Escalas de motivação interna e motivação externa para responder sem
preconceito: estudo de validação cruzada da versão portuguesa
Mesmo com o aparente decréscimo das atitudes preconceituosas, avaliadas
sobretudo através de medidas tradicionais de auto-relato (e.g., Vala, Brito,
& Lopes, 1999), o interesse pela temática do preconceito não diminuiu e
continua a gerar inúmeras teorias e modelos (ver Hewstone, Rubin, & Willis,
2002). Uma explicação possível para a “persistência” em respostas
preconceituosas, mesmo entre aqueles que não se julgam preconceituosos, pode
ser simplesmente porque responder sem preconceito é uma tarefa difícil, que
obriga a controlar a informação estereotípica que se possui sobre determinados
grupos sociais, que foi sendo adquirida ao longo dos anos, e que contribui para
enviesar os julgamentos sobre os elementos desses grupos (Devine, 1989).
Investigação recente sugere que o sucesso no controlo do preconceito se deve em
grande parte ao desenvolvimento efectivo de estratégias de regulação (e.g.,
Devine & Monteith, 1993). Por exemplo, Devine e colaboradores demonstraram
repetidas vezes que quando as pessoas não-preconceituosas tomam consciência que
a sua resposta é incongruente com os seus valores pessoais sofrem de
sentimentos de culpa e de uma redução da auto-estima (e.g., Devine, Monteith,
Zuwerink, & Elliot, 1991; Monteith, 1993; Monteith, Devine, & Zuwerink,
1993; para uma revisão ver Garcia-Marques, 1999). Estes sentimentos podem
funcionar como uma pista para corrigir uma das respostas, contribuído assim
para a diminuição do preconceito (Monteith, Ashburn-Nardo, Voils, & Czopp,
2002).
Tendo em conta a complexidade de razões que podem levar as pessoas a responder
sem preconceito, bem como a fraca associação que geralmente se verifica entre
medidas explicitas e implícitas (ver Blair, 2001), Plant e Devine (1998)
propõem que as pessoas podem ser motivadas para controlar ou inibir a expressão
do preconceito devido a razões internas (pessoais) ou/e razões externas
(normativas), e que estas motivações precedem os esforços para controlar o
preconceito (ver Macrae & Bodenhausen, 2000).
Plant e Devine (1998) desenvolveram e validaram duas escalas que medem o grau
de Motivação Interna para Responder Sem Preconceito (EMI) e de Motivação
Externa para Responder Sem Preconceito (EME) face aos Negros. Enquanto a
motivação interna para responder sem preconceito se baseia em crenças não-
preconceituosas de carácter interno e pessoal, a motivação externa para
responder sem preconceito está relacionada com a pressão normativa para evitar
reacções preconceituosas. Estes autores evidenciaram a robustez das escalas em
termos de fiabilidade, de validade convergente, discriminante e de critério. Os
resultados da EMI apresentam-se correlacionados com medidas tradicionais de
preconceito como a Attitude Towards Blacks scale(Brigham, 1993) e a Modern
Racism Scale(McConahay, 1986) – quanto maior a motivação interna menor o nível
de preconceito. Pelo contrário, a correlação entre EME e as medidas
tradicionais de preconceito revelou-se modesta – quanto mais elevada a
motivação externa mais elevados os níveis de preconceito. A EME revelou ainda
uma fraca associação com medidas de avaliação social (e.g., Interaction Anxiety
Scale,Leary, 1983) e de desejabilidade social (Social Desirability Scale,
Crowne & Marlowe, 1960), o que sugere que a EME se preocupa com a forma
como as respostas preconceituosas são avaliadas em vez de uma preocupação geral
com a avaliação social. Plant e Devine (1998) demonstraram ainda que a EMI e
EME são ortogonais. Neste sentido, as pessoas podem ser motivadas para
responder sem preconceito sobretudo por razões intrínsecas, por razões
extrínsecas, por ambas, ou podem simplesmente não ser motivadas por nenhuma
destas razões. As escalas de Motivação Interna e Motivação Externa para
Responder sem Preconceito foram adaptadas para motivação para responder sem
sexismo (Klonis & Devine, 200. cit. por Devine, Plant, Amodio, Harmon-
Jones, & Vance, 2002), homofobia(Gailliot, Plant, Butz, & Baumeister,
2007; Lemn & Banaji, 1999, cit. por Devine et al., 2002), e preconceito
face à obesidade(Buswell & Devine, 200. cit. por Devine et al., 2002).
Também nestes casos a EMI e EME se revelaram independentes.
Na sociedade portuguesa actual, as questões da emigração e da marginalização de
grupos sociais minoritários, tornam cada vez mais relevantes as questões
associadas ao preconceito enquanto determinante da relação social e
comunitária. Desta forma, neste artigo apresentamos as qualidades psicométricas
das versões portuguesas da EMI e da EME e a estabilidade de um modelo
alternativo proposto por nós noutra ocasião (ver Palma & Maroco, 2008).
MÉTODO
Material
A tradução e adaptação das escalas foram feitas via tradução-retroversão. Foi
dada especial atenção ao significado dos itens e à familiaridade dos termos
utilizados, e não tanto à reprodução literal dos termos usados na versão
original. Cada um dos itens foi associado a uma escala de nove pontos, ancorada
em “discordo fortemente” (1) e “concordo fortemente” (9) (para detalhes sobre a
tradução dos itens originais ver Palma & Maroco, 2008). Os itens foram
aleatorizados e apresentados em conjunto, como se de uma única escala se
tratasse.
