Intervenção no fenómeno das drogas: algumas reflexões e contributos para a
definição de boas práticas
Introdução
Há já vários anos que o fenómeno das drogas vem sendo mediatizado e construído
como um dos mais importantes problemas sociais, sendo utilizado como bandeira
política, especialmente em períodos de poder político conservador (Humphreys
& Rappaport, 1993). O foco dos discursos dominantes, tanto da sociedade em
geral como da comunidade científica, nos aspetos negativos destas substâncias e
em representações negativas dos seus consumidores tem promovido um sentimento
de pânico moral e a estigmatização e marginalização destes atores sociais. Do
mesmo modo, tem vindo a legitimar a orientação repressiva da legislação e da
intervenção sobre o fenómeno, defendendo‑se a necessidade de pôr cobro à
utilização da maioria das substâncias psicoativas. De facto, ao longo de todo o
século XX, grande parte dos países ocidentais foi implementando medidas
proibicionistas, graças, em larga medida, aos esforços norte‑americanos
(Barbosa, 2006; Fernandes, 2009; Quintas, 2006; Romaní, 2003; Szasz, 1992;
Thornton & Bowmaker, s.d.). No nosso país, foi com o Decreto‑Lei nº 420/70
que se encetou uma política criminalizadora, justificada pelo argumento de que
a droga acarretava riscos para a saúde dos utilizadores e que estes
representavam um perigo para a sociedade (Barbosa, 2006; Maia Costa, 2001).
Limitações da abordagem proibicionista
Apesar de ter imperado durante largos anos e de continuar a reunir inúmeros
defensores, a lógica proibicionista tem vindo a ser contrariada por uma
ideologia anti‑proibicionista, cujos argumentos se centram sobretudo no
fracasso dos ideais do proibicionismo.
Desde logo, é colocada em causa a legitimidade jurídica e governamental para
proibir e criminalizar1 estilos de vida que se afastam da norma social mas que
não prejudicam terceiros, argumentando‑se que isso desrespeita os direitos, as
liberdades, a autodeterminação e a responsabilidade dos indivíduos (Farr, 1990;
Fernandes, 2009; Pallarés, 1996; Poiares, 2002; Quintas, 2006; Rovira &
Hidalgo, 2003; Szasz, 1992). Mesmo enquanto estratégia de salvaguarda da saúde
pública, via pela qual tem vindo a ser legitimado (Maia Costa, 2001), o
proibicionismo é alvo de críticas. Zorrilla (1993, como citado em Quintas,
2006, p. 32), por exemplo, considera que não é a saúde o bem jurídico que se
pretende proteger com a legislação, visto que os prejuízos para a saúde provêm
de todas as drogas e não apenas das ilegais.
Questionados são também os propósitos de erradicação das drogas e promoção da
abstinência subjacentes às políticas repressivas, por serem considerados pouco
realistas (Einstein, 2007; Farr, 1990; Fernandes, 2009; Pallarés, 1996; Romaní,
2008; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992).
Nesta lógica, alguns autores advogam que não é necessário punir, criminalizar,
estigmatizar e tentar acabar com os consumos (Farr, 1990; Maia Costa, 2001;
Romaní, 2008; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992) e apresentam como
alternativa manter apenas, ao nível legislativo, estratégias dissuasoras não
punitivas, como a difusão de informação sobre os seus danos, à semelhança do
que já ocorre com o tabaco (Maia Costa, 2001).
No entanto, o proibicionismo tem sido acusado de promover campanhas educativas
que veiculam informação parcial e, por vezes, errónea sobre as substâncias
ilícitas, contribuindo para a ignorância e deseducação sociais (Szasz, 1992).
Ações preventivas norteadas pela mensagem simplesmente diz não' podem servir
como ilustração, pois fracassam no intento de transmitir informação relevante
sobre as drogas (Moritz, 2005; Rovira & Hidalgo, 2003) e tendem a afastar
quem pretende continuar a usá‑las (Rovira & Hidalgo, 2003).
Um dos principais argumentos usados contra o proibicionismo diz respeito à sua
falta de eficácia na diminuição das taxas de prevalência dos consumos (Quintas,
2006; Rovira & Hidalgo, 2003), pese embora lhe seja reconhecido algum
sucesso no que diz respeito ao controlo do tráfico (García & Sánchez, 2006)
e à redução do crime associado a estas substâncias (Reuter & Stevens,
2008). São vários os estudos que têm vindo a denunciar a modesta influência que
a abordagem jurídica de repressão das drogas exerce na redução do seu uso, que
se tende a manter independentemente desta (Cohen, 1999; Farr, 1990; Reuband,
1995; Reuter & Stevens, 2008; Romaní, 2008; Quintas, 2006).
