A dimensão do cuidar e a ressignificação do espaço público no pensar e agir de
Maria de Lourdes Pintasilgo
[…] a liberdade não está num "depois", mas está no
próprio cerne da situação que vivemos.
1. Cuidar e espaço público aparecem-me como dois pontos de energia a
atravessar, cruzando-se, o pensamento e a intervenção pública de Maria de
Lourdes Pintasilgo. Conceptualmente, surgem no seu discurso como dois topoi a
estruturar ou duas noções-caudal a permear a sua visão política, ao mesmo tempo
que se multiplicam e dividem por outras ideias e propostas. São matriciais no
seu contributo para a redefinição de uma política que põe em causa as
referências habituais.
Em si mesmas, não são palavras novas; pelo contrário, cada uma à sua maneira
entra na história das ideias, de modos e com usos diversos; mas não é aqui o
lugar para essa arqueologia. O certo é que, em termos de visão política, Maria
de Lourdes Pintasilgo introduziu nelas uma força inovadora.
Cabe-me apresentar, neste texto, alguns elementos a respeito das noções cuidare
espaço público no próprio pensamento e intervenção de MLP.
Faço-o, assumindo naturalmente um olhar parcelar, o meu. Mas ' a partir de que
lugar é que aqui falo? (Assumo esta introdutória clarificação da voz que fala,
que o conhecido intelectual e jesuíta francês Michel de Certeau propunha e que
MLP tanto valorizava). De que lugar falo?
Em parte, falo do lugar de quem, durante cinco anos, no Terraço do Graal e
ainda em vida de Maria de Lourdes Pintasilgo, congregou um grupo ' diverso,
flutuante e coeso ' com jovens e adultos, para estudo e discussão do livro (de
que mais adiante falarei): Cuidar o Futuro. Um livro com assinatura colectiva,
mas com a inconfundível visão e a marca de mão de Maria de Lourdes Pintasilgo '
onde o «cuidar» é apresentado como cerne da atitude política, conferindo maior
exigência à função política do espaço público.
Falo também de um lugar de proximidade ' a de quem durante mais de 40 anos
conviveu com a pessoa, as ideias, projectos, zangas, sonhos, frustrações, as
realizações da Maria de Lourdes, em Portugal e em contextos internacionais.
E, neste momento, falo ainda de outro lugar: um lugar que, quase
artificialmente, procurei abrir (quem sabe se o consegui), algo distanciado,
não por frieza analítica, mas outro, capaz de tornar-se condição duma nova
escuta (dos escritos e empenhamentos da Maria de Lourdes) ' como se fosse uma
primeira vez.
Reli agora, e também li por primeira vez, vários textos seus sobre estas
matérias. Além dos ensaios publicados, alguns dos textos disponíveis no Arquivo
MLP online, simpaticamente seleccionados por uma das pessoas da Fundação Cuidar
o Futuro, de entre tantos mais que lá figuram e outros que aguardam ainda
digitalização.
Essa leitura levou-me a uma (quase) evidência: as duas noções que hoje aqui nos
convocam, usadas por Maria de Lourdes Pintasilgo entre os anos 90 e os 2000,
correspondem a preocupações suas que vêm de longe, de muito longe, dos inícios
da sua vida activa: anos 50. E é sobretudo isso que gostaria de aqui trazer,
apontando alguns dos marcos que irrompem numa sequencialidade do pensamento.
Dessa irrupção, aliás, dá conta a própria MLP, em 1985:
o que penso cria o edifício que dá consistência ao meu pensamento,
para, logo em seguida, esse edifício, essa estrutura criada me
obrigar a uma nova reflexão, a uma nova maneira de encarar as coisas,
a uma nova percepção do mundo. Nessa nova percepção surgirá a chispa
[ ] que por seu turno revelará o caduco do que acabara de criar e,
desmantelando o existente, revelará algo radicalmente novo. E assim
por diante. (Pintasilgo, 1985: 18)
De facto, a experiência de quem a lê é a de testemunhar um pensamento em acto
ou o pensamento no movimento mesmo de pensar-se.
Nesse movimento, Maria de Lourdes Pintasilgo acolhe elementos vindos de muitos
lados ' do pensamento científico, filosófico, político ou teológico, antigo e
actual. (Só nos 23 textos online que li ' muitos deles longos ensaios ' cruzei-
me com cerca de 30 nomes das mais variadas áreas ' nomes manuscritos na margem
dos textos, a lápis ou a tinta.)
Sem quaisquer mecanismos miméticos ou tendência «citativa», o seu trabalho é o
de pensar com, entretecendo redes entre elementos diversos ou até
contraditórios, que a pesquisa e o estudo lhe trouxeram ao encontro.
