Trauma e Limpeza Ritual de Veteranos em Moçambique
Trauma e Limpeza Ritual de Veteranos em Moçambique
Paulo Granjo*
*Instituto de Ciências Sociais - Universidade de Lisboa
paulo.granjo@ics.ul.pt
Resumo
O presente artigo descreve e discute os rituais de limpeza oficiados aos
veteranos da guerra civil de Moçambique por parte de médicos tradicionais do
sul do país. Reinventados nas últimas décadas, a partir de tratamentos para
outras situações e importando a sua lógica explicativa, esses rituais
apresentam uma eficácia na reintegração social dos vete ranos que se deve em
grande medida à coerência que mantêm com os sistemas locais de interpretação do
infortúnio, com o problema que pretendem resolver e com procedimentos
previamente conhecidos e respeitados. O seu papel superou contudo a
reintegração indi vidual, tendo contribuído para a aceitabilidade dos antigos
inimigos enquanto "personas como as outras" e da competição
democrática por meios pacíficos, em substituição do confronto militar.
Palavras-chave: rituais de limpeza, guerra civil, violência, trauma,
curandeiros, Moçambique
Abstract
This article presents and discusses the cleansing rituals performed by healers
on vet erans of the Mozambican civil war, in the south of the country. Those
rituals recycled treatments previously used for other stressful social
situations, together with their ration ale. Such cleansing rituals had a
remarkably successful contribution to veterans' social reintegration,
largely due to their coherence with the local systems of misfortune inter
pretation, with the problem they intended to solve, and with well known and
respected proceedings. However, their role was deeper than the reintegration of
individual veterans; they also contributed to the acceptance of the former
enemies as "people like the other" and of the pacific democratic
competition, as a substitute to the military confrontation.
Keywords: cleansing rituals, civil war, violence, trauma, healers, Mozambique
Irei, no presente artigo, descrever o tipo de tratamentos de limpeza que os
médicos tradicionais (tinyanga)1 do sul de Moçambique oficiaram aos veteranos
da guerra civil que assolou o país até 1992, discutindo a sua contribuição
tanto para a reintegração social desses ex-combatentes, quanto para tornar
popularmente aceitável a concorrência política pacífica entre as anteriores
forças beligerantes.
Na leitura que deles farei, estes rituais de limpeza afiguram-se como uma
negociação social tácita, em que o veterano é desculpabilizado dos actos
bélicos cometidos, através da circunscrição destes a um tempo e condições de
excepção (a guerra), a troco da sua renúncia a tais actos e ao poder que
representam, no tempo e condições normais (de paz) que doravante se iniciam. A
submissão ao ritual representa, para além dessa separação entre diferentes
registos de realidade e de comportamento, uma anulação do perigo que o veterano
constitui e uma sua protecção contra reincidências na violência - que é
também uma protecção da comunidade.
Este tipo de tratamento ocorreu em contextos rurais e urbanos. No entanto,
saliento a restrição do seu âmbito geográfico ao sul do país, pois o
procedimento que abordarei constitui uma extrapolação para os veteranos de
rituais localmente aplicados a outras situações, em substituição de limpezas
pós-guerra historicamente conhecidas mas entretanto caídas em desuso. Essa
reapropriação tornou-se particularmente adequada porque, por um lado, atribui a
perigosidade social do veterano (e a sua superação) a razões que não decorrem
imediatamente dos seus actos bélicos e, por outro, se integra numa codificação
"étnica" dos espíritos de cura que é, também ela, adequada para
expressar as partes envolvidas no conflito. Noutras regiões de Moçambique, a
indisponibilidade destas duas características terá dificultado a adopção de
soluções rituais tão estáveis, parecendo ser, aí, relativamente frequente a
ocorrência de perturbações pós-traumáticas, que são atribuídas a espíritos
resultantes da guerra e estranhos aos grupos locais - sejam esses
espíritos moçambicanos (Marlin, 2007) ou estrangeiros (Igreja, 2007).
Baseio a descrição e análise que se segue em dados recolhidos desde 2004,
resultantes de conversas com vários tinyanga, com veteranos que foram
submetidos a este processo de limpeza e com familiares seus2, a par da
observação de um ritual de limpeza pós-prisão que, conforme veremos, é em quase
tudo semelhante aos rituais pós-guerra. Fui inspirado, nalgumas linhas que
esses contactos tomaram, por conversas informais que fui mantendo, ao longo dos
últimos 25 anos, com veteranos portugueses das guerras mantidas nas ex-colónias
entre 1961 e 1974.
Regresso a casa
Moçambique viveu, desde pouco depois da sua independência até 1992, uma guerra
civil particularmente violenta em termos físicos e simbólicos.
Aquilo que começou por ser um conjunto de pontuais acções de sabotagem
realizadas por um grupo restrito, apoiado directamente pelos regimes rodesiano
e sul-africano (Vines, 1991), acabou por se transformar numa guerra em larga
escala, que se pôde alongar no tempo e alargar no espaço devido à
capitalização, por parte do movimento rebelde RENAMO, de insatisfações rurais
contra pontos sensíveis da agenda modernista do Estado (detido pela FRELIMO) e
a forma autoritária como estes eram impostos (Geffray, 1991)3.
Raramente os dois beligerantes buscaram o confronto directo, excepto em locais
e momentos em que um dos lados acumulava uma superioridade numérica
avassaladora - conduzindo, não ao combate, mas à rápida retirada da força
oponente (Geffray, 1991). A guerra era, dessa forma, sobretudo focada nas
populações civis, com raides e diferentes tentativas de as manter sob controlo.
Se muitos testemunhos salientam que, à medida que a guerra se arrastava, o
comportamento de ambos os oponentes se tornava progressivamente semelhante, o
modus operandi das tropas da RENAMO recebeu bastante mais atenção, em parte
devido ao controle da FRELIMO sobre os media e as cidades. Dessa forma, são bem
conhecidas as emboscadas dirigidas contra viaturas civis e os assaltos a
povoações desguarnecidas e desarmadas, acompanhados de alvejamentos
indiscriminados e seguidos de pilhagem, de assassinatos selectivos (na pessoa
das figuras sociais representativas do oponente, como o secretário, o professor
ou o enfermeiro) e de raptos. Mas as acções da RENAMO a que o discurso oficial
chamava "raptos" eram, entretanto, uma das missões prioritárias do
exército estatal, embora sob o nome de "recuperação de populações".
Até o recrutamento para ambas as forças acabou por apresentar razoáveis
similitudes. Enquanto o exército perseguia os jovens pelas ruas das cidades e
vilas para fazer deles conscritossine die, as tropas da RENAMO levavam-nos das
povoações que assaltavam. Com a importante diferença de, em vez de usarem a
recruta e os regulamentos militares para assegurar a obediência e procurar
evitar as deserções, as incorporações compulsivas da RENAMO em zonas adversas
serem frequentemente marcadas pelo desempenho forçado de actos considerados
repulsivos, desumanizantes e imperdoáveis, que pretendiam "cortar as
pontes" entre os recrutados e as suas comunidades de origem, impedindo-os
de desertarem, regressando a casa (Castanheira, 1999; Geffray, 1991). Dessa
forma, jovens e crianças podiam, por exemplo, ser forçados a matar parentes
próximos, a usar crânios humanos como copos, ou a comer pedaços dos seus
vizinhos ou parentes.
