Introdução: Um lugar feminista queer e o prazer da confusão e fronteiras
Introdução
Um lugar feminista queer e o prazer da confusão e fronteiras
João Manuel de Oliveira e Conceição Nogueira
Centro de Investigação e Intervenção Social/ISCTE
Escola de Psicologia, Universidade do Minho
As profundas alterações conceptuais que vieram a reposicionar o modo como o
género é constituído socialmente surtiram efeitos inesperados na teoria
feminista. Com o desenvolvimento do pensamento feminista, os adquiridos
conceptuais que dividiam o sexo e o género seguindo os ditames do nature versus
nurture debate (o debate natureza versus cultura), em que o sexo era todo
biologia e o género todo cultura, sofreram profundas alterações com as
propostas assentes na ideia de que o sexo e a sua materialidade só têm sentido
no quadro de uma
inteligibilidade imposta pelas normas de género. Uma das grandes marcas
conceptuais deste projecto feminista é a grande desconfiança em relação à
essencializada e quintessencial figura da «mulher» enquanto «sujeito» do
feminismo, criticada pela sua homogeneização de todas as mulheres a uma
figuração que ignora a heterogeneidade das mulheres e as subsume a uma
abstracção.
As propostas assentes na performatividade permitiram introduzir as análises que
consideram o modo como o poder reiterativo dos discursos produz e constitui os
fenómenos que regulam, como mostra a obra de Judith Butler. Assim, deixa de ser
possível pensar a materialidade dos corpos, sem as normas que regulam essa
materialidade e lhes atribuem significado. Para Butler, o género opera num
sistema de normas e as performances de género partem dessas normas para se
concretizarem em consonância ou para as tentarem ressignificar, no caso de
performances subversivas de género como sejam o drag ou as afirmações queer.
Esta perspectiva da performatividade implica pois uma particular atenção ao
modo como as subjectividades se constroem a partir de normas. No caso do
género, estas normas incluem a constituição de identidades, tidas como
essenciais, constantes e imutáveis, assentes num esquema binário e dimórfico
que as constrói em masculino e feminino. Mas incluem também um regime de
heterossexualidade hegemónica, constitutivo desta ordem de género e que regula
a produção de sujeitos sexualmente diferenciados e heterossexuais.
É no plano da contestação a esta heteronormatividade que surgem as contestações
queer (em inglês, pode ser traduzido como estranho, esquisito, mas também como
um insulto dirigido a homossexuais e trans). Este termo que é inicialmente uma
injúria visa interpelar e inferiorizar quem por esse termo é nomeado. A
ressignificação a que esse termo foi sujeito implicou uma reapropriação da
historicidade desse termo, citando esse passado injurioso, mas através da
ressignificação, o termo passa a ter uma carga de contestação colectiva, como
evidencia também Butler.
Teoricamente o termo queer é uma marca de suspeita crítica face aos termos gay
e lésbica. Uma suspeita que vem da consideração sobre as identidades serem
vistas como essenciais e fixas, mas também das categorias teóricas que decorrem
destas identidades. A proposta é que o conceito queer possa desestabilizar as
certezas da teoria. Em certa medida, @ queer é uma estratégia de resistência,
permitindo a recusa das identidades fixas de gay/lésbica e a criação de uma
suspeição generalização em relação ao binarismo que a ordem de género
heterossexual introduz.
As perspectivas queer que se vão desenvolver vão manter a recusa da fixidez
identitária, a denúncia da ordem de género heterossexual e criticar os
processos naives de constituição de sujeitos que encontramos na psicologia,
psicologia social e sociologia, por não tomarem em conta as relações de poder e
as normas a partir das quais nos tornamos sujeitos. Num debate que é, acima de
tudo, transdisciplinar são assim discutidos os fundamentos das teorias que
deram origem aos estudos de género e aos feminismos contemporâneos.
É aproveitando este caminho, que foi sendo feito por estas propostas
conceptuais, que se inicia a proposta para o dossier temático que se segue.
Propusemos um dossier que examinasse os processos de constituição do género, na
confluência das perspectivas feministas e das perspectivas queer. Este projecto
tem como companheiro um projecto anterior, sob a direcção de Ana Cristina
Santos, um número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais sobre
«Estudos «queer»: Identidades, contextos e acção colectiva». Pretendemos
organizar este, na Ex-aequo, no sentido de clarificar as convergências e
divergências entre os feminismos críticos e a teoria queer.
