tinham sido libertadas[por Tamerlão]do
harém de Bajacet, onde se encontravam cativas desde que tinham sido
aprisionadas na Grécia, ou na Bulgária pelos turcos[10].
A historiografia disponível aponta, com efeito, queestas damas, na suaviagem do
Médio Oriente para a Península Ibérica, embarcaram nesse período ' acompanhadas
dos seus servidores e das suas bagagens ' no porto de Pera[11] (não muito
distante de Constantinopla). Assim, chegaram ao sul de Castela, mais
precisamente ao porto de Cádis, alguns meses depois.
Em Fevereiro de 1403 Angelina da Grécia já se encontrava, acompanhada de Payo
de Sottomayor ' referenciado como «pagem do rei» ' na cidade de Sevilha,
atendendose aos respectivos registos da municipalidade. Nessa cidade
sulcastelhana ela poderá ter inspirado amores a um eventual residente. L.
Kehren afirmao na medida em que no cancioneiro de Juan Alfonso de Baena
encontrase um poema de amor cortês a ela dedicado por um gentilhomem de
Sevilha.
Essa legação estrangeira com tão ilustres damas deixou a cidade andaluza, pouco
depois, em 12 do mesmo mês de Fevereiro, em direcção a Córdova, onde descansou
algum tempo e visitou as belezas arquitectónicas da urbe.
Nessa época o rei de Castela Henrique III encontravase em Segóvia. Para ali
foi conduzida então Angelina da Grécia, onde terá chegado muito provavelmente
nos últimos dias de Fevereiro desse mesmo ano.
I‑2. Do enamoramento da aristocrata por Diego de Contreras, do seu casamento e
da sua ascendência e descendência
Lucien Keren aponta que em começos de Março de 1404 tão ilustre comitiva foi
recebida, em mais do que uma cerimónia protocolar, por Henrique III. Numa
dessas cerimónias, o corregedor de Segóvia, Diego de Segóvia, enamorouse de
Angelina de Grécia, que retribuiu os seus afectos. Tendo o pretendente
solicitado a devida autorização de casamento, o monarca não só deferiu o seu
pedido como a privilegiou com um dote.
Desse casamento nasceram, como consta dos respectivos registos, três filhos.
Uma das questões que subsistem acerca dessa descendência, sobretudo em relação
aos começos do século seguinte, é se a família dos Contreiras, que no período
quinhentista se localiza entre a cidade de Évora e a vila de MontemoroNovo
[12], pertenceu ou não aquela linhagem proveniente de Segóvia.
Foi precisamente nesta cidade castelhana que Angelina da Grécia viveu com o
marido vários anos. A casa onde residiu ainda hoje ostenta as armas dos
Contreiras. Ali acabou por falecer, sendo sepultado na capela de San Juan de
los Caballeros, em cuja tumba figuram as insígnias dos Contreras
(inclusivamente a representação de um leão de ouro rompante).
Os historiadores que têm estudado a vida desta dama deparamse, no essencial,
com algumas lacunas informativas a seu respeito. Uma delas diz respeito à sua
verdadeira ascendência.
Um dos problemas provém, por exemplo, da epigrafia constante da sua pedra
tumular. Essa inscrição, ali apresentada, tem feito surgir, com efeito, as mais
diversas dúvidas. Ali registase:
Aqui repousa Angelina da Grécia, filha do conde João, neta do rei da
Hungria, esposa de Diego de Contreras[13].
A questão é que subsistem, documentalmente, diversas contradições a respeito
desta relação de Angelina com a realeza húngara. Efectivamente L. Kehren
estabelece que «o rei da Hungria que poderia ter sido o avô de Angelina, pelo
menos segundo a cronologia, é Luís de Anjou, rei da Polónia e da Hungria (que
viveu entre 1342 e 1382)». Neste enquadramento temporal não lhe é conhecida
«nenhuma neta aprisionada pelos turcos; por outro lado, o lião rompante não
figura nos armoriais da Hungria desta época»[14].
Seja como for, continua a prevalecer, por mais segura, a hipótese de que
Angelina da Grécia ' dada essa associação de elementos provenientes do nome com
que ela passou para a posteridade ' continua a ser perspectiva como um dos elos
da cultura da Hélade na península Ibérica nos fins do século XV.
II
C. 1515 : João Menelau, a ensinança do Príncipe D. João e a sua passagem para
as Índias Orientais
Outra interessante figura chegada à Península Ibérica proveniente do mundo
helénico foi João Menelau. Ele terá contribuído também, a seu modo, para uma
aproximação entre as duas culturas e, na Corte portuguesa, para uma melhor
difusão da língua e cultura grega.
No reinado de D. Manuel I ' que faleceu em Lisboa em 1521 ' a cultura grega
continuava, com efeito, na ordem do dia, nos principais meios cultos e,
sobretudo, em meios universitários e junto de alguma aristocracia mais
esclarecida. Este monarca, pensando na sólida formação humanística do seu
herdeiro, o príncipe D. João (nascido em 1502), pretendeu dotálo de reputados
mestres, os quais encarregou da sua educação e preparação para a governação
futura do Reino, o que se parecia avizinhar.
II‑1. Helenismo e humanidades na corte manuelina nas duas primeiras décadas do
séc. XVI
Entre estes mestres escolhidos pelo rei Venturoso contavamse o eclesiástico e
humanista Diogo de Ortiz, o facultativo[15] Tomás de Torres, bem como o doutor
em Leis, Luís Teixeira. A progressão deste régio aluno em tais estudos não terá
sido, porém, a mais favorável. Nesta evolução discente ' segundo veio a dar
testemunho, entre outros, Camilo Castelo Branco[16] ' o jovem príncipe não
apresentou grandes resultados[17], o que terá levado aqueles seus mestres a
apresentarem ao rei D. Manuel, a sua demissão de tais funções.
Para além desses credenciados mestres do príncipe D. João, ele recebeu ainda
ensinamentos do Bispo D. António Pinheiro e de Diogo Sigeo. No que concerne, na
especificidade, ao ensino das línguas clássicas, Camilo Castelo Branco destaca,
em particular, o papel do já referido magisterLuis Teixeira para a tradução bem
como o helenista grego João de Menelau. A este último ' que tudo indica já
residia desde há pelo menos duas décadas em Portugal ' foilhe atribuída a
preparação do príncipe na língua grega, em particular na «conversação»[18].
II-2. Da família dos Menelau a alguns elementos para a sua genealogia e
heráldica quinhentista
Sobre este João de Menelau, oriundo da Grécia, sabese que foi um homem de
ciência. Desempenhou a sua actividade na Corte manuelina como astrólogo, físico
e cirurgião. Neste último aspecto, ele cultivou a Medicina nas suas múltiplas
vertentes.
Tudo indica que este grego terá chegado a Lisboa, em fins do século XV. Fêlo
ou atraído pelo esplendor que na altura catapultava o Portugal dos
descobrimentos para uma das nações mais prósperas (e promissoras) da Europa '
sob o cheiroda pimenta e das especiarias ' ou, eventualmente, terá sido
convidado pelo próprio monarca, para aqui dar testemunho dos conhecimentos
científicos que detinha.
