A Fronteira Moçambique-Zimbabué e os ndau: Práticas e representações
transfronteiriças no distrito moçambicano de Mossurize (de 1975 à actualidade)
As fronteiras de África, o seu traçado por parte das potências coloniais, as
implicações para as populações divididas por estas fronteiras ou as
consequências destas terem sido mantidas após a descolonização, não constituem
temáticas recentes nem tão pouco representam um assunto original nas Ciências
Sociais.
Com efeito, as discussões sobre as fronteiras africanas, de um modo geral,
assentam frequentemente nas afirmações de que as fronteiras são artificiais e
arbitrárias, foram desenhadas a régua e esquadro pelos europeus, dividiram
grupos étnicos entre dois ou mais Estados, e por isso representam uma constante
fonte de conflito. Contudo, o facto de regularmente se caracterizarem as
fronteiras africanas deste modo, sem que se problematizem essas considerações,
parece revelar um desconhecimento face à literatura sobre as fronteiras
africanas pré-coloniais (Kopytoff, 1989), sobre a Conferência de Berlim e os
seus impactos (Katzenellenbogen, 1996), ou sobre as formas como as fronteiras
têm sido representadas e apropriadas pelas populações que nelas vivem (Flynn,
1997).
O presente artigo parte destas premissas para, através de um estudo de caso
realizado no Sul da fronteira entre Moçambique e o Zimbabué, analisar os
significados que lhe são atribuídos pelos grupos sociais que habitam a zona
fronteiriça, e que pertencem ao grupo étnico ndau, bem como as suas práticas e
dinâmicas face à mesma, no período compreendido desde 1975 até à actualidade. A
selecção do distrito de Mossurize deve-se a dois factores: por um lado, à
novidade empírica que representa pois, à excepção de Fernando Florêncio (2005),
desconhecem-se outros trabalhos que refiram evidências sobre este distrito. Por
outro lado, Mossurize localiza-se numa fronteira africana predominantemente
porosa mas que não se consubstancia num foco de conflito ou de reivindicações
de cariz étnico por parte da população ndau, que passou a estar dividida
entre dois países com o traçado da fronteira. A opção pela delimitação temporal
prende-se com o facto de 1975 ser o ano da independência de Moçambique, isto é,
o momento em que a fronteira colonial se tornou a fronteira de um Estado
independente. Pretende-se aferir se tal constituiu igualmente um momento de
ruptura em relação a práticas e representações transfronteiriças anteriores. Em
termos de análise, entre 1975 e a actualidade destaca-se o ano 2000, quando o
Zimbabué mergulhou numa grave crise económico-financeira que se estendeu por
toda a década. Argumenta-se que esta conjuntura provocou alterações nas
práticas sociais e económicas da população moçambicana de Mossurize, visíveis
na actualidade, e contribuiu para conotar a fronteira, talvez pela primeira vez
desde a demarcação dos finais do século XIX, com uma linha de separação entre
populações.
Para fundamentar esta posição, o presente artigo começa por enunciar os debates
que enformam os estudos de fronteira (border studies) no geral, e os estudos
sobre as fronteiras africanas em particular, tendo em conta os impactos das
fronteiras enquanto linhas de delimitação entre soberanias e jurisdições. As
secções seguintes debruçam-se sobre a fronteira Moçambique-Zimbabué e a
trajectória de formação do Estado de Moçambique, sobre o distrito de Mossurize
e a população ndau, e, por último, sobre os resultados do trabalho empírico
efectuado nesse distrito. Os dados apresentados foram recolhidos no distrito de
Mossurize, predominantemente em Espungabera (capital do distrito), seguindo uma
metodologia qualitativa (Burgess, 1997, p. 112), através das técnicas de
observação participante e entrevistas não-estruturadas conduzidas pela autora
entre Abril e Maio de 2011. Os entrevistados são maioritariamente do sexo
masculino, com idades compreendidas entre os 25 e os 60 anos de idade. Foram
ainda realizadas entrevistas a funcionários da administração local,
comerciantes, agricultores e autoridades tradicionais[2].
O artigo conclui que o traçado da fronteira per si não provocou alterações nas
dinâmicas sociais dos ndau, mas que a política económica do Zimbabué na última
década tem gerado alterações nos comportamentos económicos da população do
distrito de Mossurize com repercussões na percepção da fronteira.
Border studieseborderland studies
Fronteira, território e soberania representam elementos constitutivos do Estado
com uma forte interligação entre si. Em sentido lato, uma fronteira é uma linha
imaginária que delimita o território (terrestre, fluvial, marítimo e aéreo) de
um determinado Estado, separando-o de territórios adjacentes. Dentro de cada um
dos limites criados, passa a vigorar um ordenamento político e jurídico,
específico e autónomo, diferente daquele possível de encontrar no outro lado
da fronteira. Isto é, o território de um Estado representa o espaço de
exercício pleno da sua soberania, a qual tem como limites as suas fronteiras,
do que resulta que um Estado soberano não pode ser dissociado do território
sobre o qual exerce o seu poder nem das suas fronteiras (Zippelius, 1997, pp.
108-118).
Este postulado tem vigorado até à actualidade, não só na Europa mas também nos
Estados pós-coloniais em África, os quais decidiram adoptar o modelo do Estado
moderno como forma de organização política aquando das suas independências.
Contudo, as dinâmicas políticas, económicas, jurídicas e sociais que marcam a
contemporaneidade têm provocado como que uma diluição destas premissas, e
embora estas continuem a ser formalmente relevantes, a um nível material é
possível encontrar algumas nuances na sua aplicabilidade.
Uma das regras da Guerra Fria, perante o aumento do número de Estados após a
descolonização, era o desincentivo à alteração das fronteiras, de modo a que se
pudesse garantir a integridade dos Estados existentes (Herbst, 1996-1997, p.