Conforme Michel Cahen (2002) refere com alguma perplexidade, os raptos de
guerra propriamente ditos, apesar de serem considerados acontecimentos
violentos, trágicos e lamentáveis, parecem ser encarados com surpreendente
naturalidade pelas suas vítimas directas e pelas respectivas comunidades.
Sugere este autor que tal se deva à memória histórica e habituação colectiva,
por parte de populações sucessivamente vitimadas por raides esclavagistas e
rusgas para trabalho forçado. A essa possível razão dever-se-á, creio, juntar
uma outra: o conhecimento popular de que a guerra "tradicional"
incluía o direito ao rapto de mulheres e de que a RENAMO se reclamava como
defensora da "tradição"4.
No entanto, esse efeito de naturalização não recai sobre actos deliberadamente
repulsivos como o canibalismo e o homicídio de membros da família ou da
comunidade, nem tão-pouco sobre as torturas, humilhações e morticínios impostos
pelos homens armados às populações desarmadas - quer por estes actos
surgirem como afirmações gratuitas e abusivas de poder, que em muito
ultrapassam o comummente aceite "dever do soldado", quer pelo seu
contraste com a moderada vontade de se confrontarem entre si que os
beligerantes pareciam demonstrar.
Dessa forma, a desmobilização dá-se num quadro de condições e sentimentos
ambíguos, tanto para os veteranos quanto para as suas famílias e comunidades de
origem.
Estas últimas ansiavam pelo regresso dos seus membros, mas tal anseio não
estava isento de receios e de incertezas.
Se era um dos seus que aguardavam e deveriam acolher como tal, que perigos
representaria? Mesmo que não o tivessem visto realizar actos repulsivos e
reprováveis (que, por si só, exigiriam alguma forma de os superar), ou tivessem
disso notícia, tê-los-ia ele ou não praticado? Se não o fizera, teria pelo
menos adquirido o conhecimento e o hábito de matar. Em que medida esse
conhecimento e hábito o tinham marcado? E em que medida podiam fazer perigar os
que agora se dispunham a acolhê-lo?
Mas também muitos veteranos estavam divididos por ambiguidades.
Nunca os ouvi (ou aos estudiosos desta matéria) referirem casos de quem não se
tivesse congratulado por deixar de estar sob ameaça de morte e sob necessidade
de praticar actos de violência extrema. Mas, ao mesmo tempo, eram frequentes os
receios acerca da forma como iriam ser recebidos e, por outro lado, o fim da
guerra não representava para eles apenas o fim de situações traumáticas.
De facto, os veteranos moçambicanos com quem pude contactar sentiram algo que,
embora normalmente escamoteado nos discursos que são construídos acerca dos
seus congéneres (nesta e noutras guerras), já tinha ouvido a veteranos
portugueses de 1961/1974.
Estes últimos, embora dominassem o discurso de vitimação do agressor que está
subjacente ao uso do conceito de stress pós-traumático de guerra, em particular
desde a guerra do Vietname, expunham também um quadro bem diferente: a par da
sintomatologia que costuma receber mais atenção, o choque do regresso era
também o choque de um violento contraste entre a liberdade e poder sentidos na
guerra e a subalternidade e insignificância sentidas na paz. Saídos de lugares
repressores e reprimidos, esses jovens foram conduzidos a sítios bem
diferentes, onde lhes foi dado poder de vida e morte sobre outros seres
humanos, esperando-se depois que, regressados ao lugar de origem, se
continuassem a submeter a qualquer notável local. Mas essas figuras de
autoridade pareciam-lhes agora insignificantes, por não terem vivido as suas
experiências nem o seu poder de infringir os mais graves interditos sociais,
sendo louvados por isso; as relações de submissão que se tinham habituado a
considerar "naturais" pareciam agora absurdas, por se ter esvaziado
a sua legitimidade e pelo seu contraste com o poder experienciado na guerra
- sendo por isso sentidas como agressões e suscitando reacções
agressivas, anti-sociais.
Normalmente recrutados muito jovens, os veteranos moçambicanos passaram por uma
experiência semelhante, tanto mais que - particularmente em contexto
rural - a sua idade lhes fornecia, antes, uma longa lista de pessoas com
autoridade sobre si. E, surpreendidos por eu levantar a questão, vários deles
me confirmaram que, independentemente do maior ou menor sucesso com que
conseguiram gerir o seu regresso a uma relativa insignificância social, a
percepção do poder de vida e de morte que detinham lhes suscitava prazer, mesmo
que não gostassem de matar.
Assim, e mesmo que vários programas internacionais de apoio à desmobilização
não tivessem sido marcados por importantes deficiências (Alden, 2002), as
ambiguidades que referi criavam um quadro que tornava inviável tratar o
regresso dos veteranos a casa como um acontecimento trivial e como se nada de
particularmente importante tivesse acontecido. Tão-pouco era esse o hábito
local em caso de situações bélicas, estando bem presente nas memórias e nos
registos etnográficos (Junod, 1996 [1912]) a necessidade de realizar rituais de
limpeza aos regressados.
Parte dos rituais que têm recebido essa designação foram já objecto de
referências ou mesmo de descrições, com destaque para aquelas realizadas por
Alcinda Honwana e Edward Green (Green & Honwana, 1999; Honwana, 1999)
acerca de contextos rurais. Trata-se dos ritos públicos envolvendo toda a
aldeia, que parecem apresentar uma estrutura estável e muito abrangente em
termos geográficos: quando o veterano chegava, era-lhe enviado um delegado da
família ou da comunidade, que o recebia fora da aldeia e supria as suas
necessidades imediatas, mas sem o autorizar a entrar. O veterano era segregado
da zona residencial até se submeter a uma limpeza ritual, posto o que era
anunciada aos antepassados a sua chegada e ele era recebido festivamente por
todos. Durante todo o processo, contudo, não se deveria falar daquilo que o
veterano fez ou presenciou durante a guerra, considerando-se que fazê-lo seria
perigoso tanto para ele como para a comunidade5.
Pude entretanto confirmar que também em zonas urbanas e peri-urbanas foi
aplicada esta mesma estrutura ritual, apenas com as necessárias adaptações ao
espaço e à sua ocupação. Assim, o que num caso eram os limites do aldeamento
passou a ser, no outro, a cerca circundando a residência familiar e respectivo
quintal, mantendo-se inalterados os procedimentos.
Passem-se estes nos campos ou nas cidades, contudo, é imediato verificar que
eles seguem a morfologia dos ritos de passagem (van Gennep, 1978; Turner, 1967)
e que, ao contrário da psicoterapia, enfatizam o "recomeço em
branco" alcançado pelo veterano e o seu subsequente acolhimento
colectivo, em vez de promoverem uma verbalização de acontecimentos traumáticos.
Devo contudo sublinhar que esses ritos comunitários não fariam muito sentido
neste contexto cultural (nem teriam sequer bases lógicas para a sua
realização), se não fossem acompanhados de outros menos públicos, dirigidos por
especialistas reconhecidos. São estes últimos que passarei a expor.
