Apresentação do número
Apresentação do número
Marlene Matos, Celina Manita, Miguel M. Gonçalves, Rui Abrunhosa Gonçalves,
Carla Martins
Este número especial é dedicado a Carla Machado. Não sendo possível contemplar
numa só edição o seu vasto leque de interesses, quisemos partilhar com o leitor
parte do legado científico da autora, que deixou marcas profundas na história
da Psicologia da Justiça, da Criminologia e da Vitimologia em Portugal.
Organizado a partir de um conjunto de trabalhos planeados e desenhados com a
Carla, escritos agora pelos seus colegas, estudantes e investigadores,
privilegiámos neste número os domínios de interesse e investigação a que se
começara a dedicar mais recentemente. Por essa razão, a vertente da Psicologia
Forense, que tão trabalhada foi por ela e já extensamente retratada em artigos
de revistas e em obras publicadas nos últimos 10 anos, quase não é abordada
neste número especial da Revista Psicologia.
Nascida a 21 de setembro de 1968, em Vila Real, Carla Machado concluiu, em
1990, a Licenciatura em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto, na pré‑especialização de Psicologia do
Comportamento Desviante. Começou por ser Psicóloga no Gabinete de Psicologia
"Psinova" e, posteriormente, Psicóloga e Professora de Psicologia na
Cooperativa de Ensino Didáxis, mas por muito pouco tempo. Logo em 1992 ingressa
no Instituto de Reinserção Social (atual DGRSP), na delegação do Porto, como
Técnica Superior de Reinserção Social, desempenhando, simultaneamente, funções
de apoio técnico e de supervisão na execução de perícias sobre a personalidade.
Em 1993, a pós‑graduação em Criminologia que realizou na Faculdade de
Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, com uma monografia
intitulada "Perigosidade criminal", pressagiava já o seu notável
trajeto enquanto investigadora. Desde então, frequentou vários cursos breves,
workshops e seminários temáticos, ingressando na Academia em 1995 enquanto
bolseira de doutoramento do então Instituto de Educação e Psicologia da
Universidade do Minho. Iniciou quase de imediato aquilo que viria a ser uma
carreira académica brilhante, na qualidade de Assistente Convidada do
Departamento de Psicologia da mesma Universidade. Em 2000, finalizou o seu
Doutoramento em Psicologia, na Universidade do Minho, na área de conhecimento
de Psicologia da Justiça, com a dissertação "Discursos do medo, imagens do
Outro'. Estudos sobre insegurança urbana na cidade do Porto", orientada
pelo Prof. Doutor Cândido da Agra e posteriormente publicada em livro. Desde
então, a convite, lecionou em várias universidades do país sobre os diversos
temas a que se dedicava.
No seu percurso destaca‑se o envolvimento, enquanto investigadora responsável,
em projetos de investigação nacional, apoiados pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia e pela União Europeia, em áreas complementares entre si:
Enquadramento cultural da violência contra mulheres e crianças, Violência no
namoro, Vitimação múltipla de mulheres socialmente excluídas, entre outros. Fez
também parte de várias equipas nacionais, nomeadamente, dos Grupos de Ajuda
Mútua (GAM), do Observatório Permanente de Segurança do Porto e do projeto
"O consumo de drogas em contexto natural".
O seu mérito levou a que fosse eleita como consultora de vários projetos nos
domínios da sua especialidade. Em 2008 foi proposta pelo Governo Português como
Perita para integrar o Group of Experts on Action against Trafficking in Human
Beings, do Conselho da Europa. Participou, ainda, ativamente na elaboração de
relatórios técnico‑científicos, na qualidade de especialista nacional,
nomeadamente, sobre adoção, sobre prevenção da violência doméstica e a proteção
e assistência às suas vítimas e, ainda, sobre os Sistemas de Acolhimento, de
Proteção e Tutelar de Crianças e Jovens.
O seu trabalho refletiu‑se em inúmeras conferências plenárias e comunicações
científicas, nacionais e internacionais, onde revelou uma extraordinária
capacidade como oradora.