122). Porém, o fim da Guerra Fria e a globalização trouxeram novas abordagens
às questões sobre as fronteiras, nomeadamente o princípio de que as fronteiras
não são linhas fixas ou barreiras. Esta ideia de quase desaparecimento das
fronteiras significa que a transferência de poder dos Estados para empresas (ou
instituições supranacionais) resultam num sistema económico global que
crescentemente opera de formas que retiram significado a uma fronteira
territorial, criando novos espaços sociais, políticos e económicos que não
podem ser delimitados de modo comparável à delimitação entre Estados (Abraham,
2006, p. 285; Mbembe, 2002, p. 77; Williams, 2006, p. 2).
Com efeito, a teoria do total desaparecimento das fronteiras em virtude da
globalização parece pouco plausível (Newman, 2006, p. 173), pois muitas
fronteiras têm sido gradualmente abertas, tendo em conta a crescente
cooperação económica em zonas politicamente estáveis. Mas, por outro lado, o
aumento das ameaças externas despoleta medidas securitárias que tornam algumas
fronteiras cada vez mais impermeáveis.
Neste artigo veicula-se a posição de David Newman, e também a de Malcolm
Anderson, segundo os quais as fronteiras representam simultaneamente
instituições e processos que são relevantes para a compreensão da vida política
contemporânea que, como tal, as forças da globalização não serão capazes de
eliminar por completo (ibid.; Anderson, 1996, p. 2).
De uma forma ampla, e com base nesta trajectória das fronteiras que se acaba de
enunciar, pode afirmar-se que os estudos de fronteira convencionais focam-se
mais no Estado e os estudos recentes nas populações. Anthony Asiwaju (2011),
partindo da análise de Raimondo Strassoldo (1989, pp. 383-386) sobre os estudos
convencionais (border studies) na Europa, defende que estes se baseiam em
perspectivas estatocêntricas, frequentemente associadas com a definição das
fronteiras, sua legitimação e disputas associadas, e assentam nos
enquadramentos disciplinares da Geografia, História, Direito, e Ciência
Política (Asiwaju, 2011, p. 3). Por sua vez, os estudos recentes, também
denominados borderland studies (por compreenderem as regiões em torno da
fronteira e não apenas a linha de demarcação), assentam em disciplinas como a
Sociologia ou a Antropologia para analisar as questões mais directamente
relacionadas com as populações que habitam zonas fronteiriças, suas dinâmicas e
desafios (Asiwaju, 2011, p. 4).
Este enquadramento epistemológico, embora fundado nos estudos sobre as
fronteiras europeias, também se aplica ao estudo das fronteiras africanas. Com
efeito, os estudos de fronteiras africanas convencionais conferem primazia ao
Estado e à soberania territorial e assentam em questões legais – como a
definição de fronteiras, disputas associadas e respectivos mecanismos de
resolução – e políticas – como os fenómenos decorrentes da existência de
fronteiras: irredentismo, separatismo e regionalismo (Nugent, 2002, p. 5). As
obras de Carl Widstrand (1969) e Ian Brownlie (1979) são referências
paradigmáticas desta literatura.
A partir da década de 1970 surgem os estudos de fronteiras africanas mais
recentes, onde se destaca o pioneirismo de Anthony Asiwaju. Estes trabalhos
analisam os impactos das fronteiras junto das populações (Asiwaju, 1985) e
começam nos anos seguintes a surgir perspectivas comparativas sobre fronteiras
africanas entre si (Asiwaju & Adeniyi, 1989), entre antigas delimitações
coloniais que separavam territórios que agora se encontram no mesmo Estado
(Asiwaju, 1976; Miles,1994), e entre fronteiras africanas e fronteiras de
outros continentes (Asiwaju, 1996). De ressaltar ainda o importante trabalho de
Igor Kopytoff (1989) pela sua análise dos significados e das representações
africanas pré-coloniais de território e fronteira.
As perspectivas sobre as fronteiras africanas produzidas na contemporaneidade
são de uma maneira geral constituídas por abordagens que enfatizam o seu
potencial de instabilidade e de conflito (Igue, 1995; Englebert, Tarango &
Carter, 2002; Larémont, 2005), e por trabalhos que, em oposição, defendem a sua
resiliência e pertinência (Flynn, 1997; Donnan & Wilson, 1999).
Devido ao seu crescimento a partir da década de 1990, em clara dissonância com
a profetização do desaparecimento das fronteiras territoriais veiculada pela
globalização, os border studies adquirem cada vez mais relevância científica e
têm até constituído a base para a tomada de decisões políticas no terreno[3].
Talvez os estudos sobre fronteiras tenham ressurgido exactamente para
demonstrar que esses locais não são estáticos, não são meras linhas em mapas
onde uma jurisdição acaba e outra começa. Pelo contrário, problematizam a forma
como as fronteiras são socialmente construídas, como são geridas e qual o seu
impacto na vida quotidiana de quem as habita (Newman, 2006, p. 173). Tal é
válido igualmente para o continente africano, onde a produção científica sobre
as fronteiras tem verificado um grande aumento, nomeadamente ao nível dos
borderland studies – e que é a corrente na qual este artigo se insere –,
demonstrando que a perspectiva recorrente sobre a herança das fronteiras
coloniais tem sido largamente preterida em detrimento de outras abordagens,
como demonstra a próxima secção.
Fronteiras africanas
As fronteiras de África resultaram de um conjunto de decisões tomadas pelas
potências coloniais na Conferência de Berlim de 1884-1885. Contudo, algumas
generalizações que se produziram sobre a Conferência carecem de rigor, no-
meadamente o facto de ser vista como o local onde os europeus arbitrariamente
desenharam as fronteiras de África a régua e esquadro. Com efeito, o
principal propósito para a Conferência de 1884-1885 ter sido convocada deveu-se
ao facto de a Alemanha pretender criar um consenso sobre a apropriação de
terras em África e, assim, controlar futuras expansões das outras potências.
Com efeito, e como sustenta Katzenellenbogen (1996), a Conferência não só não
estabeleceu o princípio da ocupação efectiva (que já vinha sendo desenvolvido
desde o século XVI e foi utilizado diversas vezes para justificar certas
exigências), como não foi o local onde todas as fronteiras africanas ficaram
decididas – a maioria delas dependia de tratados que foram assinados
posteriormente (pp. 21-22). Os resultados da Conferência foram, na prática,
somente o acordo de todos os participantes na partilha da exploração económica
de África, o reconhecimento do Estado Livre do Congo e o estabelecimento do
comércio livre nos rios Níger e Congo (Katzenellenbogen, 1996, p. 23; Herbst,
1989, p. 683).