Acções preliminares e domesticação da incerteza6
Os tinyanga costumam afirmar que os actuais rituais de limpeza derivam
directamente daqueles que eram realizados no século XIX, durante as invasões
Nguni que deram origem ao império de Gaza7 e ainda perduram, no imaginário
popular do sul de Moçambique, como o arquétipo da guerra e das práticas
curativas contemporâneas. Aliás, as próprias características atribuídas aos
tinyanga reproduzem a memória dessas invasões e guerras visto que, para poder
desempenhar todas as tarefas ao alcance do seu estatuto, um curandeiro terá que
ser possuído por espíritos oriundos dos três grupos "étnicos" que
tiveram nelas os papéis mais salientes (o invasor Nguni, o antepassado
Changana/Ronga que foi por ele dominado e integrado e o Ndau do centro do país,
cuja resistência é atribuída a poderes espirituais reconhecidos até hoje), que
trabalham sob a supervisão de um espírito Nguni durante os rituais mais
importantes.
De acordo com esses especialistas, os velhos rituais incluíam, antes das
batalhas, o consumo de bebidas contendo partes de pessoas sacrificadas para
esse efeito e, após o regresso dos guerreiros, algo de similar aos
procedimentos actuais. No entanto, as descrições orais com que nos deparamos
são quase sempre vagas e começando por um dubitativo "diz-se
que...".
As descrições que Henry Junod nos legou são mais precisas e temporalmente
próximas dos acontecimentos, embora tenham sido recolhidas em segunda mão e se
refiram a práticas que já tinham sido abandonadas ou estavam em vias disso, em
resultado da ocupação colonial efectiva do território. De facto, embora se
registem acções esporádicas de resistência guerreira ao longo da primeira
metade do século XX, seja plausível que alguns conflitos entre grupos locais
tenham passado despercebidos às autoridades administrativas e que também os
confrontos luso-germânicos no norte de Moçambique - durante a I Guerra
Mundial - possam ter suscitado rituais de preparação e de limpeza, a
guerra grosso modo cessa, enquanto actividade autóctone, até ao início da luta
armada contra o regime colonial.
As informações mais completas e diversificadas que este autor nos proporciona
dizem respeito aos rituais de preparação para a guerra que seriam praticados no
século XIX (Junod, 1996 [1912], pp. 410-413). Foi-lhe dito que todos esses
ritos tinham como objectivos expulsar o medo e a "boa consciência",
empolar o ódio e proteger os guerreiros das armas inimigas, embora a sua forma
variasse muito de grupo para grupo. Alguns envolveriam bebidas, outros a
aspersão das tropas ou o consumo de carne tratada com medicamentos mágicos mas,
embora a prática de canibalismo simbólico seja uma referência arreigada no
imaginário popular, apenas é mencionada num dos casos descritos. Junod também
refere alguns rituais de limpeza pós-guerra (ibid., pp. 420-424), bastante
semelhantes ao "kufemba de plantas" de que adiante falaremos, mas
no século XIX eles apenas abrangeriam os guerreiros que mataram adversários e
não, como hoje em dia, qualquer pessoa que tivesse estado presente em cenários
de guerra.
Comparando as descrições do passado e os rituais do presente, muitas e
importantes diferenças são detectáveis. Ambos parecem, no entanto, manter uma
continuidade lógica e uma estreita ligação a noções de saúde, de perigo e de
infortúnio que surgem, também elas, como razoavelmente antigas.
Esta ligação torna-se evidente desde o primeiro acto do processo de limpeza.
Logo depois de declarar o intuito da sua visita ao nyanga8, o paciente é
submetido a um diagnóstico da sua real situação e dos perigos que o ameaçam.
Isto é feito através de adivinhação, usando um conjunto de ossos, búzios,
carapaças de tartaruga, pedras, moedas e invólucros de sementes chamado
tinhlolo9. O acto tem um duplo objectivo: primeiro, estabelecer se o paciente
ficou possuído por algum espírito e se apresenta algum problema de saúde que
exija tratamento complementar; em segundo lugar, determinar que acções
específicas devem ser realizadas de forma a limpá-lo, protegê-lo e, se
necessário, tratá-lo.
Os procedimentos seguintes dependerão do resultado deste processo inicial de
adivinhação - que, de facto, pouco difere de qualquer outra sessão de
adivinhação realizada por um nyanga, tenha ela em vista resolver problemas
sociais ou de saúde. A razão é que, de acordo com as noções localmente
dominantes, mente e corpo, saúde e relações sociais, vivos e espíritos dos
mortos, não funcionam de forma independente, sendo antes partes de um mesmo
processo global e integrado.
Figura 1: Sequência ritual
Como o acaso não é reconhecido como algo de real, qualquer infortúnio (tal como
qualquer "golpe de sorte") requer outra explicação para além das
causas materiais imediatas que conduziram ao acontecimento indesejado; estas
últimas apenas explicam de que forma o evento ocorreu, mas é ainda necessário
compreender por que razão essa ameaça externa causou danos àquela pessoa
específica10. Sinteticamente, é assumido que estamos rodeados por muitos
perigos materiais, mas eles apenas nos afectarão devido a três possíveis
razões: (i) a nossa negligência ou incapacidade para os reconhecer e evitar;
(ii) um acto de feitiçaria; (iii) uma ausência de protecção por parte dos
nossos antepassados, tendo em vista repreender-nos ou chamar a nossa atenção.
De facto, tal como acontece com os parentes mais velhos, os antepassados têm o
dever tanto de proteger, quanto de guiar e corrigir os seus descendentes.
Contudo, como são apenas a parte sobrante e incompleta do ser humano que em
tempos foram, não têm a capacidade de comunicar directamente com eles. Assim,
quando os queiram admoestar ou apenas indicar que desejam dizer-lhes alguma
coisa (através do transe ou da adivinhação de especialistas), o único recurso
de que dispõem é suspender a sua protecção ou propiciar acontecimentos
indesejáveis.
Conforme seria de esperar, também a etiologia das doenças segue estes
princípios, baseados na inadequação ou confronto sociais. A saúde é considerada
o estado natural dos indivíduos, mas requer harmonia entre os vivos e o seu
ambiente ecológico e social, incluindo nele os seus antepassados.
Consequentemente, para além da acção directa das três causas que antes
mencionei (negligência do próprio, descontentamento dos antepassados e
feitiçaria), a saúde pode apenas ser ameaçada por duas projecções indirectas
desses princípios: a possessão do indivíduo por espíritos que exigem a sua
reconversão em curandeiro, ou o contacto com espaços onde se acoitavam
espíritos errantes e insatisfeitos.
Clarificarei em breve a importância central que este último perigo assume, na
gestão do assunto que temos entre mãos. No entanto, devo desde já sublinhar
que, como corolário destas noções de saúde e infortúnio, uma manifestação
física de doença pressupõe uma falta de equilíbrio espiritual, que por sua vez
pressupõe a existência de causas sociais. Dessa forma, não basta tratar a
doença; é também necessário restabelecer o equilíbrio social (incluindo a
harmonia com os antepassados, que estão intrincados nas redes de relações
sociais), ou o problema continuará a reaparecer.