Não menos importante é a crítica de que a orientação proibicionista, além de
não solucionar os prejuízos que advêm diretamente do uso destas substâncias,
tem provocado problemas adicionais, nomeadamente, em termos sanitários,
sociais, jurídicos e económicos. Entre outros, destaca‑se o facto de a
reprovação e repressão sociais sobre as drogas promoverem a estigmatização e
marginalização dos consumidores (Fernandes, 2009; Poiares, 2002; Romaní, 2008)
e, desse modo, os desmotivarem da procura de cuidados de saúde especializados
(Smith & Smith, 2005). Considera‑se, também, que o proibicionismo tem
concorrido para que os consumidores acabem por utilizar estas substâncias em
condições adversas ou perigosas (Quintas, 2006; Romaní, 2008) e,
consequentemente, para o aumento dos danos para a saúde pessoal e pública
(Barbosa, 2006; Smith & Smith, 2005; Thornton & Bowmaker, s.d.). Do
mesmo modo, salienta‑se o facto de ter potenciado a proliferação de vias
ilícitas de distribuição das drogas, a violência e a criminalidade (Fernandes,
2009; Romaní, 2003; Smith & Smith, 2005; Szasz, 1992; Thornton &
Bowmaker, s.d.).
Dadas as limitações frequentemente associadas ao proibicionismo, vários autores
propõem medidas alternativas, como a adoção de um livre mercado deste tipo de
substâncias (Szasz, 1992) e a sua legalização (Pallarés, 1996). Estas medidas
descriminalizadoras parecem constituir uma opção viável, já que trabalhos que
analisam as consequências da sua implementação têm sugerido que não potenciam
um aumento significativo da utilização de drogas ilícitas (Cohen, 1999;
Quintas, 2006). A título ilustrativo, Reuband (1995) não encontrou diferenças
significativas nas prevalências do uso de cannabis e de drogas tidas como duras
entre países europeus mais repressivos (e.g., França, Reino Unido) e mais
tolerantes (e.g., Holanda, Eha), concluindo que as políticas e os sistemas de
controlo formal sobre as substâncias não exercem uma influência decisiva nos
seus consumos. Na Holanda, onde estas políticas são mais tolerantes e onde as
drogas estão mais facilmente acessíveis, os consumos têm‑se mantido estáveis,
deixando antever um expressivo nível de controlo (Cohen, 1999). Da análise da
realidade nacional, Quintas (2006) concluiu que a lei da descriminalização
provocou, sobretudo, um aumento da perseguição da polícia sobre o uso de
canabinóides e uma redução significativa nos policonsumos e na utilização de
heroína.
Importância das formas de controlo social alternativas às formais
As limitações que os sistemas de controlo social formal têm evidenciado, no que
respeita à regulação dos consumos, deixam, desde logo, antever a necessidade de
promover outras formas de controlo social sobre este fenómeno. A importância
destes processos alternativos tem vindo, também, a ser sustentada pela
constatação de que o uso de substâncias psicoativas tem sido uma constante ao
longo da história da humanidade e de que as diversas sociedades o têm
conseguido controlar sem recorrer a medidas legais, impedindo efetivamente o
desenvolvimento de padrões problemáticos de consumo (Castel & Coppel, 1991;
Quintas, 2006), bem como pela evidência de casos de remissão espontânea
(Walters, 2000). De facto, sujeitos que abandonaram o consumo sem qualquer
suporte formal tendem a identificar o apoio social informal como um dos
principais motivos para tal decisão, a par dos prejuízos gerados pelas drogas,
em termos sociais, de saúde e de finanças (ibidem).
Assim sendo, vários autores alertam para a importância de estimular o
desenvolvimento de mecanismos de controlo alternativos aos formais, como o
autocontrolo (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Fernandes & Ribeiro,
2002; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992) e o controlo social informal
(Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Matos & Simões, 2008; Quintas,
2006; Reuband, 1995; Walters, 2000; Young, 1971). Globalmente, entende‑se que
é necessário exercer algum controlo formal mas que deve ser apenas o
indispensável e surgir a par de processos de controlo informais (Castel &
Coppel, 1991). Tais processos, que se admite poderem ser mais efetivos do que
os controlos tradicionais (Quintas, 2006; Reuband, 1995), operam no meio
natural dos consumidores através da influência reguladora da família e dos
amigos, entre outras (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Quintas, 2006;
Reuband, 1995; Walters, 2000; Young, 1971).
