Diretrizes curriculares e a potencialização de condições para mudanças na
formação de enfermeiros
DIRETRIZES CURRICULARES EM DEBATE
Diretrizes curriculares e a potencialização de condições para mudanças na
formação de enfermeiros
Curricular guidelines and the promotion of conditions for change in nursing
education
Directrices curriculares y la potenciación de condiciones para cambios en la
formación de enfermeros
Edir Nei Teixeira Mandú
Doutora em Enfermagem. Professora da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da
UFMT, Coordenadora de Ensino de Graduação em Enfermagem, E-mail:
emandu@terra.com.br
1 Introdução
As idéias e interrogações apresentadas por Dagmar e Maria Henriqueta, como elas
mesmas destacam e propõem, são um convite à reflexão e suscitam inúmeras
correlações com dificuldades, necessidades, possibilidades e impossibilidades
por nós vivenciadas cotidianamente na formação de enfermeiras/os.
Ao tratar do tema "diretrizes curriculares e projetos pedagógicos",
nossas colegas trazem à tona, numa perspectiva político-ética que considero
relevante, a complexidade que envolve a formação profissional e a importância
de tratá-la de forma contextualizada e crítica.
Parece-me que dois grandes pontos, que se entrecruzam e abrem espaço a outros,
emergem no desenrolar do debate que encaminham: 1) a inscrição do contraponto
reprodução _ problematização no âmbito das proposições e reformas curriculares;
2) a relevância, o caráter social e o sentido político das diretrizes, projetos
e processos curriculares que visam a mudanças na formação de enfermeiras/os.
Ao versar sobre esses pontos, de forma problematizadora, as autoras abrem
caminho à ampliação do debate e à inscrição de outras interrogações, tais como:
quais são, de fato, as questões centrais da formação de enfermeiras/os? Temos
nelas situado as nossas reflexões, forças, potenciais e elaborações? A despeito
de seus limites e contradições, as diretrizes curriculares encetam algo de
novo? Constituem-se elas, tal como elaboradas, em impedimento para
significativas reconstruções político-pedagógicas dos cursos de graduação em
enfermagem? Qual o lugar e a força das diretrizes curriculares à inovação do
trabalho educativo cotidiano? Articulam-se as diretrizes curriculares nacionais
a políticas e projetos de investimentos em educação universitária/educação em
enfermagem?
Certamente tais questionamentos, e outros apresentados pelas autorasDagmar e
Maria, demandam a promoção de um amplo diálogo coletivo, fundado em bases
teórico-práticas e posicionamento político, que apenas se mobiliza neste espaço
e debate iniciado. Para contribuir com esse trabalho, concentro-me um pouco
mais nessa última interrogação, olhando (na linha desenvolvida pelas autoras)
para além do texto, uma vez que nesse âmbito identifico inúmeras dificuldades,
conflitos e um universo fundamental à elaboração/produção pela enfermagem.
2 Diretrizes e mudanças curriculares: um olhar para além do texto
Não é novidade para nenhum/a de nós que idéias, diretrizes e projetos, ainda
que relevantes no trabalho educativo (ou em outros), não viabilizam, por si só,
as condições e os processos necessários à sua materialidade. Eles dão asas aos
nossos desejos, orientam nossos caminhos, expressam posições, concentram e
direcionam esforços coletivos, mas não concretizam todas as condições para o
fazer.
Com contornos mais ou menos estreitos, com um caráter mais ou menos engessador,
como diretrizes de fato ou como currículo nacional modelar, flexíveis ou não,
as proposições curriculares nacionais perdem em potencialidade, como
instrumento de inovação crítica, se permanecerem desacompanhadas de uma ampla
política nacional/local de investimentos à geração concreta de certas
condições, que contemplem:
- a valorização do trabalhador da educação - mediante a produção de condições
de trabalho, quadros docentes quantitativa e qualitativamente apropriados,
salários dignos;
- mudanças na estrutura organizativa das instituições formadoras - que
viabilizem a pesquisa, a extensão e as articulações entre estas e o ensino,
dimensionando apropriadamente o preparo profissional, condições acadêmico-
financeiras, compromissos interinstitucionais;
- a qualificação dos processos de gestão acadêmica - englobando a
democratização das relações no interior das instituições formadoras e a
participação de atores externos, enfrentando as culturas nelas comumente
presentes do isolamento, do burocratismo, da negligência, da rigidez;
- a articulação da educação a outros setores e, especificamente, ao setor saúde
e seus serviços - aproximando-se e viabilizando compromissos e projetos
conjuntos de transformação tanto da formação como das práticas em saúde;
- processos de inclusão do que comumente denomina-se como periferia no âmbito
das instituições, produções, trabalhos e trabalhadores universitários - no
conjunto das políticas, dos projetos e processos nacionais/locais em educação,
enfermagem, desenvolvimento científico-tecnológico, qualificação de potenciais
humanos, etc.
