Apresentação do Número
Apresentação do Número
Luísa Faria
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A competência tem‑se vindo a constituir em preocupação fundamental da nossa
sociedade, fazendo parte integrante do nosso quotidiano existencial:
preocupamo‑nos com a nossa competência e com a dos outros, e mesmo leigos e
cientistas parecem eleger a busca da competência como a motivação básica para
agir (Faria & Lima Santos, 1999).
Na verdade, estudar a competência e os seus determinantes implica compreender
que, quer a competência, quer a incompetência, são constructos de etiologia
psicossocial, dependentes dos contextos em que se maniféstam, constituindo
realidades sujeitas a mudança e a evolução, tornando o processo de
classificar alguém como competente ou, pelo contrário, como incompetente, uma
tarefa complexa que exige a interacção entre quem percebe e quem é percebido
(Langer & Park, 1990, in Faria, 2003, p. 28). Assim, a competência é frágil
porque é transaccionada numa rede de relações sociais, sendo ainda sensível à
intervenção (Aronson & Steele, 2005).
A competência aplica‑se, ainda, a um largo espectro de níveis, que vão desde
as acções concretas, os resultados específicos e os padrões de habilidade, até
às características abstractas e compósitas, como a inteligência (Elliot &
Dweck, 2005), sendo esta o protótipo de competência mais valorizado pela
escola, em particular, e pela sociedade, em geral (Sternberg, 1990).
Apesar de a competência assumir múltiplas dimensões e manifestações, no âmbito
do número temático que aqui organizamos, intitulado Concepções pessoais de
competência: perspectivas, avaliação e estudos interculturais, definimos
competência do ponto de vista das percepções, juízos e avaliações dos sujeitos
acerca das capacidades pessoais, assumindo que as concepções pessoais acerca da
competência parecem ser determinantes essenciais na prossecução de objectivos
orientados para a mestria, de um auto‑conceito positivo e de uma realização
melhorada, de tal modo que sentir‑se competente parece importar mais do que
tornar‑se competente. De igual modo, as percepções ajustadas de competência
pessoal conduzem a uma melhor adaptação e ajustamento pessoais e a um maior
bem‑estar psicológico global (Faria, 2002).
Ora, uma análise motivacional da competência implica aceitar que esta constitui
um motivo psicológico básico do ser humano. De facto, a motivação para a
competência é fundamental na adaptação dos seres vivos ao meio, instigando e
activando o comportamento, no sentido da mestria, através da procura activa de
instrumentos, experiências e resultados optimizados (Elliot & Dweck,
2005). Mais ainda, o comportamento competente é movido não apenas pela
procura positiva da competência, mas também pelo evitamento das consequências
aversivas da incompetência.
Deste modo, as concepções pessoais de competência desempenham um papel fulcral
no funcionamento humano, nos vários contextos de vida e ao longo das várias
fases do ciclo vital. Estão presentes em todas as idades (desde a criança ao
idoso) e culturas (individualistas e colectivistas), afectando o quotidiano de
todos nós, pois, diariamente, lidamos com questões de competência e de
incompetência, e as nossas concepções pessoais de competência são
frequentemente postas à prova. Assim, quer seja no domínio privado (emocional,
do bem‑estar), quer seja no domínio público (escolar, laboral, desportivo,
social), a competência percebida desempenha um papel fundamental, sendo fonte
de emoções positivas, de orgulho e de ânimo ou, pelo contrário, de emoções
negativas, de vergonha e de desânimo.
Em suma, as concepções pessoais de competência são aqui perspectivadas como
elementos axiais do e no funcionamento psicológico, com impacto no quotidiano
de indivíduos de diferentes idades, culturas e contextos de acção
diversificados, abrangendo domínios diversos como o da competência
intelectual, emocional, social, física e cultural, estando, ainda, na base de
constructos fundamentais, como o auto‑conceito, a auto‑estima e a
auto‑eficácia.
É nesta senda que organizamos este número, que compreende seis artigos que
abrangem constructos relacionados com as concepções pessoais de competência e
que incidem, por um lado, nas diferentes manifestações da competência, como a
cognitiva e a emocional, e, por outro lado, em constructos ancorados nas
concepções de competência, como a auto‑eficácia, o auto‑conceito e a
auto‑estima.
