As experiências dos cuidados de saúde de pessoas transexuais em Portugal:
perspetivas de profissionais de saúde e utentes
Introdução e revisão da literatura
Em Portugal, a recente aprovação de uma Lei de Identidade de Género, que vem
permitir a mudança de sexo legal e de nome próprio no registo civil, trouxe
alguma atenção pública à temática da transexualidade. Tal aconteceu em
contraponto à sistemática invisibilidade que historicamente tem marcado as
trajetórias de vida das pessoas transexuais. Este vazio social (Saleiro, 2009)
tem o seu paralelo a nível da investigação, especialmente no que respeita às
ciências sociais. Em contexto português, os estudos sobre orientação sexual e
identidade de género encontram‑se ainda numa fase embrionária (Vale de
Almeida, 2010). Especificamente, na temática transexual/transgénero é evidente
a ausência de trabalhos realizados, com exceção para alguns autores das
ciências médicas (Saleiro, 2009). Consequentemente, em Portugal, os dados
disponíveis sobre o acompanhamento clínico a pessoas transexuais são
marcadamente incipientes, e a produção de recomendações de boas práticas é
inexistente. Procurando contrariar esta lacuna, o presente estudo aspira
promover a investigação relativa à situação dos cuidados clínicos às pessoas
transexuais em Portugal, e contribuir para o conhecimento científico e crítico
acerca dos mesmos. São dois os objetivos a que nos propomos: um de caráter
teórico, que remete para a revisão da literatura e das diretrizes
internacionais sobre o acompanhamento clínico a pessoas transexuais; e outro de
natureza empírica, que se concretiza na apresentação de um estudo qualitativo
que explora as perspetivas de clínicos/as e de pessoas transexuais sobre as
suas experiências em serviços de saúde em Portugal.
Entende‑se por identidade de género o reconhecimento pessoal, básico e
profundo, em geral, enquanto mulher ou homem (American Psychological
Association [APA], 2008). As pessoas transexuais são aquelas cuja identidade de
género não é congruente com o sexo que lhes foi atribuído ao nascimento. Em
geral, as pessoas transexuais vivem socialmente de modo concordante com a sua
identidade de género, independentemente das intervenções médicas a que se
tenham submetido ou do desejo de as fazer no futuro (APA, 2008). A noção de
disforia de género refere‑se ao desconforto ou sofrimento causado pela
discrepância entre a identidade de género e o sexo atribuído à nascença
(Knudson, Cuypere & Bockting, 2010). As pessoas transexuais podem, ou não,
experienciar disforia de género em determinados momentos da sua trajetória de
vida (WPATH, 2011), e desejar submeter‑se, ou não, a tratamentos cirúrgicos e/
ou hormonais com vista ao seu tratamento (Lev, 2004). Há pessoas transexuais
que, num determinado momento da vida, sentem a disforia de género de modo tão
intenso que esse mal‑estar se traduz em dificuldade marcada de funcionamento
social, ocupacional, ou noutras áreas importantes do seu desenvolvimento,
cumprindo os critérios para o estabelecimento de um diagnóstico no domínio da
saúde mental ' tal como o diagnóstico de Perturbação de Identidade de Género,
patente no DSM‑IV (American Psychiatric Association, 2004). O conceito de
transgénero é atualmente usado para referir o comportamento, a aparência ou a
identidade de pessoas que perturbam, transcendem ou não se conformam com as
normas culturais definidas para pessoas do seu sexo biológico (APA, 2008). Este
termo é usado de modo inclusivo, abarcando as próprias pessoas transexuais, mas
também pessoas intersexuais, travestis, drag queens, entre outras (Hines,
2007a).
Situação social e saúde mental
Os dados sobre a prevalência das pessoas transexuais em Portugal são
inexistentes. A informação disponível sustenta‑se nos relatos informais de
profissionais de saúde (Saleiro, 2009) e nos dados dos respetivos serviços
(Albuquerque, 2006), relativos aos processos clínicos que acompanham. Não
obstante, os relatos são, em geral, demonstrativos da maior utilização dos
serviços por homens transexuais2, comparativamente às mulheres transexuais.
Este rácio é contrário à tendência encontrada em diversos estudos realizados
noutros países, que apontam para uma maior prevalência de mulheres transexuais
(Bakker, van Kesteren, Gooren & Bezemer, 1993; Garrels, Kockott, Michael et
al., 2000; Olsson & Moller, 2003).
A população transexual é heterogénea e muito diversa entre si. Os/as
transexuais podem ser adolescentes, adultos/as ou idosos/as; constituir
diferentes configurações familiares, ser hetero, homo ou bissexuais, podendo '
ou não ' ter filhos/as; pertencem a qualquer nível socioeconómico, e
desempenham as mais variadas atividades laborais; inserem‑se, ainda, em
diferentes grupos étnicos e religiosos (Raj, 2002). Um recente estudo nacional
(Costa, Pereira, Oliveira & Nogueira, 2010) encontrou que as pessoas
percebidas como as mais discriminadas, por entre uma listagem de mais de 20
grupos sociais minoritários, são as/os transexuais. De facto, as pessoas
transexuais são frequentemente vítimas de diferentes formas de discriminação,
desde a alienação económica (Clements, Wilkinson, Kitano & Marx, 1999;
Lombardi, Wilchins, Priesing & Malouf, 2001) até à reiterada vitimização
decorrente do abuso físico e psicológico (Lombardi et al., 2001; Nuttbrock,
Hwahng, Bockting et al., 2010).
Em paralelo, diferentes estudos encontram resultados consensuais no que
respeita a níveis inferiores de saúde mental/bem‑estar psicológico e de
qualidade de vida, comparativamente com a população média ' seja como corolário
da referida discriminação e alienação social (APA, 2008; Nuttbrock et al.,
2010; Sánchez & Vilain, 2009), seja como produto dos eventuais conflitos
internos relativos ao género decorrentes da própria condição de transexual
(Dean, Meyer, Robinson et al., 2000; Newfield, Hart, Dibble & Kohler,
2006). Deste modo, as pessoas transexuais têm sido assinaladas como em maior
risco para desenvolver, por exemplo, perturbações de ansiedade (Hepp, Kramer,
Schnyder, Miller, & Delsignore, 2005), depressão (Nuttbrock et al., 2010),
fobia social e perturbações de ajustamento (Gómes‑Gil, Trilla, Salamero et
al., 2009) abuso de substâncias (Lawrence, 2008) ou perturbações do
comportamento alimentar (Vocks, Stahn, Loenser & Tegenbauer, 2009). Em
simultâneo, os dados relativos à ideação e tentativa de suicídio nesta
população são salientes: Maguen e Shipherd (2010) encontraram valores de
tentativa de suicídio na ordem dos 40% em homens transexuais e 20% em mulheres
transexuais; Nuttbrock e colegas (2010), num recente estudo com cerca de 500
mulheres transexuais, indicam que cerca de 30% já se tentou suicidar, cerca de
35% já planeou fazê‑lo e perto de metade das participantes já pensou nisso.
