In memoriam, Humberto Baquero Moreno (1935-2015)
DESTAQUE
In memoriam, Humberto Baquero Moreno (1935-2015)
José Marques*
* Universidade do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 4150-
564, Porto, Portugal. E-mail: jmarq@sapo.pt
Data do texto: 7 de Maio de 2015
O dia 6 de Abril de 2015 para quantos conheciam e estimavam o Prof. Doutor
Humberto Carlos Baquero Moreno ficou profundamente marcado pela triste notícia
do seu falecimento, ocorrido no dia 5, à tarde – dia de Páscoa –, e do funeral
marcado para o dia seguinte. A infausta notícia, que se vinha pressentindo, a
todos comoveu, deixando, aos oitenta anos, os seus numerosos amigos e
admiradores marcados pela dor e saudade da sua partida, em profunda sintonia e
plena solidariedade com a Família, que tanto amava, e acompanhámos nesse
momento difícil.
A tristeza e a saudade decorrentes da perda de um amigo, com quem convivemos
durante quase três décadas, realçam mais ainda a riqueza das suas qualidades
humanas, que todos admirávamos e importa evidenciar, como precioso e exemplar
legado a preservar, a par da sua extensa e valiosa obra histórica, que
ultrapassa as três centenas de títulos.
Estas referências às excelentes qualidades humanas do Professor Baquero Moreno
e à riqueza da sua obra científica exigem um breve enquadramento biográfico,
útil na actualidade e indispensável para a correcta preservação da sua memória:
Humberto Baquero Moreno, filho de Carlos Vítor de Jesus Baquero Peruch e Ângela
Moreno Baquero, nasceu em Lisboa, em 1934, tendo frequentado e concluído o
bachillerato no Instituto Espanhol, em 1952, aí radicando os primórdios – mais
tarde, desenvolvidos – do seu entusiasmo pela língua e pelos clássicos da
literatura espanhola, em particular, dos seus poetas, que se comprazia em
recitar.
Após a necessária passagem pelo ensino liceal, inscreveu-se na Faculdade de
Letras de Lisboa, onde se licenciou em História e obteve o diploma de Ciências
Pedagógicas, indispensável para o ingresso na função docente, que exerceu no
Liceu Camões, durante dois anos. Em Dezembro de 1963, foi contratado como
segundo assistente dos Estudos Gerais de Moçambique, depois elevados a
Universidade de Lourenço Marques, na qual, a par da docência de várias
disciplinas e a preparação e publicação de mais de duas dezenas de estudos,
preparou a sua monumental tese de doutoramento sobre A Batalha de Alfarrobeira.
Antecedentes e significado Histórico, brilhantemente defendida, na Reitoria da
Universidade de Lisboa, em Janeiro de 1974.
Na sequência dos acontecimentos de 25 de Abril de 1974, em finais desse mesmo
ano, regressou, definitivamente, à Metrópole, passando, no ano seguinte, a
integrar o corpo docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
encerrando, assim, a primeira fase de sua vida universitária e académica e
iniciando outra mais longa, intensa e rica.
A preparação científica que os estudos publicados, de que a dissertação de
doutoramento era a coroa, a experiência pedagógica adquirida durante vários
anos de docência em Lourenço Marques e a facilidade e o rigor da comunicação,
aliados ao conjunto das suas múltiplas qualidades humanas, logo lhe granjearam
cordial acolhimento, na Faculdade de Letras, que foi crescendo ao longo dos
quase vinte e seis anos de permanência ao seu serviço, integrado no grupo de
História Medieval. O prestígio do Prof. Baquero Moreno ultrapassou,
rapidamente, os muros da Universidade, passando a colaborar com numerosas
instituições culturais portuguesas e estrangeiras, a que faremos breves, mas
indispensáveis, referências.
Neste In memoriam, prescindimos da apresentação sistemática de outras notas
biográficas e sobre a extensa e valiosa obra científica, divulgadas no primeiro
dos três volumes da obra Os Reinos Ibéricos na Idade Média. Livro de Homenagem
ao Prof. Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno, expressão pública da amizade e
estima que a Faculdade de Letras e numerosos amigos portugueses e estrangeiros
quiseram testemunhar-lhe, bastando, por isso, evocar alguns dos sectores da sua
actividade e iniciativas a que prestou mais colaboração e melhor evidenciam o
seu alto valor científico e qualidades humanas.