A artificialidade das fronteiras africanas é outra generalização muito referida
mas pouco rigorosa, uma vez que o que é comum a todas as fronteiras do mundo é
exactamente a sua artificialidade. Apesar de, por vezes, as fronteiras
assentarem nos traços que são desenhados pela disposição natural de rios,
montanhas ou mares e, assim, estes elementos da geografia natural serem
utilizados para marcar os limites de um território, tal não significa que as
fronteiras sejam criações naturais; na realidade, elas são estabelecidas pelo
homem em virtude de objectivos específicos, e por isso toda e qualquer
fronteira é artificial, mesmo quando assenta em elementos fisicamente
observáveis. A par da ideia de artificialidade surge a ideia da
arbitrariedade que se deve à percepção de que as fronteiras africanas não
foram definidas pelos próprios africanos. Contudo, de acordo com Mbembe (2002),
as fronteiras africanas não são arbitrárias no sentido em que não foram
estabelecidas exclusivamente pelos europeus de forma discricionária e à revelia
de outros actores. De facto, e em grande medida, cada fronteira previamente
traçada ficou dependente de ser confirmada através de tratado ou convenção
resultantes de negociações diplomáticas, renúncias, anexações ou trocas entre
potências imperiais; ou procurou também manter as demarcações de unidades
políticas pré-coloniais com cujos representantes africanos se assinaram
tratados (Mbembe, 2002, p. 58). No caso das fronteiras que separam os países ao
longo dos limites do deserto do Sahara (Mali, Níger, Argélia) ou do deserto do
Kalahari, as fronteiras são apenas linhas imaginárias (ibid.). Na verdade, os
europeus conheciam muito pouco da demografia, etnografia ou topografia do
continente africano, pelo que os seus traçados acabaram por ser uma opção
racional face à falta de informação (Herbst, 1989, p. 674; Anderson, 1996, p.
79). Desta forma, as fronteiras tal como foram traçadas serviram as
necessidades de quem as criou e servem actualmente as de quem decidiu mantê-las
(Herbst, 1989, p. 692), pelo que caracterizá-las como arbitrárias é uma
afirmação pouco precisa.
No período pré-colonial as fronteiras eram definidas de acordo com a distância
até onde uma unidade política conseguisse estender todo o seu poder. As
entidades políticas eram uma amálgama de espaços que se combinavam, separavam e
voltavam a juntar, através da mobilidade de pessoas e bens, de conquistas e
guerras; pelo que os seus limites ora se expandiam, ora se contraíam, fazendo
com que as fronteiras pré-coloniais fossem dinâmicas, fluídas e flu-tuantes
(Kopytoff, 1989, p. 12; Clapham, 1998, p. 88). A principal mudança que o
colonialismo impôs neste status quo foi um novo sistema de fronteiras
territoriais fixas, que os Estados africanos pós-coloniais decidiram manter.
Com efeito, a Assembleia-Geral da ONU, nas suas 15ª (1960) e 16ª (1961)
sessões, decidiu manter as fronteiras coloniais. A OUA, na sua sessão inaugural
de 1963, e numa resolução mais específica sobre disputas transfronteiriças em
1964, aceitou o princípio de uti possidetis ita possidetis, isto é, aquilo que
possuis continuas a possuir (Anderson, 1996, p. 82; Abraham, 2006, p. 278). A
intangibilidade das fronteiras africanas ficava assim consagrada, e cada Estado
devia respeitar a soberania e integridade territorial dos restantes, bem como
o seu direito inalienável a uma existência independente (Chime, 1969, p. 66).
Esta decisão de manutenção das fronteiras após 1964 pode ser entendida à luz da
auto-preservação do Estado, pois como afirma Saadia Touval (1985, p. 225)
temia-se que dar a um grupo ou região o direito de secessão poderia despoletar
outras exigências com o mesmo objectivo e, desta forma, provocar a aceleração
da desintegração do Estado.
A característica mais distintiva das fronteiras africanas será talvez o seu
maior grau de porosidade em comparação com outras fronteiras internacionais e,
simultaneamente, o facto de essa maior porosidade contribuir para a sua própria
estabilidade – pois os espaços em aberto permitem uma fácil mobilidade. Com
efeito, por porosidade entende-se uma condição de permeabilidade permanente e
a incapacidade de o Estado efectivamente regular essa situação (Strassoldo,
1989, p. 388) e controlar o tráfego de pessoas, bens e informação ao longo da
linha de fronteira (Anderson, 1996, p. 6). De facto, uma linha de fronteira não
é controlada por postos fronteiriços formais em todos os pontos de passagem e
no caso das fronteiras africanas, de um modo geral, esta porosidade contribui
para que sejam conotadas com canais por onde circulam pessoas, bens e animais
e como um fonte de oportunidades exploradas de forma diferente por actores
estatais e não-estatais (Nugent & Asiwaju, 1996, p. 11). Assim, estas
fronteiras são frequentemente uma realidade aceite e activamente reproduzida na
vida social e económica dos grupos fronteiriços, e não uma fonte de grande
contestação.
Como resultado, as fronteiras africanas sofreram poucas alterações desde o fim
da descolonização, exceptuando a secessão da Eritreia (1993) e do Sudão do Sul
(2011). É certo que existiram conflitos relacionados com tentativas de
secessão, como o Katanga na República Democrática do Congo em 1960 e o Biafra
na Nigéria em 1967. Mas ambos os casos, mais do que exigências fronteiriças,
tiveram por base exigências de acesso a recursos (cobre no primeiro caso e
petróleo no segundo) e ambos acabaram por ser controlados pelos respectivos
Estados. Outros exemplos foram as exigências da Somália sobre Ogaden em 1963 e
1978 (sob controlo da Etiópia), a disputa entre o Chade e a Líbia sobre a faixa
de Aozou (1973-1994), as tentativas de independência do Sahara Ocidental
(ocupado por Marrocos desde 1975), ou a disputa entre a Nigéria e os Camarões
sobre a Península de Bakassi (1981-2008). Tentativas de secessão na actualidade
podem ser encontradas em Casamança (Senegal), Cabinda (Angola), faixa de
Caprivi (Namíbia), ilha de Anjouan (Comores) e nas províncias anglófonas dos
Camarões (Anderson, 1996, pp. 81-87).