O bem‑estar e a saúde mental de jovens transgénero, nomeadamente das/os
transexuais, só recentemente começou a merecer destaque na investigação
psicológica (Dean et al., 2000). A adolescência tem sido apontada como uma fase
de maior risco no que respeita à saúde mental de pessoas transgénero. Tal
reflete, por um lado, a emergência da puberdade e o desenvolvimento das
características sexuais secundárias ' muitas vezes acompanhada por sentimentos
de isolamento e de repulsa pelo próprio corpo (Korell & Lorah, 2007); por
outro, os abusos psicológicos e físicos que podem caracterizar as relações
interpessoais nesta fase da vida, que surgem associados aos comportamentos e às
expressões de género percebidas por outros/as como não normativas (Nuttbrock et
al., 2010). Deste modo, os dados indicativos do risco para a saúde mental e o
bem‑estar psicológico de pessoas transexuais acentuam‑se se nos focarmos em
adolescentes ou jovens adultos. Por exemplo, Israel e Tarver (1997) indicam que
entre 50% a 88% de jovens transgénero já consideraram ou tentaram suicidar‑se.
Não raramente, a discriminação e os abusos psicológicos e físicos de que as
pessoas transexuais são alvo ocorrem no contexto de relações interpessoais
significativas, como as relações familiares ou laborais (Lombardi et al., 2001;
Nuttbrock et al., 2010; Kenagy, 2005). Um crescente, mas ainda incipiente,
número de investigações tem abordado as idiossincrasias das relações familiares
e/ou amorosas, bem como das experiências laborais desta população (por exemplo,
Ettner, 2007; Budge, Tebbe & Howard, 2010). Não obstante, a família é um
dos sistemas de suporte ao qual as pessoas transexuais recorrem (Korell &
Lorah, 2007), de modo condicionado pelas reconfigurações e dinâmicas familiares
despoletadas pelo assumir da transexualidade (Emerson & Rosenfeld, 1996).
Também a própria comunidade transexual, nomeadamente as associações e grupos de
apoio, tem sido apontada como um recurso do qual esta população pode beneficiar
(Hinnes, 2007b; Korell & Lorah, 2007; Lev, 2007). A participação em grupos
de apoio, mais ou menos formais, está relacionada com diferentes dimensões
(Hinnes, 2007b): a possibilidade de ser honesto/a no que respeita à sua
identidade de género e de a assumir perante outros/as; a procura de apoio, não
apenas emocional mas também informativo/educativo; ou ainda, a possibilidade de
não só receber apoio, mas também o ministrar. Os grupos de apoio, que
frequentemente partem de (ou se limitam a) comunidades online (Lev, 2007), são
muitas vezes identificados como vitais em colmatar a insuficiência de
informação e de recursos educativos prestados pela comunidade médica (Hinnes,
2007b). Os/as transexuais dependem extensamente dos/as profissionais de saúde,
nomeadamente os/as que trabalham na área da saúde mental, não apenas para atos
médicos, mas também para acederem a informação credível relativamente a
questões no domínio da transexualidade (Korell & Lorah, 2007).
Cuidados clínicos
Nem todos/as os/as transexuais necessitam e/ou desejam apoio médico e
psicológico (Raj, 2002). Não obstante, a comunidade médica é, em paralelo com a
família e a própria comunidade transexual, um sistema de apoio basilar para as
pessoas transexuais (Korell & Lorah, 2007). Para a maioria das pessoas com
dúvidas acerca da sua identidade de género, o primeiro passo parece ser a
procura de um profissional de saúde ' nomeadamente o seu médico de família
(Hinnes, 2007b).
Tal como exposto previamente, a condição de transexual coloca as pessoas em
maior risco no que respeita à sua saúde mental. Os/as profissionais de saúde
mental podem desempenhar um papel importante na promoção do bem‑estar
psicológico e da qualidade de vida desta população (Newfield, 2006). A
investigação realça os efeitos positivos decorrentes das experiências de
psicoterapia. Num estudo efetuado por Rachlin (2002), a maioria dos/as
participantes relatou mudanças de vida positivas associadas a práticas
psicoterapêuticas ' mesmo quando sentiram que o/a terapeuta não tinha formação
adequada em temáticas transgénero/transexuais ou, ainda, em situações nas quais
não recomendariam o/a terapeuta a um/a amigo/a. É importante realçar que as
pessoas transexuais procuram profissionais de saúde mental por variadas razões,
não necessariamente relativas a questões relacionadas com a sua identidade de
género (APA, 2008; Rachlin, 2002; Raj, 2002). De qualquer forma, as
experiências de psicoterapia sentidas como mais positivas e apoiantes estão
associadas à aceitação e ao respeito pela identidade de género, à flexibilidade
na abordagem terapêutica e à proximidade com a comunidade transexual (Rachlin,
2002). Em paralelo, clientes de psicoterapia transexuais tendem a percecionar
as dimensões empatia e suporte como essenciais no desenvolvimento de
relações terapêuticas duradouras e produtivas (Bess & Stabb, 2009).
