Auto-conceito em adolescentes institucionalizadas: Um estudo exploratório
A protecção na infância surge num contexto social e político de mudança
relativamente ao papel da criança/jovem na sociedade, sendo que as alterações
legislativas foram determinadas, em grande parte, pela promoção da condição
responsável e participativa da criança ou do jovem, enquanto sujeito dotado de
autonomia e de discernimento(Delgado, 2006,p.16). A intervenção enquadrada no
sistema de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo no contexto
português contempla duas abordagens: a) medidas de intervenção em meio natural
de vida (i.e., a intervenção do sistema reside na família nuclear e/ou em
pessoas significativas no contexto proximal da criança); b) medidas de
colocação (i.e., acolhimento familiar ou institucional) (cf. Lei nº 147/99 de 1
de Setembro). O presente trabalho centra-se especificamente na medida de
Acolhimento Institucional enquanto estratégia de intervenção que pressupõe o
afastamento temporário da criança/jovem relativamente ao seu contexto familiar
de origem. Efectivamente, a relevância desta temática no âmbito da investigação
prende-se com as implicações deste afastamento na vida da criança ou jovem, na
medida em que este envolve dinâmicas específicas (e.g., saída de casa,
integração num contexto institucional, potencial mudança de zona de
residência). Diferentes paradigmas de investigação têm caracterizado o estudo
desta temática, nomeadamente, aqueles que nos anos 60 se centravam no regime
institucional e na cultura informal criada pelas crianças/adolescentes e pelo
corpo de técnicos da instituição de acolhimento. Já a partir da metade dos anos
70 os autores começam a focar-se na função da instituição e nos factores
implicados nos resultados desenvolvimentais das crianças/adolescentes, e a
partir da metade dos anos 90, os estudos começam a enfatizar a necessidade de
planeamento e de organização das instituições de acolhimento (Clough, Bullock,
& Ward, 2006).
O decréscimo em Portugal do número de jovens institucionalizados nos últimos
anos revela a maior preocupação social e política pela necessidade de
desinstitucionalização das crianças e jovens em perigo e de uma procura
activa por alternativas e projectos de vida diferenciados para estes jovens. De
acordo com o Relatório de Caracterização das Crianças e Jovensem Situação de
Acolhimento(Instituto de Segurança Social, 2010), a taxa de
desinstitucionalização em Portugal foi de 21.4% em 2009, tendo sido
identificadas nesse mesmo ano 12.579 crianças e jovens em Acolhimento
Institucional (menos 1.331 que em 2008). Esta preocupação pela procura activa
por projectos de vida centrados no meio natural de vida decorre também dos
resultados dos estudos nacionais e internacionais acerca do potencial impacto
negativo da colocação das crianças em instituições (e.g., Roy, Rutter, &
Pikles, 2000; Rutter, 2000).
A experiência de acolhimento institucional representa na vida dos adolescentes
um momento de mudanças significativas, sendo este momento por vezes
percepcionado pelos mesmos como reflexo de abandono parental (Zem-Mascaranhas
& Dupas, 2001). A literatura sugere ainda que a integração no contexto
institucional parece pautada por sentimentos de revolta por parte do
adolescente, cujo desejo era o de continuar no seu contexto familiar de origem
(Dunn, Culhane, & Taussig, 2010). Além disso, os estudos salientam que a
institucionalização poderá conduzir à potencial perda de relações
significativas, que se reflecte na possibilidade de comprometimento
desenvolvimental, na medida em que, a qualidade das relações interpessoais
constitui não só um indicador de ajustamento no presente mas também de
organização e qualidade das relações futuras (Martins, 2005).