De forma propositiva, transformo em afirmação parte de uma das interrogações
postas por nossas colegas, ao tratarem da mediação entre parâmetros e
construção curricular. Julgo que, na construção de inovações na formação de
enfermeira/os, é central localizar e/ou produzir espaços (e processos) que
permitam às instituições formadoras potencializar as condições específicas de
cada uma.
Num paralelo entre o setor educacional e o da saúde, podemos extrair indicações
valiosas do processo de construção da reforma sanitária no Brasil. Ele nos
aponta a relevância, para além das diretrizes delineadas à construção do
sistema e de sua inscrição legal, da tradução, destas, em políticas e práticas
encaminhadas de forma integrada, inclusiva, participativa e colaborativa,
valorizando e comprometendo tanto o nível nacional quanto o local.
Nesse sentido, entre outros aspectos, são essenciais a aproximação, a crítica e
encaminhamentos em torno de elementos que vêm dando forma concreta aos
currículos, considerando sobretudo o âmbito mais global da educação/educação
superior, das instituições e processos políticos da enfermagem e, também, a
dinâmica das diversas instituições formadoras.
Sem querer reduzir tais questões, mas tentando concretizá-las, falo, por
exemplo:
- dos contornos que vêm sendo dados aos currículos através dos processos
avaliativos dos cursos universitários de formação profissional (via exames
nacionais de cursos e avaliação das condições de oferta do ensino), a despeito
das proposições curriculares nacionais e da necessária consideração ao local;
- dos modos como se viabiliza/inviabiliza a inclusão dos potenciais
educacionais/na enfermagem, presentes nos vários e distintos espaços, marcados
por um evidente distanciamento e hierarquização entre o nacional e o local, com
mascaramento deste último;
- da necessária interface entre mudanças curriculares e o delineamento de
políticas, projetos e práticas nacionais/locais no âmbito da pós-graduação e
pesquisa em saúde e enfermagem;
- de um certo silêncio dos organismos representativos da enfermagem diante das
recentes e atuais políticas governamentais para a educação, saúde e
trabalhadores públicos.
Para que as diretrizes curriculares potencializem inovações, somando-se a sua
interpretação crítica, é necessário pensar/pôr em andamento, nacional e
localmente - de forma integrada, estratégias de acumulação de poder, de
viabilização de recursos diversos, de produção de parcerias, de formação de
massa crítica, de concretização de projetos de ação dinâmicos, mobilizadores,
aproximadores e inovadores.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional adota a noção de competências
como um eixo estruturante dos currículos de formação, e este se exprime nas
diretrizes curriculares nacionais de formação de enfermeiras/os, valorizando a
relação com o mundo do trabalho, suas grandes transformações e demandas.
Dessa relação, emerge a idéia da produção social e educacional de um novo
trabalhador, com competências que, para além da qualificação instrumental,
demandam a construção de uma nova subjetividade. Requerem-se profissionais com
qualificação técnica, com conhecimentos de caráter global, com capacidade de
tomar decisões, de empreender, de trabalhar em equipe, de enfrentar contínuas
situações de mudança.
Esses novos requisitos, dentre outros, tidos como imprescindíveis para os
trabalhadores, não se desvinculam do conjunto de exigências postas pelo projeto
de progresso dominante, atrelado ao aprofundamento das condições capitalistas e
mudanças nos processos produtivos(1).
Tais exigências se expressam nos mercados de trabalho, com características
diversas, e, em alguma medida, não podem ser desconsiderados pela formação.
Contudo, elas podem e devem ser criticadas levando em conta a necessidade de
recuperação das responsabilidades sociais da educação/educação superior (e,
especificamente, da enfermagem) _ em prol da formação de cidadãos, do resgate
da integralidade do ser humano, da construção de sujeitos, da confrontação dos
individualismos e exclusões diversas, da valorização da ação política e
participação coletiva(2).
Nessa direção, é relevante situar-se frente à polissemia, distinções,
contradições, permanências e rupturas que envolvem os conceitos e idéias postas
em torno das proposições curriculares, como bem disseram Dagmar e Maria. Na
busca das aproximações necessárias, é preciso dialogar e interagir com os
campos de trabalho, com os sujeitos que neles atuam ou deles são alvo,
compreendendo os contextos, as culturas, as diversidades, reconhecendo como as
competências profissionais podem se inserir crítica e eticamente em sua
dinâmica.
