A meia‑idade da mulher
A meia‑idade da mulher
Teresa Fagulha
[1]
A escolha deste tema, recente e pouco estudado, levanta várias questões: será a
meia‑idade uma fase específica, que mereça uma abordagem particular? E haverá
características próprias da vivência feminina desta fase, para além,
evidentemente, da menopausa? Afinal, que idade é esta? Quais os marcos que a
assinalam? Porque o tempo organiza‑se e define‑se por marcos, tem uma
realidade objectiva que o relógio e o calendário apontam. Será o período que
decorre entre os 40 e os 65 (critério comum na investigação), ou algum ponto de
viragem algures nesse período? A que se refere esse meia? A metade do caminho
da vida? Os 40 anos poderão acertar com esta versão, mas não certamente os 50
e, muito menos, os 65! Vem então a ideia de um relógio social(Neugarten, 1977)
cujos ponteiros apontam o tempo certo para que determinados acontecimentos e
tarefas de desenvolvimento ocorram, na família (filhos criados, ninho vazio)
e no trabalho (carreira estabelecida). Há ainda um relógio biológico que
assinala o passar do tempo no nosso corpo e nas suas funções, relógio que por
vezes nos desperta inesperadamente ' tal é a forma como Helen Deutsch (1967)
descreve a constatação da menopausa, um já é demasiado tarde que, para lá do
biológico, apela a um tempo subjectivo ou existencial. Esse tempo,
experimentado e vivido por cada um, integra a vivência psicológica de todos os
outros tempos e relógios, dando um significado único ao correr da vida, que
transcende os acontecimentos enquanto marcos objectivos na definição desta
fase. Esta definição liga‑se fundamentalmente a dois processos internos e
interligados, desencadeados pelas circunstâncias de vida: a perda da ilusão da
imortalidade (Jacques, 1965) e as revisões e reestruturações que a consciência
do tempo limitado pressiona. De facto, a nossa vida teve um princípio e um dia
terá um fim, mas é condição da nossa existência que vivamos o dia‑a‑dia sem a
consciência dessa realidade. A ilusão de imortalidade das fantasias infantis,
que guardamos no nosso inconsciente (e que têm um papel crucial na esperança em
relação à vida) só é abalada quando a morte toca perto de nós, surgindo sempre,
de modo inesperado, e suscitando uma rejeição que necessita um duro trabalho de
elaboração.
No meio da vida, os adultos confrontam‑se com uma multiplicidade de
experiências que apelam a reestruturações relacionais e concorrem para esta
tomada de consciência da finitude da vida. Desde logo, o declínio e morte dos
pais, no momento em que o próprio corpo dá sinais de perda de juventude. Os
pais que precisam ser cuidados são uma estranha versão de filhos (Oldham,
1989), mas a caminho da morte e não da vida. Ao tornarem‑se pais dos seus
próprios pais, os adultos de meia‑idade experimentam a perda de suporte da
geração anterior, ao mesmo tempo que devem adaptar‑se à emancipação dos filhos
que, mesmo quando não saem de casa, já não são os filhos da infância, mas
competem pelo poder e influência na família, tal como a sua geração compete
pelo poder na sociedade. Os adultos de meia‑idade ainda são quem
frequentemente detém a responsabilidade na família e na sociedade, a geração
que comanda ' mas que fundamentalmente faz a ponte entre a geração dos mais
velhos e a geração dos mais novos. São a geração sanduíche (Zal, 1993), estão
no meio, e creio que é este o significado mais forte de meia‑idade e meio da
vida.