Apesar do papel que os/as profissionais de saúde mental podem ter na promoção
do bem‑estar e qualidade de vida de pessoas transexuais, esta classe
profissional tem maioritariamente intervindo em áreas relacionadas com o
diagnóstico e a regulamentação do acesso aos atos médicos (Johnson, 2007). De
facto, um dos papeis centrais que os/as profissionais de saúde mental
desempenham junto de pessoas transexuais é o de gatekeepers3, determinando
quais os/as clientes adequados/as para acederem ao tratamento hormonal e às
cirurgias de reatribuição sexual (May, 2002; Lev, 2007; Bess & Stabb,
2009). Esta prática é regulada internacionalmente pelas recomendações da World
Professional Association for Transgender Health (WPATH), exploradas em maior
detalhe no ponto seguinte. Os resultados da investigação nesta área revelam que
a função de gatekeeperdespoleta uma dinâmica de poder entre cliente e
terapeuta, colocando desafios específicos a ambas as partes da díade
terapêutica e podendo afetar de modo decisivo a construção de uma relação de
confiança e produtiva (Bess & Stabb, 2009; Bockting, Robinso, Benner &
Scheltema, 2004; Raj, 2002). Alguns/algumas clientes adaptam inclusivamente as
suas narrativas e histórias de vida, procurando ir de encontro ao que entendem
ser as classificações diagnósticas rígidas e as perceções dos/as profissionais
de saúde acerca do que é o género, as suas formas de expressão e, em
particular, a transexualidade (Johnson, 2007; Lev, 2007; May, 2002). Neste
sentido, tem sido sugerido que a avaliação psicológica seja distinguida da
psicoterapia (quando necessária), e que um processo não seja substitutivo do
outro (Rachlin, 2002). Aliás, clientes que procuram profissionais de saúde
mental para conseguir aceder aos tratamentos hormonais e/ou cirúrgicos tendem a
ter um número bastante inferior de sessões, do que aqueles/as que procuram os
serviços por outras razões, como o desenvolvimento pessoal, apoio para
situações específicas ou mesmo a exploração de questões relacionadas com o
género (Bockting et al., 2004).
Além dos desafios específicos colocados pela função de gatekeeper, outros
entraves têm sido encontrados no que respeita ao acesso das pessoas transexuais
a cuidados de saúde mental apropriados, nomeadamente a dificuldade em encontrar
clínicos/as com conhecimentos e competências específicas às questões
transgénero e transexual (Sanchez, Sanchez & Danoff, 2009). Dada a
especificidade destas temáticas, tem sido sugerido que mesmo os/as terapeutas
devidamente preparados/as para o trabalho clínico com outras minorias sexuais
(como as pessoas lésbicas, gays e bissexuais) não estão necessariamente
informados/as e aptos/as para trabalharem com clientes transexuais (Israel,
2005). A título de exemplo, muitos/as dos/as participantes do estudo de Korell
e Lorah (2007) referiram ter sido os/as primeiros/as clientes transgénero/
transexuais dos/as seus/suas terapeutas, e ter tido necessidade de os/as
informar e educar em relação a estas temáticas ' desencadeando sentimentos de
frustração e ansiedade, tendo em conta que estes/as profissionais detêm o poder
de autorizar (ou não) o acesso a tratamentos médicos. Em paralelo, mesmo os/as
profissionais de saúde com conhecimentos no domínio da transexualidade não são
necessariamente livres de estereótipos e preconceitos no que respeita à
diversidade de expressões de género (Sanchez et al., 2009). De um modo geral,
os discursos e as práticas médicas tendem a ser intolerantes à ambiguidade de
género (May, 2002) e assentam em pressupostos heterossexistas (Johnson, 2007).
Tal tem‑se refletido no desenrolar de formas específicas de transfobia
clínica, tais como a tendência para sobrepatologizar clientes transgénero/
transexuais ou a perpetuação de mitos acerca das pessoas transgénero/
transexuais, impostos pelas expectativas demonstradas pelos/as terapeutas,
entre outras (Raj, 2002). As práticas psicoterapêuticas menos sensíveis à
diversidade de expressões de género decorrem, por um lado, da falta de treino e
formação específica para o trabalho com clientes transexuais e, por outro, do
facto de os/as terapeutas serem um produto da sua própria socialização, estando
provavelmente menos confortáveis no trabalho com clientes minoritários (Korell
& Lorah, 2007).
Standars of Care
A WPATH é uma associação internacional constituída por profissionais de
diferentes áreas, que tem como missão promover cuidados de saúde adequados e
baseados em evidências científicas, formação, investigação, políticas públicas
e respeito pelas pessoas transexuais. Tem publicado recomendações relativas ao
acompanhamento clínico de pessoas transexuais, os chamados Standards of Care
(SOC), que incidem em particular sobre os preceitos subjacentes às funções de
gatekeeping. Tem sido sugerido que estas recomendações sejam abarcadas de modo
crítico e complementadas por outras orientações (Raj, 2002; Lev, 2007). Não
obstante, trata‑se de um documento fundamental, de conhecimento essencial para
qualquer profissional de saúde que trabalhe com pessoas transexuais. Realçamos
aqui algumas das recomendações expressas na última versão (WPATH, 2011).
Estes standars clínicos explicitam que o objetivo da intervenção com as pessoas
cuja identidade de género não é congruente com o sexo atribuído à nascença deve
ser o de contribuir para o conforto pessoal e duradouro com o género
identificado, de forma a maximizar o seu bem‑estar global e a realização
pessoal. Realçam que o tratamento é sempre individualizado: aquilo que ajuda
uma pessoa a aliviar a disforia de género pode ser muito diferente daquilo que
ajuda outras pessoas. Este processo pode, ou não, envolver mudanças nas
expressões de género ou alterações corporais. As opções médicas incluem, por
exemplo, a masculinização/feminização do corpo através de terapia hormonal e/ou
cirúrgica ' que podem efetivamente aliviar a disforia de género e que são
clinicamente necessárias para muitas pessoas transexuais. Não obstante, os SOC
são claros na defesa da diversidade de identidades e expressões de género,
realçando que o recurso a hormonas e cirurgias são apenas duas opções por entre
os vários recursos que podem ajudar as pessoas a sentirem‑se confortáveis com
a sua identidade de género.