João Menelau terá chegado a Lisboa, segundo Ana Isabel Buescu, ainda em fins do
século XV. Em 1500 terá integrado, como astrónomo, a tripulação da primeira
armada de Pedro Álvares Cabral[19] que atingiu com êxito, pela primeira vez, as
terras de Vera Cruz ou do Brasil. É provável que, então, tenha regressado ao
Reino, com a armada portuguesa que atingira tão elevado feito na descoberta da
costa brasileira.
A partir de então, admite-se que tenha sido, de certo modo, longa a permanência
deste João de Menelau no Reino de Portugal. Num período que se poderá situar
entre 1517 e 1522 ' no período de transição do reinado de D. Manuel I para D.
João III ' encontravase a viver, muito presumivelmente, ainda em Lisboa. Algum
tempo depois, porém, sabese que embarcou para terras de Goa, onde muito
provavelmente veio a falecer[20].
Ainda antes de seguir para as Índias Orientais, João Menelau foi, como o doutor
Luís Teixeira, um dos mestres de língua grega e de cultura helénica de D. João
(quer este fosse ainda Príncipe ou já tivesse sido empossado como novo
monarca).
Sobre o primeiro desses orientadores do príncipe, filho de D. Manuel, Ana
Isabel Bescu alude à «designação do doutor Luís Teixeira como seu novo mestre,
quando D. João tinha já cerca de dezassete anos de idade» (portanto c. 1519).
Este leu, com efeito, àquele príncipe as Epístolas de Ovídio e, ainda, as obras
de Plínio e Tito Lívio. Ensinoulhe, de igual modo ' pela experiência que havia
grangeado na Itália Renascentista de onde chegara há pouco ' alguns rudimentos
da língua grega[21]. De assinalar que este humanista chegara ao reino de
Portugal depois de se doutorar em Direito na Universidade de Bolonha[22],
convivendo com os mais sábios humanistas[23] daquele período.
Não terão sido, reconhecidamente, muito notórios, no príncipe D. João[24], os
ensinamentos recebidos na língua helénica, da parte de João de Menelau. Pode
estabelecerse, no entanto, que o herdeiro do trono ' fazendo ainda fé em
Camilo ' soube serlhe reconhecido. Nomeouo «rei de armas» em Portugal,
fidalgo de sua casa. As armas então atribuídas caracterizavamse por ser
em campo vermelho, uma serpente de prata picada de verde, amedrontada
de uma águia de ouro armada de azul que está sobre ela[25].
Importa salientar, porém, que estas armas apresentam, na sua configuração,
algumas características diferentes das armas de um descendente (seiscentista)
deste João de Menelau. Foi ele o marido de uma tal Helena, que vivia, já em
pleno reinado de Filipe II, numa quinta situada na região do Seixal, nos
arredores de Lisboa na margem sul do Tejo.
III
(1495)1516: Aires Barbosa, docente da língua grega e dos ensinamentos de
Arator em Salamanca
Sendo conhecida uma já significativa soma de estudos em torno do helenista
português Aires Barbosa (c. 14701540), entre eles os de Sebastião Pinho[26],
pretendese destacar aqui ' e havendo algumas imprecisões sobre as datas do seu
nascimento e da sua morte[27] ' no essencial, alguns dos aspectos do seu
percurso académico na Universidade de Salamanca.
Numa primeira fase da sua caminhada intelectual, este helenista, natural de
Esgueira, junto a Aveiro, estudou c. de três anos na Universidade de Salamanca.
Algum tempo depois teve formação em Itália, mais precisamente em Florença, onde
esteve alguns anos da última década do século XV e onde se graduou como mestre
de Artes.
Nesta capital do humanismo transalpino, Aires Barbosa estreitou contactos com o
humanista Angelo Poliziano (que, como é sabido, também privou com outros
humanistas lusitanos como Henrique Caiado). Voltando para a Península Ibérica,
acabou por ocupar, c. de 1490-95, em Salamanca, a primeira cátedra de Grego em
Castela[28].
A primeira fase da acção filológica deste helenista português decorreu
sensivelmente no período em que os helenistas, na Península Ibérica, ainda
desenvolviam um trabalho algo solitário. Numa carta ' relevada por Ángel Gómez
Moreno, num aspecto particular ' que enviou ao humanista Lucio Marineo Sículo e
constante do epistolário deste, ele sublinhou que o panorama cultural espanhol
naquele momento era desértico, até nas próprias universidades :
Vix duos tresve Salmanticae inveniri qui latine loquerentur, plures
qui hispane, quam plurimos qui barbare (Epistula XI, 62)[29].
Naturalmente que esta postura, desassombrada, de Aires Barbosa não tem nada a
ver com uma certa crítica que ele ' e outros filólogos peninsulares como
Nebrija ' levantou contra certos humanistas transalpinos[30] do seu tempo que,
directa ou indirectamente, se relacionaram ou escreveram até sobre esta parte
do ocidente europeu.
III‑1. Alguns helenistas contemporâneos do filólogo e comentador
lusosalmantino
Em Castela, Aires Barbosa trabalhou, como filólogo e magister, sensivelmente no
mesmo período de Nebrija[31]; ou, ainda, naquele em que Hernán Nuñez de Toledo
(c. 1471/751553), o Comentador Grego, preparou cuidadosamente ' e fez imprimir
em Sevilha, em 1499 ' a edição maior do Laberinto de Fortuna, de Juan de Mena
[32].
Essa acção teórica do português, como especialista em língua e cultura grega,
na Universidade de Salamanca, foi também contemporânea da obra desenvolvida
pelo helenista Jeronimo Pau. Registese que este nascera em Aragão e, depois de
redigir bem conhecidos trabalhos em Itália ' à divulgação dos quais se
dedicaram Francisco Rico e Mariàngela Villalonga[33] ' acabou por falecer em
1497.
Pensandose ainda em Juan de Mena, distam, com efeito, poucos anos entre esta
edição do Laberinto e a preparação, por Aires Barbosa, da sua cuidada edição de
Arator.
Esta última terá resultado, também, do curso que o humanista português
ministrou naquela universidade salmantina, entre 1513 e 1514[34]. Tendo
aprofundado então esses ensinamentos, resultou daí um dos mais sólidos estudos
filológicos por ele preparados, tendo por tema central o poema épico do Cardeal
Arator ' poeta cristão que viveu no século V (antecedendo em não muitas décadas
João de Scallabis, ou Biclarense, o autor do conhecido Chronicon) ' a que deu o
título de Historia Apostolica, com uma forte proximidade à temática dos Actos
dos Apóstolos.
Edição de Aratoris Cardinalis Historia Apostolica, pelo humanista português
Aires Barbosa (Salamanca, 1516)
Foi efectivamente em Abril de 1516 ' um ano depois de ter editado em Salamanca
a sua obra Epometria ' que saiu impressa na mesma cidade a não menos conhecida
obra do helenista português intitulada precisamente Aratoris Cardinalis
Historia Apostolica cum commentariis Arii Barbosae lusitani[35], na oficina de
Ioannis Porris.