A investigação internacional tem desenvolvido esforços no sentido de
compreender quais as variáveis explicativas das trajectórias desenvolvimentais
de jovens acolhidos institucionalmente (Rutter, 2000). Os estudos têm reportado
a presença de problemas de internalização e externalização em crianças/jovens
acolhidos institucionalmente quando comparados com crianças/adolescentes sem
história de acolhimento institucional e a viver com os pais biológicos (Zeanah,
Egger, Smyke, Nelson, Fox, Marshall, & Guthrie, 2009) . Do mesmo modo,
estas crianças/jovens quando comparadas com os pares em acolhimento familiar
tendem a revelar mais problemas de hiperactividade e défice de atenção em
contexto de sala de aula (Roy et al., 2000). Efectivamente, estudos que
analisam o funcionamento académico de crianças/jovens acolhidos
institucionalmente reportam dificuldades ao nível do seu desempenho e
comportamentos desadaptativos em contexto escolar (Attar-Schwartz, 2009; Trout,
Hagaman, Casey, Reid, & Epstein, 2008). Em termos de impacto psicossocial
na idade adulta, estudos recentes reportam elevados níveis de perturbação
psicológica (especificamente, perturbações de ansiedade, depressão, ou abuso de
substâncias), sintomas traumáticos, e estilos de vinculação inseguros em
indivíduos que estiveram acolhidos institucionalmente durante a infância,
quando comparados com grupos normativos ou amostras da comunidade (Carr et al.,
2010).
A literatura sugere que estes resultados, centrados no impacto potencialmente
negativo, podem ser analisados à luz de algumas hipóteses explicativas,
designadamente: 1) os padrões de qualidade dos cuidados providenciados em
contexto institucional (Roy et al., 2000); 2) a própria disrupção familiar e
individual prévia ao acolhimento (Rutter, 2000); 3) o nível de envolvimento e
participação do jovem nas dinâmicas institucionais; e 4) as experiências de
abuso prévias ao acolhimento e em contexto institucional (Carr et al., 2010).
Com efeito, as próprias experiências de vitimação podem constituir um factor de
risco para a presença de problemas comportamentais (Glaser, 2005; Levendosky,
Okun, & Parker, 1995; Taussig, 2002; Thompson & Tabone, 2010), de
sintomatologia internalizadora (Bolger & Patterson, 2001) e de maior
rejeição social nestes adolescentes (Erikson, Egeland, & Pianta, 1997).
Mais ainda, o maltrato prévio parece estar associado a um padrão comportamental
disfuncional e não apenas a resultados comportamentais desadequados num
determinado momento (Thompson & Tabone, 2010). De salientar que este padrão
comportamental externalizador parece acentuado pelo número de separações da
família de origem e pelas sucessivas mudanças de instituição (Adam & Chase-
Lansdale, 2002). Além disso, ao nível do estabelecimento de relações de
vinculação adaptativas, as experiências de vitimação prévias colocam
constrangimentos ao desenvolvimento ajustado de relações interpessoais
securizantes ' decorrente, por exemplo, de percepções por parte do jovem de
insegurança, medo e de que o ambiente à sua volta é perigoso (Lowenthal, 2000).
Do mesmo modo, o acolhimento institucional parece estar associado a uma
percepção por parte do adolescente de incerteza relativamente ao futuro, bem
como de uma reduzida controlabilidade no que concerne ao seu percurso de vida
(Zem-Mascaranhas & Dupas, 2001). Com efeito, se o processo de
institucionalização depende de factores externos ao adolescente,
designadamente, das decisões das entidades com competência nesta matéria, bem
como da capacidade dos próprios pais em termos de reestruturação das condições
de vida, o jovem poderá sentir-se desprovido de controlo sobre qualquer decisão
relativa ao seu futuro (Rutter, 2000). Aliado à ausência de controlo nas suas
vidas, encontra-se também um aspecto importante em termos de dinâmicas e
funcionamento institucional, que está relacionado com as reduzidas
oportunidades de autonomia e de tomada de decisão dos jovens neste contexto
(Rutter, 2000).
Tendo em conta a complexidade inerente à adaptação dos adolescentes acolhidos
importa explorar especificamente a forma como estes se percepcionam em
diferentes aspectos do self. Deste modo, o presente trabalho centrar-se-á na
dimensão do auto-conceito, assumindo que esta dimensão reflecte a forma como o
adolescente se percepciona em diferentes aspectos relevantes para o seu
desenvolvimento (e.g., relação com outros significativos, percepção acerca do
seu estatuto intelectual e social).