Considera‑se, portanto, que recorrer ao grupo de consumidores ou à subcultura
das drogas pode ser um meio de promover o controlo social informal, ao educar
sobre os consumos (Young, 1971). Do mesmo modo, aponta‑se para a importância de
estimular a autorresponsabilização pelos consumos e o empoderamento dos
consumidores, de modo a fomentar o seu autocontrolo (Cohen, 1999; Einstein,
2007; Fernandes, 2009; Matos & Simões, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003;
Szasz, 1992; Walters, 2000; Whiteacre & Pepinsky, 2002).
Para tal, defende‑se que os profissionais devem veicular a mensagem de que os
consumidores têm competência para governar a sua vida e os seus consumos, não
obstante possam necessitar de auxílio para desenvolver outras capacidades
(e.g., sociais, emocionais, de autorregulação) e para as pôr em prática (Percy,
2008; Walters, 2000). Devem, portanto, evitar que os consumidores se considerem
incapazes de controlar os consumos, já que esta perceção tende a reduzir a sua
motivação para alterar os comportamentos danosos, potenciando o processo da
profecia auto‑realizada (Rovira & Hidalgo, 2003; Walters, 2000).
Nesta lógica, realça‑se também a premência de envolver os próprios
consumidores, enquanto peritos, em conversas sobre o tema e no processo de
mudança (Fernandes, 2009; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003). Torna‑se,
assim, essencial dar voz aos consumidores ' atendendo às suas perceções,
valores, práticas de consumo, quotidiano e necessidades (Fernandes, Pinto,
& Oliveira, 2006; Goren, 2005; Moritz, 2005) ', e permitir que decidam
acerca do seu envolvimento com as drogas, embora encorajando sempre um consumo
responsável (Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992; Whiteacre & Pepinsky,
2002). Reconhece‑se que estimular uma tomada de decisões informada e o
empoderamento dos consumidores requer, desde logo, informá‑los, de forma ampla
e precisa, acerca das drogas (Cohen, 1999; Deehan & Saville, 2003; Goren,
2005; Matos & Simões, 2008; Moritz, 2005; O'Malley & Valverde, 2004;
Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián & Valenzuela, 2009; Shukla &
Kelley, 2007; Szasz, 1992). Neste sentido, não basta informar sobre os riscos
dos consumos, tendo de ser também admitidas e discutidas as potencialidades e
prazeres que os sujeitos tipicamente lhes reconhecem (Levy, O'Grady, Wish,
& Arria, 2005; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián & Valenzuela,
2009) para os conseguir cativar e envolver efetivamente nas ações sobre as
drogas e no processo de mudança. Além disso, para a eficácia das ações
educativas, Moritz (2005), partindo do seu trabalho com estudantes, identifica
a importância destas decorrerem de forma interativa e de nelas se tratarem os
jovens como adultos, deixando‑os à vontade para falar abertamente com
convidados especializados no assunto.
Não obstante a inegável importância de informar sobre as drogas, reconhece‑se
que apenas fornecer informação pode ser insuficiente para a mudança de
comportamentos (EMCDDA, 2011; Levy et al., 2005; Rovira & Hidalgo, 2003),
sendo igualmente importante apostar no trabalho de desenvolvimento e treino de
competências básicas, nomeadamente, as sociais e emocionais. De acordo com o
mais recente manual do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction
o desafio da prevenção reside em ajudar os jovens a ajustar o seu
comportamento, capacidades e bem‑estar face às múltiplas influências das normas
sociais, da interação com os pares, das condições de vida e dos seus próprios
traços de personalidade (EMCDDA, 2011, p. 19).
Para concluir, importa notar que, embora seja amplamente reconhecida a
importância de estimular o autocontrolo dos consumidores e os processos de
controlo social informal sobre as drogas, os Estados têm dificultado o seu
desenvolvimento, ao invés de o promoverem (Cohen, 1999; Fatela, 1991). Segundo
Cohen (1999, p. 6) muitos sistemas de controlo de drogas baseados na proibição
são focados predominantemente em destruir condições para o controlo do uso
individual ( ) Estruturas comunicativas de utilizadores de drogas são
constantemente ameaçadas, reduzindo a sua eficácia como veículos de
conhecimento sobre uso seguro.
Potencialidades da abordagem de redução de riscos
Ao longo das últimas décadas tem vindo a ser fortalecida a noção de que, ao
invés de trabalhar para a abstinência ' propósito considerado, aliás, pouco
realista (Einstein, 2007; Farr, 1990; Fernandes, 2009; Romaní, 2008; Rovira
& Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992) ', é mais
proveitoso tentar reduzir os potenciais danos dos consumos, auxiliando os
sujeitos a utilizar as drogas das formas menos prejudiciais possíveis e a
manter o seu ajustamento nas várias áreas de vida (Cruz & Machado, 2010;
Rovira & Hidalgo, 2003; Pallarés, 1996; Percy, 2008; Shukla & Kelley,
2007). Os principais argumentos a favor desta conceção prendem‑se com as
evidências de que o uso de substâncias psicoativas ocorre desde tempos
imemoriais (e, provavelmente, continuará a acompanhar a história da
humanidade), de que vários sujeitos conseguem controlar esta prática sem
necessidade de intervenção externa formal e de que o proibicionismo não tem
logrado resultados satisfatórios.