O dilema de um nyanga que dirige um ritual de limpeza é, afinal, semelhante a
este. Ele sabe, à partida, que deve purificar o corpo do veterano, limpar a sua
cabeça e protegê-lo contra futuros problemas. Mas tem que descobrir se o
paciente também sofre de doenças físicas ou mentais (que necessitarão de
tratamento complementar) e se esses problemas podem resultar de possessão, da
interferência de espíritos que o seguiram, ou da acção de antepassados -
o que, em cada um dos casos, requer diferentes procedimentos rituais.
Qualquer que seja o diagnóstico, contudo, o passo seguinte será sempre o mesmo.
Em changana, a língua mais falada no sul de Moçambique, chama-se kugiya, ou
"simular uma luta".
O paciente deve imitar, com um pau de pilão substituindo uma arma, as lutas e
mortes em que se envolveu durante a guerra - ou aquelas que viu pois,
para além dos combatentes, também os indivíduos que presenciaram acções bélicas
devem ser submetidos a rituais de limpeza. Ao fazê-lo, o veterano está a
assumir os seus actos passados e a iniciar um processo de catarse; mas isto é
feito de uma forma ritualizada e não verbalizada que tem mais a ver com uma
representação dramática do que com um reviver da situação e um emergir da
culpa.
Por um lado, como nos quadros rituais e simbólicos predominantes na região, o
pau de pilão é um signo da família e da casa, o seu uso - em vez de
qualquer outro objecto mais semelhante a uma arma - enfatiza a ruptura
entre o contexto da representação e o acto representado, remetendo este último
para um espaço exógeno e um tempo ultrapassado.
Por outro, o objectivo implícito da performance não é, de todo, concentrar-se
na culpa, mas contorná-la e superá-la através de uma naturalização de actos
excepcionais no seu contexto restrito de condições, também elas excepcionais.
Nas palavras de um nyanga, "Na guerra, as pessoas matam e acontecem
coisas terríveis. Mas a guerra é assim; as coisas estão viradas ao contrário e
você está virado ao contrário. Espera-se que você mate; não é bem culpa sua,
você é uma pessoa diferente, lá". Por isso, esta acção de psicoterapia
alternativa deve sempre ser observada pelo curandeiro com um semblante neutro,
independentemente da crueldade daquilo que esteja a ser representado na sua
presença.
Em suma, os actos de guerra - incluindo eventuais atrocidades, segundo os
critérios locais - são "arrumados" num contexto em que se
tornam toleráveis, mas que ao mesmo tempo se reafirma ultrapassado e
incompatível com o actual.
Quando o veterano "carrega espíritos"
A continuação do ritual depende do diagnóstico que foi feito. Se a adivinhação
não indiciou a possessão por espíritos de pessoas mortas pelo paciente, ou por
espíritos que as acções de guerra tivessem perturbado, pode dar-se início ao
tratamento de limpeza propriamente dito. Caso contrário, será necessário
realizar, antes disso, aquilo a que poderíamos chamar um exorcismo.
Este recebe a designação geral de kufemba, mas pode assumir três diferentes
formas: a fumigação com incensos especificamente destinados a esse fim; um
suadouro com vapor de plantas e outros produtos medicinais (o chamado kufem ba
de plantas); e o kufemba com xizingo, em que os espíritos que possuem o
curandeiro detectam e expulsam aqueles que afligem o paciente.
Quando lidam com limpezas pós-guerra, contudo, os tinyanga preferem normalmente
jogar pelo seguro e combinar todas estas formas de exorcismo.
O veterano é, então, coberto com capulanas11 e sentado junto de um pedaço de
incenso ardente, assim ficando até que ele se consuma.
Nesse momento, o curandeiro, envergando a capulana do espírito que com ele
efectuará o kufemba seguinte, empunha o seu tchova(uma cauda de gnu que tem
dentro da pega alguns pêlos de cauda de hiena - o xizingo) e passa-
o sobre o paciente, ao mesmo tempo que o cheira. Ao encontrar o espírito que
aflige o cliente, toma a decisão final sobre se basta expulsá-lo do seu corpo,
ou se é necessário deixá-lo falar. Neste último caso, o nyanga entra em transe
profundo e vocaliza as queixas e exigências desse espírito, que deverão ser
respeitadas por forma a apaziguá-lo e a restaurar o bem-estar do paciente.
Se tal espírito for reconhecido como alguém que o veterano matou, será de
esperar a exigência de cerimónias fúnebres, que em casos excepcionais deverão
ser realizadas na zona de origem do defunto e ser acompanhadas de ofertas
compensatórias à sua família. Se se trata de um espírito que vagueava pelo
cenário de guerra e se limitou a seguir o paciente, a exigência mais comum será
um sítio para viver - que pode ser apenas uma "palhota" feita
com uma panela tapada, para o proteger da chuva, que lhe será ritualmente
oferecida e escondida numa zona de mato.
Seja qual for o caso, é suposto que o kufemba com xizingo assegure a expulsão
do espírito que possui o paciente. Não obstante, as outras formas de exorcismo
são em seguida usadas, de forma a reforçar a eficácia e irreversibilidade do
processo. A razão para este cuidado suplementar é a ideia de que alguns
espíritos podem ser suficientemente "espertos" para perceberem o
que se irá passar, aguardando o regresso do paciente à porta do curandeiro,
enquanto outros podem ser tão persistentes que o voltem a possuir quando se
encontra desprotegido, durante o interregno entre o kufemba com xizingo e os
rituais de limpeza propriamente ditos.
Assim, o paciente regressa de imediato para a fumigação com incenso, enquanto o
nyamusoroprepara os produtos necessários ao kufemba de plantas.
Os produtos - uma mistura de plantas, ovo e extractos de animais -
são inicialmente espalhados sobre o corpo do paciente, que é em seguida lavado
com água potável e "metido na panela". Esta enfática expressão
local designa aquilo que é apontado como a mais assustadora fase do ritual, do
ponto de vista de quem a ele é submetido. Após inalar uma mistura de plantas
piladas12, o paciente é sentado junto de uma panela onde ferve a mesma mistura
medicinal que havia sido espalhada sobre si e ali é mantido, coberto por
capulanas e suando abundantemente. O nyanga começa por passar o seu tchovasobre
as capulanas que cobrem o paciente, enquanto apela cadenciadamente aos seus
espíritos para que expulsem qualquer espírito abusivo que o possa estar ainda a
afligir. Tapado e em escuridão, o paciente ouve e sente este procedimento ao
longo de uns três minutos, sem saber o que acontecerá em seguida ou quando
acabará esta "sauna", que ainda terá que suportar por mais de meia
hora. Devido ao calor e à tensão, por vezes reforçada por alguma debilidade
física, há veteranos que desmaiam a meio do tratamento, ou no momento em que
são destapados.
No fim deste processo, contudo, assume-se que estarão livres de espíritos e
temporariamente protegidos contra eventuais tentativas de re-possessão, devido
à inclusão de ovo no preparado medicinal a que foram submetidos. De facto, os
tinyanga consideram que "não se pode enganar aquilo que não fala".
Como o ovo está estreitamente relacionado com a vida mas não fala, é utilizado
para criar uma barreira contra intrusões baseadas no embuste, tornando-se
igualmente útil quando o objectivo de um tratamento é proteger uma casa ou
propriedade pessoal.