Participante duma epistemologia científica, como engenheira, não transpõe
conceitos directamente de um para outro contexto, antes transfere percepções e
opera por teias de analogias, num modo por si tão apreciado como o de pensar
«entre-saberes». Essa ligação com o pensamento de ponta seu contemporâneo bem
como a convivência com as raízes da sua cultura judeo-cristã, de par ainda com
uma atenção permanente e crítica aos dados do mundo, levam-na a repensar tudo e
a poder abrir insuspeitadas brechas. E sem dúvida, os convites para a
Universidade das Nações Unidas em Tóquio, em que participou durante vários
anos, ou para o «Comité des Sages» na Europa, são sinais da sua estatura
intelectual internacional.
Entre esses saltos de grande alcance ' quânticos, por vezes, porque alteraram
paradigmas ', há simultaneamente nexos fortes a traçar fios de permanência.
Como Eduardo Prado Coelho sugeria em 85, no pensamento de MLP «o que está
verdadeiramente em jogo é exactamente o mesmo» (Pintasilgo, 1985: I). A meu
ver, essa continuidade advém não só de uma força de carácter como, e sobretudo,
do entendimento de uma fé intramundana e da radical proposta evangélica de um
Horizonte (no sentido de destinação do humano) e de uma ética ' o que modela
uma forma singular de presença ao Mundo e à História, aos quais MLP permanecerá
intensamente ligada. E descubro aqui com gosto um posicionamento que ligo ao
pensamento de Spinoza (embora com ele não me cruzasse nestes textos), quando,
na Ética, em particular no livro V, o filósofo ' judeu-português seiscentista '
estabelece uma intrincada conexão, talvez pela primeira vez (outros depois
virão), entre ontologia e ética, concebendo a ética como decorrente de uma
ontologia.
2. Se considerarmos por instantes os inícios, isto é, anos 50, encontramo-nos
com o futuro já em potência. Num texto dactilografado, de 1957 ' «A
responsabilidade cívica do estudante universitário» ' dirigido aos católicos da
JUC/JUCF, no dia da «Pax Romana», ouvimo-la convocá-los à responsabilidade
cívica e social:
Os estudantes são [ ], na sociedade «instalada» que é a nossa, o
posto avançado dos supremos direitos da pessoa humana. (17)
[ ] cada pessoa é um elemento indispensável do conjunto, o elo duma
cadeia que envolve a terra, penetra todos os sectores da vida humana
e está presente em todas as concepções e estruturas sociais. (19)
A citação, mesmo com cortes, é longa, mas importante, por ser indicativa do que
já nessa década a mobilizava:
Cabe aos universitários edificar o bem comum. [ e o] contacto
individual ou de grupos de estudantes com jovens de outros meios
sociais, em particular, com operários é uma faceta importante dessa
construção do bem comum. [ ] [o dever cívico] supõe uma visão clara
dos factos da realidade social e não a «opinião », sempre flutuante».
[ ]
É [-lhes] pedido [ ] o gosto do novo e do risco, a loucura de fazer
coisas para além do bom senso. [ ] só com esses elementos se constrói
a cidade nova. (15)
Quando sentirmos como nossos os problemas dos outros povos, quando
lhes admirarmos e respeitarmos os valores culturais próprios, quando
tivermos deixado para trás o apego às nossas coisas [ ] só porque são
nossas, quando tivermos presentes na nossa vida de todos os dias
aqueles que lutam, sofrem e amam como nós, quando o bem comum dos
outros povos nos puser perante a legitimidade de muitos dos nossos
direitos [e], quando sentirmos tão forte a necessidade de
contribuirmos concreta e eficazmente para o bem de todos os homens
como o sentimos em relação aos que nos rodeiam, então a nossa
consciência cívica [ter-se-á] verdadeiramente alargado às dimensões
do mundo. (19)
O grande objectivo aqui apresentado é o «bem comum» ' expressão que ecoa uma
formulação cristã, acentuada ainda (mais adiante no texto) pela metáfora
paulina do «corpo místico». Com isso Maria de Lourdes Pintasilgo apela a uma
consciência cívica que implique os cristãos como «um só corpo», numa igualdade.
Apela à sua vigilância sobre os direitos fundamentais e ao respeito pela
diversidade humana no mundo (e joga-se aqui o valor que o cristianismo veio
atribuir à dignidade da pessoa humana). Define pois um imperativo social, já
com o sentido da responsabilidade perante o mundo ' com rigor e empenhamento e
não com «opiniões» nem ' dirá mais tarde ' «com o zapping como método de
observação dos factos» (Pintasilgo, 1999). Em 1985, ouvimos-lhe um quase
aforismo imperativo: «A grande empresa é mudar a vida» (Pintasilgo, 1985: 18) '
que supõe, tal como o disse em 57: a «loucura de fazer coisas para além do bem
senso».
