Salvando vidas humanas
Salvando vidas humanas
Clóvis Brigagão*
SAMANTHA POWER
O Homem Que Queria Salvar o Mundo ' Uma Biografia de Sergio Vieira de Mello
São Paulo,
Companhia das Letras,
2008, 667 páginas
É sempre aventura difícil, mas instigante, escrever sobre alguém. Ainda mais
alguém como Sergio Vieira de Mello (SVM), a partir do montão de folhas escritas
pela acadêmica norte-america Samantha Power. O tom hesitante e até prudente
frente a essa tarefa, de múltiplas faces, não garante, caro leitor, o produto
perfeito e acabado, à semelhança da biógrafa e do biografado. Vamos à própria
autora, que nos apresenta sua obra como «uma biografia dupla».
Primeiro, «é a história da vida de um homem corajoso e enigmático que, em 2003,
via o mundo de um jeito bem diferente daquele de quando ingressou na ONU em
1969» (p. 29). Em trinta e quatro anos de ONU, Sergio Vieira de Mello lidou e
sofreu com, cuidou de e viveu muitas guerras e deslocamentos humanos, em onze
diferentes e conflagradas nações: Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique,
Líbano, Camboja, Bósnia, Ruanda, Congo, Kosovo e Timor Leste (p. 19), distante
do chamado «circuito Elisabeth Arden» (Nova York, Londres e Paris). Segundo, «é
também a biografia de um mundo perigoso [ ] Vieira de Mello entendeu que, mesmo
sem conseguir solucionar todos os males, deveria fazer o possível para atenuar
alguns deles» (p. 30).
AOBRA E O PERSONAGEM
Volumosa obra: são 667 páginas (556 de narrativa corrida e 90 de
agradecimentos, notas, lista de entrevistas, créditos fotográficos e índice
remissivo). O livro encerra três partes cronológicas e historicamente
seqüenciais: sua vida (desde a infância); a ação e a experiência acumuladas
(trajetória de mais de trinta anos como exemplar funcionário
multilateralonusiano, repletos de negociações intensas rápidas sob forte
pressão e tensão conflitiva); e seus onze últimos meses de trabalho e de vida '
à frente do vulnerável escritório da ONU em Bagdá, na ainda iniciante ' e
duradoura ' ocupação dos Estados Unidos no Iraque.
A autora oferece-nos o fio condutor:
«Em uma reunião no Salão Oval, Vieira de Mello criticara as políticas de
detenção norte-americanas em Guantánamo e no Afeganistão e pressionara o
presidente [Bush] a renunciar à tortura. Quando chegou o dia de escolher um
enviado, Annan [então secretário-geral da ONU] designou Vieira de Mello, por
acreditar que fosse o único homem cujos conselhos o governo Bush poderia
acatar. Annan também sabia que seu colega carismático era um dos raros
solucionadores de problemas capazes de assegurar o apoio simultâneo dos
governos americano, europeus e árabes» (p. 21).
INVESTIGAÇÃO INTENSIVA E MORALISMO DE POWER
Aqui iniciamos a recensão crítica ao livro de Samantha Power, resumindo, tanto
quanto possível, as experiências marcantes do exímio negociador de campo, em
todos os níveis e em todos os lugares por onde passou. Com sobejo fôlego, a
autora constrói sua obra a partir de duas dimensões de SVM. Primeiro, uma
investigação completa e intensa ' ao estilo do «jornalismo objetivo norte-
americano» ' dos passos, a rotina e os itinerários, assim como os dramas, as
dúvidas, os erros e os acertos contagiantes da personalidade de SVM. Era uma
figura de grande fôlego, física, cultural e com sensibilidade humana.
Trabalhador incansável, era um «pé-de-boi», quer nas tarefas politicamente
sensíveis ou até mesmo nas rotinas burocráticas da ONU. Ainda assim, mesmo
depois de estar presente em tantas situações muito difíceis e traumáticas,
nunca perdeu a capacidade de ficar chocado com as barbaridades que seres
humanos impunham a seus semelhantes.
Uma segunda dimensão da obra de Samantha Power é, no entanto, eivada da
percepção puritana da autora. Na maioria das vezes, ela vê-se chocada e, então,
julga com precipitação, «pecados» ou «distorções comportamentais» (behaviorismo
típico norte-americano) atribuídos a valores e atitudes de seres humanos como
SVM. É bom destacar: SVM foi homem da vida ' um «fura-vidas» ' a serviço do que
de melhor pode existir em um ambiente internacional sob a liderança das Nações
Unidas. Brasileiro, ao longo de sua jovem vida ele volta, pouco a pouco, a
identificar-se com sua terra natal; embora internacionalista de «carteirinha»,
SVM possuía o savoir-faire cosmopolita e, ao mesmo tempo, era intensamente
delicado, afetuoso e, acima de tudo, respeitoso com quem o hospedava, sob os
escombros de conflitos e da miséria humana, seja na África, na Ásia, na Europa,
na América do Sul ou no Oriente Médio. A percepção precipitada de Power acerca
de vários aspectos da vida e da ação de SVM é, no mínimo, preconceituosa. Ela
encontrou-se com Sérgio, pela primeira vez, na ex-Iugoslávia em 1994, para um
«jantar à noite »: imaginemos o fascínio. Em inúmeras páginas de sua
Introdução, por suas próprias palavras ou por citações, Power claramente
expressa julgamentos morais sobre SVM: aventureiro, popstar internacional,
figura global, festeiro, «como um cruzamento de James Bond com Bobby Kennedy».
