Moralizar para Identificar: Cenários da investigação Social da Paternidade
Machado, Helena (2007), Moralizar para Identificar: Cenários da investigação
Social da Paternidade, Porto, Edições Afrontamento.
Maria do Céu da Cunha Rêgo
Instituto Europeu para a Igualdade de Género
maria.rego@dgaccp.pt
Gostamos de invocar a Constituição fundadora do nosso Estado de direito
democrático.
Gostamos de referenciar a dignidade da pessoa humana como base da República.
Gostamos de contrapor a normatividade jurídica ' libertadora de homens e
mulheres como sujeitos de direito iguais e autónomos ' à normatividade social '
opressiva pelo determinismo dos papéis sociais de género, indutores de
desigualdade estrutural nos indicadores do desenvolvimento humano das mulheres
e dos homens.
E depois, a propósito de uma investigação sociológica sobre a investigação
judicial da paternidade, vemos como a intervenção dos tribunais pode tornar
distante o direito da vida: «A ideologia de protecção dos direitos e interesses
dos menores que rodeia tanto a legislação como as práticas judiciárias que
concretizam a investigação judicial de paternidade afiguraram-se como podendo
constituir um exercício de poder institucional subtil e eficaz de monitorização
de comportamentos femininos considerados atípicos e duplamente anómalos, por
dizerem respeito não só a situações em que a procriação ocorreu fora do
casamento formal como também àqueles em que é legalmente desconhecida a
paternidade de um determinado indivíduo. O objectivo principal foi captar os
sentidos e significados construídos pelo aparelho jurídico português, em
particular pelos magistrados do Ministério Público e pelos juízes, no que toca
à paternidade, à maternidade, à sexualidade, à procriação e, em última
instância, às normas e valores que idealmente devem regular as relações
íntimas entre mulheres e homens» (p. 10).
A autora começa por delinear a evolução histórica da investigação judicial da
paternidade no direito português, interpretando a actualidade no cruzamento do
género com o direito, a ciência e a cidadania e tendo em conta as teorias
feministas do direito. O seu estudo incidiu na análise de todos os processos
investigação judicial da paternidade existentes no tribunal escolhido, o que
abrangeu mais de um século ' de 1893 a 2000 ' e 1327 casos. Os dados são
exaustivamente trabalhados em função da década, dos resultados, da idade, do
estado civil e da profissão da mãe e do pretenso pai, e interpretados à luz de
inúmera produção teórica portuguesa e estrangeira. E a autora conclui sem
hesitar que «os discursos dos magistrados produzidos ao longo de mais de um
século revelam a pretensão exclusivista da instância jurídica no que diz
respeito à regulação das relações de filiação ( ) O controlo social sobre o
comportamento sexual e procriativo das mulheres levado a cabo pelo aparelho
jurídico é, muitas vezes, dificilmente perceptível e, na generalidade,
extremamente eficaz, sendo relativamente aceite, de modo passivo, pela
esmagadora maioria dos cidadãos. A análise dos discursos produzidos pelos
magistrados permite apreender um determinado quadro cultural que vincula a
maternidade e a paternidade ao casamento, nomeadamente ao definir como
atributos desejáveis da feminilidade a fidelidade da mulher a um só parceiro
sexual (preferencialmente o marido) e o espaço privado como a esfera própria de
actuação da mulher (preferencialmente o espaço domestico). Deste modo, o
sistema judicial veicula oposições binárias entre mulher e homem pelas quais a
identidade da mulher é construída por referência a elementos relacionados com o
seu comportamento sexual e procriativo, enquanto que os comportamentos
masculinos são colocados na esfera do económico, procurando-se avaliar, por
exemplo, se o pretenso pai alguma vez revelou indícios de paternidade,
nomeadamente contribuindo para o sustento financeiro do indivíduo cuja
paternidade é investigada ou de sua mãe. Esta separação de papeis sexuais
remete-nos para a função de cristalização de diferenças de género levada a cabo
pelos tribunais. A reafirmação de assimetrias e de desigualdades entre mulheres
e homens socorre-se de técnicas de naturalização das diferenças sexuais e de
funções parentais» (p. 161-162).
E sobre isto o que diz a lei?
* nos termos do artigo 5.º da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, «Os Estados Partes tomam todas as medidas
apropriadas para: a) Modificar os esquemas e modelos de comportamento
sociocultural dos_homens_e_das_mulherescom vista a alcançar aeliminação dos
preconceitos e das práticas costumeiras, ou de qualquer outro tipo, que se
fundem na ideia de inferioridade ou de superioridade de um ou de outro sexo
ou de um papel estereotipado dos homens e das mulheres; b) Assegurar que a
educação familiar contribua para um entendimento correcto da maternidade como
função social e para o reconhecimento da responsabilidade_comum_dos_homens_e
das_mulheres na educação e desenvolvimento dos filhos, devendo entender-se
que o interesse das crianças é consideração primordial em todos os casos»;
* nos termos do artigo 16.º da mesma Convenção, «1 Os Estados Partes
asseguram, com base na igualdade_dos_homens_e_das_mulheres: d) Os mesmos
direitos e as mesmas responsabilidades enquanto pais, seja qual for o estado
civil, para as questões relativas aos seus filhos; em todos os casos, o
interesse das crianças será a consideração primordial»;
* nos termos do artigo 18.º da Convenção dos Direitos da Criança, «1. Os
Estados Partes diligenciam de forma a assegurar o reconhecimento do princípio
segundo o qual ambos_os_pais têm uma responsabilidade comum na educação e no
desenvolvimento da criança. A responsabilidade de educar a criança e de
assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso
disso, aos representantes legais. O interesse superior da criança deve
constituir a sua preocupação fundamental»;
* nos termos do artigo 68.º da Constituição, «1. Os pais e as mães têm direito
à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível
acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia
de realização profissional e de participação na vida cívica do país. 2. A
maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes».