No entanto, ainda não há aqui qualquer explícita intenção política: contexto
católico, tempo da ditadura, Maria de Lourdes tinha 27 anos.
Outras etapas se seguirão e com elas novos contornos e razões. Lembro aqui
apenas três dos marcos que sobressaem no seu percurso de pensamento.
Nos anos 60, o conceito de noosfera, proposto por Teilhard de Chardin, virá dar
razão de ser antropológico-científica ao que antes para Maria de Lourdes
Pintasilgo tinha sobretudo a marca de uma visão teológica. Visto pelo
cientista, e também jesuíta, Teilhard, o fenómeno humano é uma das muitas
camadas de vida no Universo, a partir da qual cada pessoa fará, depois, o
processo de uma individuação. Aqui fundará MLP o seu entendimento de uma
solidariedade a nível ontológico, a ligar os seres humanos à volta da Terra.
Solidários, porque cada pessoa será sempre um «eu-com-outros-no-mundo» ' a
formulação é de Merleau-Ponty, e Maria de Lourdes apreciava-a.
À volta dos anos 70-80, o aprofundamento da noção de sujeito, trazida pelos
físicos Niels Bohr, Heisenberg, pelo filósofo Paul Ricoeur, como a própria
Maria de Lourdes Pintasilgo o declara, veio dar ainda mais relevo à ideia da
pessoa enquanto sujeito do desenvolvimento, da política, enfim, sujeito da sua
própria História.
Nos anos 80-90, a visão que Hans Jonas e também Emmanuel Levinas, de pontos de
vista naturalmente diversos, conferiram à noção de «responsabilidade» ' dando-
lhe o estatuto de dimensão primeira, ontologicamente fundante do sujeito e
anterior à própria liberdade ' virá adensar, na visão política de Maria de
Lourdes Pintasilgo, o dever primeiro de solidariedade entre os humanos. Por
isso já nos anos 90, quando equaciona o cuidado como fulcro da política, nós
podemos, olhando para trás, ver desenhada essa linha funda de continuidade nos
grandes objectivos.
Quanto ao relevo desses objectivos, comentava Eduardo Prado Coelho:
[ ] não é apenas a Política, a Democracia ou a Modernidade que estão
em jogo neste jogo, mas o porquê do jogo, que passa pela [ ]
sobrevivência da espécie humana. O que não é pouco. (Pintasilgo,
1985: III)
Dos anos 50 a 74, Maria de Lourdes Pintasilgo estará em Portugal, no quadro do
Graal, em equipas interdisciplinares ou não, com outras pessoas do Graal, e não
só, empenhada em criar contextos de conscientização política, com
universitários, rurais e suburbanos (pedagogia de Paulo Freire para a
alfabetização-politização). E no contexto do Graal também treina jovens
profissionais em «análise crítica da sociedade», lidera debates (quase à porta
fechada) sobre alternativas para o país, cenários para o desenvolvimento,
reflecte com grupos de mulheres a imagem do feminino nos media, e muito mais. O
objectivo era já o de criar consciência crítica nas populações, ou seja: a
ideia de cidadania já aqui em potência.
MLP está já em vários fóruns internacionais, alguns por ter aceitado, em 69,
funções dentro do regime ' Câmara Corporativa e representação do país na ONU '
votando vencida na primeira e apresentando em Nova York uma visão totalmente
descoincidente com a oficial ' pelo que lhe foi retirada confiança política e
função.
Acreditava então na possibilidade duma mudança por dentro, de mentalidades e
estruturas, para atingir uma (muito improvável) transição de regime ' que só
chegou naquele Abril, de 74, (quase) como revolução.
Todos esses empenhamentos e o pensamento que foi elaborando abriram caminho
para uma radical visão política que, nos anos 90, haveria de materializar-se no
cuidado como matriz da política e na concepção de um espaço público
explicitamente político.
3. Toda a intervenção política de Maria de Lourdes Pintasilgo, mesmo sem usar
da designação, incide na res publica e precisamente no «espaço público».
Como se sabe, espaço público foi tendo diferentes conteúdos e funções, de
acordo com as sociedades que o pensaram: da ágora grega, à esfera pública
moderna de Habermas, ao espaço das aparências debatido por Hannah Arendt, a
tantos outros ' passando do simples lugar físico, à dimensão política e
económica, à simbólica, e por aí fora, em todos os casos, porém, sempre aquém
duma cidadania efectiva.