Estas diretrizes internacionais indicam que qualquer profissional de saúde que
acompanhe pessoas transexuais deve respeitar os seguintes princípios
fundamentais: (1) revelar respeito pelos/as pacientes, independentemente da sua
identidade e expressões de género (isto é, não patologizar diferentes
expressões e identidades de género); (2) prestar cuidados de saúde (ou
encaminhar para colegas mais bem preparados/as) orientados para a diminuição do
mal‑estar provocado pela disforia do género, de modo concordante com a
identidade de género de cada um(a); (3) manter‑se informado/a acerca das
necessidades de saúde das pessoas transexuais, nomeadamente dos benefícios e
dos riscos das diferentes opções de tratamento; (4) fazer corresponder o
tratamento às necessidades e aos desejos específicos de cada paciente '
nomeadamente no que respeita às suas expressões de género; (5) facilitar o
acesso a cuidados de saúde adequados; (6) obter o consentimento informado de
cada paciente antes de iniciar qualquer tratamento; (7) prestar cuidados de
saúde continuados; e (8) estar preparado/a para prestar apoio aos seus e às
suas pacientes através da intervenção junto das famílias e comunidades.
Os SOC são claros ao afirmar que nenhum diagnóstico relacionado com a disforia
de género pode ser motivo de estigmatização nem de privação de direitos, e que
o diagnóstico é a descrição de um problema que a pessoa atravessa num
determinado momento, não uma descrição da sua identidade. Em concreto, no que
toca à função de gatekeeping, os SOC atribuem aos/às profissionais de saúde
mental as funções relacionadas com a avaliação clínica e com a recomendação
para a realização de tratamentos hormonais e/ou cirúrgicos. Para o início da
terapia hormonal e/ou de cirurgias mamárias é exigida a recomendação de um(a)
profissional de saúde mental (por exemplo, através de uma carta ou um relatório
clínico), sendo que para as cirurgias genitais são exigidas recomendações de
dois/duas profissionais de saúde mental4.
Abordagens Trans‑Positivas
Em paralelo, têm surgido recomendações de diferentes autores/as orientadas para
a promoção de cuidados clínicos que sejam sensíveis à diversidade de expressões
de género. Raj (2002) propõe um contínuo entre duas posições opostas: os
modelos de proveniência psiquiátrica, patologizantes, dirigidos para e pelos/as
profissionais de saúde; e os modelos des‑medicalizados, assentes em exclusivo
na autodeterminação, dirigidos para e pelos/as consumidores/as. Entre estas
posições extremas, assinaladas pelo autor como antiéticas, encontrar‑se‑ão as
abordagens colaborativas e dirigidas para os/as clientes. Raj (2002) avança com
uma série de recomendações para os/as profissionais de saúde que ambicionam
prestar serviços e cuidados que sejam trans‑positivos, isto é, sensíveis à
diversidade de expressões de género. Realçamos apenas algumas destas
recomendações: os/as profissionais devem procurar treino e formação
especializada (e que ultrapasse a vertente do conhecimento, incidindo
igualmente na dimensão das atitudes); tratando‑se de uma população muito
heterogénea, os/as profissionais devem estar atentos/as às especificidades de
diferentes subgrupos (tais como, crianças/adolescentes, idosos/as, minorias
étnicas/religiosas, pessoas marginalizadas ou institucionalizadas, pessoas com
incapacidades ); espera‑se que o/a terapeuta valide qualquer forma de
expressão de género e que apoie o direito à autodeterminação do/a cliente; ou,
ainda, que a intervenção deve, preferencialmente, ser promovida por equipas
multidisciplinares. Raj (2002) não deixa de assinalar que nem todas as pessoas
transexuais desejam e/ou necessitam de cuidados clínicos.
Lev (2004) propõe um modelo referente aos diferentes estágios que as pessoas
transexuais atravessam, no que respeita ao processo de transição e à decisão de
se sujeitar a tratamentos médicos orientados para a reatribuição sexual. Em
paralelo, propõe objetivos terapêuticos adaptados às particulares de cada fase.
Na primeira fase, na qual o indivíduo começa a ter consciência da sua eventual
condição, o/a terapeuta deve procurar normalizar as experiências relacionadas
com diferentes expressões de género. Na etapa seguinte é frequente a procura de
recursos informativos e de apoio, sendo que parte do trabalho do/a clínico/
a poderá ser auxiliar este processo. O terceiro estágio envolve a partilha da
condição transgénero/transexual com outros/as significativos/as. Os objetivos
terapêuticos, nesta fase, podem orientar‑se para a integração familiar. A
quarta etapa abrange a análise de diferentes possibilidades identitárias, no
que respeita ao (trans)género, podendo a terapia ser um contexto privilegiado
para esta exploração. A fase seguinte envolve as decisões concretas relativas
ao processo de transição ' nomeadamente acerca da vivência social concordante
com o género identificado e dos eventuais tratamentos médicos a prosseguir. O/
a terapeuta pode promover a tomada de decisões informadas e conscientes,
apoiando as decisões do/a cliente. Por fim, tende a proceder‑se à integração e
à síntese da identidade, e os objetivos terapêuticos podem visar a adaptação e
o apoio pós‑transição.
Estudo empírico
Procurando contrariar o vazio para o qual as pessoas transexuais têm sido
remetidas nas ciências sociais em Portugal (Saleiro, 2009), o presente trabalho
assenta em dois propósitos: uma revisão da literatura relativa à situação
clínica e social das pessoas transexuais e a apresentação de um estudo de
natureza empírica. Tendo em conta a revisão da literatura apresentada, em
paralelo com a escassez de dados referentes às experiências de pessoas
transexuais nos serviços de saúde em Portugal, o objetivo geral do estudo
empírico prende‑se com a exploração das perceções de profissionais de saúde e
de pessoas transexuais, sobre os cuidados de saúde especificamente dirigidos a
pessoas transexuais em Portugal. As questões de investigação formuladas foram
as seguintes:
1. Quais os perfis das pessoas que recorrem aos serviços de saúde
especializados no acompanhamento de pessoas transexuais? Que profissionais
trabalham nestes serviços ' qual a sua formação e experiência na área?
2. De que modo é garantido o respeito pela diversidade de identidades e
expressões de género na prestação de cuidados de saúde a pessoas transexuais?
3. De que forma se processam os tratamentos dirigidos à disforia de género?
3.1. Em particular, que tipo de intervenção é feito com crianças e
adolescentes?
3.2 De que modo se processam as avaliações clínicas e de que forma são
exercidas as funções de gatekeeping?
