In memoriam. Jacques Le Goff (1924-2014)
DESTAQUE
In memoriam. Jacques Le Goff (1924-2014)
José Mattoso*
*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas '
Instituto de Estudos Medievais, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail:
jjmtts@outlook.com
Por ocasião da morte de Jacques Le Goff, no passado dia 1 de Abril, alguns dos
jornais que davam a notícia, sobretudo os franceses, chamavam-lhe "l'ogre
historien". Se em francês a metáfora não se compreende facilmente, muito menos
se percebe em português. Alguns dos autores franceses que a usaram tiveram o
cuidado de a explicar. O certo é que a alcunha, digamos assim, teve sucesso. É
o que se depreende de ter sido empregue por vários jornais e estes lhe terem
dado grande relevo.
O ogreé uma entidade que aparece frequentemente nos contos populares do Norte
da Europa. É um monstro que mete medo a toda a gente, se alimenta de carne
humana e nunca está saciado. As versões modernas atenuam a sua ferocidade,
identificando-o com o romântico personagem masculino de A Bela e o Monstroou
acentuam o contraste entre os dois aspectos de Shrek, o herói do filme de
desenhos animados americanos, fisicamente disforme, mas ousado e protector.
Até aqui, parece que nada disto tem que ver com Le Goff. A atribuição deve-se
aos seus discípulos Jacques Revel e Jean-Claude Schmitt que, em 1998, reuniram
e publicaram uma miscelânea de estudos em honra do seu mestre, a que deram o
título L'ogre historien. Autour de Jacques Le Goff.A alcunha pegou. Mas é uma
citação. Baseia-se numa frase célebre de Marc Bloch, que, numa passagem da sua
obra Apologie pour l'histoire ou métier d'historien (1949), compara o "bom
historiador" a um "ogre", devorador insaciável de carne humana, ou seja,
explorador incansável dos vestígios da acção humana nos despojos do passado: "O
bom historiador, diz Marc Bloch, assemelha-se ao ogre da lenda. Onde fareja
carne humana, ele sabe que está a sua caça.
É preciso dizer, porém, que a identificação de Le Goff com um ogre não se deve
a qualquer espécie de ferocidade, mas à sua capacidade para em tudo ver
História. Esta qualidade deve existir em qualquer bom historiador. Em Le Goff,
evidenciou-se pelo número de obras que escreveu, pela variedade de temas que
explorou e pela multiplicidade de fontes históricas a que recorreu, mas também
pela sua impressionante capacidade de trabalho, e até pelo seu aspecto físico.
De facto, era corpulento como uma montanha, mas a sua imponência não o tornava
frio nem distante. Transparecia nele a autoridade, mas sem excluir o dom do
acolhimento. As suas qualidades de chefia fizeram dele, durante dezenas de
anos, o director da revista Annalese o responsável por um seminário de História
Medieval na École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales. Não posso
esquecer o ambiente de cordialidade, de exigência crítica e de espírito de
equipa que envolvia o seu seminário, no qual tive o privilégio de participar em
1990. Não admira que tenha marcado com a sua personalidade invulgar a corrente
historiográfica francesa que dominou de forma brilhante os meios universitários
de todo o mundo entre os anos 50 e o fim do século XX, sobretudo nos países da
Europa meridional e da América do Sul.
Tal como o monstro, que devorava tudo, também ele de tudofazia História: dos
"intelectuais", do trabalho, da memória, do tempo, da escrita, da Europa, das
lendas hagiográficas, dos santos (S. Luís, rei de França, e S. Francisco de
Assis), do Purgatório, do imaginário (que há de mais diverso e mais ilimitado
do que o imaginário?) Estudou toda a espécie de documentos: cruzes,
formulários litúrgicos, gestos, vestuário, emblemas, tratados de Filosofia e
Teologia Escolástica, símbolos, imagens, "exemplos", sermões, insígnias,
crenças, sacramentos, indulgências, ideias políticas Tudo isto situado no seu
contexto, enquadrado pela respectiva época, inserido no respectivo grupo
social, dependente de determinados sistemas sociais e económicos, sujeito a
mudanças de grande amplitude, diferenciado pelas variáveis geográficas do
espaço que ocupa. Tal como o monstro capaz de devorar tudo o que cheira a
humanidade, também Jacques Le Goff descobria indícios de História em tudo o que
tivesse a marca do Homem.
Foi dessa marca, por mais ténue que ela se apresentasse, que Le Goff tratou
como poucos o souberam fazer. Assim nos ajudando a desvendar a vida dos homens
e das mulheres da Idade Média.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
MATTOSO, José ' In memoriam.Jacques Le Goff (1924-2014). Medievalista [Em
linha]. Nº16 (Julho - Dezembro 2014). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em
http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA16\