Já numa fase de maturidade intelectual o humanista aveirense continuou a sua
produção editorial, dando à estampa em 1536, desta feita na cidade de Coimbra '
quatro anos antes de ocorrer o seu falecimento ' de uma sua outra obra bem
conhecida, Antimoria[36].
III‑2. Dos ensinamentos do helenista português, no contexto da difusão do
Humanismo na Península Ibérica
Voltemos, pois, à edição de 1516 de Aratoris Cardinalis Historia Apostolica ,
com tão pertinentes achegas de Aires Barbosa. Aqueles comentários já foram
considerados de uma riqueza inesgotável de ordem filológica, teológica e
filosófica. De acordo com Pina Martins, Aires Barbosa sabe pôr ao serviço da
ciência das Letras uma erudição cheia de mestria. E regista: «é menos a
informação exaustiva que ele dá dos textos de Aristóteles e de Platão, que o
profundo conhecimento que dá das obras dos humanistas italianos. Tal como
Erasmo, ele põe Valla e Poliziano acima de todos os outros»[37].
O que não deixava de ser acutilante já em 1977, numa das conclusões de Pina
Martins é que estes comentários de Aires Barbosa era praticamente
desconhecidos, sobretudo em resultado da raridade extrema do livro. Mais de
trinta anos depois, tal realidade, confrangedoramente, mantém‑se.
Já no próprio período quinhentista, esses comentários de Aires Barbosa ' a par
de outros ' tinham também sido considerados como algo indigestos. A erudição,
com efeito, apenas era tangível por parte de uma minoria de homens, porventura
de alguns eleitos. Do que não restam dúvidas é que estas pesquisas do humanista
aveirense em torno da aludida obra do Cardeal Arator constituem a sua incursão
maior no âmbito do Helenismo.
IV
1537‑41: Aspectos (sumários) sobre a docência em Coimbra da língua grega no
período quinhentista
Para um estudo da implantação do Grego em Portugal, quer em meios políticos e
cortesãos quer em meios estudantis, importa remontar ao período que medeia
entre fins do século XV e primeiro quartel do século XVI. Há que precisar,
antes do mais, que já em 1523 «Aires Barbosa aparece em Portugal na qualidade
de mestre da Corte»[38]. Pouco depois da transferência da Universidade de
Lisboa para Coimbra, o ensino do Grego e a sua difusão ' inclusivamente por via
de textos ali impressos ' continuava a ser um tema candente.
Cerca de uma década depois principiou a notabilizar‑se na mesma cidade o
humanista alemão Vicente Fabrício (que chegou mesmo a ser denunciado à
Inquisição). Alguns investigadores da área do humanismo têm confundido, por
vezes, este intelectual com um outro humanista do mesmo apelido, Arnaldo
Fabrício, natural da Aquitania.
Este segundo intelectual, com efeito, só chegou à cidade do Mondego algum tempo
depois, inserindo‑se numa outra constelação relacional humanística, como mais
adiante se vê. De uma coisa é certa. Segundo provou Costa Ramalho, «Vicente
Fabrício não era parente do francês Arnaldo Fabrício », havendo tantas
possibilidades de aquele ser da Alemanha como da própria Holanda[39], o que
ainda se encontra por apurar.
Quanto à Universidade de Coimbra propriamente dita, importa assinalar que em 16
de Fevereiro de 1538 D. João III fazia promulgar um decreto em que proibia que
a língua grega ' tal como, aliás, a latina e a hebraica ' fossem objecto e
ensino fora dos colégios de Santa Cruz de Coimbra[40]. Só poderia ser
considerada excepção, no caso de o Pe. Superior ou o Reitor daqueles Colégios
autorizasse especialmente nesse mesmo sentido.
Importa precisar que, pelo menos desde meados dos anos trinta, se leccionava
Grego em Santa Cruz. Desse facto deu então testemunho o humanista Clenardo, a
João Vaseu (professor da mesma língua clássica na Universidade de Salamanca),
numa carta que redigiu em Évora[41], depois de uma sua estadia em Coimbra onde
se apercebeu dos avanços dos estudos helénicos.
Nessa epístola Clenardo indica ao seu correspondente, por sinal ' em
contraponto do facto de João Vaseu não dispor, em Salamanca, de muitos textos
impressos em caracteres gregos ' a existência em Coimbra, nas instalações do
Cónegos Regrantes de Santa Cruz, utensilagens tipográficas variadas onde não
existem apenas caracteres latinos mas também caracteres gregos[42]. Clenardo
teve então ensejo de assistir ainda naquela cidade de doutores, à popularidade
de que desfrutava o professor de Grego, o alemão Vicente Fabrício.
Importa assinalar que, neste período, Nicolau Clenardo era um helenista
distinto não apenas nos meios universitários de Salamanca como nos de Coimbra.
Saliente-se, aliás, que já antes de eles chegar a Salamanca, no Outono de 1531,
ele, como helenista, havia desfrutado de um assinalável êxito, como professor
de Grego, na cidade de Lovaina. Ali tinha feito imprimir, em fins de 1530, as
obras intituladas Institutiones Absolutussimae in Graecam Linguam e Praxis Seu
Usus Praeceptorum Grammatices Graecae.
Na primeira destas obras está editada uma carta-dedicatória que aquele mestre
flamengo dirigiu ao humanista Francisco Hoverio (com o qual travou, aliás,
prolongada correspondência, tal como com o humanista João Vaseo). De tal modo
foi um êxito este estudo de Clenardo sobre a língua grega que ele conheceu
sucessivas edições, de que é testemunho a edição de Lyon, na oficina de
Antonium Gryphium, em 1582, de que existe um exemplar original (com as duas
partes supra-referenciadas) nas colecções do CEHLE.
Retrato do humanista Clenardo; à direita fac-símile da carta que Clenardo
enviou, em Abril de 1530, ao seu correspondente Francisco Hoverio a introduzir
a obra Institutiones Absolutussimae in Graecam Linguam
A destacar, ainda, que na correspondência que Clenardo travou com Hoverio ' em
particular numa carta de 3 de Outubro de 1535 ' existem algumas menções, em
resultado da sua deslocação posterior a Coimbra, ao trabalho do helenista
Vicente Fabrício. Neste sentido, apresenta-se aqui um excerto dessa mesma
epístola daquele ano, (de cerca de sete anos depois de Aires Barbosa deixar de
ser professor de Grego em Salamanca) que permite uma outra dimensão da difusão
da cultura helénica na Península Ibérica naquela mesma época.
Frontispícios das duas obras de Clenardo (de 1530, na nova edição lionesa de
1582), Institutiones Absolutussimae in Graecam Linguam e Praxis Seu Usus
Praeceptorum Grammatices Graecae(CEHLE)
DOCUMENTO: Carta de Clenardo a Vaseu
Ioanni Vafæo
IV‑1. Algumas medidas tomadas por D. João III no tocante ao ensino do Grego na
Universidade: o papel do humanista Vicente Fabrício
O ano de 1537 afigura‑se, assim, como uma data‑charneira para o progresso dos
estudos do Grego em Coimbra. Em 10 de Abril desse ano, por um diploma de D.