O que passa despercebido a quem perpetua os lugares-comuns de arbitrariedade
e artificialidade é que as grandes mudanças territoriais no período pós-
colonial ocorreram afinal a nível interno. Ao mesmo tempo que se gerou consenso
sobre a inviolabilidade das fronteiras entre Estados após as independências,
verificou-se uma grande tendência para a remodelação das fronteiras internas
através da criação de novas províncias, distritos e municípios de acordo com
objectivos políticos e económicos, conduzindo muitas vezes à compartimentação e
reificação de identidades étnicas, e isso sim, potenciando conflitos (Mbembe,
2002, p. 60).
Ainda assim, há autores que defendem que um número substancial de Estados
africanos, devido à sua fragmentação política, não controla o conjunto do seu
território nacional, nem sequer nominalmente, pelo que as fronteiras só fazem
sentido nos mapas (Clapham, 1998, p. 82). Em resposta, surgem perspectivas que
sustentam que as fronteiras africanas são fortes e essenciais à consolidação do
Estado, pois funcionam como mecanismos tampão face a influências externas
indesejáveis (Herbst, 2000, p. 252).
Sobre o impacto das fronteiras coloniais sobre os grupos étnicos pré-
existentes, e que também é um lugar-comum quando se analisam as fronteiras
africanas, Anthony Asiwaju (1985) apresenta uma lista dos grupos étnicos que
foram divididos pelas fronteiras internacionais (pp. 256-258). A sua
distribuição é transversal a todo o continente pois cada fronteira
internacional em África corta pelo menos um grupo. Mas este fenómeno não
significa que todas as fronteiras são fontes de conflito ou barreiras para
estes grupos étnicos. Apesar de serem mencionados nesta lista de Asiwaju, os
ndaununca viram a fronteira como um muro nem exigiram a restauração do seu
território tradicional, que se encontra dividido entre Moçambique e o Zimbabué.
A fronteira Moçambique-Zimbabué e o Estado moçambicano
A fronteira entre Mozambique e o Zimbabué é uma das mais extensas da África
Subsaariana. Com cerca de 1.231 quilómetros de extensão, divide o leste do
Zimbabué do centro de Moçambique. Esta fronteira tem sido o foco de algumas
pesquisas sobre refugiados (Hughes, 1999), trabalho e migração (Neves, 1998;
Allina-Pisano, 2003; Tornimbeni, 2005; Newitt & Tornimbeni, 2008),
agricultura, terra e conservação ambiental (Hammar, 2010; Tornimbeni, 2007;
Hughes, 2001; Tornimbeni, 2010), e sobre autoridades tradicionais (Florêncio,
2005).
O Tratado Anglo-Português de 1891 estabeleceu a fronteira entre Moçambique e a
então Rodésia do Sul após uma série de disputas sobre o controlo das minas de
ouro de Manica nos finais do século XIX. O confronto entre Portugal e a Grã-
Bretanha teve o seu clímax no Ultimatum de 11 de Janeiro de 1890, quando
Londres ameaçou bombardear Lisboa caso as suas exigências não fossem atendidas
(Newitt, 1995, pp. 306-316). O processo de demarcações e modificações acabou
por ser longo e prolongou-se até 1940 (Brownlie, 1979, pp. 1219-1221). A longa
fronteira foi estabelecida segundo quatro pontos principais assinalados pelos
rios da região: entre o Zambeze e o Mazoé, do Mazoé ao Honde, do Honde ao Save,
e do Save ao Limpopo (ibid.).
Com efeito, aquando do estabelecimento da fronteira, e de acordo com Tornimbeni
(2010), a região norte estava sob influência das migrações e comércio
muçulmanos, a região centro desenvolveu-se em torno da complexa rede do sistema
dos prazos[4], a região sul era dominada pelo Império de Gaza, e a Baía de
Delagoa estava ao serviço do Transvaal (p. 38). A posterior administração das
Companhias Monopolistas manteve as diferenças entre as zonas sob a sua alçada e
as restantes. Quando as suas concessões terminaram e Portugal assumiu a
administração colonial da totalidade do território moçambicano, herdou um
terreno fragmentado. As estradas e os caminhos-de-ferro que foram sendo
implementados em Moçambique pretendiam apenas garantir a ligação das colónias
britânicas no interior do continente à costa do Índico e acabaram por dar
origem aos denominados corredores (artérias de actividade económica). Desta
forma, nas zonas de fronteira com as colónias britânicas, a comunicação entre
os dois lados era frequente e existiam redes de contactos transfronteiriços
criados pela população em busca de trabalho, escolas, bens de consumo, terras e
manutenção dos laços de parentesco (Newitt & Tornimbeni, 2008, p. 715).
Assim, esta fronteira é particularmente porosa do ponto de vista dos movimentos
migratórios e a população que habita a zona da fronteira mantém facilmente
redes culturais e sociais transnacionais (Tornimbeni, 2010, p. 39). Ao longo de
mais de 1.000 quilómetros apenas sete checkpoints são abertos ao tráfego
automóvel e vigiados por guardas, enquanto os pedestres utilizam diversos
caminhos corta-mato e, para eles e na maioria das vezes, a fronteira não é
inspeccionada, protegida ou demarcada (Hughes, 1999, p. 4).
Devido à proximidade geográfica, o movimento através da fronteira colonial era
tão comum e as fronteiras tão permeáveis que as pessoas chegavam a atravessar a
fronteira diariamente, recorrendo a caminhos pré-existentes e anteriores à
ocupação colonial. O Estado colonial revelou-se incapaz de controlar os
movimentos quotidianos das pessoas, assim como as fugas ao imposto de palhota
(mussoco) e ao trabalho forçado (chibalo), e também às migrações ilegais para
as minas da África do Sul e para as plantações da antiga Rodésia (Branquinho,
1967).