O número reduzido de serviços de saúde especializados no acompanhamento a
pessoas transexuais em Portugal, à data deste estudo, conjugado com a escassez
de investigações na área, conduziram‑nos à opção por metodologias
qualitativas. Dada a especificidade das informações que pretendemos recolher,
optámos pela realização de entrevistas aprofundadas e semiestruturadas a
profissionais de saúde especialistas no acompanhamento de pessoas transexuais '
sendo que a maioria do corpus de análise derivou destas entrevistas Antecipando
as vantagens de uma perspetiva multi‑informante, foi ainda efetuado um grupo
focal com pessoas transexuais.
Método
Participantes
Foram entrevistados/as seis profissionais, das áreas de psicologia clínica,
psiquiatria, medicina interna e cirurgia plástica; quatro eram mulheres e dois
homens, sendo que nenhum se apresentou como transexual. Por seu lado, quatro
homens transexuais e três mulheres transexuais, com uma média de idades de 36
anos (variando entre os 18 e os 65 anos) participaram no grupo focal. Todos/as
tinham, pelo menos, o 9ºano de escolaridade, tendo um concluído o 12ºano e
outro uma licenciatura. Destes/as participantes três estavam empregados/as,
dois estavam desempregados/as e dois estudavam. Todos/as tinham nacionalidade
Portuguesa e todos/as, com exceção de uma participante, se identificaram como
heterossexuais.
Técnicas de Recolha de Dados
A escolha de técnicas de recolha de dados diferenciadas (entrevistas
individuais para profissionais de saúde e grupo focal para pessoas transexuais)
prendeu‑se com: (1) a distinta natureza dos dados a obter junto dos dois
grupos de informantes (isto é, a tecnicidade e profundidade das informações a
recolher junto dos/as profissionais compeliu o recurso a entrevistas
individuais); (2) a previsão das dificuldades de acesso à população transexual,
que conduziu à presunção das vantagens de limitar a recolha de dados a um único
momento.
A diferente natureza, tecnicidade e grau de profundidade dos dados a recolher
junto dos dois grupos refletiu‑se na construção dos respetivos guiões. O guião
semiestruturado da entrevista aos profissionais foi desenvolvido procurando
conciliar a necessidade de recolher um alargado leque de informações à
essencial flexibilidade e possibilidade de adaptação a cada profissional/
serviço em causa. Três dimensões foram abordadas: (i) percurso profissional do/
a clínico/a, nomeadamente a sua formação, experiência de trabalho com pessoas
transexuais, número e tipo de casos que acompanha ou acompanhou; (ii) dados
respeitantes ao serviço, incluindo modos de funcionamento, tipos de
intervenção, acolhimento dos/as utentes transexuais; e (iii) perceções sobre
bem‑estar e saúde mental de pessoas transexuais, diagnóstico (nomeadamente,
critérios de diagnóstico e diagnóstico diferencial), processos de transição e,
ainda, enquadramento legal. Por sua vez, o guião utilizado no grupo focal
incluiu os seguintes tópicos: cuidados médicos e psicológicos relacionados com
a condição de transexual, providos ao/à próprio/a e a familiares, desde a
infância/adolescência até ao momento presente; perceção geral acerca dos
cuidados de saúde prestados a pessoas transexuais; pormenorização das
experiências, em contexto clínico, percebidas como positivas e negativas.
Foram contactados/as os/as profissionais de saúde que trabalhavam (ou tinham
trabalhado até recentemente) nos serviços públicos especializados no
acompanhamento de pessoas transexuais, num total de 8. Destes, 6 acederam a
participar no estudo (taxa de resposta de 75%). As entrevistas individuais
foram realizadas nos serviços de saúde onde os/as profissionais exerciam a sua
prática clínica, pela investigadora sénior, entre dezembro de 2008 e o primeiro
trimestre de 2009, com duração aproximada de 2 horas. O grupo focal com pessoas
transexuais ' recrutadas por um processo de bola de neve ' decorreu no Centro
LGBT (Lésbico, Gay, Bissexual e Transgénero), em Lisboa, em maio de 2009, e foi
conduzido pelo investigador júnior e por um comoderador externo. A condução do
grupo focal exigiu um esforço, por parte dos moderadores, para focar a
discussão nos temas apresentados, uma vez que os/as participantes tenderam a
dispersar o seu discurso para outras questões. Não obstante, esta dinâmica
condicionou a recolha de dados junto dos/as participantes transexuais.
Técnicas de Análise de Dados
O corpus de análise, constituído maioritariamente pelas transcrições das
entrevistas individuais mas também do grupo focal, foi sujeito a uma análise
temática. Esta técnica de análise, ao situar‑se numa posição intermédia entre
a simples análise de conteúdo e a análise discursiva, apresenta algumas
vantagens em relação à primeira, em especial uma maior atenção dada ao
significado do discurso dos/as participantes e ao papel da linguagem (Parker,
2005). A análise temática, ao realçar os significados atribuídos pelos/as
participantes às palavras e frases empregadas, emerge em formatos de
apresentação dos resultados diferentes dos do derivam de análises de conteúdo
(Parker, 2005). A análise decorreu em duas fases: (1) a divisão do texto em
unidades de análise, derivada de forma mista ' isto é, por um lado, aberta à
informação que surgiu a partir dos próprios dados e, por outro, dirigida pelos
respetivos guiões; (2) determinação do significado destas unidades no que
respeita aos objetivos do estudo. Os resultados serão apresentados de modo a
refletirem os principais temas expressos pelos/as participantes, de modo
concordante com as questões de investigação referidas, bem como os significados
atribuídos aos mesmos.
Critérios de Rigor no Processos de Recolha e Análise
No intuito de assegurar a qualidade dos dados recolhidos e dos resultados
obtidos (em particular a sua credibilidade) foram tidos em consideração alguns
dos procedimentos apontados por Lincoln e Guba (1985) para a generalidade dos
métodos qualitativos: (a) triangulação de fontes, conseguida pela recolha de
dados junto de profissionais de saúde especialistas bem como das próprias
pessoas transexuais; (b) triangulação de investigadores/as, sendo que tanto a
recolha como a análise dos dados foram realizadas por dois investigadores; (c)
consulta de pares, patente em discussões de equipa com outros/as
investigadores/as não diretamente envolvidos/as no estudo; (d) adequação dos
referenciais, sendo que todas as entrevistas individuais bem como o grupo focal
foram integralmente gravadas em aúdio, após consentimento informado dos/as
participantes, e posteriormente transcritas por uma assistente de investigação;
(e) consulta com a população participante, realizada de modo informal junto de
membros de grupos LGBT que integraram o projeto alargado onde se insere este
estudo.