Após o kufemba de plantas, então, os pacientes que haviam sido considerados
possuídos podem reentrar no processo geral de limpeza, que os restantes
prosseguem logo depois dokugiya. Deveremos contudo reter que, de acordo com os
especialistas locais, o espírito que é expulso através desta acção tanto pode
ser alguém que foi morto pelo veterano, como por outra pessoa, como ainda algum
espírito cujo ambiente habitual tivesse sido perturbado pela guerra. Para além
disso, nos dois últimos casos o espírito poderia não ter qualquer intenção de
possuir a pessoa em definitivo, tendo-se apenas limitado a acompanhá-la e a
criar problemas à sua volta, com o objectivo de ser detectado e ouvido.
É essa a razão por que toda a gente que esteve envolvida em acções de guerra,
ou mesmo se limitou a passar por onde uma batalha tenha ocorrido, deverá ser
submetida a rituais de limpeza. De acordo com uma lógica que os torna também
necessários noutras circunstâncias, o principal perigo não é - ao
contrário do que Junod (1996 [1912]) apontou para o século XIX - a
possível vingança daqueles que matámos, mas o nosso contacto com lugares onde
muita gente sofreu e muitos espíritos ficaram abandonados e sem rumo, podendo
por isso seguir-nos. Efectivamente, dizem os tinyanga que os espíritos
"são como os patos quando saem do ovo, seguem a primeira coisa que mexe,
para tomar conta deles"; mas, a partir do momento em que o fazem, a
necessidade de mostrarem a sua presença irá provocar problemas a essa pessoa e
a todos os que interajam com ela.
É aliás esta etiologia do infortúnio que faz com que, a par dos dois tipos de
ritos que inicialmente referi, sejam realizados rituais de limpeza que não são
dirigidos a pessoas, mas aos locais onde ocorreram combates ou mortes durante a
guerra - particularmente, mas não apenas, se é pressuposto que lá existam
cadáveres, enterrados ou insepultos.
Continuação do ritual de limpeza
Se esta é a explicação subjacente à necessidade de rituais de limpeza, os
tinyan ga estão simultaneamente conscientes de que uma experiência traumática
pode, por si só, provocar desordens mentais, e de que limpar a cabeça do
cliente é sempre uma questão central, estejam ou não envolvidos fenómenos de
possessão.
De facto, os curandeiros tradicionais que fui conhecendo não correspondem de
todo aos habituais estereótipos de indivíduos divagando num qualquer mundo
mágico, nem de manipuladores que vivem de explorar a ingenuidade alheia -
e se há provavelmente um significativo número destes últimos, duvido que os
primeiros existam de todo.
Eles estão seguros dos princípios holísticos de saúde que são partilhados na
sua profissão e sociedade, tal como da existência de espíritos e do papel que
estes desempenham na regulação da saúde e da vida; mas também se interessam por
outros tipos de explicações para cenários específicos e tentam, com frequência,
integrá-las no seu quadro de noções e de práticas. De facto, não estão
restringidos ao idioma heurístico dos espíritos mas - pelo contrário
- equacionam os elementos físicos, psicológicos e sociais envolvidos em
cada caso concreto, frequentemente questionando em privado a eficácia de alguns
procedimentos "tradicionais", que chegam a referir como teatro.
Finalmente, as suas interpretações acerca de várias doenças são isomorfas das
produzidas pela biomedicina e - conforme demonstram os estudos de Edward
Green (1999) e de Harry West (2004) - estas atitudes estão demasiado
generalizadas para que possam resultar de algum particularismo regional, ou da
relação inter-subjectiva que mantenho com estas pessoas.
Assim, os curandeiros têm uma preocupação genuína com os efeitos mentais das
experiências traumáticas de guerra, combatendo-os através de medicamentos
específicos e do impacto psicológico do hlambo, o "banho".
De preferência, este passo seguinte do ritual de limpeza deverá ser realizado
na margem de um rio, pois os tinyanga atribuem às águas fluviais a capacidade
de "carregar" consigo coisas indesejadas, tal como se pretende
neste caso. Águas de diferentes origens assumem, de facto, uma grande
importância nos seus preparados medicinais. Pelo mesmo processo de metáfora e
metonímia aplicado à água dos rios, a água dos lagos é utilizada para fixar um
efeito desejado (porque "tudo o que cai nos lagos fica lá"),
enquanto a água do mar é usada para expulsar coisas indesejadas, pois
"tudo o que se manda para o mar ele deita fora, vem dar à costa mais
tarde ou mais cedo".
O curandeiro leva já preparadas as misturas terapêuticas de que irá necessitar
e, chegados ao local, o paciente é sentado na margem, vestindo apenas uma capu
lana à volta da cintura. Um cabrito é então degolado sobre a sua cabeça, sendo
a pessoa coberta com o sangue do animal e com o conteúdo do seu bucho13.
Ao contrário do que possa parecer, este banho de sangue não tem qualquer
relação directa com violências ou mortes bélicas. Por um lado, porque ele
assume o papel central em muitos outros tratamentos bem mais frequentes do que
este ritual, sempre com o significado e objectivo de purificar a pessoa e de a
libertar do infortúnio que a fez procurar ajuda. Por outro, porque a utilização
terapêutica do sangue decorre, independentemente da vertente sacrificial que
também transporta, de uma lógica de anulação da impureza através do seu
contacto íntimo com elementos puros14 - um papel desempenhado, de forma
algo inesperada, por esse sangue de animais domésticos considerados mansos,
cuja capacidade purificadora é frequentemente potenciada pela ingestão de
medicamentos de limpeza, antes de serem degolados.
No entanto, esta lavagem exterior não está completa nem é eficaz sem a
realização de três outras acções.
Em primeiro lugar, o paciente é lavado do sangue e vísceras do cabrito dentro
do rio e desamarra a sua capulana - que, tal como a sujidade, é levada
pela corrente. Este detalhe tem uma dupla importância, pois para além do
sentido imediato de se livrar da impureza (quase de se livrar de uma pele
indesejada), o próprio acto de desamarrar alguma coisa que estivesse atada,
como era o caso da capulana, assume localmente o significado ritual e simbólico
de uma quebra com o passado e de uma mudança de situação, ou mesmo de estatuto.
Imediatamente depois, o paciente é lavado com uma mistura de remédios
dissolvidos em água do mar. Os seus componentes são sobretudo plantas, sendo a
base botânica da mistura habitualmente constituída por muhlanhlovo e tita
(também usadas em "banhos" com outros fins), a par da raiz e folhas
de ximafa ma, uma planta especificamente ligada a purificações de luto, mesmo
se também apresenta outros usos terapêuticos. A composição completa da mistura,
contudo, varia de especialista para especialista e de região para região
- sendo, por exemplo, reconhecido aos curandeiros de Inhambane um
superior conhecimento acerca de plantas relacionadas com rituais de morte, que
os seus colegas da zona de Maputo atribuem à "bem grande importância que
as pessoas de lá dão aos assuntos de morte".
A limpeza externa fica completa com esta ablução, mas é ainda necessário tratar
da lavagem interna do paciente. Esta é feita através da administração de dois
produtos diferentes. Um deles é uma bebida destinada a induzir uma diarreia
ligeira - efeito que, aliás, é popularmente referido como limpeza interna
e considerado necessário à manutenção da saúde. O segundo produto assume a
forma de gotas que são introduzidas nas narinas do paciente, a fim de limpar o
cérebro e expulsar dele as ideias más.