Em diversos países europeus, as políticas de redução de riscos e minimização de
danos vêm sendo, assim, cada vez mais defendidas (Einstein, 2007; Pallarés,
1996; Percy, 2008; Quintas, 2006; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla &
Kelley, 2007) e implementadas (Barbosa, 2009; Fernandes, 2009; IDT, 2010; OEDT,
2009; Quintas, 2006; Romaní, 2003). Alguns trabalhos apontam, de facto, para a
eficácia destas medidas no controlo e diminuição, quer da criminalidade
(Barbosa, 2009) quer dos problemas de saúde pública, como as doenças
infecto‑contagiosas, comuns em casos de consumo por via endovenosa (Barbosa,
2009; IDT, 2009; OEDT, 2008). No nosso país a consagração legislativa da
redução de danos e o início da descriminalização do uso de todas as drogas e da
posse para consumo ocorreu no início do século XXI, o que permitiu proteger os
consumidores de procedimentos criminais e da consequente estigmatização,
passando a ser sancionados administrativamente (Lei nº 30/2000 de 29 de
novembro)2. Mesmo com o, recentemente instituído, Serviço de Intervenção nos
Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD)3, os programas de redução de
riscos e minimização de danos mantêm‑se como uma importante atribuição
(Decreto‑Lei n.º 17/2012 de 26 de janeiro).
Uma das mais distintivas características da redução de riscos prende‑se com o
seu caráter pragmático (Einstein, 2007; Fernandes, 2009; Parker, 2005; Quintas,
2006; Rovira & Hidalgo, 2003), privilegiando‑se uma abordagem de saúde
pública (O'Malley & Valverde, 2004; Zajdow, 2005). Tal abordagem foca‑se na
minimização dos potenciais danos das drogas e no evitamento de consumos
problemáticos (Fernandes, 2009; Fernandes & Ribeiro, 2002; Keene, 2001;
Parker, 2005; Percy, 2008; Romaní, 2003; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla
& Kelley, 2007; Zajdow, 2005), substituindo os megalómanos ideais da
abstinência pela hierarquização de objetivos (Einstein, 2007; Rovira &
Hidalgo, 2003). Apela‑se, assim, a uma noção de prevenção das drogas mais ampla
e abrangente nos seus propósitos, como a que é veiculada pelo mais recente
manual do EMCDDA (2011) e cujos objetivos passam por prevenir ou atrasar a
iniciação do uso de drogas, promover a cessação do consumo, reduzir a
frequência e/ou a quantidade do uso, prevenir a progressão para padrões de
consumo perigosos ou nocivos, e/ou prevenir ou reduzir as consequências
negativas do consumo (p. 26).
As medidas de redução de riscos e minimização de danos são também
caracterizadas por uma dimensão humanista, sendo privilegiadas estratégias não
culpabilizantes nem estigmatizantes (Fernandes, 2009; Fernandes & Ribeiro,
2002; O'Malley & Valverde, 2004; Quintas, 2006), por se acreditar que tal
estigmatização pode amplificar os riscos e danos associados às drogas,
nomeadamente, ao diminuir a probabilidade de os sujeitos procurarem apoio
formal (Keene, 2001). A decisão de usar substâncias psicoativas é, portanto,
respeitada, não se constituindo como critério de exclusão para o apoio formal
(Carvalho, 2007; Fernandes, 2009; O'Malley & Valverde, 2004; Romaní, 2003;
Rovira & Hidalgo, 2003; Zajdow, 2005).
Assiste‑se, com a redução de riscos e minimização de danos, a uma alteração dos
estatutos dos consumidores e dos profissionais (Fernandes, 2009; Romaní, 2003),
deixando estes últimos de ser encarados como os peritos no fenómeno (Einstein,
2007). A aposta recai num trabalho horizontal e na participação dos
consumidores nos esforços interventivos (Fernandes, 2009; Rovira & Hidalgo,
2003), sendo objetivadas as suas obrigações e clarificado o papel dos
profissionais (Einstein, 2007), além de se negociar uma série de medidas,
sociais e profilácticas entre ambos (Romaní, 2003, p. 441).