Resultados
Entrevistas a profissionais de saúde
A maioria dos/as profissionais indicou já ter acompanhado clinicamente pelo
menos meia centena de pessoas transexuais. Referiram uma maior prevalência de
homens transexuais nos serviços, tendência que recentemente se aproxima da
igualdade numérica entre homens e mulheres. Apesar da maioria dos/as utentes
estar na faixa etária dos 20‑30 anos, os/as participantes acompanharam pessoas
desde os 8 até cerca dos 60 anos. Entre estes/as utentes encontram‑se pessoas
em diversas situações no que respeita à conjugalidade, à parentalidade e à
orientação sexual, isto é, pessoas solteiras ou casadas, com ou sem filhos,
hetero‑ ou homossexuais. De acordo com as palavras de um participante, «não há
qualquer divulgação de onde é que as pessoas podem acorrer se tiverem dúvidas
sobre a sua identidade sexual» [E1], nomeadamente dentro da própria comunidade
médica.
Todos/as os/as profissionais indicaram que se dirigem aos/às utentes
transexuais de modo concordante com o género identificado e usando o nome
escolhido por estes/as. Referiram, igualmente, que procuram que tal aconteça no
serviço, não sendo claro se os/as próprios/as promovem iniciativas nesse
sentido (por exemplo, ações de sensibilização) e não se alargando esta
iniciativa para outros serviços dos mesmos hospitais. Em alguns casos, foi
referido que os processos clínicos dos/as utentes transexuais são arquivados de
modo separado, procurando garantir a sua confidencialidade.
Foi reportado que a intervenção feita com crianças e adolescentes pauta‑se, em
geral, pela atitude esperar para ver, tal como indicado por uma participante:
«[Procura‑se] explicar que qualquer intervenção tem que ser adiada para uma
idade em que seja possível uma tomada de decisão mais responsável e mais
amadurecida, e não influenciar, deixar as coisas acontecerem. E, sobretudo,
tranquilizar a família e tranquilizar a própria pessoa» [E5]. No entanto, não
foram explicitadas as formas de apoio e suporte fornecido, nestes casos, às
famílias. Os/as clínicos/as referiram que a terapêutica hormonal não é iniciada
antes dos 18 anos de idade. Contudo, pelo menos dois profissionais referiram
iniciar a hormonoterapia a partir dos 16 anos, desde que com consentimento do/
a próprio/a e dos/as respetivos/as representantes legais: «Já tivemos casos
especiais com a autorização dos pais. Contudo, a maior parte dos pais
resguardam‑se um bocado atrás desta lei, quase para confirmar se aquilo não é
uma fase que o filho está a passar» [E3].
Uma vez no cuidado de profissionais e/ou equipas especialistas, o acesso a
terapêuticas especificamente dirigidas a pessoas transexuais é condicionado por
um processo de avaliação diagnóstica de Perturbação de Identidade de Género.
Foi indicado por um participante: «Nunca avançamos para qualquer abordagem
terapêutica sem dois diagnósticos feitos. Um que era feito, no nosso caso, no
hospital[ ]e outro de uma entidade independente» [E1]. Enquanto alguns/algumas
participantes indicaram explicitamente que exigem dois diagnósticos
independentes antes mesmo da terapia hormonal, uma avaliação independente foi
sempre exigida antes do início da terapêutica cirúrgica. Na generalidade, o
discurso dos/as clínicos/as apontou para um cuidado elevado no estabelecimento
de diagnósticos claros e, consequentemente, para os efeitos a nível da
morosidade do processo e das próprias desistências («( ) sendo o diagnóstico
clínico, temos de ser muito prudentes, razão pela qual muitos deles achavam que
nós éramos muito chatos pela forma como todos os passos do diagnóstico eram
conduzidos, e às vezes eram longos, muitas avaliações» [E1]; «( ) são poucos os
casos que não se confirma o diagnóstico, em que nós vedamos a passagem a uma
fase seguinte. [Mas] depois há aqueles que talvez não consigam chegar ao fim
porque isto é um processo complicado e moroso» [E5]).
Os/as participantes relataram que os períodos de tempo necessários para
proceder ao diagnóstico inicial são variáveis, desde 1 até 6 meses. Contudo,
houve indicação de utentes sem diagnóstico claro mesmo ao fim de 4 anos. Estas
situações foram, em geral, imputadas à dificuldade em estabelecer um
diagnóstico diferencial preciso (quadros psicóticos e o fetichismo travestido
excluem, para a maioria dos/as entrevistados/as, a possibilidade de determinar
um diagnóstico de Perturbação de Identidade de Género). Os seguintes segmentos
discursivos são exemplificativos desta situação: «O diagnóstico diferencial é
feito[ ] com a esquizofrenia. Componentes psicóticas em que a pessoa não é um
transexual e em que acredita ser um transexual» [E3], e ainda, «Há dois casos
que nós estamos convencidos, eu particularmente estou convencido, que são
fetichismos travestidos e não são dois transexuais, e portanto continuam no
congelador» [E1]. No que respeita à comorbidade, foi frequente o relato de
situações de depressão, ansiedade social e generalizada, perturbações da
personalidade, ou ideação e tentativa de suicídio. Estes problemas de saúde
mental foram atribuídos ao estigma e à discriminação que as pessoas transexuais
são alvo: «( ) estas pessoas fizeram um trajeto de vida habitualmente
complicado, com dificuldades de integração, às vezes com coisas muito
violentas, muito duras [ ]. Tudo isto leva à sintomatologia ansiosa,
depressiva, a determinados traços de personalidade ( )» [E5]. Alguns
profissionais referiram que a própria morosidade dos processos clínicos pode
ser uma agravante dos quadros depressivos e ansiosos. Por norma, para estes/as
profissionais, estas sintomatologias não constituem critérios de exclusão para
o diagnóstico de Perturbação de Identidade de Género. Contudo, o discurso de
uma entrevistada não é claro a este respeito: «( ) podemos vir a excluir,
dependendo da própria situação, da própria personalidade borderline. Até que
ponto aquela personalidade está a interferir e é fator de exclusão para seguir
com este processo. Mas isto, pronto, é discutido na própria reunião e decidimos
se de facto é mais adequado ou não fazer essa exclusão» [E2].