João III, é criada a cadeira de Grego na universidade conimbricense. A esse
facto se reporta, inequivocamente, o Catálogo Original dos Reitores, uma
compilação de Figueiroa, bem conhecido reformador da instituição. Deste modo
pode‑se sintetizar todo esse processo da seguinte forma: enquanto até aí o
Grego foram ensinado naquela cidade no Colégio de Santa Cruz, a partir de então
passou a ser leccionada na Alma Mater conimbricense[43].
De 7 de Setembro de 1541, subsiste um documento que regista que o cargo de
lente de Grego, a partir de 1 de Outubro seguinte, passaria a render naquela
instituição, ao humanista alemão Vicente Fabrício[44], a verba de «sessenta mil
réis»[45].
Deste professor sabe‑se ainda que D. João III, alguns anos depois, mais
precisamente em 20 de Setembro de 1546, o veio a honrar com a distinção de
«lente perpétuo de Grego»[46].
IV-2. A entrada em actividade em Coimbra do helenista francês Arnaldo Fabrício
É pouco depois de meados da década de quarenta que entra em Coimbra,
proveniente de França, esse outro novel helenista, de nome Arnaldo Fabrício.
Tratava‑se de um intelectual francês, que segundo Costa Ramalho nasceu em
Bazas (ou Bazadais), na Aquitânia[47], mais precisamente na província de
Gironda, a sudeste de Bordéus.
Primeiramente ele tinha sido docente no Colégio de Guyenne, em Bordéus, ao
tempo do «principal» André de Gouveia. D. João III, ciente do seu valor no
âmbito dos estudos clássicos ' no período anterior à fundação em Coimbra do
Colégio das Artes ' endereçou‑lhe um convite para vir leccionar para esta
universidade.
Não deixa de ser pertinente assinalar‑se que tenha recaído, sobre Arnaldo
Fabrício, a escolha para pronunciar, naquele Colégio das Artes, quando da sua
inauguração, em 21 de Fevereiro de 1548, uma notória oração de sapiência sobre
as virtudes de quem cultiva(va) as Belas‑Letras[48].
É hoje bem conhecida, com efeito, a obra resultante dessa oratio. Trata‑se de
Arnoldi Fabricii Aquitani deLiberalium Artium Studiis Oratio Conimbricae habita
in Gymnasio Regio, que saiu impressa na oficina da Universidade de Coimbra, em
1548, sob os cuidados dos impressores João da Barreira e João Álvares[49]. Aí
ele referiu, com efeito, de que apenas as Belas‑Letras podem conferir a
imortalidade aos humanos.
Frontispício da edição com a Oratio, de Arnaldo Fabrício, ocorrida em
Coimbra, na oficina de J. Álvares e J. da Barreira, em 1548
A presença de Arnaldo Fabrício em Coimbra não seria, depois dessa data, muito
mais prolongada. Sabe‑se que, pouco depois da morte de André de Gouveia, em 9
de Junho desse mesmo ano de 1548, ele foi colocado ' um tanto a contra‑gosto
próprio ' no Colégio das Artes, em 1551. Algum tempo depois, segundo assinalou
Costa Ramalho, terá deixado a cidade presumivelmente em direcção à sua
Aquitania natal. Aí terá continuado, no entanto, a desenvolver a sua obra, até
a morte o surpreender[50].
IV-3. Ainda o biénio de 1548-1549 e a ampla difusão tipográfica da cultura e do
pensamento helénicos na universidade e no país
É um facto que esse biénio de 1548-1549 foi, para a Universidade de Coimbra e
para o país ' até em resultado dos mestres de elevada reputação internacional
que nesse período se encontravam ao serviço daquela instituição ' uma época
deveras propícia à difusão da cultura e do pensamento helénicos.
Arnaldo Fabrício, com a referida Oratiode sapiência que então proferiu no
início das actividades do Colégio das Artes[51], é um testemunho vivo desse
registo da entrada de novas ideias. Aborda então, a dado passo da sua alocução,
a importância da Música e da Geometria.
Quanto à Música, Arnaldo Fabrício ' numa lição em alude à sua larga utilidade '
refere-se ao facto de que foi tida em grande veneração pelos Gregos. Em tempos
arcaicos, com efeito, os músicos eram considerados a par com os poetas e os
sábios.
Abordando, por outro lado, a utilidade prática da Geometria, aquele mestre de
Grego salienta a sua pertinente aplicabilidade a outras disciplinas. Põe assim
em evidência, a dado passo, o auxílio que traz à navegação[52].
Recorda, para o efeito, os novos mundos recentemente descobertos pelos
portugueses, na dilatação do império lusíada:
Sine quo quis unquam tot, tantisque periculis se committere ausus
fuisset, quanta, Viri Lusitani,majores vestri in terrarum occultarum,
ac Geographis ipsis olim ignotarum lustratione ante subierunt
vobisque ipsis pariter in eandem pervestigationem incumbentibus hodie
sunt subeunda?
Outro topos desassombradamente abordado por Arnaldo Fabrício nesta oração
universitária é o da dicotomia das artes e das letras. Aí põe em relevo que não
se deve crer que as letras valham menos que as armas, ou que estas pudessem
efeminar os espíritos, produzindo alguma incapacidade para as empresas
militares. Tantos os gregos como os Romanos, salientou na oportunidade o
helenista de Bazas, souberam magistralmente contrariar essa falsa opinião[53].
Ilustra veemente esta parte substancial deste seu discurso latino ' realçando
que quer os leadersmilitares gregos como os romanos foram profundos
conhecedores das letras ' nestes termos:
Occurit hoc loco quorundam opinio, qui juvenum animos effeminari,
tímidos, minusque ad res bellicas idoneos fieri litterarum studio
existimabant: quam pluribus verbis confutarem, nisi cum per se satis
esset infirma, tum Graecorum, atque romanorum, qui orbem terrarum
armis subegerunt, exemplo convulsa jaceret: apud quos quicumque
extiterunt belli gloria duces maximi, idem litterarum peritissime
fuere.
Neste biénio de 1548-1549, como dizíamos atrás, a difusão da cultura do
pensamento e da cultura e do pensamento gregos, quer por via dos helenistas
Arnaldo Fabrício e Vicente Fabrício, estavam a conhecer, assim, uma
significativa renovação em meios universitários portugueses (cerca de uma
década depois da transferência da universidade de Lisboa para Coimbra sob o
impulso de D. João III).
Fique bem claro que nesta acção da renovação do pensamento helénico na
Universidade de Coimbra, nem só os dois Fabrícios devem ser perspectivados como
casos à parte. Poder-se-á assinalar, entre vários outros mestres
conimbricenses, o papel interventivo neste mesmo período de 1548, de Belchior
Meliago[54], que ainda no Colégio das Artes pronunciou a De disciplinarum
omnium studiis oratio (impressa na mesma oficina tipográfica académica), onde
também a cultura helénica está, uma vez mais, presente.