Da extensa obra publicada em Portugal destaca‑se o Manual de Psicologia Forense
(Psiquilibrios Edições), Vitimologia: Das novas abordagens teóricas às novas
práticas de intervenção com vítimas(Psiquilibrios Edições), Novas formas de
vitimação criminal (Psiquilibrios Edições), Crime e insegurança. Discursos do
medo, imagens do outro (Editorial Notícias), Violência e vítimas de crimes '
Vol I e II (Quarteto), Manual da Escala de Crenças sobre Violência Conjugal
(E.C.V.C.) e do Inventário de Violência Conjugal (I.V.C.) (Psiquilibrios
Edições) e Manual da Escala de Crenças sobre Punição Física (E.C.P.F.) e do
Inventário de Práticas Educativas Parentais (I.P.E.) (Psiquilibrios Edições).
Em 2009 tornou‑se uma das coorganizadoras da publicação periódica Instrumentos
e contextos de avaliação psicológica (Almedina) e, em 2010, passa a coordenar a
coleção "Psicologia da Justiça" (Psiquilibrios Edições).
Entre as várias publicações internacionais, destacam‑se os seus trabalhos no
International Handbook of Victimology (2010, Knepper & S. G. Shoham),
Journal of Family Violence, Integrative Psychological & Behavioral Science
e Child Abuse & Neglect. Foi, ainda, revisora Adhoc de várias revistas
nacionais e internacionais, entre as quais, ish Journal of Psychology, Journal
of Family Violence, European Journal of Psychology Applied to Legal Context,
Child Abuse & Neglect.
Em paralelo, estabeleceu uma rede privilegiada de intercâmbio científico que se
traduziu, mais tarde, em inúmeras colaborações com equipas e projetos de
investigação fora do nosso país. Nesse contexto, foi coordenadora, em Portugal,
do estudo International Perspectives on War and Peace, sob coordenação geral da
Profª Kathleen MalleyMorrison (Boston University). Integrou, também, o projeto
Risktaking Online Behaviour Empowerment through Research and Training (ROBERT),
financiado pela União Europeia, e o Delphi Study ' Global effort to improve
measurement of child maltreatment, financiado pela International Society for
the Prevention of Child Abuse and Neglect (ISPCAN).
A sua afirmação na investigação científica, associada à consistência, inovação
e criatividade que sempre revelou, levaram‑na a orientar vários trabalhos de
mestrado e doutoramento. Das atividades académicas desenvolvidas, há ainda a
destacar a sua participação em inúmeros júris de provas e concursos académicos.
O seu percurso foi igualmente marcado por funções de gestão universitária,
tendo sido Coordenadora da especialização em Psicologia da Justiça do Mestrado
Integrado em Psicologia da Universidade do Minho e Diretora do Curso de
Psicologia da Universidade do Minho.
O seu constante cuidado em conciliar a vida académica, a investigação e a
prática, levaram‑na a integrar o Serviço de Psicologia da Universidade do
Minho, em 1998, onde desempenhou funções de psicoterapeuta (individual e de
grupo) junto de vítimas de crime e de supervisora científica de todos os casos
de avaliação forense de menores, bem como dos processos de psicoterapia com
menores, no âmbito da Unidade de Consulta em Psicologia da Justiça desse
serviço. A este nível, e preocupada sempre com uma psicologia aplicada baseada
no conhecimento científico, deu, com o seu trabalho, um contributo decisivo
para os desenvolvimentos recentes ao nível da Psicologia Forense em Portugal.
Mas o pensamento e a voz da Carla não se "ouviram" apenas na
Academia. Como cronista, os seus textos quinzenais no Jornal Público traduziam
a sua inquietação e espírito cívico, ora democratizando o saber científico, ora
partilhando episódios do seu quotidiano. Revelador do seu talento imenso e
qualidades para a escrita não científica, os seus leitores liam atentamente as
crónicas inspiradoras e emocionadas, repletas de significados autênticos
partilhados com todos.