Nos anos 60-70, a intenção de Maria de Lourdes Pintasilgo era, como vimos
antes, a de conscientizar e politizar, para que no país se fosse criando massa
crítica (no sentido de Karl Marx), capaz de mudar o estado das coisas.
Depois de 74, Maria de Lourdes Pintasilgo conceberá uma democracia
participativa em expansão, através duma cidadania substantiva de todos, com o
propósito de «revitalizar o tecido social» e de «criar uma sociedade
multipolar».
O exercício da cidadania é para si inerente à política: «a política é de todos
e de todos os dias», diz, e o espaço público é lugar de convergência de
múltiplas perspectivas, onde por excelência «o ser humano emerge como sujeito,
como povo e não multidão anónima, envolvendo-se na construção da cidade e (cita
agora Paulo Freire) acrescentando o mundo que não fez» (Pintasilgo, 2002:
0209.026: 7). Daí que a cidadania lhe apareça simultaneamente como um direito,
inalienável, de cada pessoa, mas também como um dever, pela responsabilidade de
cada um, enquanto sujeito perante o mundo. Aliás, ecoando o oitocentista
Cardeal Newman e também a Simone Weil, Maria de Lourdes Pintasilgo será
apologista duma futura «Carta de Direitos» que, lado a lado, inscreva direitos
e responsabilidades dos cidadãos, como teve oportunidade de defender
internacionalmente.
Para Maria de Lourdes Pintasilgo, o espaço público é um espaço da política,
porque nele se exercem as vozes cidadãs, participantes de direito na decisão
política e com função de avaliação permanente do poder ' o contrário da
sociedade anónima, massificada, à margem da política ou duma «opinião pública»
sem dimensão e eficácia política.
A comum assimetria Estado/cidadãos merecerá a sua denúncia (1983 ' ONU, Paris),
por aí se revelar «o impoder do poder e o poder dos não-poderosos» (Pintasilgo,
1983: 0210.025: 1). E ao carácter «críptico, autoritário, excluente» do poder
vem contrapor «uma racionalidade operacional e o cuidado pelo outro»
(Pintasilgo, 1999: 0196.007). A secundarização das mulheres, dos grupos
marginais ao tecido social, dos múltiplos actores sociais são situações por si
criticadas como manifestações de um défice democrático que importa eliminar.
Isso a fará insistir na importância da cidadania como o pilar mais forte da
democracia, dizendo em 1975 em Paris, Ministra então dos Assuntos Sociais:
Vejo cada vez menos o poder concentrado no topo da pirâmide política.
Vejo-o onde as relações se estabelecem, onde se criam novos modelos
de existir em sociedade, onde se rompe o individualismo que nos
aprisiona num beco sem saída. Vejo o poder onde a imaginação para
inventar o desejável se liberta, onde se ultrapassa a competição
desenfreada, onde no real se faz o possível (Pintasilgo, 1975:
0013.038: 2).
Justamente em ordem a contribuir para um espaço público politicamente mais
eficaz em Portugal, lançou nos anos 80 um movimento de cidadãos: Movimento para
o Aprofundamento da Democracia (o MAD).
No mesmo sentido advogará que ONGs e movimentos sociais (de par com sindicatos
e associações patronais) sejam assumidos pelo Estado como «parceiros sociais»
de pleno direito, convocados ' conforme as matérias sobre a mesa ' a tomar
parte nas decisões públicas, vendo neles a expressão de um poder real no espaço
público.
Em 93 em Paris, descreve o «vazio da democracia representativa» por ela ter «a
classe política inscrita no corpo social na posição inversa ao que devia ser»
(Pintasilgo, 1993: 0210.02: 9).
Nos anos 90 em Lovaina acusará a Comissão Europeia, da «falta de acesso à
igualdade entre cidadãos e classe política, para a construção europeia»
(Pintasilgo, 1992: 1226.915: 1), tal como em Lisboa voltará do avesso a linha
neoliberal dominante, com a proposta de «um novo modelo de globalização [que se
estruture] a partir da base» (Pintasilgo, 1998: 0191.002), apontando a uma
cidadania não apenas local, mas global.
No entanto, sabe bem que para haver cidadania é preciso que os cidadãos tenham
os seus direitos garantidos.
4. Daí que, desde os anos 50, como vimos, tenha insistido nos direitos
fundamentais, em vários fóruns: fala duma cidadania de 1.º nível, com os
direitos cívicos e políticos (notando que nem nos países da EU as minorias os
têm garantidos) e duma cidadania de 2.º nível (Pintasilgo, 1985: 33), com os
direitos sociais, económicos, culturais, coextensivos aos primeiros
(Pintasilgo, 1985: 34), dizendo que nem o Tratado de Maastricht, nem a sua
correcção de Amesterdão os integram plenamente; hoje, acrescentaríamos ao rol o
Tratado de Lisboa.