Como docente universitário, Humberto Baquero Moreno privilegiou sempre a
investigação, cujos resultados nos legou na sua vastíssima obra histórica,
publicada em volumes avulsos, obras colectivas e numerosas publicações
periódicas, de leitura atraente e obrigatória para quem pretender conhecer o
século XV português, sob os mais variados aspectos, de que salientamos os
políticos, administrativos, económicos, sociais, culturais, tendo-se ocupado
também da marginalidade e assistência, dos itinerários e circulação viária, das
minorias étnicas e religiosas, concretamente judeus, conversos e mudéjares,
etc., etc., pois sobre todos nos deixou preciosos contributos. Na
impossibilidade de ampliarmos as considerações sobre tão vasta obra histórica,
impõe-se observar que Baquero Moreno apoiava os seus estudos em fontes
documentais, geralmente inéditas, publicando-as, com frequência, em apêndice.
Neste sector da investigação, não poderíamos olvidar o estímulo que a todos
transmitia, especialmente, em ordem à preparação das dissertações de mestrado e
doutoramento, procedendo também da mesma forma, quando as circunstâncias se
proporcionavam, em relação a colegas de outras secções da Faculdade, cuja
tendência para o atraso lhes conhecia.
A docência para o Professor Humberto Baquero Moreno era uma verdadeira paixão.
As suas aulas eram dadas com alma, isto é, com entusiasmo, calor e espírito
pedagógico, alimentados na reflexão e no contacto com a documentação, longa e
pacientemente recolhida nos arquivos, que gostava de classificar como
«laboratórios da história». E não se pense que exageramos ao afirmar que a
docência constituía para ele uma verdadeira paixão. Se alguma dúvida houvesse,
bastaria recordar que tendo sido convidado pelo, então, Primeiro Ministro para
Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, funções que exerceu durante
dois anos, aceitou, com a condição de não abandonar a docência, que exercia, no
início e no fim de cada semana.
As suas aulas não serão facilmente esquecidas por quantos tiveram o privilégio
de acompanhar algum dos seus cursos – entre os quais nos incluímos, como
“jovem” assistente, incumbido das aulas práticas de História Medieval de
Portugal –, merecendo o devido relevo a amplitude e segurança dos
conhecimentos, o rigor e fluência da linguagem e o entusiasmo posto na
transmissão da visão pessoal dos assuntos, que tinha estudado, e cujas fontes
documentais tão bem conhecia, a ponto de os alunos, muitas vezes, lhe dizerem,
em tom encomiástico, que as aulas eram autênticas conferências.
Apesar de o Prof. Baquero Moreno privilegiar a investigação e a docência como
essenciais à condição de professor universitário, quando o Estatuto da Carreira
Docentepassou a exigir aos docentes disponibilidade para o exercício de funções
de gestão universitária, ainda em tempos bastante conturbados, no rescaldo da
revolução de 25 de Abril de 1974, aceitou presidir ao Conselho Directivo da
Faculdade de Letras, tendo conseguido com o seu espírito dialogante e
capacidade de persuasão congraçar grupos de alunos, ideologicamente antagónicos
e estabelecer e sustentar a calma entre todos, criando condições indispensáveis
para um ambiente de estudo e de são convívio. Durante o exercício destas
funções, no frequente diálogo com os respectivos Departamentos do Ministério da
Educação, conseguiu a ampliação dos quadros superiores da Faculdade, de que
viriam a beneficiar diversos docentes, que, de outra forma, veriam as suas
carreiras truncadas.
Além destas funções administrativas, a Faculdade de Letras do Porto beneficiou
também da permanência do saudoso extinto no Conselho Científico, a que
pertenceu, desde o início até à sua aposentação, onde as suas frequentes e
ponderadas intervenções obrigavam a reflectir em busca das soluções mais
oportunas e eficazes. E não poderíamos esquecer a dedicação com que, durante
muitos anos, secretariou o Centro de História da Universidade do Porto,
dependente do Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), sedeado na
mesma Faculdade, e cuja Revista de História, antes da restauração da Revista da
Faculdade de Letras,acolheu a produção científica dos seus membros,
maioritariamente,incorporados no corpo docente.