Assim, as questões do desenvolvimento intra e inter‑individual e as relações
com o sucesso académico são também desenvolvidas, bem como a construção e
adaptação de novas formas de avaliação, particularmente das concepções pessoais
de inteligência, da auto‑eficácia académica e da competência emocional.
Abordam‑se, ainda, a influência da dimensão cultural e as questões
interculturais, na comparação das concepções pessoais de inteligência entre os
contextos português e italiano, na análise comparativa da competência
emocional, em sete países diferentes (de Portugal ao Japão), na relação entre
as representações sociais da inteligência e as concepções pessoais de
inteligência, no contexto português, e na influência do individualismo/
colectivismo nas concepções pessoais de inteligência, em dois contextos
culturais ' português e romeno.
Saliente‑se que, apesar de a maioria dos artigos se referir a estudos no
contexto académico, estes abrangem alunos de diferentes níveis de ensino, desde
o ensino básico ao ensino universitário. No caso particular da validação de um
instrumento de competência emocional (Emotional Skills and Competence
Questionnaire ' ESCQ), os estudos foram realizados em diferentes contextos,
incluindo o profissional.
Concretizando, temos o artigo que abre este número, da autoria de Luísa Faria,
intitulado Personal conceptions of intelligence: definition, differentiation
and emergence as an organizer and integrative model of other motivational
constructs, o qual se propõe definir e caracterizar o modelo das concepções
pessoais de inteligência de Dweck, que compreende duas concepções implícitas
qualitativamente diferentes (estática e dinâmica), que promovem a prossecução
de diferentes objectivos de realização, em contextos académicos. Pretende,
também, demonstrar que a adopção de determinada concepção pessoal de
inteligência é o resultado de um processo de desenvolvimento diferencial,
provavelmente influenciado por certas características dos contextos de
existência, e propor este modelo como um modelo organizador e integrador,
capaz de reunir num mesmo quadro conceptual outros constructos afins da
motivação, tais como os objectivos de realização, o auto‑conceito, a
auto‑estima, a auto‑eficácia e as atribuições e respectivas dimensões
causais. Finalmente, propõe‑se alargar a outros contextos culturais as
conclusões teórico‑práticas obtidas no contexto cultural português, acerca das
concepções pessoais de inteligência, no pressuposto de que é importante adoptar
uma perspectiva intercultural no estudo e diferenciação do impacto de
dimensões do desenvolvimento psicológico, pois os mesmos factores de
desenvolvimento e de diferenciação não têm sempre a mesma influência em todos
os contextos.
Para cumprir tais objectivos apresenta as reflexões e os resultados de um
conjunto de estudos, vários transversais e um longitudinal‑sequencial, no
contexto educativo português, conduzidos ao longo dos últimos 18 anos, que
visaram não apenas apresentar, definir e delimitar o modelo das concepções
pessoais de inteligência, mas também aplicá‑lo, desenvolvê‑lo e
transformá‑lo, quer pela construção de medidas de avaliação adequadas e do
estudo das especificidades do contexto cultural português na manifestação de
diferenças, quer pela aplicação desses resultados a outros contextos
culturais, no quadro de estudos interculturais.
O segundo artigo, de Sílvia Pina Neves e Luísa Faria, intitulado Construção,
adaptação e validação da Escala de Auto‑Eficácia Académica (EAEA), parte do
pressuposto de que as expectativas de auto‑eficácia se referem a domínios de
realização específicos, logo, que a sua avaliação deve ser microanalítica e
deve implicar a construção de instrumentos de avaliação adaptados às
respectivas especificidades, propondo uma nova escala para o contexto
português, a EAEA, cujas fases de construção, adaptação e validação incluem:
(i) a definição do respectivo racional teórico‑prático; (ii) a definição das
suas dimensões e a redacção dos seus itens; (iii) o pré‑teste, que inclui a
revisão dos itens por especialistas, reflexões faladas com alunos e um
estudo‑piloto com 207 alunos; e (iv) o estudo de adaptação e validação com
1.302 alunos, com a utilização de análises factoriais confirmatórias.