A literatura acerca do auto-conceito em adolescentes acolhidos é relativamente
escassa e centra-se em grupos muito específicos, como por exemplo, jovens
delinquentes (e.g., Chassin, Presson, Young, & Light, 1981). Efectivamente,
analisando a literatura existente especificamente relativa ao constructo auto-
conceito, verificamos que o seu estudo em jovens acolhidos institucionalmente
é escasso a partir dos anos 90, e constitui uma realidade quase exclusivamente
norte-americana. Neste sentido, os resultados dos trabalhos publicados revelam
que os jovens institucionalizados apresentam valores significativamente mais
elevados na egocentricidade e mais reduzidos na auto-estima, interesse social,
individuação, identificação grupal, e identificação com o professor e pares
(dimensões do self avaliadas) quando comparados com adolescentes não acolhidos
(Long, Zieler, & Bankes, 1970). Do mesmo modo, adolescentes acolhidos em
internamento hospitalar revelam percentagens de auto-conceito desviante mais
elevadas comparativamente aos adolescentes na comunidade (Chassin, Presson,
Young, & Light, 1981). Ainda durante os anos 70, Ziegles, Balla e Watson
(1972), no seu estudo com crianças e jovens norte-americanos (apenas do sexo
masculino), e utilizando duas medidas de disparidade da Auto-Imagem, concluíram
que as crianças e jovens institucionalizados apresentaram uma maior pontuação
na medida de disparidade da auto-imagem do que os não institucionalizados, e
uma menor pontuação ao nível da auto-imagem real e auto-imagem ideal. Duas
décadas mais tarde, um outro estudo vem contribuir para a análise da auto-
imagem com recurso a indicadores emocionais (Pasian & Jackmin, 1999). Os
resultados revelaram que as crianças acolhidas apresentaram mais indicadores
emocionais na Escala de indicadores emocionais de Koppitz do que as não
acolhidas (e.g., integração pobre de partes da figura). Não obstante, os
autores salientam que apesar do potencial impacto negativo do acolhimento
institucional a nível emocional e do auto-conceito, a qualidade das
experiências em contexto de acolhimento revelou-se fundamental para a não
cristalização dos processos de auto-desvalorização (Pasian & Jackmin,
1999).
A relevância do estudo do auto-conceito não se circunscreve à percepção global
mas também à exploração de dimensões específicas do auto-conceito (e.g.,
académico e intelectual). De facto, a literatura tem sugerido que os jovens em
acolhimento experienciam uma multiplicidade de experiências potencialmente
comprometedoras do seu funcionamento psicológico e social (e.g., história
prévia de abuso, elevado número de mudanças de instituição de acolhimento)
(Hussey & Guo, 2002). Neste sentido, estas experiências poderão influenciar
a percepção acerca de si próprios em diferentes níveis do self (e.g.,
aspectos físicos, atitudes, competências, e aceitação social) (Marsh &
Hattie, 1996). No domínio académico, os estudos têm reportado pior desempenho e
reduzidas competências cognitivas em jovens acolhidos, o que poderá comprometer
a sua auto-percepção ao nível dos atributos académicos e intelectuais
(Sullivan, Jones, & Mathiesen, 2010). Além disso, quando se comparam
adolescentes em diferentes contextos, designadamente, acolhimento em contexto
familiar, institucional e contexto natural de vida, o comprometimento em termos
académicos e comportamentais tende a ser mais significativo no grupo de jovens
que se desenvolve em contextos mais restritivos, como o caso do acolhimento
institucional (Stone, 2007). Do ponto de vista social e emocional, a literatura
sugere que estes jovens tendem a sentir-se mais estigmatizados e rejeitados
socialmente do que os pares integrados na família nuclear, alargada ou adoptiva
(Canha, 2000). Do mesmo modo, os estudos reportam níveis de auto-estima
reduzidos, auto-culpabilização e sentimentos de incompetência em jovens
acolhidos (Alberto, 2002). Uma vez que o sentido pessoal de identidade está
tipicamente associado a um auto-conceito positivo, as dificuldades de
valorização pessoal parecem influenciar a formação do auto-conceito nesta
população (Lobel & Winch, 1987).