Para além de considerações fundamentadas sobre a prova científica, a
desigualdade de acesso à mesma e o não questionamento sobre a respectiva
autoridade, insiste a autora no sentido de que «o impacto da variável género na
formulação de sentenças judiciais pode surgir interrelacionada com outras
variáveis que não são negligenciadas pelas abordagens feministas do direito,
nomeadamente a idade, o estado civil, a raça, a classe social e a profissão. No
entanto, de acordo com as correntes feministas, o cerne do processo de tomada
de decisão judicial reside na divisão sexual dos papéis sociais. Encontrámos
aqui uma das mais ostentatórias e profundas contradições da retórica jurídica,
que, baseando-se no princípio fundamental da igualdade dos indivíduos perante a
lei, produz e reafirma desigualdades sociais (de género, de classe, de etnia)
previamente existentes na sociedade, como seja na esfera da família» (p. 118).
Ou seja, é ainda com base na normatividade social e não na normatividade
jurídica que as pessoas são tratadas pelos tribunais, afinal os agentes que
devem pôr em prática a normatividade jurídica.
E no entanto, também no âmbito de compromissos políticos da comunidade
internacional, «os Estados devem «Elaborar politicas, inter alia, na esfera da
educação, para mudar as atitudes que reforçam a divisão do trabalho com base no
género, com vista a promover o conceito de partilha das responsabilidades
familiares no que respeita ao trabalho doméstico e, em particular, no que se
refere ao cuidado das crianças » (Plataforma de Pequim § 179).
Em meu entender ' e a autora também o refere quando conclui pela necessidade de
reforço da formação dos magistrados (p. 230) ' isto prova que é de muito
duvidosa eficácia mudar as leis em áreas que ponham em causa o senso comum, sem
acompanhar a mudança de uma reflexão crítica de natureza formativa sobre o que
lhe deu origem. As pessoas ' incluindo magistrados e magistradas ' repetem
modelos de comportamento tidos como positivos e sistematicamente validados
pelos pares, em vários contextos. Se não forem expressamente convidadas a
racionalizar e a concretizar esses comportamentos à luz das normas base
enquadradoras do sistema, em que avulta a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e a sua proclamação de que todas as pessoas ' e por isso todos os
homens e todas as mulheres ' são livres e iguais em dignidade e direitos,
continuarão a reproduzir acriticamente tais comportamentos, com a consciência
ingénua de que a sua actuação é óbvia ou, como se diz em direito, «sem
consciência da ilicitude». Porque, de direito (Constituição, Artigo 3.º '
Soberania e legalidade ' 3. A validade das leis e dos demais actos do Estado,
das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas
depende da sua conformidade com a Constituição.) e de facto, é ilícita a
interpretação das normas jurídicas pelo órgão de soberania «Tribunais»
(Constituição, Artigo 110.º ' Órgãos de soberania ' 1. São órgãos de soberania
o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os
Tribunais), sem que seja expressamente tido em conta que a promoção da
igualdade de homens e mulheres é uma tarefa fundamental do Estado
[Constituição, Artigo 9.º ' Tarefas fundamentais do Estado ' São tarefas
fundamentais do Estado: h) Promover a igualdade entre homens e mulheres].
Este estudo poderia ser um magnífico pretexto para juntar magistrados,
magistradas, cientistas sociais e especialistas em igualdade de género que a
transversalizam, como método, nas respectivas disciplinas num debate
contraditório com contraditório e aprofundamento sobre a interpretação e a
aplicação do direito sem o viés da desigualdade induzida pelos papéis sociais.
Talvez a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres pudesse dinamizar
um tal debate, em cooperação com a Helena Machado, a autora da obra que aqui se
comenta, com a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, com o Centro de
Estudos Sociais, com o Centro de Estudos Judiciários, com Faculdades de Direito
que trabalham sobre o tema, com outras universidades que se dedicam a estudos
de género ou sobre a igualdade de género.
Este é um trabalho sobre a realidade. Que é dura para quem considera que o
direito é uma técnica para a justiça e a paz.
No que me respeita, há muito que defendo que o direito liberta, que o direito é
factor de equilíbrio social e de empoderamento para quem tem menos recursos.
Não me conformo com a utilização do direito para desvirtuar a justiça ou para
enfraquecer a democracia. Apenas por um currículo que persiste em evidenciar-se
deficitário na formação de operadores judiciários.