Esta situação encontra fundamento em Richard Larémont (2005), que afirma que as
fronteiras dos Estados africanos criaram Estados territoriais legitimados pelo
Direito Internacional e que são relevantes primeiramente para os que se ocupam
do poder político interno, mas insignificantes para a maioria dos habitantes
(pp. 24-25).
Após a independência em 1975, o governo de Moçambique foi atribuído à FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique)[5]. Porém, logo em 1977, o conflito com a
Rodésia do Sul[6], a desestabilização promovida pela África do Sul, e a guerra
civil com a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique) (1977-1992) causaram a
destruição e o colapso económico do país. O Acordo de Paz foi assinado apenas
em Outubro de 1992 e a partir deste momento passou a imperar a necessidade de
reconstruir o país e garantir a unidade nacional.
Desde essa altura, foram encetadas medidas de descentralização e de
desconcentração político-administrativas, igualmente impulsionadas e
financiadas por doadores externos. Até ao momento, as medidas de
descentralização administrativa só produziram cinquenta e três municípios, uma
vez que as cidades e vilas de acordo com a Lei nº 2/97 têm de preencher certos
requisitos demográficos, económicos, sociais, culturais, administrativos e de
capacidade financeira para poderem ser consideradas municípios. Mais eficaz
parece ser o processo de desconcentração, com o estabelecimento de órgãos
locais do Estado[7] em todo o país, contribuindo assim para o reforço do
Estado-FRELIMO através do alargamento das suas estruturas administrativas à
totalidade do território.
O distrito de Mossurize é predominantemente rural e por isso não possui
qualquer município. Mas o Estado local criou as suas representações nos três
postos administrativos do distrito (Chiurairue, Dacata e Espungabera). Ainda
assim, este é um distrito isolado e com acessibilidades muito incipientes, onde
este incremento da autoridade estatal parece ter um resultado mais formal do
que material, uma vez que a organização político-social tradicional continua a
ser preponderante.
Os impactos desta trajectória de consolidação do Estado moçambicano no distrito
de Mossurize, juntamente com o seu carácter fronteiriço e a capacidade de
adaptação dos seus habitantes às mudanças, em função da maior ou menor presença
de agentes do Estado, exponenciam o potencial heurístico deste local e serão
analisados na próxima secção.
O distrito de Mossurize e a populaçãondau: caracterização e evolução
Na fronteira entre Moçambique e o Zimbabué encontra-se Mossurize, um distrito
moçambicano pertencente à província de Manica e que se situa na parte Sul desta
linha de fronteira. A sua capital é Espungabera e os territórios limítrofes são
o distrito de Sussundega (a Norte), o distrito de Machaze (a Sul), o distrito
de Chibabava (a Leste) e o Zimbabué (a Ocidente). A sua população pertence ao
grupo étnico ndau.
As origens e a história do povo ndau encontram-se ligadas ao planalto do
Zimbabué, à fragmentação do Império de Monomotapa e do Reino de Mbire e aos
ciclos expansionistas dos rozvi. Os rozvi eram um grupo linhageiro shona-
caranga que se deslocou das terras altas do hinterland do Zimbabué, em torno do
século XV, e que ocuparam sucessivamente a faixa central entre os rios Búzi e
Save, dominando as populações tonga que aí viviam e estabelecendo pequenas
unidades políticas (chefaturas) relativamente autónomas umas das outras, mas
relacionadas pelo parentesco (Florêncio, 2005, p. 79).
De acordo com vários autores, o termo ndau teria sido aplicado a estas
populações pelos invasores nguni, vindos do leste da actual África do Sul e que
ocuparam a região central e Sul de Moçambique durante a segunda metade do
século XIX, aí estabelecendo o Império de Gaza. O termo relacionar-se-ia com a
forma tradicional como estas populações saúdam um chefe ou um estrangeiro
importante: ajoelham-se, batem as palmas e repetida e ritmicamente gritam ndau
ui ui, ndau ui ui (Florêncio, 2002, p. 52).
A dominação nguni foi inicialmente liderada por Sochangane. O seu filho,
Umzila, estabeleceu a capital em Mossurize, e o Império terminou em 1895, já
sob a liderança do seu neto, Gungunhane, quando este foi capturado pelas forças
portuguesas lideradas por Mouzinho de Albuquerque (Newitt, 1995, p. 337).
Da mesma forma que resistiram aos nguni, os ndau também resistiram às
tentativas de submissão dos portugueses (Allina-Pisano, 2003), fundamentalmente
utilizando a fronteira como canal de fuga e juntando-se ao seu grupo de
parenteso do outro lado. Pelo que o estabelecimento da fronteira
internacional em 1891 não rompeu as ligações entre os ndau que estavam agora
sob duas administrações coloniais diferentes.
De facto, essa separação nunca foi efectiva, como o demonstram o conjunto de
relações de subordinação política, com uma enorme componente mágico-religiosa,
entre as chefaturas ndau moçambicanas e rodesianas (Florêncio, 2005, p. 129).
De acordo com a organização política tradicional ndau, que se desenvolveu
através da expansão desde o planalto do Zimbabué até ao Oceano Índico, qualquer
nova chefatura que fosse fundada neste processo, apesar de conquistar um certo
grau de autonomia, dependia sempre da chefatura da qual tinha emergido (ibid.,
p. 87). Esta é a razão pela qual, ainda hoje, existem fortes relações entre as
chefaturas ndau na fronteira entre Moçambique e o Zimbabué: os de Mossurize são
tradicionalmente subordinados aos de Chipinge e ambos se visitam regularmente.
Mossurize ocupa uma área de 5.096 km2 e, de acordo com os censos de 2007[8], o
distrito tem uma população total de cerca de 131.400 habitantes, que vivem em
pequenos grupos de povoações/aldeias dirigidas por um chefe, subordinado da
autoridade tradicional. De facto, em Moçambique as autoridades tradicionais
desempenham tarefas no âmbito do Estado local e são oficialmente reconhecidas
(Decreto 15/2000 de 20 de Junho).