Através desta síntese introdutória, pudemos verificar que, de um modo geral, os
jovens acolhidos institucionalmente quando comparados com grupos de
adolescentes na comunidade tendem a apresentar pontuações mais reduzidas nas
medidas de auto-conceito utilizadas. Não obstante, analisando criticamente
estes estudos verificamos que, para além destes trabalhos remontarem na sua
maioria aos anos 70/80 ' e, por conseguinte, a realidade do acolhimento
institucional ser actualmente diferenciada ' os instrumentos utilizados são
muito distintos e específicos para os estudos em questão (e.g., Escala de
Indicadores emocionais de Koppitz). Analisando os trabalhos realizados na
última década verificamos que estes não contemplam o auto-conceito como
variável resultado, centrando-se maioritariamente em aspectos de desempenho
académico, funcionamento psicológico e comportamental (e.g., Trout et al.,
2008).
Assim, o estudo do auto-conceito constitui-se como inovador no domínio
científico nacional e internacional. O presente trabalho pretende compreender
de que forma uma amostra de adolescentes acolhidas institucionalmente se
diferenciam das não acolhidas ao nível do auto-conceito, através de uma análise
comparativa entre os dois grupos. Com base nos resultados de estudos realizados
nesta população ao nível do auto-conceito (e.g., Chassin et al., 1981), da
estigmatização e rejeição social (Canha, 2000; Alberto, 2002), e naqueles que
reportam um comprometimento no funcionamento emocional e comportamental nestes
jovens (Rutter, 2000; Hagaman et al., 2010; Attar-Schwartz, 2009), hipotetiza-
se que as adolescentes acolhidas institucionalmente apresentam pontuações de
auto-conceito significativamente inferiores às não acolhidas.
Método
Participantes
O estudo incluiu 78 participantes do sexo feminino provenientes da zona Norte
do país, com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos (M=15.05; DP= 1.33).
Trinta e nove das participantes encontravam-se acolhidas institucionalmente,
distribuídas por quatro Lares de Infância e Juventude e um Centro de
Acolhimento Temporário. O mesmo número de jovens não acolhidas
institucionalmente encontrava-se em contexto escolar, sem história que
configurasse uma situação de perigo/risco psicossocial, nem história prévia de
acolhimento1.
Comparando os grupos em estudo, verificamos que a média de idade do grupo de
adolescentes acolhidas (M=15.33; DP= 1.26) é superior à do grupo de não
acolhidas (M=14.79; DP= 1.36), apesar de esta diferença não ser
estatisticamente significativa (t(78)= -1.81, n.s) . Do ponto de vista da
escolaridade das adolescentes, verificamos que em ambos os grupos, o 8º ano é o
nível de escolaridade com maior expressão ' adolescentes institucionalizadas
39% e não institucionalizadas 44%. Finalmente, no que se refere à categoria
profissional dos progenitores, a categoria de Operários não qualificados é a
que apresenta maior percentagem em ambos os grupos para os pais (apesar de com
maior expressão no grupo de não institucionalizadas), sendo que no caso das
mães, os grupos se diferenciam. No grupo de adolescentes institucionalizadas a
categoria Doméstica é aquela que aparece com maior percentagem, já no grupo
de adolescentes não acolhidas é a categoria Operários não qualificados
(Quadro_1).
A amostra de participantes em estudo foi constituída por conveniência. Foram
considerados para o presente estudo adolescentes que cumprissem os seguintes
critérios: 1) idade igual ou superior a 12 anos e inferior a 18 anos; 2) as
adolescentes acolhidas institucionalmente teriam de se encontrar numa de duas
respostas sociais em termos de promoção e protecção na infância: ou em Lares de
Infância e Juventude ou em Centros de Acolhimento Temporário; 3) as
adolescentes não acolhidas institucionalmente não apresentavam história prévia
de acolhimento, podendo estar integradas em diferentes contextos naturais de
vida (e.g., família de origem, família alargada, entre outros).
