Masculinidade e Profissões: Discursos e Resistências
Marques, António Manuel (2011), Masculinidade e Profissões: Discursos e
Resistências, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e
a Tecnologia, 519 páginas.
Nuno Santos Carneiro
Centro de Psicologia da Universidade do Porto
Department of Psychology ' Manchester Metropolitan University
Resultado da tese de doutoramento de António Manuel Marques em psicologia
social e organizacional pelo ISCTE-IUL, este livro de invulgar qualidade
confere centralidade à psicologia social do género, analisando as dinâmicas
processuais de edificação sociocultural, ideológica, relacional e subjetiva da
masculinidade, comparando quatro profissões ' a cirurgia geral, a magistratura
judicial, a montagem de offset e a condução de táxis ' onde tais dinâmicas
encontram palco discursivo e se intersetam com a cultura organizacional própria
de cada um destes lugares ocupacionais. Como diz o autor, o "contributo
[destas profissões] para a posição social dos que se dedicam a elas, a natureza
do trabalho executado e a dinâmica de admissão de mulheres no seu interior
fazem de cada profissão [numérica, simbólica e tradicionalmente dominada por
homens] um contexto original, aumentando as hipóteses de as comparar entre
si" (p. 453).
Trata-se de um trabalho de investigação que refletepercursos ' assim lhes chama
o autor com acutilância semântica transversal ao trabalho e ancorante da
estruturação do mesmo ' através dos quais só não se enriquece quem não fizer do
livro leitura tão cuidada quanto este merece. São percursos epistémicos,
heurísticos, conceptuais, metodológicos, (meta-) analíticos e reflexivos
capazes de suscitarem indagações e propostas interpretativas (sabiamente nunca
encerradas) sobre os objetos de estudo. O que, desde logo, nestas indagações
encontro de preciosa contribuição é uma inquietação (des)construtiva e crítica
a respeito do que chamaria de espaços intersticiais múltiplos ' esses hiatos,
essas fendas, esses vazios sempre existentes entre conceitos, metodologias,
quadros epistémicos, posições autorreflexivas, falas e silêncios de
protagonistas de uma investigação ' que António Manuel Marques se dedica a
explorar com um fôlego e com uma dedicação ímpares. Assim acontece, a título de
exemplos, quando procede a uma sistematização tão complexa quanto atualizada
dos debates epistemológicos sobre os estatutos da "ciência" e das
"comunidades científicas" (com trasladação destes debates para o
campo da psicologia social), quando se debruça sobre o que pode ser atualmente
o recurso à Teoria das Representações Sociais, sem facilitismos a respeito das
críticas que a esta Teoria se levantam e com o muito trabalhado esforço de
contextualização deste quadro meta-conceptual, bem como quando muito
originalmente elenca as origens, a originalidade, a diversidade e a importância
de inscrição heurística e académica das perspetivas discursivas na psicologia
(social).
Mais não houvesse, seria já isto bastante para se defender com total
legitimidade que este livro é fundamental quer para quem se inicia na
investigação social e humana, quer para quem nestes quadrantes da investigação
continua a desejar leituras amplas e pertinentes. Num tempo em que a reofensiva
empiri(ci)sta não cessa de tentar esmagar outras modalidades de pensamento e de
análise sobre as relações sociais e as posições de sujeito, num tempo em que a
inscrição hermenêutica, académica e editorial dos paradigmas discursivos se vê
profundamente ameaçada pela (re-)inflamação dos egos positivistas e das
comunidades científicas estreitamente arreigadas à evidência do que não é (ou
nem sempre tem que ser) evidente, não há como não honrar um trabalho como este,
com que António Manuel Marques verdadeiramente nos presenteia. E que nos
presenteia como prova de coragem contagiante para continuarmos convictamente e
de pés bem assentes a afirmar as perspetivas discursivas e críticas em
contracorrente às vagas da desvalorização menorizante, porque ignorante, destas
perspetivas.
De interesse particularmente saliente para a reflexão sobre o género é o
capítulo dedicado à pesquisa sobre os homens e a masculinidade. Em primeira
instância, porque o autor consegue contrariar a nefasta e persistente tendência
' e para ele uma inquietação pessoal, como nos diz logo na Introdução ' de se
considerar a construção social da masculinidade um não-objeto, inclusive entre
setores representativos das teorias feministas. Perguntando(-se) se "o
"problema" está na relação entre homens e mulheres, entre alguns
homens, ou entre masculinidades e várias masculinidades, ou entre a
masculinidade e a feminilidade" (p.179), o que consegue ir tecendo no
desenvolvimento da pesquisa apresentada é a denúncia da teimosia de se
considerar que o mundo se esgota nas relações entre homens que dominam e
mulheres que são dominadas. Quando interroga as relações entre a teoria
feminista e os estudos sobre os homens e a masculinidade, expondo
admiravelmente os consensos e os antagonismos que esta relação suscita, António
Manuel Marques deixa bem claro (1) que a focalização na relação desequilibrada
entre os sexos não deixa de pressupor uma "homogeneidade dos grupos ou
categorias sexuais e, logo, o primado do fundamento biológico das
diferenças" (p. 219), (2) que o pensamento binário (homens versus
mulheres) "dificulta e questiona, em parte, a mobilização teórica e
política em torno do género" (p. 224) e (3) que "as teorias
feministas e a sua consideração prática tiveram (e continuam a ter) um efetivo
efeito nas formas de pensar e organizar a vida e as instituições, afetando
diretamente as mulheres e os homens [itálico meu]" (p. 226).