No entanto, por vezes os rios ficam a uma grande distância do terapeuta e do
paciente. Quando tal acontece, todo o processo pode ser realizado no quintal do
nyanga, mas tem que sofrer adaptações, de forma a substituir aquelas afirmações
simbólicas que apenas se tornavam possíveis num rio. Por exemplo, o paciente é
sentado dentro de uma cova que foi cavada para este tratamento, e a lavagem
posterior ao banho de sangue será feita com uma mistura de água de rio e de mar
- que o curandeiro não terá habitualmente de encomendar para este efeito,
pois costumam fazer parte da sua farmácia privativa. No final da cerimónia, o
paciente sairá nu dessa cova, deixando lá a capulana para ser queimada junto
com o sangue e produtos que o cobriram, sendo o buraco coberto mal o fogo se
apaga.
Realize-se esta fase junto do rio ou no consultório do nyanga(ou ainda numa
encruzilhada de caminhos, deixando que o vento acabe por arrastar a capulana
ensanguentada, embora esta variante seja considerada perigosa para terceiros)
15
, podemos dizer que, neste momento, o paciente já fez tudo o que era necessário
para a sua reintegração na comunidade. Está agora limpo, mas é ainda
considerado vulnerável a futuros ataques espirituais, pelo que precisa ainda de
ser submetido a tratamentos complementares.
Estes são, de facto, similares aos de qualquer outro caso que requisite
protecção e boa sorte.
O primeiro passo é uma nova lavagem, agora com um composto de medicamentos
considerado protector e propiciatório. Junto com várias plantas, minerais e
gorduras animais, o ovo é de novo utilizado - desta vez acompanhado de
plantas "anti-deslizantes" que compensam a sua superfície
escorregadia e, ao fazê-lo, evitarão que o paciente "escorregue para
erros e maus comportamentos".
A conclusão do processo será a administração da chamada vacina, destinada a
"fechar" o corpo do paciente aos espíritos e à feitiçaria. Consiste
na inoculação de uma pasta medicinal em várias incisões na pele, que hoje em
dia são realizadas com uma lâmina de barbear fornecida pelo cliente, devido aos
perigos de transmissão do VIH.
As incisões são feitas nos locais do corpo considerados mais vulneráveis e
adequados à entrada de espíritos e feitiços: a cabeça, o peito, as costas, os
rins e as articulações dos membros. Se isto é conhecido pela generalidade das
pessoas e uma prática recorrente e esperada, a mistura medicinal a ser
inoculada é quase sempre objecto de segredo, pois cada curandeiro inclui alguns
componentes particulares que considera mais-valias na sua concorrência
profissional com os colegas. Contudo, a vacinainclui sempre um pouco dos óleos
que o nyamusoroguarda dentro da gona, a cabaça onde se crê seja mantida uma
concentração material do seu poder espiritual.
Passagem e perigo
Após este longo processo, o paciente está finalmente purificado do passado,
propiciado e protegido para o futuro - protegido não apenas de factores
externos, mas até de si próprio, devido aos medicamentos "anti-
deslizantes" que lhe foram ministrados. Está livre de ameaças espirituais
e deixou, com isso, de ser uma fonte de ameaça para os outros. Pode, agora, ser
reintegrado na sua família e comunidade, através de outras ritualizações em que
todos os seus membros participem.
As ritualizações deste segundo tipo são necessárias porque, conforme acontece
com frequência em diversos contextos, o ritual de limpeza que descrevi
constitui um rito de passagem dentro de outro rito de passagem.
Refiro-me - para os menos familiarizados com esta categoria do património
antropológico - a um tipo de processo ritual muito recorrente em
situações de mudança de estatuto, que se caracteriza por um estado mutável e
liminar do indivíduo (ou de um grupo) ser afirmado e contido, em termos
cronológicos e simbólicos, entre ritos de separação e de reintegração social
(van Gennep, 1978; Turner, 1967).
A sua pertinência para o caso em análise não se limita à evidente constatação
de estarmos perante um processo de mudança de estatuto e identidade social, que
visa a reintegração e pressupõe uma prévia ruptura - o que, aliás, nem
bastaria para o identificarmos como rito de passagem nem tornaria, por si só,
particularmente relevante essa identificação.
Acontece contudo que, desde a representação dramatizada do kugiya (que
enfatizou o estatuto de veterano detido pelo paciente e a assunção por este de
um carácter perigoso ao iniciar o processo de purificação), todo o ritual de
limpeza constitui uma sistemática reiteração de cinco afirmações interligadas:
o perigo que ele enfrenta e que continua a representar, a impureza que carrega
consigo, a necessidade de ser limpo dessas características e a eficácia do
processo pelo qual está a ser limpo e mudado. Afinal, todo o processo
constitui, a par de uma técnica de transformação, uma afirmação repetida do seu
estado de mutação liminar e das razões que lhe subjazem. Quando -
passados o rito de separação e os diversos ritos liminares - ele
finalmente desamarra a sua capulana e a deixa vogar na corrente, torna-se uma
pessoa diferente, livre desses perigos, da impureza e do fardo das acções
passadas, de que se queria libertar.
Para quem o observe e conheça os referentes culturais em que ele se insere,
este acto é um veemente rito de reintegração. Nada do que foi descrito pode,
contudo, resultar numa efectiva reintegração social se as outras pessoas não
reconhecerem a mudança, ou não demonstrarem que a aceitam e que querem este
indivíduo de volta. Dessa forma, o ritual que tenho vindo a descrever e aqueles
que são realizados por toda a comunidade requisitam-se mutuamente. A
reintegração social não é possível sem que o veterano seja expurgado dos seus
aspectos ameaçadores; mas visto que os rituais de limpeza especializados,
embora não sejam privados, tendem a restringir-se a parentes próximos que
apenas assumem um papel de espectadores, a reintegração não poderá derivar
deles a não ser que sejam seguidos pela sua reiteração colectiva e geral.
Consequentemente, o processo de limpeza que temos vindo a acompanhar acaba
também por desempenhar o papel de acontecimento crucial naquilo que constitui a
fase liminar de um outro rito de passagem, socialmente mais abrangente: aquele
em que, confrontando-se a família ou a comunidade com a chegada de um veterano,
apenas contacta com ele através de mandatários e no exterior da aldeia ou da
residência familiar, mantendo-o a comer e a dormir separado dos restantes até
que, após a sua limpeza ritual por parte de um especialista, o recebe de uma
forma colectiva e festiva, como um dos seus.
Figura 2: Interdependência de ritos de passagem
Alargando um pouco a análise, podemos até afirmar que, na perspectiva dos
próprios veteranos, esses dois processos rituais constituem, afinal, o ponto de
chegada e reintegração do ainda mais longo e pessoal rito de passagem que os
levou a entrar, tomar parte e sair da guerra. Também aqui, de facto, a
liminaridade e as mudanças de estado e estatuto foram claramente ritualizadas,
quer se tratasse das práticas repulsivas a que eram submetidos os futuros
guerrilheiros incorporados na sequência de ataques às suas aldeias, quer da
submissão dos conscritos a ritos de separação, liminaridade e reintegração que
é recorrente nos exércitos regulares (Granjo & Porto, 1991)16.