Entretanto, iniciavam-se novos tempos e as universidades portuguesas começavam
a sentir necessidade de se abrirem à sociedade. O Professor Huberto Baquero
Moreno, já bem conhecido, também neste domínio prestou relevantes serviços à
Faculdade de Letras e à Universidade do Porto, através de conferências,
participação em congressos e, sobretudo, mediante a integração em projectos
culturais celebrados com municípios, universidades e academias, que se
estenderam ao estrangeiro, em especial, à Espanha e ao Brasil. A título de
exemplo, pelo que representaram como pontos de intercâmbio e aproximação entre
professores e outros medievalistas dos dois lados da fronteira, recordem-se as
“Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia” e “da Andaluzia e do
Algarve”, durante anos, realizadas, alternadamente, em Loulé e em Sevilha ou
localidades mais adequadas para o efeito, escolhidas pelos organizadores
sevilhanos. Em todas estas iniciativas histórico-culturais interveio, de forma
preponderante, o saudoso Professor Baquero Moreno, cuja influência foi
igualmente determinante na concretização dos Colóquios entre medievalistas
portugueses e brasileiros, efectuados, com idêntica alternância, nas duas
margens do Atlântico. Quanto aos do Brasil, impõe-se acentuar que, além das
temáticas criteriosamente definidas em função das especificidades históricas do
País anfitrião, ficaram caracterizados também pela notável itinerância, que
permitiu aos participantes contactar com diversas universidades, regiões e suas
gentes, desde Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Niterói e Oeste do Paraná,
prolongada até ao Norte da Argentina, numa visita de estudo a uma das célebres
“reduções”ou missões dos Jesuítas.
Em relação a estes últimos aspectos, foi importante o facto de, mercê dos seus
méritos científicos, o Professor Baquero Moreno pertencer às Academias:
Portuguesa da História, das Ciências de Lisboa, da Marinha, da Real Academia de
la História de Madrid e ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro,
em todas elas, tendo demonstrado o seu muito saber. Além da presença nestas
Academias, que consagraram o valor da investigação realizada ao longo da sua
vida universitária e académica, integrou também outras instituições culturais,
que se honraram com a sua presença e beneficiaram dos estudos aí apresentados,
bastando mencionar a Associação dos Historiadores Europeus, o Instituto
Cultural Galaico-Minho, a Comissão Internacional para a História das
Assembleias e Parlamentos, de que foi Presidente da Secção Portuguesa, e a
Comissão Internacional de “Expertos” (Peritos) do Caminho de Santiago, em
representação de Portugal, por nomeação da “Xunta de Galícia”.
Se a presença activa e os estudos apresentados nestas instituições o situavam
ao mais alto nível cultural, impõe-se registar, igualmente, a influência social
exercida, por ocasião dos referidos eventos internacionais. Podemos, por isso,
afirmar que, muito antes de as universidades se abrirem para a
“internacionalização”, já o Professor Baquero Moreno a punha em prática, de
forma discreta, mas eficaz.
É compreensível, por isso, que diversas instituições nacionais e estrangeiras
lhe manifestassem a sua gratidão, concretizada na atribuição e entrega de
distinções, que, nesta hora de exaltação dos seus méritos, é justo e nos apraz
recordar, começando pela Faculdade de Letras do Porto, que tão dedicadamente
serviu, e, em 16 de Janeiro de 2001, lhe entregou, solenemente, a Medalha de
Ouro; por sua vez, a Associação Espanhola dos Amigos dos Castelos, concedeu-lhe
a Medalha de Prata de Mérito,em 1994; da parte do Brasil, o Chefe do Estado
Maior da Marinha agraciou-o com a Medalha de Amizade e de Mérito,e,em 1995, o
Ministro da Marinha do Brasil condecorou-o com a Ordem de Mérito de Tamandaré.
Em Portugal, foi agraciado, em 10 de Junho de 1994, pelo Presidente da
República, Doutor Mário Soares, com o grau de Grande Oficial da Ordem do
Infante D. Henrique.
Este esboço da vida e obra do Professor Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno,
com particular incidência nos planos académico e cultural e na sua vasta obra
histórica, largamente reconhecida, admirada e galardoada ao mais alto nível,
embora marcados pela saudade, ajuda-nos a curvarmo-nos perante a sua memória,
gratos pelas lições de dignidade, competência e vigoroso humanismo que nos
deixou, e convida-nos a pedirmos e confiarmos que Deus já o tenha junto de Si.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
MARQUES, José – “In memoriam. Humberto Baquero Moreno (1935-2015)”.
Medievalista [Em linha]. Nº18 (Julho - Dezembro 2015). [Consultado dd.mm.aaaa].
Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA18/. ISSN
1646-740X.