Aliás poder-se-á relevar, aqui, uma característica sui generis desta acção
helenizante de Meliago. Tratou-se do empreendimento, de não pequena monta, da
edição, poucos meses depois, em Coimbra, na mesma oficina tipográfica, de duas
versões de textos de Aristóteles por Nicolau Grouchio, um outro francês, tal
como Arnaldo Fabrício, só que, desta feita, natural de Ruão. Falamos dos dois
tratados De Demonstratione siue. De secunda parte Analitikum libri duo, com os
Topica, daquele filósofo ateniense (João da Barreira e João Álvares, 1549); bem
como do De reprehensionibus sophistarum liber unus (na mesma oficina e desse
ano).
Frontispícios das duas obras de AristótelesDe Demonstratione siue. De secunda
parteAnalitikum libri duo, com os Topicae De reprehensionibus sophistarum
liber unus
No frontispício da primeira daquelas edições não está a menção do papel de
Belchior Meliago nesta acção editorial específica. No interior da segunda, por
exemplo, está sobejamente documentada tal intervenção pela forma explícita como
os dois tipógrafos conimbricenses aludiram a esse facto: excussum fuit hoc
Melchioris Beleago diligentia[55].
Esta acção de difusão do pensamento de Aristóteles antecede, estamos em crer,
em cerca de duas décadas, a tentativa de difusão (também pelo impresso?, não o
sabemos, na medida em que só temos conhecimento da cópia manuscrita) de outros
textos do Estagirita, como a Metaphysica, por parte do jesuíta e humanista
português Fernando Rebelo (natural ou de Prado, tal como seu irmão João Rebelo
[56], na diocese de Lamego, ou de Caria, tendo vindo ao mundo em 1546).
Na Biblioteca Bodleiana, de Oxford, existe, com efeito, um manuscrito latino,
em duas partes, com igual número de tratados de Aristóteles. Na primeira parte
encontra-se, com efeito, Commentarii a sapientíssimo magistro Ferdinando Rabelo
ex societate Iesu in libros Methaphysicorum. Este texto tem a particularidade
de apresentar, no final, a data em que este original ' ou eventualmnte uma
cópia ' terá sido produzido, ou seja, Finis impossitus 10 die Julhi anno
1571[57].
Na segunda parte deste manuscrito apresenta-se, por seu lado, Commentarii in
decem libri Ethicorum Aristotelis Stageritae inchoati pridie callendas Iuniy.
Sabe-se, hoje, que estas duas versões aristotélicas de Fernando Rebelo foram
realizadas cerca de nove anos depois de esse jesuíta ter ingressado no Colégio
de S. Roque da Companhia de Jesus, em Lisboa, em 1562 e já depois de ter dado
entrada (em Outubro do mesmo ano) em funções, como docente, na Universidade de
Évora.
Entretanto ainda em 1547, mais precisamente em 11 de Janeiro, D. João III havia
determinado que António Luís, «físico‑mor na cidade de Lisboa», passasse a
ler, naquela mesma universidade, «uma cadeira de Grego, por tempo de um ano».
Nos termos do diploma, deveriam ser lidas duas lições cada dia, uma de
Aristóteles e outra de Galeno, uma pela manhã e outra à tarde»[58]. E duas
semanas depois, em 24 de Janeiro, D. João III fixava, por alvará, o vencimento
do referido docente[59].
Para além de aspectos de docência propriamente ditos, a imprensa da
Universidade de Coimbra[60] dava testemunho neste mesmo período, de igual modo,
da difusão da cultura grega. Pela mão do lente Diogo de Contreiras '
classicista de créditos firmados e contemporâneo de André de Resende (vindo
este último, pouco depois, a ser mestre ocasional no colégio das Artes daquela
instituição, onde proferiu a já referida oração[61]) ' foi dada à estampa, em
1551, acompanhada de criteriosos comentários, a Dialectica, na versão do
humanista bizantino Trapezúncio.
IV‑4. A relação encomiástica de alguns classicistas com a figura régia
joanina: o papel da dedicatória
Aludiu‑se, atrás, que quer enquanto príncipe, quer já como D. João III, este
nunca chegou a dominar, com rigor, nem o Latim nem o Grego. Tal não invalida,
no entanto, que ele desconhecesse em absoluto as regras e os elementos de base
dessas duas línguas.
Fosse como fosse, ele não deixou de ser um notório incentivador das artes do
Livro. Cientes dessa situação e do seu amor às letras e aos letrados, alguns
eruditos[62] chegaram, nesse período de governação ' por vezes até em procura
de mecenato ' a dedicar algumas das suas obras ao monarca. Foi o que sucedeu
com a dedicatória de Historia de la iglesia que llaman ecclesiastica, Lisboa,
1541 e Libro llamado de privados e doctrina de cortesanos, do castelhano
António de Guevara. Foi ainda o caso do Enchiridion, do dominicano Frei Diogo
de Ximenes, obra que foi impressa em 1552 e cujo título, tal como o nome
indica, é de origem helénica[63].
O humanista Erasmo de Roterdão (falecido em 1536)
Nessa dedicatória ' de vincado sabor erasmiano ' aquele religioso da Ordem de
S. Domingos deixa patente o facto de D. João III favorecer os que cultivam as
letras:
Quem há aí que lhe não conheça a humanidade e mansidão como de homem
de povo e autoridade mais que de rei? Aquele propiciar a todos e não
impecer a ninguém! Aquilo é que é ser príncipe às direitas!
A clemência que, mais que tudo, faz amados os príncipes. Ouvidos,
bolsa e entranhas tão abertos às misérias alheias! Zelo tão
incendidado na honra de Deus e divino culto!... Reformação de
costumes no secular e eclesiástico do reino! Aquela sua paz tão
armada, e armas tão pacíficas quando não são precisas! Aquela
concórdia e lealdade de matrimónio! Amor às letras e favor aos que as
cultivam!... O príncipe nascido para Deus e homens e digno de nunca
morrer![64]
Neste aspecto particular da história do Livro e da Edição, ao longo do século
XVI, importa ter uma particular atenção ao papel da dedicatória, quer no plano
do livro quer de outras tipologias e escritos como objecto impresso. A figura
do Rei e da Rainha ' e, numa menor escala, outras figuras gradas da Corte '
transferem‑se regularmente para o patamar da dedicatória do livro e demais
escritos. Trata‑se, ao fim e ao cabo, através de uma via encomiástica, de um
determinado autor obter benesses de vária ordem quando não, mesmo, o interesse
material em que lhe custeiem os encargos da edição.
V
1688 : O Marquês de Alegrete, D. Manuel Telles da Silva (perspectivado no 3º.
centenário da sua morte) e a correspondência com D. Manuel Caetano de Sousa
Avançando‑se no tempo, em fins do século XVII há ainda conhecidos testemunhos
do interesse pela cultura helénica e neo‑helénica em Portugal. Debrucemo‑nos,
assim, sobre a correspondência trocada entre D. Manuel Telles da Silva
(13‑2‑1641 / 12‑9‑1709), Marquês de Alegrete e o teatino D. Manuel Caetano
de Sousa e vice‑versa, interessando aqui, mais em particular, uma carta
específica do segundo para o primeiro, a anteceder a publicação, por este, da
sua obra De Rebus Gestis Joannis II. Lusitanorum Regis, em Lisboa, em 1689.