Com estas medidas, em contraponto com a lógica repressiva que enfatiza os
padrões problemáticos, alarga‑se o leque de destinatários, de objetivos e de
estratégias interventivas, abrangendo‑se não só os consumos problemáticos como
outros alternativos, que não requerem tratamento, incluindo os que cada vez
mais se verificam em contextos recreativos e no meio estudantil (Calafat,
Fernández, Juan, & Becoña, 2005; Deehan & Saville, 2003; IDT, 2009,
2010; Keene, 2001; OEDT, 2008, 2009). Em Portugal, o antigo IDT vinha sendo, a
par de algumas organizações não‑governamentais (Cf. Carvalho, 2007), um dos
principais organismos a atuar nestes meios, por exemplo, em festivais e em
semanas académicas, promovendo um maior conhecimento sobre as drogas e os seus
riscos e recolhendo dados sobre as necessidades de informação dos sujeitos e
sobre as estratégias interventivas que consideram mais eficazes (IDT, 2009,
2010). No entanto, no nosso país as intervenções em contextos recreativos ainda
não são sistematicamente implementadas, nem adotadas em todas as suas valências
(Barbosa, 2009; Fernandes et al., 2006).
Em Portugal os esforços em termos de redução de riscos e minimização de danos
continuam a incidir nos padrões de consumo problemáticos, não só em meio
natural como também prisional. Aposta‑se, sobretudo, em programas de
substituição opiácea e de troca de agulhas e seringas, assim como na promoção
da reintegração social dos consumidores, procurando desenvolver‑se as suas
competências sociais e alterar as suas frequentes condições de desemprego e de
sem‑abrigo (Fernandes, 2009; IDT, 2009, 2010; OEDT, 2008, 2009). A proximidade
deste trabalho é favorecida, desenrolando‑se cada vez mais no terreno, por meio
de equipas de rua, unidades móveis e grupos de auto‑ajuda (Fernandes, 2009;
IDT, 2009). Enfatiza‑se, ainda, a necessidade de intervir na prevenção das
recaídas, típicas nestes padrões de consumo e pouco trabalhadas, auxiliando os
consumidores no desenvolvimento de capacidades pessoais e sociais, bem como na
ativação de redes de suporte social efetivas (Keene, 2001; OEDT, 2009).
No que concerne a padrões de consumo alternativos aos problemáticos, o trabalho
de redução de riscos e minimização de danos vem ocorrendo maioritariamente por
via da intervenção em contextos recreativos. Esta ênfase crescente justifica‑se
pelo facto de tais contextos serem reconhecidos como palcos privilegiados do
uso de substâncias ilegais, frequentemente combinadas com álcool, e pela
preocupação que tal prática suscita (Calafat et al., 2005; OEDT, 2008; Rovira
& Hidalgo, 2003). Os principais propósitos de tais intervenções prendem‑se
com a promoção de mudanças nas normas e práticas de uso de substâncias ilegais
e legais, e com a minimização das possibilidades de surgirem danos associados
aos consumos (OEDT, 2008), criando as condições para uma festa mais segura
(Carvalho, 2007; Rovira & Hidalgo, 2003).
Nesta lógica, é comum a adoção de estratégias que visam informar os
frequentadores destes contextos acerca das drogas, suas consequências e
serviços de apoio, entre outros meios, através da divulgação de informação em
flyers, bilhetes de entrada e posters, assim como pela presença anunciada de
profissionais disponíveis para conversar e prestar esclarecimentos (Calafat et
al., 2005; Deehan & Saville, 2003; IDT, 2009; Rovira & Hidalgo, 2003).
Privilegiada é, também, a realização de testes de pastilhas, por se reconhecer
a frequente adulteração das substâncias ilícitas e a sua potencial perigosidade
(Calafat et al., 2005; Fernandes, 2009). Do mesmo modo, enfatiza‑se a formação
dos proprietários e dos profissionais de tais contextos acerca de questões
relacionadas com as drogas, os seus perigos, os cuidados que exigem ao nível
dos espaços e os modos de atuação em situações de emergência médica (Calafat et
al., 2005; Deehan & Saville, 2003; OEDT, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003).
O objetivo é também que, através destes agentes sociais, se consiga garantir as
condições de segurança dos espaços, como ventilação apropriada,
disponibilização gratuita de água potável, locais de descanso e ausência de
sobrelotação (ibidem). Além disso, pretende‑se conhecer as perceções e hábitos
de consumo destes profissionais, por se reconhecer o seu importante papel junto
dos indivíduos que frequentam os contextos recreativos (Calafat et al., 2005).