O distrito está dividido em três postos administrativos: Espungabera,
Chiurairue e Dacata. É um distrito rural, não existe acesso a água canalizada e
a rede eléctrica provém do Zimbabué. A população só fala português nos postos
administrativos – à medida que nos afastamos do centro destas vilas, a língua
predominante é a língua local (cindau)[9].
Como a observação no terreno demonstrou, as acessibilidades de Mossurize são
parcas e deficientes, o que tem contribuído para que este distrito se mantenha
bastante isolado do conjunto do território moçambicano. O serviço de
transportes públicos colectivos (chapas) é ocasional e muito moroso. A
principal estrada (estrada regional 216) é de picada e bastante acidentada, o
que torna difícil a viagem de duzentos e trinta quilómetros até à cidade de
Chimoio (capital da província de Manica).
Desta forma, Mossurize tem sido caracterizado pelo isolamento. Como este
distrito foi sempre considerado apenas como fonte de mão-de-obra, quer para a
Companhia de Moçambique, quer para o Estado colonial, ficou sistematicamente
excluído dos diversos planos de desenvolvimento e de investimento de
infraestruturas (Neves, 1998, p. 176; Newitt & Tornimbeni, 2008, p. 720). O
Estado colonial só estabeleceu uma presença regular em Mossurize após a
criação de um posto administrativo em Espungabera em 1900, na sequência da
derrota do Império de Gaza. Documentos do início da presença portuguesa na
região já evidenciavam que a sua distância face à costa, o terreno montanhoso e
acidentado, as dificuldades em abrir estradas, e a existência endémica de mosca
tsé-tsé retiravam-lhe qualquer atractividade (AHM, Relatório do Governador do
Território, Companhia de Moçambique, 1902-1903).
Com efeito, perante as dificuldades de viver neste lugar, praticamente toda a
população emigrava para os territórios sob administração britânica para
trabalhar nas minas (África do Sul) ou nas plantações (Rodésia do Sul) (Newitt
& Tornimbeni, 2008, p. 726). Além disso, devido à falta de meios eficazes
para controlar a totalidade da fronteira, os que permaneciam em Mossurize
fugiam para território inglês sempre que chegava a altura do recrutamento para
trabalho forçado ou do pagamento de imposto de palhota. Pelo que, mesmo com um
posto administrativo, e até ao final da ocupação colonial, a linha de
demarcação nunca entrou verdadeiramente nas práticas nem nas representações
deste grupo fronteiriço. Muito pelo contrário, a consciência de que as
condições económicas eram mais favoráveis do outro lado, faziam da fronteira
um canal de oportunidades. Se a independência de Moçambique e as décadas
seguintes transformaram estas percepções, é o que será analisado na próxima
secção.
O período 1975-2000: evidências empíricas
Com a independência de Moçambique, a proximidade da fronteira continuou a
representar uma oportunidade de fuga para a população sempre que a efectiva
presença do Estado condicionava o seu modus vivendi. Além disso, a guerra
civil, que eclodiu pouco tempo depois, e de acordo com as entrevistas
recolhidas, acabou por também aumentar o número de fugas para o Zimbabué. Este
período foi particularmente conturbado em Mossurize, pois a RENAMO ocupou
vastas zonas do distrito a partir de 1978 para o estabelecimento das suas
primeiras bases militares em Moçambique (Hall & Young, 1997, pp. 126-127).
A violência da guerra civil causou um enorme fluxo de moçambicanos para o
outro lado, quer para campos de refugiados, quer para procurar abrigo junto
de familiares e de membros do mesmo grupo étnico. Não foi possível aceder a
dados estatísticos deste período que permitam ter uma noção quantitativa clara
dos fluxos populacionais[10]. No entanto, Jessica Schafer afirma que 50% dos
habitantes de Mossurize deixaram o distrito durante a guerra e a maioria fugiu
para o Zimbabué (Schafer, 2007, p. 40). Mediante as entrevistas realizadas,
pôde concluir-se que os actuais habitantes de Mossurize referem sempre pelo
menos um membro da sua família que fugiu durante a guerra de independência ou
aquando da guerra civil. Em qualquer dos casos, as estadias no outro lado
foram prolongadas e estas pessoas acabaram por ficar a estudar ou a trabalhar
na Rodésia do Sul/Zimbabué, voltando a Moçambique apenas após a assinatura do
Acordo de Paz em 1992. Alguns sentiram-se de tal modo integrados que nunca se
voltaram a fixar em Mossurize: Muita gente fugiu para o Zimbabué no tempo da
guerra e depois ficaram como permanentes (Entrevista a autoridade tradicional,
Espungabera, 09-05-2011). A minha família nasceu em Moçambique mas fugiram
para o Zimbabué no tempo da guerra e depois não foram repatriados. Escolheram
ficar lá e gostam de lá viver (Entrevista a comerciante, Espungabera, 11-05-
2011).
O fim da guerra civil trouxe a necessidade de estabilizar e consolidar o
Estado, principalmente nas regiões devastadas pelo conflito ou onde a presença
da RENAMO havia sido mais preponderante e conseguido o apoio das populações.
Mossurize viu então serem construídas a Administração Distrital e as Direcções
Distritais do Estado, bem como a chegada dos respectivos funcionários.
Acostumada ao seu isolamento, a maioria da população local retirou-se para
zonas mais interiores:
A maior parte da população que fala português são os funcionários
governamentais, que são de fora de Mossurize. Os que viviam cá antes
são fechados a novas influências, quem vem de fora é que tem de se
adaptar. Não são maus, só não gostam que as pessoas se tentem impor
(Entrevista a funcionário do Estado local, Espungabera, 09-05-2011).
O único posto fronteiriço oficial no distrito é o de Espungabera, construído em
2007 e a uma distância de cerca de quatro quilómetros do centro da vila. Trata-
se de uma fronteira com um fluxo reduzido de pessoas e bens:
Esta fronteira não tem muito movimento. A única altura em que passam
mais pessoas é no final do ano e talvez na Páscoa, quando os
moçambicanos que trabalham na África do Sul passam aqui para voltar a
casa para as férias. É um trabalho muito calmo aqui (Entrevista a
funcionário do posto fronteiriço, Espungabera, 10-05-2011).