Decorre em 2009, com efeito, o terceiro centenário da morte do Marquês de
Alegrete. Como é sabido, ele era detentor de sólida cultura. Esse facto é
testemunhado, até, pela bem apetrechada biblioteca que detinha[65].
V‑1. Alguns passos deste erudito, no texto da biografia de D. João II, no
âmbito da cultura e do pensamento helénico
D. Manuel Telles da Silva, Marquês de Alegrete denuncia, em vários passos do
texto daquela sua obra latina[66], como a cultura e o pensamento helénicos lhe
eram de alguma forma também caros.
Veja‑se, um exemplo. Na primeira parte da obra, onde se alude ao malogrado
Infante D. Afonso e à sua morte prematura, aquele intelectual‑aristocrata
regista, assim, que «em certo autor daquele tempo lê‑se que o pai, seguindo a
sentença de Platão, recomendou para Afonso sobretudo o estudo da Filosofia;
porém, a sua morte prematura não deixou se soubesse pela experiência quanto
aquela ciência teria aproveitado a Afonso no governo da nação»[67].
Frontispício da obra De Rebus Gestis Joannis II. Lusitanorum Regis, impressa
em Lisboa, em 1689 (colº. do CEHLE)
V‑2. Uma carta de D. Manuel Caetano de Sousa (Tucídides e Trapezúncio, vistos
como modelos)
Na correspondência recebida por D. Manuel Telles da Silva e do seu espólio,
retemos uma carta que lhe foi remetida, em 30 de Setembro de 1688 '
precisamente uns meses antes de ser impressa por aquele nobre a sua biografia
de D. João II que está na base desta epístola) ' por parte de D. Manuel
Caetano de Sousa, clérigo regular e lente de Teologia. Este historiador e
erudito, bem conhecedor da apetência cultural daquele aristocrata, recheou
aquela sua epístola de uma pesada retórica de feição helénica e latina[68].
Refere primeiramente D. Manuel Caetano de Sousa que o seu correspondente lhe
remetera há pouco, para leitura, o seu livro sobre D. João II (tudo indica que
ainda em fase de manuscrito em versão final). Sobre a figura e acção daquele
monarca português quatrocentista, o Príncipe Perfeito, o interlocutor e amigo
do Marquês salienta que ele igualou Xenofonte «na felicidade de escolha que lhe
realça Dinis de Halicarnasso». E acrescenta: «No entanto, tu venceste
Xenofonte, na fidelidade histórica que Cícero lhe recusa»[69].
O autor da epístola, mais adiante, quanto se pronuncia acerca do contexto
histórico e a fidelidade das datas, regista: «na observância da ordem
cronológica és tão zeloso, que superas a diligência de Tucídedes e Veleio, que
neste aspecto foram, como se sabe, em extremo cuidadosos».
Aborda, logo de seguida, mestres de incontornável valia ' vivendo embora em
períodos bem distintos como é sabido ' quer o historiador Políbio (considerado
a par de Cícero), quer o retórico tardo-medieval e pré-renascentista bizantino
Trapezúncio. E explicita: «Não só expões (como preceituaram com Cícero e
Políbio todos os mestres) os desenlaces e consequências dos factos, mas também
algumas vezes fazê‑lo em poucas palavras, como Trapezúncio ensinou que se devia
fazer»[70].
Ainda acerca do modo de escrever a história, D. Manuel Caetano de Sousa alude,
mais adiante, aos aspectos da conveniência no discurso do seu amigo e
interlocutor, chamando à colacção quer Luciano quer (e uma vez mais) Dinis de
Halicarnasso. Salienta, a propósito: «No tocante à conveniência, cuja função é,
como quer Luciano, acomodar a linguagem de cada um à sua pessoa em razão da
naturalidade, família, idade, pensar, fortuna e cultura, foste tão cuidadoso,
que, mesmo que te faltassem outros méritos de historiador, este só da
conveniência, que, no entender de Dinis de Halicarnasso, é a princesa das
virtudes,bastaria para com razão seres chamado príncipe dos historiadores»[71].
V‑3. Algumas reflexões ainda sobre a língua grega (a partir de considerações
de Plínio o Velho)
D. Manuel Caetano de Sousa, na sua retórica de pendor helenizante, transmite
ainda outros encómios ao seu correspondente. Detém‑se, agora, sobre algumas
das virtudes da língua grega, em particular sobre a mestria de Árrio Antonino.
Ele regista, com efeito, na sua douta exposição ' e seguindo a Plínio o Velho '
que «alguns invejam os latinos por teres preferido escrever [esta biografia de
D. João II] na língua deles, tal como Plínio disse [a Árrio Antonino] que
invejava os gregos [por ele escrever na língua deles]»[72].
VI
1759 : Caracteres tipográficos gregos enviados de Coimbra por Manuel Pereira
da Silva, do Colégio de S. Paulo, para D. Tomás de Almeida, Director dos
Estudos do Reino
Dispomos, ainda, de dois outros documentos, de particular interesse, para o
estudo dos caracteres gregos em circulação no Reino de Portugal no século
XVIII. Trata‑se de duas cartas, firmadas por Manuel Pereira da Silva, «Lente
de Código, desembargador da Relação do Porto, docente no Colégio Real de São
Paulo da Universidade de Coimbra. Estas cartas foram enviadas a D. Tomás de
Almeida, designado como «Principal Primário da Santa Igreja de Lisboa e
Director Geral dos Estudos neste Reino», respectivamente com as datas de 5 de
Novembro e 12 do mesmo mês, de 1759[73]. Destas reproduzem‑se aqui, apenas, as
partes referentes à matéria dos caracteres gregos objecto de apreciação nesta
secção do nosso estudo.
Quanto a caracteres gregos em utilização no Reino de Portugal na era do
impresso, em tempos anteriores, é por demais evidente que, desde o período
quinhentista que eles eram conhecidos entre nós (cremos que, primeiramente, em
resultado de importação dos mesmos de França). Tivemos ensejo de registar já,
por outro lado, que André de Resende em Lisboa, em Outubro de 1534, na imprensa
de Germão Galharde[74] ' quando não dispunha ainda de caracteres tipográficos
na língua grega ' optou por inserir à mão, da sua própria grafia, supomos,
esses mesmos caracteres nas folhas impressas da Oratio pro Rostris, então
saídas daquela oficina, ou seja, no texto da oração que então proferiu na
universidade olsisiponense[75].
Mas voltemos às referidas epístolas de 1759. O seu destinatário, D. Tomás de
Almeida (nascido em 1670 em Lisboa e sendo, aliás, uma figura bem conhecida dos
historiadores setecentistas) recorde‑se que fora designado por D. João V, em 4
de Dezembro de 1716, para Patriarca de Lisboa[76]. Veio a ser nomeado Cardeal,
por Clemente XII, apenas duas décadas depois, mais precisamente em 1737.
Retrato de D. Tomás de Almeida, nomeado Director dos Estudos do Reino
As duas cartas de Manuel Pereira da Silva a ele destinadas, de que vamos tratar
aqui, são de um período bastante posterior, ou seja, de 1759, como já referimos
e quando ele contava já uma significativa idade. Esse foi o ano ' no mês de
Setembro ' em que o nomearam Director dos Estudos do Reino, num período em que
se publicaram «as primeiras directrizes do ensino secundário»[77].