Uma aposta ainda recente, mas em crescimento, prende‑se com o fornecimento de
transporte para e dos locais de recreação noturna, de modo a promover
deslocações seguras para os seus frequentadores (OEDT, 2008). É de notar que em
Portugal se tem assistido, nos últimos anos, a um crescente investimento dos
esforços de investigação e intervenção centrados nos meios universitários,
designadamente pela atuação do IDT e do GIES (Grupo de Intervenção no Ensino
Superior) em celebrações das semanas académicas, nas quais se verifica uma
expressiva utilização de drogas (IDT, 2009).
Não obstante o amplo reconhecimento das vantagens das estratégias de redução de
riscos e minimização de danos admite‑se que estas encerram algumas limitações,
sobretudo por continuarem a enfatizar as dimensões negativas e problemáticas
dos consumos nas suas representações sobre os mesmos e, consequentemente, nos
seus modos de atuação (Rovira & Hidalgo, 2003). Antecipa‑se mais eficaz o
investimento numa abordagem de gestão dos prazeres e dos riscos do consumo que
aceite as escolhas dos indivíduos e os capacite para uma gestão mais informada
e efetiva desta prática, o que requer que a informação seja trabalhada também
tendo em vista uma perspetiva do prazer, nomeadamente para estimular o seu
envolvimento e assegurar a consideração dos seus pontos de vista (Romaní, 2008;
Rovira & Hidalgo, 2003). A este propósito, Romaní (2008, p. 101) refere que
talvez seja o momento, pelo menos para o trabalho com os jovens, de não falar
tanto da redução de danos, que é uma terminologia, a do sofrimento, que os
deixa muito afastados, mas mais da gestão dos prazeres, que é o que mais vivem
e lhes importa.
Boas práticas de intervenção no fenómeno das drogas
Partindo do que foi exposto nos tópicos anteriores pretendemos neste capítulo
final enfatizar aquilo que consideramos serem boas práticas de intervenção no
fenómeno das drogas.
Na nossa perspetiva, estas boas práticas sustentam‑se em dois pilares centrais:
(i) abranger todos os sujeitos que utilizam substâncias psicoativas; e (ii)
envolver todos os consumidores nos esforços interventivos.
Para que tal seja possível, cremos que o primeiro passo é ter vontade de ver
mais além do que aquilo que vem sendo mostrado pelos discursos dominantes, quer
da sociedade em geral quer da comunidade científica. De facto, apesar de estes
permanecerem focados nas dimensões negativas e problemáticas do consumo de
drogas (e.g., Fendrich & Johnson, 2005; O'Malley & Valverde, 2004;
Stevens, 2007), são cada vez mais os trabalhos que discutem padrões
alternativos de uso de drogas, sob as designações de não problemáticos' (Cruz,
2011; Pallarés, 1996), não dependentes' (Keene, 2001), funcionais' (Smith
& Smith, 2005) e saudáveis' (Whiteacre & Pepinsky, 2002). Em tais
padrões, os sujeitos mostram‑se capazes de controlar os seus consumos sem
necessidade de intervenção externa, em grande medida pela adoção de cuidados de
gestão do uso das drogas (e.g., Cruz, 2011; Fernandes & Ribeiro, 2002;
Pallarés, 1996)4 .
Para que as práticas de intervenção nas drogas sejam efetivas não é possível
continuar a ignorar tais padrões de consumo, pois ao fazê‑lo estamos a
contribuir para que os sujeitos que não se revêem nas noções de consumidor
problemático e toxicodependente se afastem dos esforços interventivos. Pelo
contrário, temos de aprender com estes sujeitos o que é necessário para manter
consumos não problemáticos' de modo a, a partir daí, se trabalhar com os
consumidores problemáticos. Cremos que o propósito central da intervenção no
fenómeno das drogas deve ser o de auxiliar os sujeitos a utilizar estas
substâncias das formas menos prejudiciais possíveis, por ser mais pragmático e
proveitoso do que trabalhar para a abstinência (Cruz & Machado, 2010;
Einstein, 2007; Gamella & Roldán, 1999; Pallarés, 1996; Percy, 2008; Rovira
& Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007). Tal pragmatismo, a par do seu
caráter humanista e da eficácia que tem demonstrado no controlo do crime e dos
problemas de saúde pública, é o principal argumento que nos leva a valorizar a
redução de riscos e minimização de danos como uma boa prática de intervenção
nos consumos, quer problemáticos quer não problemáticos'.