A consistência destas proposições heurísticas e pessoais é de tal modo bem
assumida e trabalhada neste livro, que em nenhum momento o autor (se) trai (n)a
condução das mesmas. Porque não há palavra, frase, sintaxe ou semântica que não
sintamos ser por ele escolhida na muito cuidada fidelidade à importância do
discurso. Também nisso este trabalho é um riquíssimo ensinamento: sobre a
importância da escrita e dos argumentos usados para o que é dito, sobre a força
da linguagem, feita de palavras e de silêncios que dão ao livro uma textura e
uma compreensão profundas dos percursos realizados e exemplarmente
esclarecedores do que é fazer-se investigação qualitativa com a inabalável
robustez que esta pode e deve ter.
Mais ainda, discute os resultados da sua investigação, numa relação dialogante
muito estreita e coerente que sabe manter com as escolhas teórico-conceptuais e
metodológicas que nunca perde de vista, através de um entendimento amplo de
como cada uma das profissões e culturas organizacionais tem "cenários e
formas de, continuamente, confirmar, exibir e sustentar a masculinidade
intrincada na identidade da profissão, uma vez que esta não é garantida, pois,
em geral, é precária e instrumental e, como tal, necessita de permanente
reforço" (p. 390). Mas não nos equivoquemos e não negligenciemos o que é
sistemático cuidado do autor ao refletir sobre as implicações destas
vigilâncias identitárias: o de lembrar que os violentíssimos "jogos de
masculinidade" detêm poder impositivo e regulador de inclusões e de
exclusões, "sobre as masculinidades não autorizadas e sobre as
feminilidades" (p. 455). Com isto, a já referenciada oposição a leituras
limitadas ao binarismo de género e não contemplativas de diferenças
intracategoriais capazes de revelarem o peso destas adversidades tanto para as
mulheres quanto para os homens mais pertinente te torna e sustenta-se pelos
dados empíricos que António Manuel Marques tão elaborada e reflectidamente
sistematiza neste livro. Afinal, e nas suas palavras, "para entender os
contextos profissionais como os envolvidos nesta investigação será necessário
considerar a existência de múltiplas masculinidades [não obrigatoriamente
indexadas ao sexo masculino, permito-me acrescentar] e dar especial atenção à
relação que estas estabelecem entre si" (p. 457).
Interesse complementar que encontrei no trabalho em análise foi o de com este
se abrirem reflexões de imensa importância para aprofundar o conhecimento de
modos de opressão e de exclusão que não necessária e/ou exclusivamente
motivados pelos marcadores e pelos regimes sociais de género e que não
necessária e/ou exclusivamente adstritos às vivências profissionais. Porque,
como fica claro nesta obra, os sinais de identidade ameaçada e o recurso a
estratégias de resistência a mudanças (profissionais e/ou outras) são
"típicos das relações entre grupos maioritários e minoritários" (p.
450) e suscitam, direta ou indiretamente, um "leque de táticas de
sobrevivência" (p. 458) por parte de sujeitos oprimidos, táticas essas
que através deste trabalho percebemos estarem inscritas bem para além das
culturas organizacionais e dos lugares profissionais.
Gostaria de deixar aqui uma última observação que se prende com o sentimento
mais intenso e continuado que o livro me deixa: o de estarmos perante um
trabalho de resistência a resistências. O que mais fortemente absorvi e comigo
guardo é a ímpar capacidade do autor para contrariar menosprezos infundados e
gratuitos face aos paradigmas e às modalidades de investigação em que aposta,
de se impor contra hegemonias discursivas e retóricas que ofuscam a riqueza e a
importância dos discursos que nos rodeiam sem, no entanto o conseguirem (como
tão bem prova um livro assim), de acompanhar com resistente convicção as
resistências humanas que os discursos das pessoas ouvidas na sua investigação e
os silêncios das mesmas (con)têm. Assim, pois, dar ao livro o subtítulo de
"discursos e resistências" é, estou certo, não somente um boa forma
de condensar o que nele mais imediatamente encontramos mas também, numa leitura
mais acurada, um modo de nomear o (auto-)retrato que António Manuel Marques
pode fazer da sua trajetória de investigação.
Por tudo o que ensaiei neste esforço de recensão, não há como não me ter
resultado ingrato (ainda que profundamente estimulante) tal esforço. Pelo muito
mais que é merecido dizer-se sobre Masculinidade e Profissões , pelo quanto
neste trabalho senti ser evocado e invocado, pela entusiástica tentação de não
me ficar pelo que disse. Não vislumbro forma mais justa de retribuir o
contributo de António Manuel Marques senão pela vontade de voltar a lê-lo, de o
ler mais e de com ele continuar a descobrir.
Talvez reste ainda, nesta retribuição, sublinhar a obrigação que me parece
assistir a quem quer que o leia de se pensar nos géneros e nos regimes
ideológico- discursivos de que as nossas vidas estão imbuídas. De (se) pensar
com a mesma coragem de (auto-reflexividade, de (des)construção localizada e de
abertura à interrogação que ele nos transmite. De com ele, enfim, caminharmos
tendo em mente o que (apenas fingidamente) conclui ao dizer-nos que
"identificar os elementos que vão apoiando as práticas geradoras de
desigualdade é, certamente, uma forma de contribuir para a mudança" (p.
465).