Futebol Português: Política, Género & Movimento
Tiesler, Nina Clara e Domingos, Nuno (Organizadores) (2012), Futebol Português
' Política, Género & Movimento, Porto, Editora Afrontamento, 343 páginas.
Paula Botelho-Gomes
FEFD/Universidade Lusófona do Porto, Portugal
O desporto parece ilustrar bem o conceito de facto social total de Marcel
Mauss, entendido como fenómeno complexo pelo qual estruturas sociais, tais como
a política, a economia, a família, a educação, a religião e o lazer, se
manifestam e o todo social pode ser observado; ou seja, mobiliza uma sociedade
e as suas instituições. O futebol, pelas instâncias sociais que o atravessam e
o suportam, pela sua popularidade, centralidade e universalidade, configura, de
algum modo, a metáfora de uma sociedade. Decorre do considerado, a importância
da edição de Futebol Português ' Política, Género & Movimento, para a qual
foram convocadas distintas áreas das ciências sociais, contrariando-se uma vez
mais a ideia de que, nomeadamente a Sociologia, não reconhece a importância
social do desporto, esquecendo que a génese do desporto é não só um problema
sociológico, mas também ideário de civilização, como nos adverte Norbert Elias.
No livro em apreço, a Antropologia, a Sociologia, a História, e os Estudos
sobre as Mulheres vão ao Futebol', e logo na sua introdução (Nuno Domingos e
Nina Clara Tiesler) se clarifica que o "futebol português' possui nesta
obra um estatuto descritivo; localiza no tempo e no espaço um conjunto de
observatórios de análise que se relacionam indiscutivelmente com a história de
Portugal no século XX" ( ) (p. 15). O livro, escrito a onze mãos, três
das quais femininas, organiza-se em quatro partes: História e Política,
Colonialismo e Internacionalização, Mulheres e Futebol, e Adeptos, totalizando
12 capítulos, rematando com um Ensaio de Saída. A primeira parte, História e
Política, inclui os textos de José Nuno Matos, Anarquistas e Desportistas: A
Batalha vs. A Batalha, onde se assinala que a história do sindicalismo
revolucionário e a do anarquismo são inseparáveis; de Francisco Pinheiro,
Futebol e à Política na Ditadura, com o exercício de separar Factos e Mitos; de
Rahul Kumar, Futebol e Política no Portugal Democrático ' A Lógica da Conversão
de Capitais, onde se analisam percursos biunívocos de agentes entre futebol e
política. A segunda parte, Colonialismo e Internacionalização, integra os
textos de Nuno Domingos, A Força dos Laços Desportivos, Associativismo e a
Estruturação Urbana no Moçambique Colonial, sobre a desportivização e a
dinâmica do futebol naquele território, e de Nuno Domingos e José Neves que
partilham a Entevista a Detlev Claussen.
A terceira parte do livro trata do tema Mulheres e Futebol e inicia-se com o
texto de Isabel Cruz, "A Virilidade é uma Ideia que as Pessoas têm que os
Homens são Melhores". Discurso sobre os corpos das jogadoras de futebol
na imprensa portuguesa. A vinda a Portugal, em 1923, de uma comitiva de atletas
francesas para realizar exibições de atletismo e de futebol, modalidades tidas
como apropriadas a homens, foi recebida com tal despropósito que suscitou
críticas de jornais, mas não invalidou que os estádios se enchessem de
espectadores curiosos (voyeurs?) nem que alguma imprensa tecesse comentários
moralistas na fronteira do discurso sexista. O cerne da polémica era (é?) o
corpo do sexo fraco', que se julga não apropriado àquelas lides, e um traje
desportivo contrário a uma feminilidade recatada. Como refere a autora:
"As mulheres que invadem os terrenos desportivos considerados masculinos
estão sujeitas a discursos mordazes" (p. 192).
Enfim, Desencontros da História com o Futebol Feminino, como sublinha Inês
Paulo Brasão na entrada seguinte. Inês Brasão passa em revista um conjunto de
normas e posturas, verdadeiros espartilhos, acerca do que devia ser a prática
desportiva do sexo feminino. Organizações do Estado Novo e religiosas, e a
Educação Física, preocuparam-se com a regulação e a graciosidade dos corpos
femininos, ao mesmo tempo que definiam as práticas físicas apropriadas ' onde a
ginástica imperava ', preparando as raparigas para a maternidade e a
domesticidade. Esta disciplina e normalização de corpos, a que a medicina não
era alheia, eram de todo incompatíveis com a prática do futebol, desde há muito
conotado com a construção da masculinidade. Claramente se definiram os corpos e
as práticas legítimas e ilegítimas. Depois do jogo das francesas é possível que
mulheres se tivessem organizado para jogar, num registo de recreação e
socialmente sem expressão. No entanto, oficialmente regulamentado, o primeiro
jogo realizou-se apenas em 1984. Longa foi a noite.
O capítulo Um Grande Salto para um País Pequeno: O xito das Jogadoras
Portuguesas na Migração Futebolística Internacional, de Nina Clara Tiesler,
revela que, apesar de Portugal não constar no Top 30 da FIFA, é um dos países
mais expressivos na migração futebolística: ter o futebol como profissão e
melhorar os desempenhos obriga a emigrar. Quer as emigrantes, quer as
futebolistas filhas da diáspora são uma mais-valia na selecção nacional
feminina, pela sua maior experiência e competitividade. A desvalorização do
futebol feminino parece-nos ser uma evidência quando se constata que muitos
desconhecem, ou depreciam, o Mundialito de Futebol Feminino disputado,
anualmente, no Algarve, desde 1994!
A quarta parte da obra, dedicada aos Adeptos, inclui os textos de Daniel
Seabra, O Movimento Ultra e as Claques Organizadas em Portugal: seu surgimento
e principais fases da sua evolução, sobre os marcos evolutivos que se seguem ao
da Espontaneidade: Institucionalização-Expansão-Crise-Ressurgimento; de Nina
Clara Tiesler, A Festa dos Emigrantes. A Importância do Futebol na Diáspora
Portuguesa, sobre a importância e centralidade do futebol na vida dos
portugueses espalhados pelos cinco cantos do mundo; de Stephen Wagg, Cristiano
Ronaldo e Mr. Spleen: a celebridade no futebol global, o Manchester
"mítico" e a diáspora portuguesa, que aborda uma polémica gerada em
torno de Cristiano Ronaldo e o de Nina Clara Tiesler, Ensaio Sobre a Festa, O
Futebol e a "Batalha dos Nacionalistas": uma bandeira não é uma
bandeira não é uma bandeira, sobre as políticas identitárias que se servem do
futebol.
Futebol Português ' Política, Género & Movimento. Geografias e narrativas
diversas, leitura obrigatória para estudiosos e para quem se diz interessar por
Desporto.
Paula Botelho Gomes escreve de acordo com a antiga ortografia