Em instâncias europeias e internacionais e em Portugal na Comissão de Ética,
aos chamados «novos direitos» (à saúde, ao repouso, ao lazer, etc. (Pintasilgo,
2002: 0209.026: 8-9)) acrescentará, entre os anos 90 e 2000, outros ainda '
novíssimos e pouco consensuais:
' o direito a um ambiente são, que a equação produção/consumo
destrói;
' à permanência do genoma humano, isto é, da espécie tal como a
conhecemos. Etc.
Ora a igualdade de todos perante leis e oportunidades é para Maria de Lourdes
Pintasilgo expressão fundamental do reconhecimento da pluralidade humana a
todos os níveis. Não se trata já dos direitos do homem, masculino, branco,
etc., mas dos direitos «[d]as pessoas concretas que habitam o planeta»
(ibidem). Por isso insistiu, dos anos 70 até ao fim, no respeito por uma
diferenciação na igualdade» (ibidem): «a democracia [tem] de dar conta da
composição diversificada da sociedade» (dirá em Paris em 95: 0211.019: 5).
Não por acaso, a figura da Antígona de Sófocles será para Maria de Lourdes
Pintasilgo exemplar e quase tutelar, pela sua defesa de leis «não-escritas», o
que implica erguer a voz em nome do que não tem voz e dos sem-voz. E foi sempre
desse lado que Maria de Lourdes Pintasilgo quis estar.
5. Para que haja esse espaço público dinâmico (Pintasilgo; 2002: 0209.026:11-
17), Maria de Lourdes Pintasilgo dá particular ênfase aos direitos das
mulheres, denunciando a sua gritante desigualdade como uma das graves violações
dos direitos humanos. Incita à igualdade de homens/mulheres perante leis e
oportunidades (e mais tarde à paridade (Pintasilgo, s/d: 0211.019)). A
sinalizar o seu empenhamento está, por ex., a presidência que assumiu em 1973
da primeira Comissão oficial portuguesa para a «Política Social Relativa à
Mulher».
Convicta de que não há espaço público democrático sem a participação das
mulheres em todas as instâncias e decisões da vida pública, aponta
internacionalmente ' na UNESCO, ONU, ECOSOC-N.Y., em Copenhague, Paris, etc. '
dos anos 70 a 2000, o escandaloso défice da sua participação a todos os níveis,
revelador de democracias «de baixa intensidade» ' a expressão é de Boaventura
Sousa Santos. Por exemplo, em 1978 ' era embaixadora na UNESCO ', em reunião da
Organização para análise do «Relatório» sobre «medidas para melhorar as [ ]
condições [das mulheres]», critica a própria UNESCO, por não se abrir à
participação das mulheres, apontando um método de investigação participativo,
porque «ninguém pode falar em nome das mulheres». E não é só pela sua força
numérica, mas pela diferença qualitativa que a sua presença pode significar
(Pintasilgo, 1978: 9229.038: 4-6).
Maria de Lourdes Pintasilgo apercebe uma afinidade entre os movimentos de
mulheres e outros movimentos sociais (operário, de libertação, de estudantes
(Pintasilgo, 1972: 0026.016: 2)) por neles reconhecer um potencial de mudança
(Pintasilgo, 1972: 0026.016: 3) e di-lo, por exemplo, em 76 em Paris:
as mulheres, como todos os oprimidos, ligarão a sua opressão à de
todos os outros, para mudarem a sociedade. (Pintasilgo, 1976:
0044.006:14)1
Acredita que a experiência de uma marginalidade específica2 constitui nas
mulheres um património milenar, potencialmente subversivo e inovador, a
«enriquecer o imaginário colectivo» (Pintasilgo, 1992: 1226.915: 2). Daí que
entenda a participação cívico-política das mulheres como possibilidade de
alterar a marca patriarcal da cultura política dominante, dirá nos anos 80 em
Paris. Mas teme que a igualdade tome o masculino como norma e, «ao visar a
termo a uniformização total da espécie humana, põe em causa a sua diversidade»
(Pintasilgo, 1992: 0210.020). Por isso, e para todos os conjuntos sociais,
exige ' repito ' uma igualdade na diferenciação3.
Enquanto transversais a todas as outras, as questões das mulheres são
consideradas por Maria de Lourdes Pintasilgo essenciais para a mudança da
política. Ocuparam-na ao longo da vida, intelectual e politicamente, e sobre
elas escreveu muitos ensaios e proferiu conferências, em Portugal e noutros
países.