Este número especial procura refletir o investimento da Carla Machado em
âmbitos diversos mas, ao mesmo tempo, dialogantes, trabalhos com inumeráveis
implicações políticas e sociais, como era sempre sua preocupação. Apesar de uma
carreira interrompida cedo demais, com a sua morte em 8 de fevereiro de 2011, o
contributo da Carla é incontornável para todos aqueles que trabalham ou
investigam nas áreas da Psicologia da Justiça, da Vitimologia, da Criminologia,
e se empenham no desenvolvimento de boas práticas profissionais.
Este número integra um conjunto de trabalhos em que a Carla Machado esteve
envolvida nos últimos anos da sua vida. São, maioritariamente, estudos que
estavam, na altura, a ser desenvolvidos no âmbito de projetos de doutoramento.
O primeiro artigo ' "Intervenção no fenómeno das drogas: Algumas reflexões
e contributos para a definição de boas práticas" ' analisa as políticas de
intervenção sobre o fenómeno do uso e abuso de drogas ilícitas (uso e abuso de
drogas que constituem uma das áreas em que Carla Machado iniciou os seus
trabalhos de investigação científica, no final dos anos 80 e início dos anos
90), comparando as lógicas e práticas do proibicionismo e do
anti‑proibicionismo e refletindo sobre o que atualmente se considera serem boas
práticas de intervenção neste fenómeno.
O segundo e o terceiro artigos ' respetivamente, "Cidadãos estrangeiros em
Portugal: Migrações, crime e reclusão" e "A Psicologia da Paz"
', traduzem um dos focos de atenção mais recentes de Carla Machado: as questões
da exclusão social e da violência estrutural. No primeiro discute‑se a questão
da reclusão, do crime e da imigração, procurando desconstruir estereótipos que
relacionam os cidadãos estrangeiros e o crime. No segundo é abordada uma área
ainda muito pouco desenvolvida em Portugal ' a da Psicologia da Paz e os
contributos que os psicólogos poderão dar para a prevenção dos conflitos e para
a promoção dos direitos humanos e da paz.
O quarto artigo ' "Relações de intimidade juvenis e adultas, uma análise
comparativa: Das narrativas de amor às conjugalidades violentas" ' procura
analisar e desconstruir os discursos sobre o amor e o modo como estes afetam as
relações de intimidade, nomeadamente, as violentas, favorecendo ou contrariando
a legitimação do uso da violência como tradução de amor, ciúme, paixão.
Comparando discursos de vítimas e agressores, adultos e jovens, reflete também
sobre as potencialidades do uso destas narrativas ao nível da intervenção.
O quinto artigo ' "Violência nas relações juvenis de intimidade: Uma
revisão da teoria, da investigação e da prática" ' resume as principais
reflexões e resultados do projeto "Violência nas relações juvenis de
intimidade", coordenado por Carla Machado, que veio colmatar as lacunas ao
nível do conhecimento científico sobre esta forma de violência em Portugal, bem
como conferir visibilidade à extensão e à gravidade do fenómeno no país.
Do mesmo projeto, emergiu a implementação em Portugal do programa The Fourth R,
que visa a prevenção universal da violência no namoro e comportamentos de risco
associados, descrito no sexto artigo ' "Relacionamentos íntimos juvenis:
Programa para a prevenção da violência".
O estudo exploratório "Violência sexual no namoro: Os atletas
universitários como grupo de risco?" é um trabalho pioneiro sobre as
crenças e comportamentos de violência sexual junto da população atlética
universitária e deu origem ao sétimo artigo.
Por último, e porque a violência sexual é um tema central no trabalho
desenvolvido por Carla Machado, o oitavo artigo ' "A elaboração narrativa
no abuso sexual: O papel das vítimas enquanto protagonistas no processo de
mudança" ' descreve um estudo desenvolvido com vítimas de crimes sexuais,
menores de idade, sobre o processo de mudança e as dinâmicas de significação
operadas pelas crianças.
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