Foi nesta data ' mais precisamente dois meses após a nomeação para este
(último) cargo ' que Manuel Pereira da Silva, do Colégio de São Paulo de
Coimbra, se lhe dirigiu pelas suas duas epístolas de 5 e 12 de Novembro, em
resposta a duas outras que recebera daquela alta entidade.
Detenhamo‑nos, pois, no teor dessas cartas (já objecto de estudo anterior em
uma dissertação de licenciatura apresentada à Faculdade de Letras daquela
Universidade[78]), retendo‑se, em particular, aspectos relacionados com a
língua e os caracteres tipográficos gregos.
Na primeira daquelas epístolas, o seu autor regista, a dado passo, ter sido
incumbido de enviar a D. Tomás de Almeida, homem de vasta cultura[79], alguns
conjuntos de caracteres gregos, que supostamente se encontravam nas
dependências daquele colégio conimbricense e se tornava imperioso que se
fizessem seguir para Lisboa.
Último fólio da primeira carta de Manuel Pereira da Silva
Tais conjuntos de caracteres eram, decerto, de significativa dimensão e volume,
uma vez que o subscritor desta missiva regista que «pezarão os ditos caracteres
quarenta e hum arrates indo de fora parte do pezo do papel em que se
embrulharão», tendo dos mesmos sido emitido o respectivo recibo[80].
Alude‑se, mais adiante, que tais conjuntos de caracteres gregos são
transportados por um tal Bento, um servidos de António Jardineiro, que reside
precisamente junto «ao Jogo da Pella, nessa Corte», em Lisboa. Passando‑se,
logo de seguida nesta carta, a outros assuntos, não são referidos nem a que
instituição se destinam tais conjuntos de caracteres gregos, nem tão pouco se
iriam logo ser postos em actividade[81]. Esta missiva termina, como aliás é
apanágio da linguagem culta da época, pela fórmula «A Exma. Pessoa de V. Exa.
Guarde Deos muitos annos Reverente venerador, e fiel creado, Manoel Pereyra da
Sylva».
Um dos fólios da segunda carta de Manuel Pereira da Silva dirigida a D. Tomás
de Almeida em 1759
É precisamente de uma semana depois de 12 de Novembro de 1759 que data a
segundo carta, do mesmo subscritor, dirigida ao Director dos Estudos do Reino,
D. Tomás de Almeida. Aí se faz alusão, primeiramente, à «remessa de Letra Grega
[caracteres gregos], que para mayor brevidade inviei pello calleceiro, que
trouxe ao Sr. Nuno Jozé da Cunha de Ataíde»[82].
Fazendo‑se de seguida alusão, nesta mesma epístola, a alguns transtornos no
transporte desses conjuntos de caracteres para a Corte ' inclusivamente um
voltar inesperado da remessa a Coimbra e os trabalhos da reexpedição ' Manuel
Pereira da Silva aborda outros assuntos de não somenos interesse. É o caso de
uma alusão a João António Bezerra, já então na sua docência na Universidade de
Coimbra, pelo que considera tratar‑se de um «sugeito muito aplicado». E
adianta: «ensina com excellente predicamento e dá grandes esperanças de se vir
a fazer hum mestre consumado, não só em Gramatica Latina, mas em Rethorica».
Voltemos a essas duas cartas, de 5 e 12 de Novembro de 1759, enviada de Coimbra
para Lisboa por Manuel Pereira da Silva para D. Tomás de Almeida e que
antecederam apenas em alguns meses a edição em Lisboa, da Gramática Grega, de
Port Royal. Elas, surgem, um pouco, como o reflexo de Instruções que este, como
Director dos Estudos do Reino, emitira em Junho-Julho do mesmo ano (por via de
um diploma oficial, subscrito então pelo próprio conde de Oeiras, em 28 de
Junho). Tratava-se, com efeito, do cumprimento das directivas dessas
Instrucçoens para os Professores de Grammatica Latina, Grega, Hebraica, e de
Rhetorica, Ordenadas e mandadas publicar por El Rey Nosso Senhor, Para o Uso
das Escolas novamente fundadas nestes Reinos, e seus domínios[83].
Nesta (e nas três páginas que se seguem) editam-se as Instruções aos
professores de língua grega das Escolas do Reino
Pelas considerações aqui expressas facilmente se conclui que D. Tomás de
Almeida era um homem de cultura, com apego à cultura e aos autores do período
Clássico. Na sua ascensão pública muito contribuiu, inquestionavelmente, o rei-
mecenas da Artes que foi D. João V.
Retrato de D.João V (Museu da Cidade de Lisboa); e frontispício da obra Novo
Epítome da Gramática Gregade Porto Real (Lisboa, 1760, colº. CEHLE)
Conclusões
Perspectivados, apenas, estes seis momentos do neo‑helenismo em Portugal,
entre os séculos XV e XVIII, pode constatar‑se que diversas figuras como
Angelina da grande Grécia ou João Menelau ' tendo vindo de diversas regiões da
grande Grécia para a Península Ibérica, onde passaram a residir ' trouxeram com
elas uma vivência da cultura, uma formação linguística e filosófica muito
próprias.
Não restam dúvidas, de igual modo, que os meios académicos portugueses
forneceram a meios universitários peninsulares do melhor que na altura se
conhecia na área da filologia, da restituição dos textos antigos, na área do
helenismo, até mesmo no que concerne ao pensamento teológico post‑medieval. Um
dos casos mais propalados internacionalmente, no que respeita a fins do século
XV e à primeira metade do século XVI, foi a do leccionamento ' e, de alguma
forma, de apostolado cultural ' de Aires Barbosa, como professor de Grego, ao
serviço da Universidade de Salamanca.
De não menor significado é o facto de os intelectuais peninsulares deste
período de longa duração (de mais de 300 anos), em particular os quinhentistas,
terem aproveitado em várias fases históricas da sua produção textual em
trabalhos de reflexão filosófica e teológica ' que a História das mentalidades
registou ' algumas das 27 editiones principes de clássicos gregos[84]
preparadas em Veneza pelo príncipe dos impressores, Aldo Manuzio[85] (até à
morte deste em 1515).
Pensando‑se apenas no caso das aulas de língua e cultura Grega, nas
universidade de Coimbra e Lisboa, ao longo do século XVI, é por demais sabido
que, por via dos mercados de Lião e de Paris ' quando não directamente dos
mercados de Veneza, Florença, Pádua, Bolonha e Roma ' essas edições aldinas
helénicas chegavam regularmente a Portugal, integravam bibliotecas públicas e
privadas. Eram, inclusivamente, referenciadas em trabalhos produzidos por
humanistas em solo português e castelhano, como o provaram quer Marcel
Bataillon nos seus estudos erasmianos, quer José V. de Pina Martins.
Poderá concluir‑se, por outro lado, que reflexões heurísticas helénicas
chegavam a Portugal e a Castela, muitas vezes, por via de uma intercessão de
intelectuais franceses. Um dos casos mais visíveis, neste âmbito, são as bem
conhecidas leituras, no Portugal quinhentista, do tratado de Guillaume Budé '
que aliás tinha visitado Veneza e Aldo em 1501 ' De Transitu Hellenismi ad
Christianismum, de c. de três décadas depois, mais precisamente de 1535, de
Paris.