A projeção e a construção de novas competências profissionais não podem
desconsiderar que estas requerem a qualificação dos educadores (sobretudo se
sintonizadas com a formação de sujeitos criativos, questionadores e éticos),
tendo em vista o desenvolvimento de suas próprias subjetividades.
Pois bem, não se trata, então, de simples incorporação das diretrizes
curriculares nacionais, sem problematização e reflexão sobre os seus
pressupostos, conceitos, sua aproximação e significados para as práticas
educativas, e sem apoio amplo que considere os marcos teóricos, políticos e
éticos eleitos à sustentação das mudanças locais. Considerado o contexto
institucional pregresso e o atual de formação universitária, mudanças
significativas dificilmente irão ocorrer sem condições e investimentos
estrategicamente pensados e encaminhados, com suporte para além do viabilizado
através de iniciativas das instituições locais (e vice-versa).
As coordenações de cursos de graduação em enfermagem requerem redefinições e
qualificação para a função coordenadora e pedagógica que exercem, tendo em
vista a realização da ação de planejamento, acompanhamento e avaliação
curricular e a superação de uma prática de senso comum presente nas tarefas
administrativas, nos processos de integração e orientação acadêmica(3).
Em nossos cenários educativos não são incomuns a falta de desejo e as
resistências. Experiências pedagógicas largamente criticadas são usualmente
reproduzidas e igualmente a fragmentação disciplinar. Como dito pelas colegas,
é complexa a aproximação das fronteiras epistemológicas, a configuração de
currículos flexíveis e de fato integrados, a viabilização de abordagens
interdisciplinares e a construção da articulação teoria-prática. As
incoerências entre proposições e práticas são inúmeras, acompanhadas da falta
de clareza em relação ao que se elege e nomeia.
Assim, é preciso reconhecer a importância da formação político- pedagógica dos
trabalhadores da educação/educação em enfermagem. São necessários investimentos
planejados no crescimento desses profissionais, para o enfrentamento, de forma
mais dinâmica e rápida, das transformações no campo da saúde e da enfermagem
coerentemente com as idéias de promoção da saúde, de atenção integral,
universal e equânime.
Dado o caráter social, contraditório e conflituoso do trabalho, das relações
entre os sujeitos que o fazem e do fato de as mudanças curriculares demandarem
uma profunda transformação das pessoas, também se insere, nesse conjunto, a
importância de investir no incremento de uma nova ética profissional.
Parece-me que uma de nossas dificuldades encontra-se no lidar, no cotidiano dos
nossos trabalhos, com os limites. as possibilidades e impossibilidades, as
determinações, os potenciais, os direitos e as responsabilidades ou, dito de
outro modo, com a reprodução - inovação, apoiados em uma perspectiva crítica e
comprometida com a superação do estabelecido.
Isso posiciona a relevância da dimensão político-ética implicada no fazer
cotidiano, abrangendo a questão da concreta tradução e incorporação, ou não, de
bases (filosóficas, políticas, epistemológicas, pedagógicas, metodológicas) e
conceitos (como os de educação, enfermagem, saúde-doença, autonomia, ética,
etc.) comumente presentes em nossos projetos político pedagógicos idealizados.
Essa, certamente, não é uma questão simples, uma vez que se articula à inserção
sócio-cultural das pessoas e a suas trajetórias de vida. Essas trajetórias,
ainda que resultem em elementos comuns, geram modos peculiares das pessoas se
colocarem diante das tensões, contradições e desafios da vida e do mundo do
trabalho.
Por conseguinte, reconhecendo a importância e complexidade de tal dimensão na
inter-relação parâmetros, projetos e processos educativos, identifica-se a
necessidade de produção de estratégias favoráveis ao desenvolvimento da
autocrítica e responsabilização profissional (que precisa acompanhar o terreno
dos direitos sociais), enfrentando, em seus sentidos e desdobramentos, o
contraponto reprodução - mudança.
As condições histórico-sociais e posicionamentos político-éticos precisam ser
outros para que transformações significativas na formação de enfermeiras/os de
fato se configurem e, nessa direção, não se pode excluir o reconhecimento de
que caminhos e meios devem ser explorados por nós.
Nessa perspectiva, parece-me fecundo afirmar princípios, refletir e
compreender, perguntar o que fazer, e agir, reconhecendo que a realidade social
não é fruto de forças naturais mas de história feita pelos seres humanos, à
custa de lutas individuais e sociais(4).