Os primeiros três artigos relacionam-se com o feminismo queer e com a crítica
às disciplinas. Um tema genérico aos três poderia ser a Crítica Queer:
feminismos e os saberes. O primeiro artigo da autoria de João Manuel de
Oliveira, Pedro Pinto, Cristiana Pena e Carlos Gonçalves Costa revisita os
feminismos e a teoria queer, propondo os feminismos queer como a condição para
a viabilidade de um projecto feminista, crítico da diferença sexual enquanto
episteme e valorizador das múltiplas alianças que se podem construir no plano
conceptual desta inter-relação. Esta revisitação implica um trabalho
genealógico e crítico, a que os autores procedem como forma de tornar
conhecidas as valências destas propostas para uma teoria do género assente nas
multitudes queer e profundamente crítica da diferença sexual. O trabalho de
Salomé Coelho parte de pressupostos semelhantes, mas imbrica-se mais
profundamente na obra de Beatriz Preciado, que analisa detalhadamente,
mostrando o modo como os feminismos queer permitem um re-enquadramento
conceptual de questões que outros feminismos trataram como tabu ou mesmo crime,
como é o caso da pornografia, que a autora analisa. Numa perspectiva crítica da
psicologia lésbica, gay, bissexual, transsexual, transgénero e intersexo,
Victoria Clarke e Elizabeth Peel oferecem-nos um contributo para uma
queerização cautelosa dessas psicologias, mostrando as vantagens e as
desvantagens dessa abordagem. As autoras ilustram as valências das perspectivas
queer enquanto manancial crítico e renovador das disciplinas, sem contudo
abdicarem das cautelas políticas em relação aos efeitos da queerização.
Um segundo bloco de textos poderia denominar-se de Praxis Queer e
Performatividade, pois dedica a sua atenção a estudos empíricos e não é tão
centrado no estrito debate teórico. O primeiro artigo deste bloco é de
Francesca Rayner que nos oferece uma leitura da peça de Sarah Kane «Cleansed»,
onde se tematiza a relação entre as performances de género e a violência.
Assim, neste trabalho, a análise de Rayner mostra como a falha em cumprir a
performance de género implica consequência violentas. Já no domínio da vídeo-
arte, o contributo de Teresa Furtado permite mapear o modo como determinados
contributos de vídeo-artistas mulheres se constituem como estratégias de
contestação das categorias de género e de transgressão dos limites que o
patriarcado lhes impõe.
A pesquisa de Ana Brandão sobre as identidades de mulheres lésbicas portuguesas
mostra como as suas narrativas recorrem a uma noção identitária que na maioria
dos casos poderia ser descrita como essencialista. Outras entrevistas, mais
associadas a mulheres de classes sociais mais elevadas e com maiores recursos
simbólicos, apelam também a explicações mais construtivistas. O cruzamento a
que a autora procede entre classe social e identidade ilumina estas diferentes
formas de apresentação do self.
O trabalho de Ana Cristina Santos traz-nos uma contribuição no plano da análise
do movimento LGBT em Portugal. A autora discute as performatividades queer
dentro do movimento e o modo se coadunam com exigências e expectativas face à
esfera pública. Assim, a autora avança com a hipótese de que o próprio
activismo LGBT apresenta algumas características decorrentes de ideologias
heteronormativas, equacionando esta leitura com questões de orientação
estratégica do movimento. No plano da performatividade do género, mas no espaço
da escola, Maria do Mar Pereira apresenta um estudo em que a negociação do
género entre jovens de uma turma do 8.º ano é estudada a partir de uma
perspectiva performativa. Esta etnografia feminista encara o género não como um
produto acabado, fruto da socialização, mas como um processo em curso,
permanentemente inacabado.
Um último bloco, de textos curtos, com carácter testemunhal e ligados a
experiências de intervenção poderia ser denominado de Guerrilha Feminista e
Queer. Para esta secção, pedimos a associações LGBT e a activistas queer a sua
contribuição. Chegaram-nos estes três textos, ricos no modo como problematizam
as questões teóricas e as práticas de intervenção queer e feministas. Abrimos
com um texto de Marisol Ramírez Fernández e Mónica Arana Serrano que nos falam
da sua experiência de organização da LadyFesta de Bilbao, uma festa feminista e
lésbica, assente na autogestão e no trabalho político. Regressamos a Portugal,
onde pelas mãos de Bruno Maia, Patrícia Louro e Sérgio Vitorino (Panteras
Rosa), é apresentada uma visão do movimento LGBT português e a relação entre as
questões queer e as práticas políticas, criticando aquilo a que denominam da
política do possível. Encerramos esta secção e parte propriamente temática
deste número com um texto de Cristiana Pena, sobre a sua experiência
autobiográfica de activismo feminista e queer digital que termina com a ideia
de que no espaço da internet é possível construir autoficções políticas que
transgridem as fronteiras do género.
Após a apresentação deste número, cumpre-nos apenas o regozijo. Enquanto
coordenador@s do dossier «Fazer o Género: performatividade e perspectivas
queer», queremos agradecer tanto o trabalho d@s autor@s, como das pessoas que
fizeram a revisão e da direcção da revista pelo apoio inestimável que nos deu.
Queremos salientar a diversidade de trabalhos apresentados e a evidência
inquestionável que oferecem de que tanto as perspectivas performativas como as
perspectivas queer fazem parte das pesquisas sobre estudos de género, estudos
feministas e estudos sobre a sexualidade em Portugal. Trata-se de um regozijo
da ordem do prazer na confusão de fronteiras, como poderia dizer Donna Haraway.
Apresentamos assim este número e queremos terminar deixando umas palavras de
ordem já muito ouvidas nas manifestações queer, a que acrescentamos a nossa
marca feminista, mas que vem a propósito desta indisciplina queer feminista
crítica que quisemos trazer às leitoras e leitores da Revista Ex-aequo:
We're here! We're feminist queer! Get used to it!1
Notas
1 Estamos aqui! Somos/Estamos Feministas Queer! Habituem-se!