Os anos da meia‑idade são fundamentalmente caracterizados pela experiência
psíquica interna de confronto com a morte (a morte de que a geração anterior se
aproxima), e por um balanço e avaliação da vida vivida, aquela que a geração
dos mais novos está agora a atravessar. O tempo urge, há sonhos que já não se
podem realizar, há sonhos realizados que não deram a satisfação esperada. O
tempo urge, porque limitado. Elliot Jacques falou de crise da meia‑idade: A
morte e a crise da meia‑idade (Jacques, 1965). A noção de crise tem sido
questionada, fundamentalmente pela conotação negativa do termo, a que alguns
autores opõem o de transição, uma das várias transições do percurso de
desenvolvimento, envolvendo eventualmente um revisitar de problemas não
resolvidos. Não parece que esta ideia se afaste da de crise adaptativa, que
pode conduzir a uma experiência interna diferente pela elaboração de perdas ' a
perda de juventude, a perda de ilusões de omnipotência, fundamentalmente a de
imortalidade, a perda dos pais e a aceitação da sua realidade, porque
finalmente eles já não podem vir a ser como sonhámos. O que esta transição terá
de particular face a outras já vividas é que abre caminho para a última parte
da vida, através da reavaliação da vida passada. O balanço que dela se faz '
mais positivo ou mais negativo ' influi fortemente nos processos de elaboração
e reestruturação que podem ou não ocorrer, e na capacidade de aceitação e
adaptação ao envelhecimento.
Trata‑se de um período de desafio, cujo estudo é essencial, numa perspectiva
de intervenção e prevenção, porque muito se pode ganhar para pôr a render nos
últimos anos da vida. Entender a meia‑idade permite não só ajudar a viver
melhor este período, mas todos os anos futuros, pois há ainda suficiente
capacidade de força e investimento na vida para que se possam operar
reestruturações. Paralelamente, pela sua colocação de charneira entre duas
gerações adultas, a intervenção no adulto de meia‑idade terá naturalmente
consequências na sua relação com a geração dos mais velhos, mas também com a
geração dos filhos e netos.
Finalmente, uma palavra sobre a especificidade da vivência feminina: a
menopausa, enquanto marco biológico de finalização da actividade reprodutiva da
mulher, limitação que o homem nunca irá experimentar, é o acontecimento mais
marcante (e mais estudado) desta fase da vida da mulher. Do ponto de vista
psicológico, ele foi abordado inicialmente pela psicanálise (desde Freud, se
bem que muito pontualmente) e predominantemente por mulheres psicanalistas
(para uma abordagem do tema na psicanálise, ver Laznik, 2003). No entanto, a
menopausa só surgiu como área de estudo e investigação através do modelo médico
que divulga a mensagem esperançosa da Terapia de Reposição Hormonal no combate
aos sintomas físicos e psicológicos, a ela frequentemente associados. Quando a
psicologia (nomeadamente, a psicologia do desenvolvimento e os estudos
femininos) e a antropologia se interessaram pelo estudo da menopausa, veio a
perceber‑se que o modo como ela é vivida em diferentes culturas e grupos
sociais tem enormes diferenças, as quais influenciam a própria experiência dos
sintomas físicos (inclusivamente os que decorrem das alterações hormonais) e
psicológicos, experiência que, afinal, não é universal. Torna‑se, então,
evidente que a compreensão da vivência deste fenómeno biológico necessita
integrar variáveis psicológicas, sociais e culturais. O estudo destas variáveis
tem tido um enorme desenvolvimento na identificação das atitudes em relação à
mulher (no seus papéis feminino e materno), nos seus hábitos de vida e saúde,
na sua história relacional, nomeadamente na sua função muito particular de
gestora e responsável das relações familiares e intergeracionais. Assim,
todos os marcos associados ao relógio social, atrás referidos, têm sido
estudados no modo particular como afectam a mulher (e.g., o síndroma do ninho
vazio), tal como os que se associam ao relógio biológico ' reveladores e
sinalizadores do envelhecimento ' que, nas culturas ocidentais, penaliza de
modo diferente a mulher, em relação ao homem. Estes estudos têm permitido
ultrapassar uma visão predominantemente negativa da mulher de meia‑idade, ou
seja, da mulher na menopausa ou que dela se aproxima (deprimida, irritável,
emocionalmente instável, não atractiva sexualmente), para uma óptica
compreensiva dos desafios que esta fase de vida vem colocar e que podem conter
a promessa de novos investimentos e realizações nos muitos anos de vida ainda
disponíveis.