Medidas
Auto-conceito. Para a avaliar o auto-conceito foi usada a Escala de Auto-
conceito de Piers-Harris para Crianças(P.H.C.S.C.S. 2 ' Piers &Herzberg,
2002, adaptado por Veiga, 2006). A avaliação do auto-conceito em contexto de
investigação tem assumido particular relevância ao longo das últimas décadas,
constituindo-se como uma dimensão multifacetada potencialmente relacionada com
o comportamento humano (Byrne, 1996; Veiga, 2006). A literatura tem demonstrado
que a P.H.C.S.C.S. 2 constitui um instrumento relevante no contexto de
investigação, na medida em que, não só tem contribuído para o acréscimo de
conhecimento científico, como também tem sido largamente utilizada em
diferentes contextos de investigação com crianças/jovens (e.g., escolar, saúde)
(Wilgenbusch & Merrel, 1999; Veiga, 2006). Além disso, este instrumento tem
sido reportado como de interesse particular quando se pretende reflectir os
resultados de investigação em programas de intervenção (Byrne, 1996). De facto,
a escolha deste instrumento para o presente trabalho decorre dos seguintes
argumentos: a) características psicométricas válidas para a população
portuguesa; b) possibilidade de comparabilidade de resultados, pelo facto de se
tratar de uma escala utilizada em estudos desenvolvidos internacionalmente; c)
adequabilidade da escala ao contexto da presente investigação, pela sua
utilização prévia em contextos de vitimação na infância.
A presente escala foi originalmente criada por Piers em 1984, sendo que a sua
versão portuguesa reduzida (adaptada por Veiga, 2006) é constituída por 60
itens preenchidos de acordo com uma escala dicotómica de sim e não, e sendo
atribuído 1 ponto por cada resposta que vai de encontro a uma perspectiva
positiva de si mesmo, e 0 quando isto não acontece. O tempo médio de
preenchimento da presente escala é de 10 minutos. Para além da pontuação global
(valores que podem variar entre 0 e 60), esta escala pode ser analisada de
acordo com as seguintes seis componentes ou dimensões.
A dimensão Aspecto Comportamental refere-se à percepção da criança/
adolescente acerca da adequabilidade do seu comportamento em diferentes
contextos, e inclui 13 itens (e.g., Meto-me frequentemente em sarilhos;
Meto-me em muitas brigas). O Estatuto Intelectual e Escolar envolve a
percepção da criança/adolescente no que diz respeito às suas competências
intelectuais e escolares, bem como acerca da forma como os outros
significativos lhe atribuem competência e estatuto em termos intelectuais e
escolares, sendo avaliada através de 13 itens (e.g., Sou lento a terminar os
trabalhos escolares; Sou um membro importante na minha turma). No que
concerne à dimensão Aparência e Atributos físicos esta pretende avaliar a
forma como a criança/adolescente se percepciona em termos de aspecto físico e a
sua satisfação com o mesmo, e inclui 8 itens (e.g., Tenho um cabelo bonito;
Tenho uma cara agradável). A dimensão Ansiedade refere-se à preocupação e
medo reportados pelas crianças/adolescentes relativamente a situações e
contextos diários, sendo avaliada através de 8 itens (e.g., Fico nervoso
quando o professor me faz perguntas; Preocupo-me muito). Os itens desta
dimensão são codificados em ordem invertida, permitindo assim que uma maior
pontuação nesta dimensão corresponda a menores níveis de ansiedade. A
Popularidade refere-se à percepção da criança/adolescente acerca da sua
aceitação em contexto social/grupal e à facilidade em estabelecer relações
interpessoais no seu contexto diário, e inclui 10 itens (e.g., Os meus colegas
troçam de mim; Tenho dificuldade em fazer amigos). Finalmente, a Satisfação
e Felicidade refere-se à percepção global da criança/adolescente no que diz
respeito às suas qualidades e a satisfação percebida face à sua vida, sendo
avaliada por 8 itens (e.g., Gostava de ser diferente daquilo que sou; Sou
uma boa pessoa) (Veiga, 2006).
No seu estudo da versão original, Piers (1984, citado por Veiga, 2006) aplicou
a escala a uma amostra de 1183 crianças, tendo encontrado uma média de 50.84
pontos (DP=13.87) e uma variância explicada pelos seis factores de 42%. Na
versão portuguesa, a média obtida foi de 41.7 pontos (DP=7.88), e a variância
explicada de 34% (Veiga, 2006). No presente estudo, a média obtida foi de 41.40
pontos (DP=8.32). Um outro estudo em contexto nacional testou a validade de
construto deste instrumento em crianças/adolescentes vítimas de maltrato na
infância, tendo obtido uma variância explicada de 37.6% para a estrutura
factorial de seis dimensões (Alberto, 2006).