Para a maioria dos/as clínicos/as, critérios como o estado civil, a
parentalidade, a orientação sexual ou o desejo de realizar cirurgias genitais
não foram referidos como relevantes para o diagnóstico. No entanto, em alguns
casos, o seu relato remeteu para inconsistências entre este pressuposto e a
prática que desempenham. Por exemplo, no que respeita à parentalidade, uma
participante relatou: «Em relação aos filhos levantam‑se algumas questões,
porque efetivamente a mãe deixou de ser mãe, passou a ser um homem, portanto a
figura da mãe desapareceu.( ) No fundo, a criança tem direito a ter uma
progenitora» [E5]. A inexistência do desejo de realizar cirurgias genitais,
mesmo que não apontado claramente por nenhum/a dos/as profissionais como
critério de exclusão, não deixou de ser referido como um fator que pesa na
avaliação: «Teoricamente isto não deveria influenciar negativamente o
diagnóstico, mas se isso vai acontecer? Vai, porque sou humano. Porque todos
quiseram fazer[cirurgias genitais]e eu teria alguma dificuldade de aceitar à
priori, sem as mesmas dúvidas, que estava perante uma Perturbação de Identidade
de Género» [E1].
Segundo os/as participantes, alguns/algumas dos/as utentes destes serviços
adaptam as suas narrativas e histórias de vida de modo a irem de encontro ao
que acreditam ser as expectativas dos/as profissionais e conseguirem, deste
modo, aceder às terapêuticas: «( ) há muitos que chegam com a história bem
contada, que aprenderam com outros, na internet» [E1], ou ainda «Existem
transexuais que não querem cirurgia, apesar de eles acharem que têm que dizer
que sim, senão em Portugal não fazem, não avançam com o processo. Um dia
esperemos que consigamos evoluir também esse nível» [E3].
O tempo que decorre entre o início dos cuidados clínicos de saúde mental até à
fase das cirurgias foi igualmente descrito como muito variável. Nos casos
apontados como positivos, geralmente este período rondou os 2 anos. Contudo, em
alguns casos os clínicos referiram situações de mais de 4 anos.
Após este período de acompanhamento e avaliação psicológica, durante o qual se
inicia a terapêutica hormonal e a experiência real de vida, é necessário
apresentar um relatório à Ordem dos Médicos. Em Portugal, esta instituição faz
depender da sua aprovação a realização das cirurgias de reatribuição sexual.
Esta situação, apontada pelo menos por um participante como única na Europa,
pode aumentar o tempo de espera para mais um ano, em alguns casos, para quem
pretende realizar os tratamentos cirúrgicos. Alguns/algumas dos/as
entrevistados/as manifestaram‑se claramente contra esta regulamentação,
alertando para o impacto que pode ter nos próprios processos clínicos: «( )
houve alguns obstáculos relativamente à Ordem, houve pedidos que demoraram
muito tempo a seguir ( ). Foi um travão desnecessário e muito prejudicial a
nível clínico, porque a pessoa está pronta. Em vez de estarmos a ajudar a
pessoa Portanto, esta pessoa fez tudo, cumpriu [E]estamos a pedir que aguarde
para ter aquilo que mais deseja» [E3].
À data de realização do estudo, apenas um cirurgião plástico realizava em
Portugal, no Sistema Nacional de Saúde (SNS) as ditas cirurgias de reatribuição
sexual. Foram‑nos relatados casos de pessoas que decidem realizar as cirurgias
no estrangeiro, com elevados custos financeiros, de forma a escapar ao tempo de
espera decorrente da necessidade de autorização da Ordem dos Médicos e das
consequentes listas de espera para atendimento no SNS.
A maioria dos/as clínicos/as entrevistados/as referiu não ter estudado na sua
formação de base matérias relacionadas com a transexualidade, e ter tido algum
tipo de formação pós‑graduada em sexologia, por vezes no estrangeiro. Pelo
menos uma entrevistada prosseguiu estudos pós‑graduados especificamente na
temática da transexualidade, enquanto outros/as ' apesar da formação em
sexologia ' referiram‑se como autodidatas no que refere aos conhecimentos e
competências para o trabalho com transexuais. Pelo menos três participantes
realçaram que respeitam os SOC. Contudo, é de assinalar que, pelo menos em duas
ocasiões, foram usadas as expressões transexual puro e transexual primário,
o que é contrário aos mesmos.
Grupo de discussão com pessoas transexuais
O testemunho dos/as participantes no grupo de discussão revelou a discriminação
e vitimização a que as pessoas transexuais estão sujeitas nos mais variados
contextos sociais, incluindo a família, e também os riscos que tal situação
coloca ao seu bem‑estar psicológico. Todos/as os/as participantes, à exceção
de uma, estavam a avançar com o processo de transição clínica, ou já o tinham
terminado, ao abrigo do SNS. De facto, uma entrevistada referiu ter procurado
cuidados clínicos no estrangeiro: «Foi precisamente por causa de toda esta
negatividade. Eu estive alguns meses, mas tive de desistir, porque achei que
eram todos malucos. Depois mais tarde fui a Marrocos» [GF3].
Alguns/algumas participantes descreveram o apoio clínico como uma experiência
claramente positiva, centrando‑se especialmente na prestação dos/as clínicos/
as. Os seguintes segmentos discursivos são exemplificativos: «Eu não senti
nenhum comportamento de discriminação por parte dos médicos»; «No meu processo
nunca fui testado, a minha médica não me tratou mal, nunca saí de lá a chorar»
[GF1]; «Eu sinto‑me satisfeito. O médico excelente, o psicólogo também. Logo
na primeira consulta riscou o nome, disse que tinha que meter o nome correto
( )» [GF4] ou ainda «Fui seguido por esse médico e não podia correr melhor»
[GF5].