Retrato do helenista francês, Guillaume Budé e frontispício de uma das suas
mais conhecidas obras, De Transitu Hellenismi ad Christianismum
Este trabalho constituía, no legado humanístico daquele autor, uma natural
continuação de duas outras obras suas, o De Asse[86] ' de que a melhor edição
(embora não a primeira) será, sem dúvida, a veneziana, de Andre Asolano, de
1522 ' que nos propiciou uma recente descoberta‑surpresa[87], e Commentarii
Linguae Graecae[88], de que retemos a edição ascensiana parisiense, de 1529.
Importa, por outro lado, desfazer o equívoco de que, ao longo do período
seiscentista e, também, do setecentista, os estudos de língua e cultura grega,
na Península Ibérica, já tinham caído em sintomático esquecimento. Essa não
foi, de facto, a realidade, podendo, embora, a recorrência a essa língua
clássica, sobretudo em meios universitários, ter diminuído comparativamente com
o que sucedera no período de quinhentos.
Dois documentos portugueses, pelo menos, datados de entre o último quartel do
século XVII (de 1688) e de de meados do século XVIII (1759), vem provar
cabalmente este facto. Trata‑se da epístola de D. Manuel Caetano de Sousa
dirigida a D. Manuel Telles a Silva, Marquês de Alegrete, no primeiro dos
casos; e da do docente em Coimbra, Manuel Pereira da Silva, a D. Tomás de
Almeida, Director dos Estudos Gerais do Reino, em que, como se viu, regista o
envio, desde Coimbra, de conjuntos de caracteres tipográficos em língua Grega.
Pelo exposto se conclui, enfim, que nesses dois períodos seiscentista e
setecentista, com efeito, a língua de Homero e de Aristóteles, continuava a
interessar a alguns estudiosos que pretendiam aprofundar, também em Portugal,
os seus conhecimentos no âmbito do Helenismo.
Lisboa, Outubro de 2008 ' Madrid, Janeiro de 2009
Notas
[1] Remete-se para Joaquin Miret y Sans, «Tres princesas griegas en la
corte de Jaime II de Aragon», in Revue hispanique,vol. 15,1906; Michael
Maclagan, «A Byzantine Princess in Portugal», Studies in Memory of David Talbot
Rice,Edimburgo,1975; «Vataça: uma dona na vida e na morte», in Revista da
Faculdade de Letras ' História, 3ª. série, III (1986), pp. 159-193; Maria
Helena da Cruz e Leontina Ventura, «Os bens de Vataça. Visibilidade de uma
existência», in Revista de Historia das Ideias, vol. 9, Coimbra, FLUC, 1987,
(p. 40, nº. 33); Marsilio Cassotti , Infantas de Portugal, rainhas em Espanha
(trad. Francisco Paiva Boléo), Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007, pp. 77-94;
«D. Vataça: Um. Exilio, um Destino na Corte da Rainha Santa Isabel», in Munda,
nº. 8, 1984, pp. 49-54.
[2] A política de alianças entre as realezas peninsulares nesse período da
governação dionisina encontra-se cabalmente documentada na obra de Frei
Francisco Brandão, Monarquia Lusitana, Parte V(edição original seiscentista
existente no CEHLE).
[3] É bem provável que o mais antigo livro impresso em Veneza por Aldo
Manúzio seja o intitulado Constantini Lascaris Erotemata cum interpretatione
latina,1494-1495. José V. de Pina Martins, in Humanisme et Renaissance de
l'Italie au Portugal, Les Deux Regards de Janus (Paris, 1989, 2 vols.),
explicita, in vol. 2, p. 940, nº. 209, que se deve também a este humanista
bizantino a edição ' na mesma oficina veneziana, presum. de 1498 ' intitulada
Constantini Lascaris Byzantini de octo partibus orationis,de que existe um
exemplar na Biblioteca Nacional de Portugal.
[4] Veja-se, sobre as deslocações por terras do Reino de Portugal (e,
também, de Leão e Castela), a obra Itinerários Régios Medievais, I - Itinerário
del-Rei D. Dinis, 1279-1325, coordenação editorial por Virgínia Rau, Lisboa,
Instituto de Alta Cultura, 1962 (a secção respeitante a 1303 in pp. 56-57).
[5] Fenando Félix Lopes, Actividades pacificadoras de S. Isabel de
Portugal nos dissídios entre Castela e Aragão, de 1300 a 1304, in revista
Itinerarium, nº. 57 (Ano XIII), de Julho a Setembro de 1967, pp. 288 -339.
Veja-se, ainda, José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, D. Dinis, Lisboa, Temas e
Debates, colº. Reis de Portugal, 2008, p. 152.
[6] Remete-se ainda para o bem documentado estudo Santa Isabel, da autoria
do Prof. António Garcia de Vasconcelos (recentemente reeditado pelo Arquivo da
Universidade de Coimbra, em 2 volumes).
[7] Coimbra, colº. Inventário Artístico Português, Lisboa, Academia
Nacional das Belas Artes.
[8] La route de Samarkand au temps de Tamerlan. Relation du voyage de
l'ambassade de Castille à la cour de Timour Beg par Ruy González de Clavijo,
1403‑1406. Tradução e comentários por Lucien Kehren, Paris, Imprimerie
Nationale Éditions, colº. Voyages et Découvertes (dirigida por Michel Mollat
du Jourdan), 2002, p. 60.
[9] Lucien Kehren, op. cit., p. 63.
[10] Idem, ibidem, p. 63. Não existe consenso, rigoroso, quanto à identidade
destas damas cativas de alta linhagem. González Gil Dávila, in Historia de la
vida y hechos del rey Henrique tercero de Castilla (Madrid, 1638), estabelece
que havia duas damas, Angelina, da Casa dos Reis da Hungria, e Catarina. Por
seu lado Argote de Molina, na secção Breve discurso sobre el itinerário de Ruy
González de Clavijo, in Historia del gran Tamerlán (Sevilha, 1582, nova edº.,
Madrid, 1782), sustenta que as duas senhoras eram Angelina da Grécia e Maria
Gómez.
[11] Lucien Kehren (in op. cit., p. 64) regista que Palaçuelos estava ausente
e que, da parte contrária, o embaixador Mohammed Al‑Kèchi acompanhava
Angelina, com a incumbência de fazer a sua entrega ao rei de Castela.
[12] Manuel Cadafaz de Matos, Diogo de Contreiras , in Algumas Obras de André
de Resende, vol. II, 1529‑1551, Lisboa, CEHLE e Edições Távola Redona, 2008.
[13] Lucien Kehren, op. cit., p. 65.
[14] Idem, ibidem.
[15] Facultativo, nome dado na época aos licenciados que exerciam Medicina.
[16] Sobre a evolução da aprendizagem do príncipe D. João, no domínio das
Humanidades, deu efectivamente testemunho Camilo Castelo Branco (1825‑1890)
num texto sobre Traços de D. João 3º. (História), primeiramente editado in