Relativamente à fidelidade da versão portuguesa, a escala global apresenta um
coeficiente de consistência interna ( Alpha de Cronbach) de.90 (.86 para os
participantes do sexo masculino e de .88 para os do sexo feminino) (Veiga,
2006). Considerando as componentes da escala, Veiga (2006) refere os seguintes
valores de consistência interna: Ansiedade (. 62), Satisfação e Felicidade
(. 67),Popularidade(.70),Aparência e Atributos físicos(.72), Aspecto
Comportamental (.74) e Estatuto Intelectual e Escolar (.75) (Veiga, 2006).
No presente estudo, os valores de consistência interna obtidos foram os
seguintes: Auto-conceito global (.86), Ansiedade (.62), Satisfação e
Felicidade (.67), Popularidade (.62), Aparência e Atributos físicos
(.50),Aspecto Comportamental(.70) eEstatuto Intelectual e Escolar(.70). Os
valores de consistência interna são genericamente aceitáveis para a medida
global bem como para todas as dimensões, com excepção da dimensão Aparência e
Atributos Físicos cujo valor de alpha se revelou abaixo do expectável para ser
considerado aceitável.
Procedimento
A administração do questionário foi efectuada após autorização prévia (na
modalidade escrita) por parte dos directores das instituições de acolhimento e
dos respectivos responsáveis da direcção das escolas. A recolha de dados das
adolescentes acolhidas institucionalmente foi efectuada nas instituições de
acolhimento, sendo que os dados relativos àquelas que se encontram integradas
nas suas famílias de origem foram recolhidos nos seus estabelecimentos de
ensino (i.e., escolas da rede pública de ensino).
Do ponto de vista ético, foi solicitada a participação no estudo garantindo a
confidencialidade dos dados bem como o direito de privacidade e anonimato quer
das instituições quer das participantes. Os objectivos do trabalho foram
explicitados às participantes, tendo sido referido que este estudo pretendia
compreender a percepção de cada uma delas relativamente à forma como se
percepcionam em determinadas dimensões, e cujos resultados seriam tratados
estatisticamente e analisados apenas no âmbito do estudo em causa. No
preenchimento do questionário, não foi estabelecido tempo limite, a aplicação
foi colectiva, e teve uma duração aproximada de 15 minutos. A análise de dados
foi efectuada com recurso ao software SPSS/PASW statistics18.
Resultados
Com o objectivo de avaliar se os grupos de participantes se diferenciam ao
nível do auto-conceito, procedeu-se a uma análise de variância multivariada
(MANOVA), tendo em conta quer o auto-conceito global quer os seus aspectos
particulares, nomeadamente a ansiedade, a satisfação e a felicidade, a
popularidade, a aparência e os atributos físicos, o aspecto comportamental e o
estatuto intelectual e escolar. Utilizando o Traço de Pillai, verifica-se que
as diferenças entre os grupos são apenas marginalmente significativas (V=
0.155; F (6, 71) = 2.17, p=.05; h2p = 0.155) (Cohen, 1992). Especificamente,
analisando comparativamente os dois grupos ao nível do auto-conceito global, as
adolescentes acolhidas percepcionam-se menos positivamente ( M=37.41; DP=9.04)
que as não acolhidas (M=43.36; DP=6.97) (F(1, 76) = 10.60;p<.01;h2p= 0.122;
I.C. a 95% ] 2.31; 9.39 [). Resultados semelhantes verificam-se em algumas
dimensões do auto-conceito. As adolescentes acolhidas institucionalmente
percepcionam-se menos positivamente ao nível dos seus comportamentos,
considerando-os menos adaptativos do que as não acolhidas (Aspecto
Comportamental F (1, 76)= 8.89, p<.01; h2p = 0.115; I.C. a 95% ]0.55; 2.74[).
Do mesmo modo, estas adolescentes revelam uma percepção mais negativa acerca
das suas competências e estatuto intelectual (Estatuto Intelectual e Escolar
(F (1, 76)= 6.30, p<.05; h2p = 0.077; I.C. a 95% ]0.31; 2.71[), e reportam
estar significativamente menos satisfeitas e felizes do que as não acolhidas
(Satisfação e Felicidade (F (1, 76)= 6.06, p<.05; h2p = 0.074; I.C. a 95%
]0.18; 1.67[) (cf. Quadro_2). Não foram encontradas diferenças estatisticamente
significativas nas dimensões Popularidade, Aparência e Atributos Físicos e
Ansiedade entre os grupos.