Em todo o percurso do livro, essas «valorações» são continuadas e submetidas ao
escrutínio da visão moralista da vida feito pela autora: «tomar» whisky Black
Label, estar em companhia ou ser atraído por mulheres jovens [com quem mantinha
relações pessoais normais], «reunir-se» com amigos em bares, festas etc., etc.
Prezada Samantha: Era nesses lugares, como em outrofront, com seu respeito e
glamour brasileiro, mas também português, africano, latino, internacional, que
Sérgio expressava muito bem e positivamente, a continuidade de seu trabalho de
campo ' ao que dava o melhor de si Aos olhos e palavras da autora, isso parece
contaminar um estado de pureza da vida.
1
Como poder compartilhar e aceitar a apressada e contraditória avaliação da
autora sobre a carreira de SVM na ONU: "A rápida ascensão [ênfase minha]
de Vieira de Mello na ONU fez com que as pessoas, em uma análise retrospectiva,
achassem que ele tinha uma ânsia maquiavélica pelo poder".
Inconsistentemente, logo depois, ela resume: "Depois de trabalhar por 28
anos no acnur (ênfase minha), do qual se afastou apenas duas vezes para servir
em missões de paz no Líbano e na Bósnia" (pp. 249-250). Em que ficamos?
Com a mesma ligeireza a autora transmite ao leitor depreciações, ideológicas e
pessoais, em relação a algumas personalidades e autoridades da ONU, ora de
forma desrespeitosa, ora com apreciações fugazes e superficiais2.
AVALIAÇÕES FINAIS
No fundo, a avaliação de Power sobre a relevância da ONU, seu tom de reprovação
e até certo desdém político, é semelhante à posição e tom de um Francis
Fukuyama
3
. Eles imputam à ONU uma presença internacional sem força política real, quer
nas missões de paz, quer nos vários arranjos da intervenção humanitária. Para
eles, as limitações apontadas em nada diminuem a relevância da ONU. Como se o
poder só tivesse limites para a ONU, não para os Estados Unidos e seu braço, a
NATO. Acabam reforçando a visão política das grandes potências, segundo as
quais para defender direitos humanos (como em Guantánamo e Abu Ghraib?) e
promover a democracia [que também consideramos fundamental], deve-se considerar
e usar o poder da força! E conclui Fukuyama, numa posição que podia ser a de
Power: "ainda não dispomos de um adequado conjunto de instituições que
desempenhe isso legítima e efectivamente"4.
Com esse alicerce de investigação acadêmico-jornalístico, as questões mais
substanciais, do pensamento à ação de SVM ' que por limite de espaço não
podemos desenvolver aqui ' se igualam com o outro constante enredo de pequenos
detalhes, comentários superficiais, ingênuos e simplistas (como sobre o Golpe
Militar de 64 no Brasil). O livro perde substância, a narrativa mantém-se no
mesmo registro, rápido e falho de análises substantivas. Furta a substância do
biografado e torna--se, seguidas vezes, inconsistente, num só tom ' que não
é o tom da bossa-nova.
Claro, o livro é recomendável como fonte para futura investigação. Sobre as
duas dimensões focalizadas por Power, cabe, exclusivamente, aos leitores o
diagnóstico. No epílogo, a autora revela seu veredito: "morreu sob os
escombros do Hotel do Canal ' soterrado pelo peso da própria ONU" (ênfase
minha). No entanto, prefiro recomendar aos leitores outra obra, formada por
sete textos de amigos brasileiros (diplomatas, jornalistas e acadêmicos) sobre
o pensamento e memória, bem como por dezoito dos mais importantes textos da
produção intelectual de SVM, que cobrem toda sua visão e práticas de
administração naqueles países onde atuou como representante da ONU
5
. SVM não se furta a oferecer visões e apresentar propostas práticas possíveis,
com base em seus trinta e quatro anos de experiencia internacional. Poderia
resumir aqui o que ele pensou sobre os conflitos: "muitos conflitos
poderiam ser evitados ou, pelo menos, contidos, mitigados e superados, se a
preocupação em resolvê-los ' sem resultar em uma ruptura do diálogo e da
confiança mútua ' fosse o centro de uma estratégia internacional de
prevenção"6.
NOTAS
1 Cf. pp. 22-29, 78, 83, 100-101, 121, etc. etc. etc. e etc.
2 Uma delas chocou o autor da recensão: suas injustas e levianas acusações
contra o Sr. Thorvald Stoltemberg, em suas funções comissionadas pelas Nações
Unidas e que sempre dedicou a maior e mais profunda admiração e amizade a SVM.
Entrevista com Thorvald Stoltemberg, Oslo, Setembro de 2007, em conversa em sua
residência. Este é um reparo que precisava ser feito aqui.
3 Fukuyama, Francis' "The Internationalist". In New York Times, 17
de Fevereiro, 2008.
4 Ibidem.
5 Marcovitch, Jacques (org.) ' Sérgio Vieira de Mello ' Pensamento e Memória.
São Paulo: Saraiva/EDUSP/Bunge Fundação, 2004, 338 pp. Há escritos sobre textos
de SVM de Celso Lafer, Carlos Eduardo Lis da Silva, Luis Felipe de Seixas
Corrêa e Luciana Mancini, Gelson Fonseca Jr., Paulo Sérgio Pinheiro, Ronaldo
Mota Sardenberg e mais os textos escolhidos filosóficos, políticos, sobre
Direitos Humanos, textos práticos de administração, sobre Timor-Leste (cinco
textos) e quatro entrevistas de SVM. Vale a pena conferir.
6 Ibidem, resumo extraído de seus pensamentos no livro organizado por J.
Marcovitch.
* Politólogo. Director do Centro de Estudos das Américas e coordenador do Grupo
de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais da Universidade Cândido
Mendes, Rio de Janeiro.
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