A generalidade dos informantes revelou que, na maioria dos casos, a população
de Mossurize prefere entrar ilegalmente no Zimbabué através de caminhos
corta-mato, seja a pé ou de carro, existentes um pouco por toda a extensão da
fronteira. Fazem-no por esta via informal porque ou não possuem passaporte, ou
para não pagar taxas alfandegárias pelas mercadorias que transportam, ou porque
fica mais perto chegar às povoações do Zimbabué através destes caminhos[11].
Crianças e jovens de Mossurize também frequentam a escola no Zimbabué:
Os meninos vão à escola ao Zimbabué porque lá o ensino é mais
avançado e porque aqui as escolas só começaram a surgir mais em 2007,
quando qualquer pessoa com a 10ª classe podia ser professor
(Entrevista a funcionário do Estado local, Espungabera, 09-05-2011).
Os encontros entre autoridades tradicionais, que mantêm a sua relevância pelas
interdependências já referidas, são talvez os únicos que se processam pela via
formal:
Costumo usar o corta-mato, menos quando é para acompanhar o tributo
ao Mapunguana do Zimbabué. Aí vou pela fronteira formal e é preciso
fazer um documento para aquisição de credencial para poder passar na
migração (Entrevista a autoridade tradicional, Espungabera, 09-05-
2011).
Quando participo nas cerimónias no Zimbabué vou no carro da
Administração e passo sempre na fronteira formal. Ter de passar lá é
que me faz lembrar que estamos em países diferentes (Entrevista a
autoridade tradicional, Espungabera, 12-05-2011).
Assim, a pesquisa indicia que as populações nesta região continuam a atravessar
a fronteira como o faziam no passado e vão ao Zimbabué visitar parentes, à
escola e participar em cerimónias. Os seus discursos parecem negar a existência
de grandes impactos decorrentes da delimitação da fronteira internacional:
Quem vive aqui conhece melhor o Zimbabué do que Moçambique, toda a gente já foi
ao Zimbabué pelo menos uma vez e toda a gente tem lá família. Quem vive na
fronteira é assim, sempre tem família dos dois lados (Entrevista a comerciante,
Espungabera, 13-05-2011).
Antes as pessoas viviam como pássaro: faziam o ninho onde as
condições para ter alimentos pareciam melhores, não se preocupavam
com países. Agora já percebem que estão em países diferentes, mas
sabem que o Governo não controla a autonomia da fronteira (Entrevista
a funcionário do Estado local, Espungabera, 09-05-2011).
A única alteração parece ter sido nos seus hábitos comerciais. Com efeito, a
investigação aferiu que nos anos da guerra de libertação e da guerra civil em
Moçambique, eram sobretudo as populações afectadas por estes conflitos que se
deslocavam ao Zimbabué para se refugiar ou procurar bens que depois eram
introduzidos nos mercados de Moçambique:
Antes da crise no Zimbabué o fluxo era mais forte, no Zimbabué havia tudo com
maior variedade e toda a gente se abastecia lá. Até havia chapas de Espungabera
para o Zimbabué (Entrevista a comerciante, Espungabera, 08-05-2011).
Com a crise económica do Zimbabué, que se iniciou no ano 2000, o cenário mudou
e aumentou a procura de diversos produtos no lado moçambicano[12]. Ao mesmo
tempo, as informações recolhidas durante as entrevistas demonstram que as
populações ndau de Moçambique começavam a preferir abastecer-se noutro lugar
que não o Zimbabué devido à enorme desvalorização do dólar zimbabueano:
Quando a moeda do Zimbabué desvalorizou muito, quase que era preciso
carregar uma pasta cheia de notas só para comprar um rebuçado.
Chegaram a criar a nota de um trilião, aquilo tinha doze zeros
(Entrevista a comerciante, Espungabera, 07-05-2011).
Até 2000, e como diversos informantes confirmaram, a moeda mais forte da região
era o dólar zimbabueano e a preferência pelos produtos zimbabueanos estendia-se
até ao Chimoio (capital da província de Manica), em cujos mercados também eram
vendidos. Mas a decisão de Harare em 2009 de adoptar o dólar norte-americano e
permitir a circulação de outras moedas na fronteira (como o rand da África do
Sul ou o pula do Botswana) também contribuiu para diminuir o fluxo das
populações moçambicanas que antes se deslocavam sempre ao Zimbabué para fazer
compras. A investigação demonstra que actualmente os habitantes de Mossurize
deslocam-se mais frequentemente à cidade de Chimoio para se abastecerem,
percorrendo uma distância de duzentos e quarenta quilómetros para cada lado,
mas que afirmam ser mais benéfico do que os custos cambiais: Os chapas para o
Zimbabué acabaram. Os chapas para Chimoio chegam a demorar oito ou nove horas
de caminho porque vão sempre a parar e a estrada é má (Entrevista a
comerciante, Espungabera, 09-05-2011). O dinheiro do Zimbabué agora é mais
caro e por isso compensa mais ir fazer compras a Chimoio (Entrevista a
autoridade tradicional, Espungabera, 09-05-2011).
Se não fossem estes acontecimentos a condicionar os hábitos de consumo e, de
certo modo, a introduzir uma barreira ao comércio transfronteiriço como nunca
havia acontecido, poderia afirmar-se que esta fronteira não era uma demarcação
efectiva entre dois países distintos. De facto, no passado a linha de fronteira
não tinha qualquer materialidade: como acima se refere, as unidades familiares
e políticas ndaulocalizavam-se em ambos os lados da fronteira e continuaram a
relacionar-se mesmo durante o período colonial e depois da independência dos
dois países, o que demonstra continuidades na representação de uma identidade
comum, ancorada no Império do Monomotapa e na submissão ao Império de Gaza,
ambos anteriores ao traçado da fronteira. Esta ideia de unidade com os do
outro lado é perceptível na existência de locais simbólicos comuns, como o
Lugar de Gungunhane. Este é um local em Espungabera, situado na margem da
estrada para o distrito de Machaze (a Sul), onde se encontra uma grande árvore
ladeada por uma pedra:
Foi nesta pedra que Gungunhane se sentou para descansar quando vinha
com as suas tropas lá dos lados do Zimbabué a fugir dos portugueses.