Discussão
O objectivo do presente trabalho passou por analisar a concepção que um grupo
de adolescentes acolhidas institucionalmente tem acerca de si, comparativamente
com um grupo de adolescentes não acolhidas e não referenciadas como
apresentando qualquer risco psicossocial.
Os resultados confirmam a hipótese de que as adolescentes acolhidas
institucionalmente apresentam pontuações de auto-conceito significativamente
inferiores às não acolhidas. Efectivamente, foram encontradas diferenças
significativas entre os dois grupos de adolescentes, ao nível da pontuação
global da escala de auto-conceito, bem como em determinadas dimensões do
constructo. Assim, globalmente, as adolescentes acolhidas institucionalmente
tendem a apresentar um conceito de si mais depreciado do que as não
institucionalizadas. De facto, se tivermos como valor de referência a média
global obtida nos estudos de validação do instrumento em contexto nacional (M =
41.7), verificamos que a média das adolescentes acolhidas institucionalmente se
encontra abaixo desse valor (M = 37.41) e que o grupo de comparação apresentou
uma média global superior (M = 43.36).
Especificamente, verifica-se que as diferenças entre os dois grupos se reportam
às dimensões Aspecto Comportamental, Estatuto Intelectual e Escolar e
Satisfação e Felicidade. Contudo, é necessário realçar que, nas dimensões
Aspecto Comportamental e Estatuto Intelectual e Escolar, os valores médios
obtidos pelas adolescentes institucionalizadas se situam acima do valor médio
possível de 7.5 pontos (os valores podem variar entre 0 e 13). Do mesmo modo,
para a dimensão de Satisfação e Felicidade, a média das adolescentes
institucionalizadas é superior a 4 pontos num intervalo possível de 0 a 8.
Assim, embora existam diferenças significativas entre os grupos, deve notar-se
que estas diferenças se verificam num quadro em que um dos grupos
(participantes institucionalizadas) está na média dos valores possíveis e o
outro grupo se encontra acima da média, não podendo por isso o grupo das
adolescentes institucionalizadas ser considerado deficitário a este nível.
Deste modo, apesar de as situações de vitimação ou perigo experienciadas por
menores institucionalizados constituírem potenciais factores de risco para a
manifestação de dificuldades ao nível emocional, comportamental, e académico
(Hagaman et al., 2010; Taussig, 2002; Thompson & Tabone, 2010), tais riscos
parecem minimizados em pelo menos algumas das dimensões do auto-conceito
avaliadas neste estudo, no grupo de participantes institucionalizadas.
Do mesmo modo, no que diz respeito às dimensões Aparência e Atributos Físicos,
Popularidade, e Ansiedade não foram encontradas diferenças significativas entre
os grupos. Assim, apesar de diversos estudos apontarem para o comprometimento
de vínculos afectivos estáveis nesta população (e. g. Martins, 2005), estes
resultados poderão indicar que, do ponto de vista das relações interpessoais
(Popularidade), estas adolescentes não se percepcionam necessariamente como
menos aceites/integradas do que o grupo de comparação neste estudo. Com efeito,
estas adolescentes acolhidas institucionalmente, apesar de se revelarem menos
satisfeitas ao nível comportamental e intelectual do que o grupo de não
acolhidas, parecem sentir-se satisfeitas com a sua rede de suporte social/pares
e apresentam uma percepção positiva da sua capacidade de estabelecer relações
interpessoais adaptativas (Veiga, 2006).
Estes resultados são inesperados, podendo a ausência de comprometimento do
auto-conceito neste grupo de adolescentes acolhidas estar relacionada com
factores protectores individuais, institucionais (e.g., rigor e regras da
instituição) ou relacionais (e.g., contacto de suporte com técnicos, e com a
família de origem) (Zem-Mascaranhas & Dupas, 2001). Poderemos ainda
hipotetizar que estas adolescentes possam ter construído projectos de vida
pessoais diferenciados, que possam sentir-se seguras e protegidas em contexto
institucional, e que tal possa também resultar numa apreciação menos negativa
acerca de si. Por outro lado, é possível que também o grupo de adolescentes não
acolhidas seja um grupo caracterizado por alguma especificidade, uma vez que
apresenta uma média global elevada (M= 43.36) e acima da média obtida na
validação da escala para o contexto português (M= 41.70). Finalmente, é
possível que as adolescentes em ambos os grupos possam ter respondido de acordo
com alguma desejabilidade social, o que poderá explicar as pontuações
tendencialmente elevadas na escala.