Não se trata, contudo, de uma perspectiva meramente pessoal. As características
e significados adstritos ao kugiya, performance mimética da guerra que é
representada em tempo de paz e empunhando um signo da família e da casa,
reafirmam ritual e socialmente o carácter liminar da experiência bélica e a sua
delimitação entre fronteiras que foram e estão a ser marcadas -
delimitando, ao delimitar esse tempo e contexto liminar, o tempo e os espaços
da normalidade, de onde ele é excluído.
A relevância de estarmos perante diversos processos rituais que correspondem à
morfologia dos ritos de passagem e de estes se apresentarem mutuamente
dependentes transcende, assim, o mero fait divers etnográfico. Afinal, essas
características indiciam que, para além de os ritos especializados e
comunitários se pressuporem uns aos outros, a sua eficácia reintegradora
depende em grande medida do entrosamento e da coerência lógica e ritual que
mantêm com o problema que pretendem resolver.
Para compreendermos todas as implicações desse entrosamento, contudo, deveremos
salientar que, a um nível ideológico e de afirmação ritual, a segregação
imposta ao veterano quando do seu regresso não deriva de juízos morais, mas do
perigo que ele representa para toda a comunidade. Mais do que isso, de acordo
com a lógica explicativa em que se baseiam estes rituais de limpeza
(extrapolada do sistema de domesticação da incerteza que antes expus), esse
perigo não decorre da crença de que o veterano tenha "um demónio dentro
de si", como alguns textos reproduzem (Maslen, 1997)17, nem sequer da sua
reconhecida capacidade para matar ou da sua recente experiência de subversão de
regras sociais básicas; segundo essa perspectiva, o veterano representa um
perigo porque é plausível que traga consigo espíritos e, caso isso aconteça,
não será ele a sua única vítima.
De facto, conforme verificámos já, a capacidade de comunicação dos espíritos
está limitada às chamadas de atenção aos vivos para que os contactem, o que
apenas lhes é possível através da subversão da rotina e da criação de
acontecimentos indesejáveis àqueles com quem querem comunicar. O padecimento da
vítima não é, no entanto, provocado apenas de forma directa; até conseguirem
comunicar e verem as suas exigências satisfeitas, os espíritos irão provocando
acontecimentos penosos também às pessoas que estão próximas da vítima. Os seus
parentes e vizinhos poderão, aliás, enfrentar perigos ainda maiores do que ela,
pois se não faz sentido que um espírito mate a pessoa com quem quer comunicar,
poderá chegar a matar um seu parente para se assegurar de que será ouvido.
Ao aplicar-se e enfatizar-se esta preocupação, escorada na explicação última e
portanto essencial do perigo, a atenção da comunidade e do veterano deixa de
estar centrada nos actos violentos por ele praticados e na possibilidade de
estes se repetirem.
Contudo, se a preocupação que expus é uma razão mais que suficiente para temer
a presença de um familiar que possa transportar consigo tais perigos, e se a
lógica de interpretação que é localmente dominante focaliza nestes aspectos a
ameaça representada pelo veterano, as pessoas que o rodeiam não se limitam a
pensar e sentir o mundo de acordo com os princípios da acção dos espíritos. Tal
como a crença na omnisciência e omnipotência divinas não exclui, na Europa, a
instalação de pára-raios nas igrejas, crer de forma empenhada na existência de
espíritos e na sua influência sobre a vida social não quer dizer, de todo, que
não se conheçam e manipulem - conjuntural ou mesmo simultaneamente
- outras lógicas causais, ou que se dê pouca importância à agência
humana18.
Também nesta situação particular são, assim, equacionados pelas pessoas
aspectos bem mais prosaicos (e que afinal reintroduzem o espaço do juízo de
valor, supostamente irrelevante à luz das teorias locais), como sejam o facto
de o veterano ter praticado actos censuráveis ou mesmo inaceitáveis pelos quais
pode ser culpabilizado, só se tornando confortável a sua reintegração social
caso renuncie a eles e o demonstre, submetendo-se aos duros rituais que lhe
permitirão deixar esses acontecimentos para trás de si e abster-se de os
repetir.
Culpa e aceitação
Parte do problema da culpa é atenuado pelo facto de as pessoas saberem que o
veterano não estava na guerra por vontade própria e foi compelido a realizar
esses actos, muitas vezes sob ameaça de morte. Uma outra parte é plausivelmente
mitigada, conforme Alden (2002) sugere, pelo evidente desejo da população de
virar as costas aos tempos de guerra e ao que neles aconteceu. Mas, mesmo
assim, sobra muito para perdoar - e o mecanismo que normalmente permite,
neste contexto cultural, superar a culpa relativa a acções muito graves não
está sequer disponível neste caso.
De facto, se as acusações de feitiçaria e bruxaria facilmente se transformam em
processos de construção de bodes expiatórios, também possuem um princípio
subjacente de reintegração, que se baseia na forma como é interpretada a
fenomenologia da possessão.
Segundo os critérios locais, um espírito mau que possua alguém pode forçar essa
pessoa a realizar, sob transe, actos que não são para ela intencionais, ou de
que nem sequer tenha consciência. Por outro lado, quando um espírito possui
alguém que está vivo, ambos deixam de ser entidades separadas, tornando-se num
único ser simbiótico, com uma identidade nova e comum. Nessa perspectiva, quem
causou o mal não foi realmente a mesma pessoa viva que existe antes e depois da
possessão; a pessoa, em si mesma, é responsável material pelas desgraças que
supostamente provocou, mas não é, em sentido estrito, culpada.
Consequentemente, podemos ser bruxos involuntários que fizeram mal a muita
gente e, ao mesmo tempo, estarmos em condições de ver o nosso problema (e da
comunidade) resolvido logo que reconheçamos as nossas malfeitorias e sejamos
expurgados do espírito que nos aflige. Visto que o nosso mau comportamento foi
decorrente da possessão, o kufemba erradicará a causa dos problemas e
voltaremos a ser a mesma pessoa que éramos antes - deixando por isso de
se justificar que continuemos a ser objecto de ostracismo19.
No entanto, como os veteranos foram compelidos por homens vivos e não por
espíritos que os possuíssem, não podem livrar-se da culpa de forma tão directa.
O máximo a que podem aspirar é a ver o seu arrependimento aceite por vivos e
antepassados, e a receber a oportunidade de um novo começo, a partir de uma
"folha em branco" - desde que, obviamente, deixem de
constituir uma ameaça para os outros.
Conforme pudemos verificar, os rituais de limpeza realizados por tinyanga têm a
capacidade de dar resposta a todas essas necessidades. Efectivamente, conseguem
diminuir a culpa, através da naturalização performativa dos actos traumáticos e
da sua expulsão para um contexto específico no passado, como um assunto
delimitado, ultrapassado e encerrado. Também diminuem a culpa ao fornecer as
declarações simbólicas que apresentam o paciente como uma pessoa renovada que,
de certa forma, é diferente daquela que esteve na guerra e, portanto, está
pronta a ser reintegrada. Finalmente, declaram de forma inequívoca que o
veterano deixou de ser perigoso, manipulando para esse efeito o idioma
explicativo dos espíritos e da capacidade que estes têm para possuir e seguir
os vivos.