Contudo, foram várias as situações assinaladas por diversos/as participantes
como menos positivas. Por um lado, destacaram a morosidade subjacente a alguns
processos: «Tive algum azar com os profissionais de saúde que tive. ( ) A
consulta era apenas de 6 em 6 meses e muitas vezes faltavam à consulta» [GF2];
«O que demorou mais foi o processo da Ordem dos Médicos,[só isso]demorou 7
meses» [GF4]. Por outro, apontaram para o que entendem ser prolongados
processos de avaliação: «Muitas vezes estive no Instituto de Medicina Legal das
8h até às 16h, sem comer. De manhã eram os exames psicológicos e à tarde os
exames sexuais. Demorou algum tempo» [GF6]; «Eu senti‑me como um ratinho de
laboratório, sempre a ser testado» [GF2]. Por fim, foi também dado destaque à
prestação dos profissionais de saúde, por vezes percebida como menos
competente: «Eu não concordo com a terminologia que o psiquiatra que nos
acompanha usa. Ele diz homem transexual para as mulheres e mulher transexual
para os homens» [GF2]; «Perguntou‑me que tipo de amigos é que eu tinha. Eu
dava‑me apenas com pessoas bissexuais e homossexuais. E a médica dizia‑me que
eu tinha que arranjar amigos heterossexuais, porque não me podia tornar um
homem se não lidava com eles» [GF2].
Discussão
O presente estudo procurou analisar a prestação de cuidados clínicos, em
Portugal, por serviços e profissionais de saúde especializados na intervenção
com pessoas transexuais. Tem sido proposto (ver Israel, 2005; Raj, 2002;
Sanchez et al., 2009) que os/as profissionais de saúde, nomeadamente aqueles/as
que trabalham na área da saúde mental, demonstrem competência adequada no que
respeita à especificidade das intervenções e consciência das vivências das
pessoas transexuais. Os/as profissionais que participaram neste estudo
evidenciaram, de um modo geral, ter conhecimento das sérias dificuldades que as
pessoas cuja identidade de género não é concordante com o sexo atribuído à
nascença atravessam (por ex., Lombardi et al., 2001), bem como do impacto que
estas contrariedades têm na sua saúde mental (por ex., Nuttbrock et al., 2010).
Nem todos/as os/as clínicos/as, porém, revelaram o conhecimento das orientações
clínicas internacionais (WPATH, 2011) e o seguimento das mesmas: em alguns
casos os cuidados de saúde estão condicionados por um número de avaliações
clínicas superior ao exigido pelas recomendações da WPATH (por exemplo, duas
avaliações para o início das terapias hormonais); ou ainda, quadros psicóticos
ou perturbações da personalidade excluem, para alguns/algumas participantes, o
início de tratamentos dirigidos à disforia de género ' o que também é contrário
aos SOC. Alguns/algumas destes/as profissionais efetuaram formações
pós‑graduadas com foco na temática da transexualidade no estrangeiro. Contudo,
houve participantes que referiram que a sua preparação para o trabalho com
transexuais advém, por um lado, da aprendizagem com colegas e, por outro, da
própria prática clínica com estas pessoas. Não fica claro se, por vezes, e tal
como está descrito na literatura (Korell & Lorah, 2005), os/as utentes
transexuais ao cuidado destes/as profissionais de saúde terão necessidade de
os/as informar e educar no que refere à especificidade desta temática.
A prestação de cuidados clínicos sensíveis à diversidade individual e cultural
está também associada à consciência do/a profissional, no que se refere ao modo
como os seus próprios valores e atitudes interferem na prática clínica. Raj
(2002), entre outros autores, sustentam que os/as clínicos/as que trabalham com
pessoas transexuais devem fomentar a sua autoconsciência acerca do modo como os
seus próprios valores se relacionam com as questões transgénero, e das suas
atitudes perante a possível diversidade de expressões de género. Por vezes, nas
entrevistas que efetuámos foi defendido pelos/as próprios/as profissionais que
a formação e a preparação nestas matérias não pode, de facto, descurar a
dimensão das atitudes. Contudo, os testemunhos dos/as participantes transexuais
foram, por vezes, reveladores de conceções rígidas e estereotipadas acerca dos
papéis de género, por parte dos/as profissionais que os/as acompanharam, bem
como do modo como estes valores condicionam a prestação de cuidados de saúde
sensíveis à diversidade. Desta forma, não é efetivamente conseguida a provisão
de uma atmosfera percebida como empática e segura, livre de pressupostos
(hetero)sexistas e possibilitadora da emergência de narrativas diversas. A
gestão e distinção adequada dos diferentes papéis desencadeados pelos distintos
processos de avaliação psicológica e psicoterapia também parecem menos bem
conseguidas, sendo confusos os papéis de gatekeeping e de prestador de
cuidados.
De realçar que uma das barreiras no acesso aos cuidados de saúde por parte das
pessoas transexuais em Portugal, sublinhada quer pelos/as profissionais quer
pelas próprias pessoas transexuais, é a necessidade de aprovação por parte da
Ordem dos Médicos para a realização de cirurgias genitais.
Os resultados do presente estudo, tal como apresentados, apontam em duas
direções. Por um lado, são demonstrativos de certas competências destas equipas
que prestam cuidados de saúde a pessoas transexuais em Portugal. São exemplos a
familiaridade com os SOC, intervenção com crianças e adolescentes, a procura de
formação especializada, alguns cuidados com a confidencialidade e uso de
linguagem adequada. Por outro lado, porém, os resultados também alertam para a
existência de algumas práticas que são contrárias aos SOC, nomeadamente no que
toca a ambiguidades na avaliação e diagnóstico diferencial; a interferência dos
valores pessoais, nomeadamente no que respeita ao género e à sexualidade;
excessivo gatekeeping; e diminuta intervenção de formação, educação e promoção
da qualidade vida, independentemente das intervenções para reatribuição de
sexo.
Os resultados do estudo devem ser lidos tendo em conta os limites decorrentes
do seu intuito exploratório, da dimensão da amostra e das escolhas
metodológicas. Em particular, a escolha do grupo focal como técnica de recolha
de dados junto de pessoas transexuais não se revelou, possivelmente, a mais
adequada. Futuros estudos devem ter tal facto em consideração, e optar por
metodologias diferenciadas e amostras mais alargadas. Não obstante, importa
salientar: a triangulação dos dados, conseguida pela recolha de informação
junto de profissionais de saúde mas também das próprias pessoas transexuais;
bem como a taxa de resposta de 75% no que respeita às entrevistas ' apesar do
número limitado de profissionais de saúde especialistas no domínio da
transexualidade em Portugal. Dada a escassez de estudos referentes à situação
social e clínica das pessoas transexuais no nosso país, o presente estudo
poderá contribuir de modo significativo para esta área de investigação/
intervenção.