6. Ao pensar o desenvolvimento, Maria de Lourdes Pintasilgo articulava-o também
com a democracia, dizendo que na Europa em particular eles são «dois termos
duma mesma equação» ou «dois eixos da mesma realidade» (Pintasilgo, 1985: 36-
37). Por um lado, porque o desenvolvimento vai fazendo surgir a necessidade de
garantir novos direitos; por outro, infere-se do seu discurso, porque nos
países mais industrializados, a sociedade civil se foi tornando cada vez mais
alienada das decisões políticas, reduzida a um silêncio sem perguntas ou a uma
indignação sem voz, permitindo que o desenvolvimento crescesse em direcções
sobre as quais os cidadãos não eram ouvidos nem achados. E assim o
desenvolvimento foi acontecendo sem que as necessidades e vulnerabilidades das
pessoas concretas estivessem no centro das preocupações.
Várias vezes Maria de Lourdes Pintasilgo chamará a atenção internacional para a
ausência de um «trabalho de pensamento sobre o que significa desenvolvimento
para a Europa» (Pintasilgo, 1985: 36), por o conceito, para os europeus, dizer
respeito aos outros povos: aos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Desde os anos 70 que Maria de Lourdes Pintasilgo vinha criticando o modelo
corrente de desenvolvimento: mostrará nos anos 80-90 como a «nova ordem mundial
» nada resolveu, ao apenas «alargar o [ ] modelo dos países industrializados a
todas as sociedades», reproduzindo assim em todo o mundo as mesmas formas
esgotadas de viver e de trabalhar; mais tarde desmontará também as falhas
existentes no próprio desenvolvimento designado como «sustentável», por ele não
sustentar (ainda?) nem a vida da maioria das pessoas nem a própria Terra.
Nos anos 90 apontará então uma situação já extrema, que é a de um economicismo
desenfreado, sem parâmetros sociais, selvagem, imoral até, por poucos
beneficiarem dele, que deixa a maioria na «crueldade da sobrevivência» '
expressão do General Obasanjo, da Nigéria ' e exaustos os recursos comuns da
Terra. Mas tantas foram as suas iniciativas a este respeito que não é possível
aqui sequer enumerá-las.
No início dos anos 90, Maria de Lourdes Pintasilgo foi convidada a presidir a
uma «Comissão Independente para as Questões da População», paralela a essa
outra que a ONU organiza em 1994, no Cairo, sobre «População e
Desenvolvimento». E aí Maria de Lourdes Pintasilgo terá ocasião privilegiada
(com a Comissão que para esse trabalho formou) para conceber e apresentar ao
mundo uma orientação política inaugural e radical.
Constituída por pessoas com quem Maria de Lourdes Pintasilgo partilhava visão e
critérios, esta Comissão apercebeu-se imediatamente de que a questão da
população só poderia pensar-se quando articulada com outras esferas da
realidade. E após três anos de trabalho, a sua visão inicial será confirmada
(em uníssono com outras vozes críticas em todo o mundo): a humanidade está em
risco, podendo a Terra não suportar mais a carga das nossas actividades e
desperdícios.
Perante essa realidade, a Comissão declara que as perspectivas de um
crescimento económico ilimitado acabaram; que a humanidade se encontra diante
de um espaço a fechar-se.
Tal como Maria de Lourdes Pintasilgo o enunciara já, a Comissão afirma agora
que é imperiosa uma viragem que coloque as pessoas concretas e a natureza no
centro da concepção de desenvolvimento e de todas as políticas. Propõe a
promoção da qualidade de vida para todos, em todas as sociedades como
prioridade política absoluta. E ao falar de «qualidade de vida» para todos,
implica sobretudo os que, em todo o mundo, vivem abaixo do nível do limiar da
pobreza. Mais: não diz respeito apenas ao presente do mundo, mas ao seu futuro.
O mundo é aqui pensado (como em Hannah Arendt) enquanto lugar de todos ' os de
ontem, hoje e amanhã; como algo que partilhamos mas que nos transcende e pelo
qual somos responsáveis.
«Qualidade de vida» surge aqui como um novo conceito a substituir o de
desenvolvimento, a exigir «um conjunto articulado de direitos e deveres [bem
como] um objectivo claro para os decisores políticos e os elementos dinâmicos
da sociedade civil» (Pintasilgo, 1998: X). Trata-se pois duma nova atitude
política, para governos e cidadãos, e que supõe ' dirá MLP ' a «capacidade do
cuidado pelo outro, que a humanidade pode desenvolver».