Em Chipinge, do outro lado da fronteira, existe um lugar exactamente
igual a este, onde Gungunhane também parou para descansar (Entrevista
a funcionário do Estado local, Espungabera, 09-05-2011).
A noção de unidade entre as populações ndau dos dois países parece ser evidente
nas entrevistas realizadas em Mossurize:
Não há essa coisa de separação entre dois países, Chipinge e
Mossurize é tudo ndau. Falamos a mesma língua, todos se entendem, não
é como entrar num país diferente (Entrevista a comerciante,
Espungabera, 07-05-2011).
Uma pessoa que não esteja familiarizada com a região não consegue
distinguir um moçambicano de um zimbabueano – são todos ndau e todos
falam na mesma língua uns com os outros (Entrevista a funcionário do
posto fronteiriço, Espungabera, 10-05-2011).
O conjunto das entrevistas evidencia que os habitantes de etnia ndau de
Mossurize parecem partilhar a ideia de pertença a um lugar chamado Moçambique,
embora as características culturais tradicionais comuns mantenham a sua força e
contribuam para a consolidação da identidade ndau na região para além de
quaisquer constrangimentos relacionados com a fronteira:
Moçambique é o lugar onde a gente sai e há ligação com os outros que
também saíram em Moçambique. Mas como há a família do outro lado e
nós podemos visitar sempre, há essa liberdade. Eu sinto-me livre
porque sou ndau (Entrevista a comerciante, Espungabera, 11-05-2011).
A palavra utilizada para designar fronteira na língua local (ciNdau) é
mugano. Mas mugano significa limite e é utilizada para designar qualquer
limite de território (nyika), não apenas o caso específico do limite entre
Estados, pelo que se pode concluir, à semelhança do que afirma MacGonagle
(2007, p. 109), que no vocabulário ndau nem sequer existe a noção clara da
separação rígida entre duas unidades políticas distintas.
O alcatroamento da estrada regional 216, iniciado em 2012, vai começar a
permitir ligações mais céleres entre a vila de Espungabera e os principais
centros da província de Manica (Chimoio, Sussundenga e Dombe) e pode trazer
novas alterações ao distrito de Mossurize. O facto de tornar estas ligações
mais sistemáticas e confortáveis, bem como a comunicação com outros distritos,
pode ser um sinal de que o Estado pretende reforçar a sua presença na região. A
alteração da moeda na fronteira, juntamente com os progressos nas
acessibilidades, pode indicar que Mossurize está prestes a fechar a página do
seu isolamento dentro do território moçambicano e que a fronteira, que
simultaneamente o une e separa do Zimbabué, vai ganhando contornos cada vez
mais materiais. Se a porosidade desta fronteira vai perdurar será tema para
pesquisas futuras.
Conclusão
As dinâmicas fronteiriças do distrito de Mossurize aqui apresentadas contribuem
para demonstrar que esta fronteira africana, longe de ser uma mera linha
arbitrária ou artificial, é um importante atributo do Estado e,
simultaneamente, representa um conjunto de significados para as populações que
nela vivem e que a incorporam nas suas práticas.
Apesar de ser uma fronteira porosa não é uma fronteira conflituosa, isto é, o
grupo étnico ndau, que com o traçado da fronteira ficou dividido entre
Moçambique e o Zimbabué, nunca exigiu a revisão da mesma nem reivindicou que os
seus membros habitassem num mesmo território autónomo e unificado, coincidente
com a delimitação pré-colonial. Pelo contrário, a porosidade da fronteira tem
contribuído para a sua própria estabilidade, uma vez que não apresenta
obstáculos inultrapassáveis às práticas ancestrais de mobilidade e
interdependência política, social e cultural da população. De igual forma,
nunca foi uma fronteira disputada entre os dois Estados independentes. Pelo
contrário, ao longo do tempo foi representando uma via de escape para a
população de cada um dos países sempre que se verificaram conjunturas político-
económicas conturbadas que dificultavam o modus vivendi dos habitantes.
Até à década passada, esta fronteira não era percepcionada pelos grupos
fronteiriços como uma barreira económica. A situação alterou-se com a crise do
Zimbabué que, desde 2000, tem provocado mudanças nos hábitos de consumo dos
ndau de Moçambique. O artigo procurou demonstrar que esta conjuntura começou a
provocar alterações nas práticas e representações sociais dessa população e a
fronteira já vai sendo conotada com um obstáculo ao comércio transfronteiriço.
Com efeito, a população de Mossurize que, pela proximidade geográfica, se
abastecia frequentemente de bens de consumo no Zimbabué, tem vindo a deslocar-
se mais assiduamente aos mercados moçambicanos, nomeadamente ao Chimoio. Esta
mudança deve-se a reajustamentos na política económica e financeira do
Zimbabué, que influenciou os movimentos cambiais na zona de fronteira de
Mossurize. Fazer compras no Zimbabué deixou de ser atractivo e favorável para
os moçambicanos.
Pode inferir-se que o Estado moçambicano se encontra a capitalizar este momento
para reforçar a sua efectividade na região. Com efeito, a criação das
infraestruturas estatais locais nos últimos cinco anos, inserida no processo de
desconcentração administrativa, tem garantido a representação do Estado em
Mossurize. Contudo, esta representação é meramente formal, pois a maioria da
população continua a viver de acordo com a organização social e política
tradicional. Assim, perante a impossibilidade de incrementar a ligação da
população ao Estado, e de reverter a porosidade da fronteira, a construção do
Estado em Mossurize parece assentar na capitalização do facto de as deslocações
económicas ao Zimbabué terem diminuído, em detrimento do seu aumento dentro do
território moçambicano. Simultaneamente investe-se nas infraestruturas de
transporte no distrito, de modo a agilizar as deslocações entre Mossurize, até
agora sempre votado ao isolamento, e o resto do território moçambicano.