Cremos, todavia, que não basta proporcionar aos consumidores este trabalho de
redução de riscos, sendo necessário envolvê‑los nos esforços interventivos, sob
pena de estes não serem eficazes. A título de exemplo, estudos com sujeitos que
realizaram tentativas de tratamento da dependência mostram que estas tendem a
falhar, conduzindo a recaídas, quando os próprios não as desejam e quando não
estão motivados (Cruz, 2011; Pallarés, 1996; Torres, Lito, Sousa, & Maciel,
2008). Tal envolvimento implica não demitir os sujeitos das suas
responsabilidades, incluindo sobre os seus consumos, e estimular um estilo de
atribuição/locusde controlo interno (Einstein, 2007; Fernandes, 2009; Rovira
& Hidalgo, 2003; Szasz, 1992; Walters, 2000; Whiteacre & Pepinsky,
2002). Encaramos, aliás, como altamente criticáveis perspetivas mais
tradicionais que tratam os consumidores como doentes e que lhes transmitem a
mensagem de que não são capazes de, sem apoio externo, lidar com a sua doença'
de utilização de substâncias ilegais. Não negamos a existência de situações em
que o apoio externo é necessário, mas defendemos ser mais proveitoso estimular
a responsabilidade pelos consumos, mesmo antes da sua eventual iniciação (Cruz,
2011).
É neste sentido que valorizamos a promoção de um mecanismo individual de
autocontrolo/autorregulação dos consumos como uma boa prática de intervenção no
fenómeno das drogas, à semelhança do que defendem outros autores (Castel &
Coppel, 1991; Cohen, 1999; Fernandes & Ribeiro, 2002; Rovira & Hidalgo,
2003; Szasz, 1992). Privilegiar uma política não proibicionista afigura‑se‑nos
como a melhor forma de estimular o autocontrolo dos consumidores, pelo que
propomos que: (i) nos casos em que o consumo não prejudica de forma
significativa nem o próprio nem terceiros, se respeite a escolha dos sujeitos,
procedendo apenas à sua informação, nomeadamente sobre os potenciais prejuízos
das drogas e sobre o modo de os evitar; (ii) quando os consumos acarretam
consequências negativas para os sujeitos, o sistema de apoio formal proporcione
as necessárias estruturas de suporte, clínicas e sociais; e (iii) nos casos em
que das práticas relacionadas com as drogas resultam prejuízos para terceiros
(e.g., sinistralidade rodoviária pela condução sob o efeito destas substâncias,
envolvimento em práticas criminais para financiar os consumos), os indivíduos
sejam alvo de medidas sancionatórias, de natureza civil ou criminal5. A
potenciação do referido mecanismo de autocontrolo/autorregulação requer também,
a nosso ver, uma efetiva educação sobre e para os consumos (que capacite os
sujeitos para a tomada de decisões informada)6 e um trabalho de desenvolvimento
e treino de competências pessoais e sociais (e.g., Rovira & Hidalgo, 2003).
Além disso, para se conseguir fomentar o interesse e o envolvimento dos
consumidores nos esforços interventivos, julgamos essencial atender tanto aos
riscos como às potencialidades (sobretudo o prazer) das drogas, já que o
consumo parece resultar do balanço entre ambos (Cruz, 2011; Kelly, 2005; Levy
et al., 2005; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián &
Valenzuela, 2009). Num estudo anterior (Cruz, 2011) equacionámos em que medida
a falta de eficácia das políticas oficiais das drogas não é alimentada pela
discrepância entre um discurso público que se centra nos seus prejuízos
(O'Malley & Valverde, 2004; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián &
Valenzuela, 2009), ao mesmo tempo que os consumidores (funcionais) valorizam a
sua utilização e o prazer que assim obtêm. Esta discussão pública sobre as
drogas pode ser, assim, sentida pelos referidos consumidores como falseada,
contribuindo para que se desliguem desse debate, além de não ajudar a uma
compreensão adequada dos motivos e das experiências, de pelo menos parte, dos
consumidores (Cruz, 2011). Com efeito, identificamos como boa prática de
intervenção nas drogas a abordagem que aposta no trabalho de gestão dos
prazeres, não se limitando à gestão dos riscos, proposta por autores como
Romaní (2008) e Rovira e Hidalgo (2003).
Na nossa perspetiva, o envolvimento dos consumidores nos esforços interventivos
implica, também, a adoção de estratégias que permitam realmente chegar até
eles, o que nos leva a valorizar, como boa prática de intervenção nas drogas, o
trabalho de proximidade e em contexto natural (e.g., Fernandes & Ribeiro,
2002), tanto nos casos de consumos problemáticos como não problemáticos'.