Aqui, na linha de Carol Gilligan e outras feministas (Larrabee (Ed.), 1993),
Maria de Lourdes Pintasilgo desterritorializa a palavra cuidado da sua habitual
referência à esfera do privado e das mulheres. E assentá-la-á na noção de Sorge
(cuidado) de Heidegger ' que lhe dá o estatuto de componente determinante do
sujeito e sua consciência do estar-no-mundo, o Dasein (traduzido para
português, pela filosofia, como «Ser-aí»).
Maria de Lourdes Pintasilgo tornará a conjugação do verbo cuidar ' sempre no
presente do indicativo (e nunca no condicional) ' a primordial exigência da
acção política. Mais: fará da acção de cuidar a responsabilidade central de
toda a política: governação articulada com a cidadania no espaço público. O
objectivo é o de instaurar uma nova ética, que designa agora como ética do
cuidado.
Mas o que implica então uma política guiada pelo cuidar?
Maria de Lourdes Pintasilgo define-o em sucessivas intervenções, durante os
anos de trabalho da Comissão e nos que se lhe seguiram. Cito parcelarmente:
Cuidar é uma das componentes do ser e supõe prestar atenção numa intensidade do
ver ' e Alberto Caeiro, Sophia de Mello Breyner, Simone Weil, são neste
contexto por si convocados. É que não há cuidado sem atenção. A capacidade de
cuidar, pervertida pelo individualismo e neoliberalismo, gira sobre a noção de
responsabilidade pela vida do outro, de todos os outros, mais que sobre
direitos e regras; e exprime-se por atitudes, não por princípios. E para isso o
pensamento de Heidegger, de Hans Jonas, Paul Ricoeur, Emmanuel Levinas, Hannah
Arendt, entre outros, ser-lhe-á de maneiras diversas inspirador.
Invalida os verbos políticos habituais: «organizar, planear, gerir, prever»
(Pintasilgo, 2004: 0210.002 e 0210.001), substituindo-os por novas formas de
equacionar os problemas e de formular as políticas públicas a longo prazo,
imaginando e construindo cenários possíveis em vez de fazer decorrer o futuro
linearmente do presente.
Será a capacidade de cuidar na humanidade que pode permitir um novo equilíbrio
ser humano/natureza, a integridade da natureza, a redefinição do equilíbrio
industrial, que faz rever a actual equação produção/consumo.
E fará notar que só a solicitude e o cuidado, que excedem a justiça,
possibilitam a vontade de criar condições viáveis para a qualidade de vida de
todos.
Nesta linha, convocará em 92, em Lovaina, à «construção política de uma Europa
da generosidade, capaz de abraçar os acontecimentos contemporâneos, enquanto
parceira sólida dos povos de outros continentes» (Pintasilgo, 1992: 1226.915:
11). Em 2000 em Lisboa, ouvi-la-emos afirmar:
Enquanto o mundo e cada estado deixarem uma parte dos cidadãos na
impossibilidade de um mínimo de qualidade de vida, está em causa a
ética da acção política. A dignidade humana do todo social não
comporta hiatos, o que o economista Amartya Sen, prémio Nobel, afirma
com clareza.
Afirmá-lo não é apenas um problema de orientação social, fruto da
compaixão. É [ ] fruto da ciência que aí está em causa ' a economia '
e da própria compreensão das ciências e da vida em sociedade. O que é
necessário tem de ser viável (Pintasilgo, 2002: 0209.026: 17).
O Relatório Cuidar o Futuro expõe múltiplas linhas programáticas para essa nova
política. Apenas alguns pontos, que implicam a total revisão das políticas
correntes:
● substituir a quantidade por qualidade, de bens e de serviços: fazer
mais com menos, sob pena de o planeta não ter condições de
sobrevivência para as gerações futuras (Pintasilgo, 2002: 0209.026,
19)4;
● abrir à participação dos cidadãos as decisões e o controlo do seu
cumprimento;
● introduzir a variável ambiente, que põe em causa o fundamento de
todas as iniciativas;
● reconhecer que ciência e tecnologia não são neutras: nem tudo o que
é viável é socialmente aceitável (ibidem: 4);
● instaurar mecanismos políticos de regulação do poder económico e
financeiro (Pintasilgo, 1999: 0196.007);
● utilizar os instrumentos conceptuais do nosso tempo (Pintasilgo, 2002:
0209.026: 11). Etc.
Aqui, olhando de novo para os inícios, vemos incorporada uma visão e uma
nergia que vêm de trás e se intensificam agora aqui: nesse investimento no
cuidar dum espaço público forte, capaz de se fazer ouvir e de tornar-se ele
próprio espaço de cuidado das pessoas, do mundo, da natureza, ou seja: o cuidar
como matriz política.