Contudo, este processo de tratamento não é de forma alguma um caso único, ou
sequer a utilização mais frequente deste tipo de explicação e morfologia
ritual. À excepção do kugiya, que é específico às situações pós-guerra, rituais
de limpeza praticamente iguais são realizados quando alguém saiu da prisão, se
perdeu nas galerias de uma mina20 ou - tratando-se de indivíduos mais
rigorosos no cumprimento de práticas protectoras - após uma viagem para
fora da sua região de origem.
A lógica que subjaz a estes casos é também a mesma. As prisões moçambicanas e
as galerias mineiras da África do Sul são consideradas locais onde muita gente
morreu de forma súbita e violenta, sendo difícil de lá sair. Acredita-se,
consequentemente, que os espíritos desses defuntos de "mortes más"
ficam encurralados, mas sem desistirem de encontrar uma saída para o exterior.
Quando alguém sobrevive a esses meios adversos e consegue sair, os espíritos
cativos tenderão a "apanhar boleia" e a adoptar essa pessoa como a
responsável por providenciar as suas necessidades. O problema de viajar para
regiões desconhecidas é muito semelhante, pois a ignorância do viajante acerca
dos locais onde espíritos errantes podem estar concentrados poderá levá-lo a
atravessar essas zonas, com a possível consequência de que eles o sigam no seu
regresso a casa.
Os perigos que, na perspectiva local, poderão resultar de situações como estas
estarão já claros para o leitor.
Creio que tão-pouco será necessário insistir na similitude e relação metafórica
que elas mantêm com o regresso de veteranos.
No entanto, já não se poderão apontar certezas acerca de qual destes casos
(guerra, prisão ou minas) terá constituído o modelo a partir do qual foram
extrapoladas as explicações e rituais que hoje em dia permitem pensar e gerir
os dois restantes. Justifica-se contudo sugerir que, se os rituais de limpeza
pós-guerra só deverão ter sido reintroduzidos na década de 1960 (em
concomitância com a luta armada contra o colonialismo português), o mais
plausível é que, sob a sua forma presente, tenham sido eles a adoptar o padrão
conceptual e ritual que era já aplicado aos regressos das minas ou da prisão.
A eficácia e dignidade sociológica dos rituais de limpeza pós-guerra que temos
vindo a acompanhar não ficam, contudo, diminuídas pelo facto de, na sua forma
actual, eles constituírem prováveis extrapolações de rituais antes utilizados
para outras situações - e não processos únicos, isolados e imemoriais,
conforme as referências que habitualmente lhes são feitas nos levariam a
pensar. Pelo contrário, a forte hipótese de que eles resultem de um mimetismo
de ritos anteriores, num processo de recriação de um tipo de ritual que se
sabia ter existido no passado, parece antes reforçar a sua pertinência e
eficácia simbólica.
Em primeiro lugar, indica-nos que, embora caídos em desuso por falta de
objecto, os rituais de limpeza foram sentidos como uma necessidade social a
partir do momento em que voltaram a existir actividades bélicas - e que o
foram de uma forma suficientemente forte e consensual para que se justificasse
reinventá-los.
Mostra-nos, em seguida, que estes novos ritos foram ancorados nas lógicas
explicativas e nos quadros conceptuais que se desenvolveram e formalizaram
durante esse interregno, assegurando à partida uma coerência quase absoluta com
as interpretações do infortúnio que são comummente aceites no seu contexto
cultural e reforçando, com isso, a sua credibilidade e consequente eficácia.
O mesmo efeito acaba por decorrer, por fim, do facto de eles aplicarem
procedimentos que são já conhecidos das pessoas e habituais na gestão de outras
situações extremas de ruptura microssocial. Neste quadro de familiaridade
ritual, entretanto, o único elemento que é efectivamente novo, o kugiya,
adquire por contraste uma visibilidade que não teria caso estivesse
"perdido" no meio de um ritual que fosse, todo ele, exclusivo de
situações de pós-guerra. Em resultado disso, acabam por sair reforçados, aos
olhos de quem participa e assiste, os sentidos que ele expressa: a compreensão
tolerante dos actos bélicos quando praticados em contexto de guerra e a sua
circunscrição a esse contexto liminar, já ultrapassado.
Ao lermos e ouvirmos a memória dos horrores da guerra civil, é inevitável
questionarmo-nos sobre como foi possível uma tão rápida e completa reintegração
social dos veteranos - quando a avaliamos, de acordo com a sugestão de
João Paulo Borges Coelho (2002), em função da semelhança entre a situação dos
veteranos e a dos seus vizinhos, a par da sua aceitação pública enquanto
pessoas "como as outras".
Parece-me ter ficado evidente que esse resultado notável se deverá, em larga
medida, à realização dos rituais de limpeza que descrevi e ao seu potencial
para manipularem, da forma mais eficaz possível, o trauma, o perigo e a culpa.
Também o poderíamos afirmar por contraste:
No sul do país, onde estes rituais se integram num quadro de classificação da
possessão por espíritos que, embora decorrente das guerras do século XIX entre
estados locais, é extrapolável para a guerra civil e tem por princípio a
integração útil e especializada (em termos curativos) de espíritos oriundos de
outros grupos "étnicos", os fenómenos de possessão por espíritos de
soldados e guerrilheiros mortos só são esperados quando os sobreviventes, que
os apaziguaram durante os rituais de limpeza, acabarem por falecer.
Noutras regiões, onde os rituais efectuados não partiam desta estrutura
integradora, há notícia da frequente ocorrência de perturbações que são
popularmente diagnosticadas como resultado de possessão por espíritos de
combatentes mortos. Assim, nas zonas do centro de Moçambique em que a RENAMO
foi encarada como uma força exterior vaNdau (imagem que a própria organização
estimulou, dado o temor pela capacidade de voltarem da morte enquanto espíritos
vingativos que é atribuída a esse grupo) emergiram no pós-guerra os chamados
espíritos Gamba, atribuídos a guerrilheiros da RENAMO (Marlin, 2007).
Entretanto, nas próprias zonas de língua ndau, sem tradição de integração de
espíritos provenientes de outros grupos moçambicanos, assistiu-se à
multiplicação de espíritos Gamba atribuídos a tropas zimbabueanas (Igreja,
2007), apesar de estas terem sofrido poucas baixas e recuperarem os corpos dos
seus mortos.
Por outras palavras, os graus de apaziguamento social obtidos no imediato pós-
guerra parecem razoavelmente diferentes consoante a área geográfica e os
sistemas rituais dominantes, em favor do caso que acompanhámos e,
plausivelmente, das virtualidades que nele pudemos destacar.
A contribuição dos rituais de limpeza para o processo global de reintegração
social dos veteranos - ou mesmo para a adaptação das populações à
coexistência concorrencial e pacífica entre duas facções anteriormente
beligerantes - não parece, contudo, limitar-se a uma soma de casos
individuais, por muito numerosos que sejam.
O conhecimento público da existência desses rituais e da sua concordância com
sistemas de interpretação comummente partilhados acaba, afinal, por obrigar a
que a aceitação de casos individuais seja extrapolada para um princípio geral
de integração. Quando tal acontece, no entanto, é dado um passo essencial para
a aceitabilidade quotidiana, não apenas dos nossos familiares e de quem lutou
pelo "nosso" lado, mas também dos inimigos de ontem e dos seus
apoiantes.