Limitações e direcções futuras
Apesar de os resultados obtidos parecerem relevantes e indicarem a necessidade
de mais investigação e exploração desta temática, importa notar algumas
limitações: 1) o reduzido número de adolescentes participantes no estudo, e o
facto de serem todas do sexo feminino. Com efeito, as dificuldades de acesso,
quer às instituições de acolhimento, quer aos estabelecimentos de ensino,
decorrentes quer da compreensível protecção das menores quer de uma
significativa burocratização do processo, tornam a possibilidade de
investigação neste domínio mais morosa e tornam menos provável a constituição
de amostras representativas; 2) ausência de outras fontes de informação para
além das adolescentes. Para uma melhor compreensão do fenómeno poderia ser
relevante a exploração de outras fontes de informação significativas, no
sentido de compreender de forma mais abrangente o ajustamento psicológico,
social e emocional destas adolescentes; 3) limitações do design do estudo,
nomeadamente a avaliação num único momento, e a ausência de variáveis
relacionadas com o processo de acolhimento (e.g., tempo de acolhimento,
características da instituição), limitando a compreensão/discussão dos
resultados.
Tendo em consideração os dados disponíveis na literatura, bem como os
resultados do presente trabalho, parece essencial que a investigação futura
neste domínio inclua abordagens multidimensionais e integrativas. De facto, a
investigação no futuro deverá incluir outros indicadores de ajustamento
psicológico (e.g., emocional, social, comportamental) que permitam compreender
de forma multidimensional o bem-estar psicossocial dos jovens em acolhimento
(Earls & Carlson, 2001; Winkel, Saeger, & Evans, 2009). Do mesmo modo,
importa identificar os mecanismos subjacentes ao processo de adaptação ao
contexto de acolhimento institucional e as condições facilitadoras deste
processo (e.g., características do ambiente institucional, qualidade da relação
com os técnicos da instituição, suporte social/institucional) (Stone, 2007;
Trout et al., 2008). Em termos de design metodológico, o esforço deverá ir no
sentido da conciliação de modalidades de investigação, de cariz longitudinal,
transversal, quantitativo ou qualitativo (e.g., Christiansen, Havik, &
Anderssen, 2010). Finalmente, importa desenvolver um esforço maior no que
concerne à teorização desta problemática, uma vez que até ao momento esta é
ainda escassa e dispersa (Clough, Bullock, & Ward, 2006).
Em suma, torna-se assim essencial que, no futuro, possam ser testados modelos
explicativos da percepção mais negativa destas adolescentes acerca do seu auto-
conceito global e, em particular, o comportamental, intelectual e a satisfação
pessoal. De facto, é importante identificar mecanismos protectores que possam
ser explicativos de um desenvolvimento e identidade pessoal ajustados em jovens
em acolhimento institucional comparativamente a jovens em contexto natural de
vida (Hattie & Marsh, 1996).
Conclusão
O presente estudo tinha como objectivo compreender se as adolescentes acolhidas
institucionalmente se diferenciam das não acolhidas ao nível do auto-conceito.
Os resultados revelam que as jovens acolhidas pontuam significativamente abaixo
do grupo de comparação (adolescentes não-institucionalizadas sem referenciação
de risco psicossocial) no auto-conceito global, bem como nos domínios
comportamental, intelectual e de satisfação e felicidade, mas não abaixo dos
valores médios da escala. Dado que estes resultados só parcialmente corroboram
os resultados de estudos anteriores, espera-se que no futuro seja possível
esclarecer mais cabalmente esta questão, nomeadamente através de trabalhos que
possam ultrapassar algumas das limitações metodológicas atrás enunciadas (e. g.
número reduzido de participantes dadas as dificuldades de acesso às
instituições).