7. Termino com um breve zoom ao trabalho da Comissão anterior ao próprio
relatório que, significativamente, foi intitulado Cuidar o Futuro: um Programa
Radical para Viver Melhor5. (Aliás, a própria Comissão acrescentou ao seu nome
inicial a indicação da sua proposta fundamental, passando a chamar-se:
«Comissão Independente para a População e a Qualidade de Vida».)
E a razão para este zoom é a própria constituição da Comissão e seus modos de
operar constituírem, a meu ler, um ponto de aplicação privilegiado daquilo a
que se propõe. Trata-se de um exercício prático à roda de um problema, o da
população mundial, no qual todas as esferas do humano se tocam (objectivas e
subjectivas, a nível social, económico, cultural, político, etc.).
O estado do mundo recebe aqui uma análise sistémica, articulada entre-saberes,
à procura de «pontos de intersecção» (Pintasilgo, 1998: XIII) e de soluções não
isoladas mas intersectoriais. E estes modos (que destaquei) de designar
perspectivas ou modos de análise são por si indicativos de diferentes elementos
científicos dos quais Maria de Lourdes Pintasilgo se diz devedora e que remete
para cientistas como Prigogyne, Francisco Varela, Kenneth Boulding, Henri
Atlan, entre outros. Através deles se vai aprofundando a sua leitura do mundo e
os modos de pensá-lo. Essas designações, a meu ver, evocam também o modo como
MLP concebeu o seu programa do Ministério dos Assuntos Sociais em 76, o seu
gabinete ministerial em 79, a forma da governação: interdepartamental, trans-
sectorial, sistémico, etc.
Também a forma de constituir a Comissão pôs em prática princípios conceptuais
que Maria de Lourdes Pintasilgo defendia: número igual de homens e mulheres
(aliás, uma mulher mais), de um número equilibrado de países do norte e do sul
em todos os continentes e competências diferenciadas mas equivalentes.
Além disso, a força condutora da pesquisa foi a atenção prestada às realidades
locais e a escuta de «vozes das pessoas» nas diferentes regiões do globo,
através duma metodologia que Maria de Lourdes Pintasilgo introduziu (e trouxe
depois para Portugal): as audições públicas. E também aqui vejo uma afinidade
entre elas e o método usado por Maria de Lourdes Pintasilgo no V Governo com as
presidências abertas ' em nada semelhantes às que depois se fizeram.
Múltiplas e diversas também foram essas pessoas ouvidas nas sete audições
públicas: umas, sem qualquer literacia, outras, membros da comunidade
científica, directores de serviços públicos, ONGs e outras organizações da
sociedade civil, homens e mulheres anónimos, jovens e adultos, vivendo os
problemas em análise. Estes e outros traços que configuraram a Comissão e a sua
tarefa surgem como exemplares pela sua coerência com a visão que lhe subjaz.
Em línguas como o português, o título Cuidar o Futuro inscreve uma
particularidade significativa, pela sua construção agramatical: Cuidar o
Futuro' e não Cuidar do Futuro ' dá visibilidade à relação transitiva entre
atitude e objecto do cuidado, sem que uma preposição os separe. Cuidar o Futuro
aponta ainda não a um presente descuidado, fechado sobre si mesmo, como um em-
siou para-si (o que o tornaria figura pobre da temporalidade humana), mas a um
presente investido de futuro, a abrir condições de possibilidade à vida dos que
depois de nós virão6.
Com razão chamaram a Maria de Lourdes Pintasilgo, no título do livro que nos
seus 70 anos um grupo de cidadãs e cidadãos lhe ofereceu, «Mulher das Cidades
Futuras». Também o seu pensamento foi considerado «utópico» e com razão: o
lugar que concebeu, pelo qual gastou a vida, não existe ou não existe ainda.
Em Maria de Lourdes Pintasilgo, o investimento do presente pelo futuro vinha
habitado pela intensidade de «um outro futuro» (no sentido escatológico
cristão), a inquietar e desassossegar o presente histórico, a incitar ' no aqui
e agora ' à edificação de um mundo mais habitável para todos, quer se veja ou
não. E é justamente isso que a levará a duas afirmações complementares: a de
desvivir, no sentido do castelhano, «viver intensamente», o presente e a de
manter sempre no olhar o futuro:
' Do texto intitulado, em 1985, «O futuro está no presente»:
[ ] a liberdade não está num «depois», mas está no próprio cerne da
situação que vivemos (Pintasilgo, 1985: 8).
' E da sua última entrevista, em 2004:
[ ] tenho a noção de que aquilo de que faço parte é uma coisa que há-
de vir, e esse «há-de vir» é para mim suficiente (Pintasilgo: DN.
16.10. 04).