Afigura‑se‑nos menos produtiva a intervenção que decorre em gabinete, por se
tratar de um contexto pouco apelativo e por não facilitar a generalização das
aprendizagens para as situações reais. O trabalho de proximidade implica,
obviamente, que se vá ao encontro dos consumidores, o que se parece revestir de
especial dificuldade no caso de consumos não problemáticos'. Dados de estudos
anteriores sugerem que estes padrões de utilização de drogas, além de
envolverem maiores cuidados para a sua ocultação, tendem a ser algo fluidos em
termos de localização espacial (cf. Cruz, 2011). Neste sentido, mais do que
ocorrer em contextos específicos, tendem a acontecer em circunstâncias mais
especiais e festivas que se desenvolvem tanto em espaços públicos, como
semi‑públicos e privados (e.g., Carvalho, 2007; Cruz, 2011; San Julián &
Valenzuela; Silva, 2005).
Com efeito, consideramos que apostar no desenvolvimento da intervenção através
de pares é uma boa prática de intervenção no fenómeno das drogas, por facilitar
o acesso a contextos e a consumidores mais difíceis de alcançar (Cruz, 2011;
Pallarés, 1996; Young, 1971). Esta abordagem estratégica implica o
estabelecimento (e contratualização) de parcerias com determinados sujeitos,
que se mostrem disponíveis, identificando‑se as responsabilidades e
contrapartidas para todos os intervenientes, de modo a conseguir o seu efetivo
envolvimento e responsabilização7. Com tais sujeitos desenvolver‑se‑ia um
trabalho horizontal, de partilha e construção de informação em relação às
substâncias psicoativas e a cuidados de gestão dos consumos consentâneos com a
manutenção de utilizações não problemáticas', capacitando‑os para veicular e
trabalhar esta informação junto dos seus pares. No caso de colaboradores
consumidores tal estratégia visaria, também, dotá‑los de competências para
regular os seus usos de drogas, de modo a manter o ajustamento nas várias áreas
de vida. Seria importante manter encontros regulares para ir monitorizando e
atualizando o trabalho em curso, nomeadamente a partir do feedback obtido em
situações da vida real. Esta intervenção através dos pares constituiria,
igualmente, uma forma de estimular o desenvolvimento de mecanismos de controlo
social informal, cuja relevância é amplamente reconhecida (Castel & Coppel,
1991; Cohen, 1999; Matos & Simões, 2008; Quintas, 2006; Reuband, 1995;
Walters, 2000; Young, 1971), uma vez que as vivências com consumidores
constituem um importante meio de aprendizagem sobre as drogas e de
desenvolvimento das conceções de risco dos sujeitos (Cruz, 2011; Gamella &
Roldán, 1999; Kelly, 2005; San Julián & Valenzuela, 2009; Shukla &
Kelley, 2007). Tais colaboradores operariam junto dos seus pares como efetivos
meios de aprendizagem, tanto direta, pela partilha de informação, como
indireta, pela observação de comportamentos no caso de serem eles próprios
consumidores.
Para a concretização de um trabalho de proximidade parece‑nos igualmente
essencial que os técnicos estabeleçam com os consumidores uma relação de
empatia, de valorização das suas opiniões e de respeito pelas suas escolhas
(nomeadamente a de utilizar drogas), não patologizante, nem estigmatizante.
Defendemos, assim, a necessidade de promover um trabalho horizontal e
interativo, encarando os consumidores como peritos no tema e responsáveis pelos
seus comportamentos e pela mudança (e.g., Fernandes, 2009; Whiteacre &
Pepinsky, 2002)8. Importa, neste sentido, conhecer as condições concretas de
vida e de consumo destes sujeitos para identificar as suas necessidades
específicas e adaptar respostas interventivas mais eficazes (Fernandes et al.,
2006; Goren, 2005; Moritz, 2005).
A importância de envolver os consumidores nos esforços interventivos e de lhes
dar liberdade para viver e discutir os seus consumos justifica‑se também, a
nosso ver, como forma de os incentivar a procurar suporte especializado quando
acham que dele necessitam e a ser francos na informação que prestam nesses
contextos (Eade, 2005)9. Julgamos, todavia, que tal só é possível se alterarmos
as nossas conceções sobre as drogas ilegais, deixando de as usar como um
depósito de moralizações e de estigmas e passando a encará‑las de uma forma
mais naturalizada' e não criminalizadora. Neste sentido, afigura‑se‑nos mais
efetivo optar pela descriminalização do consumo pessoal e pelo trabalho de
redução de danos, em detrimento da anterior política criminalizadora. De facto,
a experiência portuguesa, acumulada desde o início do século XXI, tem
evidenciado as vantagens de se apostar nesta abordagem alternativa,
nomeadamente por ter contribuído para uma expressiva diminuição do uso de
substâncias ilegais, testemunhando‑se no nosso país uma das mais baixas taxas
europeias de prevalência dos consumos, à exceção dos de heroína (Greenwald,
2009; IDT, 2009; Poiares, 2009).