Quadro 1
Itens da Escala de Motivação Interna para
Responder Sem Preconceito
Quadro 2
Itens da Escala de Motivação Externa para
Responder Sem Preconceito
Participantes
A amostra foi constituída por 318 alunos voluntários (amostragem não
probabilística) das licenciaturas em Ciências Psicológicas do Instituto
Superior de Psicologia Aplicada (56.6%), e das licenciaturas em Psicologia do
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (17.6%), da Faculdade
de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (12.9%), e do
Instituto Piaget de Almada (12.9%). Oitenta e quatro porcento dos participantes
eram do sexo feminino. A média de idades foi de 23.6 anos (SD = 7.44). Foram
excluídos 3 participantes Negros desta amostra.
CARACTERÍSTICAS PSICOMÉTRICAS
Sensibilidade
A sensibilidade dos itens foi avaliada graficamente e por recurso aos
coeficientes de assimetria (Sk) e achatamento (Ku). Considerou-se que os
coeficientes de assimetria superiores a 3, em valor absoluto, e os coeficientes
de achatamento superiores a 1. em valor absoluto, apresentam problemas de
sensibilidade e desvio significativo da normalidade (ver por exemplo, Kline,
1998).
Em relação à assimetria, os itens que constituem a escala de Motivação Interna
(Quadro. 3) apresentam-se, no geral, assimétricos negativos e enviesados para
pontuações elevadas. Os itens da escala de Motivação Externa (Quadro 4)
apresentam-se assimétricos positivos e enviesados para pontuações baixas. Em
termos de achatamento, os itens da EMI (Quadro 3) denotam uma tendência
mesocúrtica, enquanto que os itens da EME (Quadro 4) mostram uma tendência
leptocúrtica. Apesar disto, em ambas as escalas nenhum dos itens apresenta
coeficientes de assimetria superioresa3(em valor absoluto) nem coeficientes de
achatamento superiores a 10 (em valor absoluto), indicando que não existem
problemas severos ao nível da sensibilidade dos itens, nem de afastamento à
distribuição normal (Kline, 1998).
Quadro 3
Sensibilidade dos itens da EMI
Quadro 4
Sensibilidade dos itens da EME
Validade factorial
A validade de factorial do modelo de medida foi avaliada com uma análise
factorial confirmatória usando-se, como índices de qualidade do ajustamento do
modelo, as estatísticas X2/df, CFI, GFI, RMSEAea P(rmsea≤.05). Assim,
considerou-se que o ajustamento do modelo aos dados era bom para valores de
CFIe GFIsuperiores a .9, para valores de RMSEAinferiores a .05 e X2/dfentre 1 e
2 (ver por exemplo, Schumacker & Lomax, 1996). A parcimónia do modelo
alternativo face ao modelo original foi avaliada pelas medidas AIC, BCC e MCVI
(Arbuckle, 2006). O refinamento do modelo de medida foi efectuado com base em
critérios de validade de face e dos índices de modificação calculados pelo AMOS
(v.16, SPSS Inc, Chicago, IL). Apenas se alteraram/eliminaram as trajectórias
e/ou erros correlacionados quando o índice de modificação era superior a 11 (p<
.001) e foi possível justificar esta opção de um ponto de vista teórico.
O modelo especificado apresenta uma estrutura bi-factorial simples, com os
itens relativos à motivação externa colocados num factor e os itens relativos à
motivação interna colocados no outro factor.
O estudo de validação cruzada do modelo alternativo foi efectuado a partir da
divisão aleatória da amostra total de 318 participantes numa amostra de treino
(66%, N=204) e teste (34%, N=114) A qualidade de ajustamento do modelo original
na amostra de treino revelou-se medíocre (ver quadro 5). Assim, tendo em conta
a análise dos índices de modificação fornecidos pelo AMOS, o peso factorial dos
itens, bem como as considerações teóricas da escala avançamos uma proposta
alternativa que apresenta um melhor ajustamento à nossa amostra do que o modelo
original (quadro 5).
Quadro 5
Qualidade de ajustamento dos modelos aos dados
das duas amostras
A validação do modelo modificado na amostra de teste, revelou-se tal como
anteriormente reportado (Palma & Maroco, 2008), melhor do que a do modelo
original, apesar de continuar a não ser brilhante (quadro 5). A proposta do
modelo refinado é então constituída por 7 itens, 4 na EME (itens 1, 3, 7 e 9),
e 3 na EMI (itens 2, 4, e 5).
Fiabilidade
A fiabilidade das duas escalas foi avaliada pela medida de consistência interna
do α de Cronbach.
Quadro 6
Valores do α de Cronbach para o modelo original e
modelo alternativo
Os valores de cx de Cronbachpara as duas escalas revelaram-se razoáveis tendo
em conta o número de itens e o número de participantes em cada amostra (ver
Maroco & Gracia-Marques, 2006).
Cotação
As cotações da EME e da EMI são obtidas pela média aritmética simples dos itens
que as constituem. No quadro 7 apresenta-se a distribuição decilica da EME e
EMI quer nas suas versões originais, quer nas suas versões aferidas na amostra
deste estudo.
Quadro 7
Valores médios, desvios-padrões e distribuição
decilica das escalas EME e EMI original e
alternativa
DISCUSSÃO
As qualidades psicométricas das versões portuguesas da EMI e da EME respeitando
o modelo original revelou-se, como dissemos, medíocre. Assim, tendo em conta as
considerações teóricas da escala, a análise dos índices de modificação
fornecidos pelo AMOS e o peso factorial dos itens, avançamos uma proposta
alternativa que apresenta um melhor ajustamento à nossa amostra do que o modelo
original e é constituída por 7 itens, 4 na EME e 3 na EMI. Esta nova proposta
foi validada numa amostra independente. A escala refinada pode então ser usada
na avaliação das motivações para responder sem preconceito em estudantes
universitários. Ainda assim, a estabilidade da estrutura factorial deverá ser
confirmada em outros estudos independentes.