Neste sentido, os artigos que integram esta revista abordam dois estudos sobre
a mulher portuguesa: um estudo sobre os sintomas físicos e psicológicos
(incluindo a sintomatologia depressiva) mais frequentes nos diferentes períodos
da menopausa e a influência de variáveis sociodemográficas na ocorrência desses
sintomas ' artigo de Teresa Fagulha e Bruno Gonçalves, Menopausa, sintomas de
menopausa e depressão: influência do nível educacional e de outras variáveis
sociodemográficas; e um estudo sobre A depressão nas mulheres de meia‑idade:
estudo sobre as utentes dos cuidados de saúde primários, de Bruno Gonçalves,
Teresa Fagulha e Ana Ferreira. De facto, muito se tem afirmado a maior
vulnerabilidade da mulher à depressão, bem como o aumento da sua ocorrência na
fase da meia‑idade. Esta questão é polémica e tem suscitado críticas por não
integrar uma leitura do fenómeno depressivo que tome em consideração a
relevância dos aspectos relacionais na organização da experiência feminina, nos
seus valores e significados de vida. O pendor relacional que caracteriza o modo
de ser feminino ' as mulheres crescem em conexão (Jordan, Kaplan, Miller,
Stiver, & Surrey, 1991; Miller, 1976) ', e que é fundamental no seu papel
materno, na família e na sociedade, surge como défice de autonomia e sinal de
imaturidade quando analisado em função dum padrão masculino que valoriza a
autonomia e independência como sinais de maturidade e saúde mental. Este
artigo, que não é conclusivo sobre esta polémica, insere‑se, tal como o
anterior, numa linha de investigação em curso.
Um terceiro artigo, de Teresa Ribeiro, refere também dados sobre a população
portuguesa: Casais de Meia‑Idade ' estudos com casais portugueses numa
perspectiva sistémica. A autora aborda as tarefas de desenvolvimento da mulher,
do homem e do casal no período da meia‑idade da vida, assinalando a evidência
de características idiossincráticas que permitem identificar diferentes
tipologias na organização do casal, que estuda numa amostra de casais
portugueses. Essas diferenças são ilustradas com extractos de entrevistas de
casais de meia‑idade.
Ainda no campo de estudo da menopausa, o artigo de Katherine Vaughn Fielder e
de Sharon E. Robinson Kurpius, Marriage, Stress and Menopause: Midlife
Challenges and Joys, analisa a relação entre a qualidade da relação conjugal e
o stress na predição da sintomatologia menopausica. Esta análise revela que as
mulheres com casamentos insatisfatórios, caracterizados por pior relação
sexual, menos suporte social, menor profundidade na relação e maior conflito,
referiram um aumento de stress e mais sintomatologia do que as mulheres com
casamentos satisfatórios, não se encontrando diferenças devidas ao estatuto de
menopausa. Estes resultados evidenciam que as variáveis relacionais podem
ultrapassar em importância o estatuto de menopausa.
Um último artigo, de Maria del Pilar Sánchez‑López, Virginia Dresch e Violeta
Cardenal‑Hernáez, Relaciones entre salud física y psicológica en mujeres de
mediana edad, insere‑se no campo da Psicología da Saúde. Estuda as variáveis
psicológicas (auto‑estima, ansiedade ' fisiológica, motora e cognitiva ' e
satisfação vital) que permitem predizer a saúde física (objectiva e subjectiva,
ou autopercebida) das mulheres de meia‑idade face às mulheres jovens, aos
homens jovens e aos homens de meia‑idade. Verificam que as mulheres de
meia‑idade têm piores índices de saúde objectiva e subjectiva, face aos três
outros grupos, e constatam que é a ansiedade fisiológica (e não a auto‑estima)
que melhor prediz a Saúde Física, o que mostra a necessidade de programas de
intervenção focados na sua diminuição. Também a análise da influência de
variáveis demográficas nos índices de saúde das mulheres de meia‑idade permite
extrair conclusões que podem orientar as políticas de saúde.