O terceiro artigo, de Ângela Sá Azevedo e Luísa Faria, com o título Motivação,
sucesso e transição para o ensino superior, problematiza a motivação
(auto‑conceito, auto‑estima e atribuições e dimensões causais) e o sucesso
académico, no quadro da transição do ensino secundário para o ensino superior,
período caracterizado como desafiante e ameaçador para os indivíduos,
procurando responder à questão de se saber se os alunos com níveis
motivacionais superiores se adaptam melhor ao ensino superior e apresentam
maior sucesso académico, através da realização de vários estudos, quer
correlacionais, com uma amostra de 649 alunos do 12.º ano (avaliação da
relação entre motivação e sucesso académico), quer de teste‑reteste, com uma
amostra de 62 alunos do ensino superior (avaliação da mudança intra‑individual
na transição do ensino secundário para o ensino superior).
O quarto artigo, de Luísa Faria e colaboradores, intitulado Cross‑cultural
validation of the Emotional Skills and Competence Questionnaire (ESCQ),
apresenta o estudo de validação intercultural do ESCQ, instrumento
classificado como avaliando a inteligência emocional de tipo traço ou a
percepção de competência emocional, que compreende as dimensões de percepção
emocional,expressão emocional e capacidade para lidar com a emoção. Tendo sido
originalmente desenvolvido no contexto croata, de acordo com a perspectiva
teórica de Mayer e Salovey (1997), funda‑se na aceitação da inteligência
emocional como um dos constructos mais actuais e interessantes no domínio da
Psicologia, pois combina emoção e inteligência, aceitando o facto de a emoção
tornar o pensamento mais inteligente e de se poder pensar inteligentemente
acerca das emoções (Mayer e Salovey, 1997, p. 5).
Neste artigo, que reúne os resultados obtidos em sete países diferentes, são
apresentadas as qualidades psicométricas e as relações do ESCQ com outros
constructos relevantes, nos contextos croata (Vladimir Takić), português
(Luísa Faria & Nelson Lima Santos), finlandês (Hannu Räty), sueco (Bo
Molander, Stefan Holmström & John Jansson), esloveno (Andreja Avsec),
espanhol (Natalio Extremera & Pablo Fernández‑Berrocal) e japonês (Hiroshi
Toyota), utilizando amostras‑alvo de estudantes do ensino secundário e
universitário, bem como de sujeitos mais velhos (trabalhadores e supervisores
de empresas). Assim, procura‑se demonstrar que a inteligência/competência
emocional está envolvida em vários contextos de vida, como a escola e o
trabalho, podendo contribuir para a promoção de competências sociais e para a
manifestação de comportamentos mais adaptativos e mais eficazes, logo, para a
melhoria do bem‑estar psicológico global dos indivíduos (Lima Santos &
Faria, 2005).
O quinto artigo, da autoria de Virgílio Amaral, intitulado Regulações
psicossociais na organização de crenças sobre a inteligência: relações entre
representações sociais da inteligência e concepções pessoais de inteligência,
procura investigar o modo como variáveis de nível macrosocial ' as
representações sociais ' podem afectar variáveis de nível microsocial ou
individual ' as concepções pessoais de inteligência ', apresentando os
processos que regulam a organização de crenças sobre a inteligência em
adolescentes, nomeadamente a influência da familiaridade com o objecto de
representação de tais crenças, bem como as relações entre o princípio da
familiaridade com a inteligência, as representações sociais da inteligência e
as concepções pessoais de inteligência.
Finalmente, o sexto e último artigo deste número, da autoria de Laura Ciochină
e Luísa Faria, intitulado Individualismo e colectivismo: fundamentos
conceptuais para o estudo intercultural das concepções pessoais de inteligência
de estudantes portugueses e romenos, procura evidenciar o modo como a dimensão
de individualismo‑colectivismo (IND/COL) se relaciona com aspectos
psicológicos do comportamento dos indivíduos, particularmente no que se refere
às concepções pessoais de inteligência (CPI), analisando a influência do IND/
COL nas CPI de estudantes portugueses e romenos, partindo do pressuposto que o
contexto cultural em que os indivíduos vivem e agem modela tais concepções e,
implicitamente, influencia os respectivos padrões de realização e de desempenho
escolar.
Concluímos esta apresentação, reforçando quer a convicção de que a competência
e a incompetência são dependentes do contexto social em que se manifestam,
logo, são dinâmicas, flexíveis e mutáveis, quer a convicção de que sentir‑se
competente é sentir‑se autónomo, válido, relacionado com os outros e capaz de
estabelecer e concretizar objectivos, pois, parafraseando Postman (1996),
aquele que tem um porquê' para aprender, [para evoluir e tornar‑se mais
competente] pode suportar quase tudo.