A enfermagem e a atenção à criança vítima de violência familiar
REVISÃO
A enfermagem e a atenção à criança vítima de violência familiar
The nursing and the attention to the child who is victim of familiar violence
La enfermería y la atención al niño victima de violencia familiar
Janice Machado da CunhaI; Simone Gonçalves de AssisII; Sandra Teixeira de
Araújo PachecoIII
IEnfermeira. Doutoranda em Saúde da Criança no IFF/FIOCRUZ.. Professora
Assistente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil/FENF/UERJ e
pesquisadora do NUSCRIAD (Núcleo de Estudos em Saúde da Criança)
jancunha3@yahoo.com.br
IIMédica. Doutora em Ciências e Professora do IFF/FIOCRUZ. Pesquisadora do
CLAVES/FIOCRUZ, simone@claves.fiocruz.br
IIIEnfermeira. Mestre em Enfermagem pela FENF/UERJ. Professora Assistente do
Departamento de Enfermagem Materno Infantil/FENF/UERJ e pesquisadora do
NUSCRIAD - E-Mail: stapacheco@aol.com
1. INTRODUÇÃO
O enfrentamento da violência e suas conseqüências têm sido um desafio para os
profissionais de saúde, embora não seja um problema específico desta área. As
crianças estão incluídas entre os grupos humanos mais vulneráveis aos eventos
violentos e muitas vezes estas situações ocorrem no contexto familiar,
caracterizando-se como um problema de grande relevância social e científica.
Algumas pesquisas nacionais têm possibilitado antever a elevada prevalência de
violência familiar na infância. Um estudo que permite evidenciar esta realidade
foi realizado em 1990(1) com 1328 adolescentes matriculados em escolas num
Município do Estado do Rio de Janeiro. Este trabalho constatou que 52,8% dos
adolescentes sofriam violência física de um ou de ambos os pais. Entre as
práticas violentas citadas destacaram-se: tapas, bofetões, tentar bater ou
bater com objetos, ameaçar ou ferir com armas. Outro estudo(2) mais recente,
investigou 1685 adolescentes estudantes de escolas públicas e particulares de
São Gonçalo/RJ, constatando que 14,6% dos entrevistados sofrem violência física
severa de pai ou mãe (atos como chutar, morder ou dar murros, espancar, ameaçar
ou efetivamente usar arma de fogo ou arma branca); 11,8% testemunharam ou
vivenciaram violência sexual na família; 48% relataram sofrer violência
psicológica de pessoas significativas.
Tem crescido no Brasil, especialmente na área da saúde, a necessidade de uma
reflexão mais profunda sobre este problema em decorrência dos novos paradigmas
colocados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990(3). Esta
Lei, entre outras determinações, estabelece a obrigatoriedade de notificação
dos casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos contra a criança e institui
uma penalidade para os profissionais de saúde ou educação que não atenderem a
esta determinação.
Embora se reconheça a importância da multidisciplinaridade na atenção à criança
vítima de violência familiar, considera-se que a Enfermagem, e mais
especificamente o Enfermeiro Pediatra têm um papel importante neste processo.
Este pressuposto baseia-se na constatação de que o Enfermeiro tem como foco
principal a assistência direta e integral ao cliente, além de ser um dos
profissionais que permanece por maior período convivendo com a criança e sua
família seja no contexto hospitalar, em unidade básica de saúde ou em ambiente
familiar/comunitário.
Nesta perspectiva, este artigo tem como objetivo refletir sobre a atenção de
enfermagem à criança vítima de violência familiar, a partir da análise da
produção científica da enfermagem nacional e internacional acerca desta
temática.
Não obstante a multiplicidade de definições e conceitos, neste estudo entende-
se por violência familiar contra a criança ações e/ou omissões perpetradas por
parentes ou responsáveis pela criança, podendo causar danos físicos, sexuais e/
ou psicológicos às pequenas vítimas.
2. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Trata-se de um estudo bibliográfico, tendo sido adotado os seguintes
procedimentos para levantamento e análise da documentação bibliográfica: busca,
seleção, impressão/solicitação e análise dos textos. Através do site da
Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), realizou-se um levantamento da
literatura científica indexada nas bases de dados: MEDlars Online Literatura
Internacional (Medline), Literatura Latino-Americana e do Caribe (LILACS) e
Banco de Dados da Enfermagem (BDENF). Foram utilizados os seguintes descritores
em português: "violência doméstica", "violência familiar", "maus tratos",
"enfermagem" e "criança". Em inglês: "child abuse", "neglect", "nursing",
"family" e "violence". O universo das definições de violência familiar foi
muito diversificado, constituindo-se num dos maiores desafios deste estudo.
Optou-se por considerar como sinônimos os descritores relativos à violência.
Inicialmente foram encontradas as seguintes freqüências de produções
científicas: 92 (Medline), 15 (LILACS) e 12 (BDENF).
Os critérios adotados para exclusão no estudo foram: produção científica de
Enfermeiro ou de outros profissionais que não incluíssem a atenção de
enfermagem à criança vítima de violência familiar, estudos sobre violência
contra outros grupos humanos sem enfoque na infância e referências
bibliográficas incompletas ou repetidas.
Seguindo os critérios de inclusão adotados neste estudo foram selecionadas 37
produções científicas que serviram de base para a análise, no entanto estarão
sendo referenciadas ao longo deste texto, aquelas consideradas de maior
relevância para o presente artigo.
Tem-se a clareza de que esta pesquisa não contempla todas as publicações
brasileiras e internacionais sobre a temática. Contudo, a análise de dos textos
nacionais e internacionais possibilitou traçar um panorama aprofundado e
extensivo da temática e mapear o estado da arte da produção científica da
Enfermagem acerca da atenção à criança vítima de violência familiar.
A análise dos dados pautou-se na associação das abordagens quantitativa e
qualitativa, utilizando-se a técnica de análise de conteúdo, na modalidade
temática. Após seleção dos textos, procedeu-se a leitura flutuante e organizou-
se o corpus de análisede acordo com os objetivos da pesquisa. Após leituras
exaustivas foram identificadas as unidades de registro que a seguir foram
agrupadas em núcleos temáticos(4)que emergiram de forma de isolada ou associada
nas publicações.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Panorama da produção de conhecimento acerca da atenção de Enfermagem à
criança maltratada por seus familiares
Num total de 37 publicações, sendo 08 (21,6%) nacionais e 29 (78,4%)
internacionais. Constatou-se a predominância das produções internacionais,
majoritariamente procedentes dos Estados Unidos (24), seguidos da Inglaterra
(04) e Escócia (01). As publicações brasileiras tiveram como origem os
seguintes estados: São Paulo(03), do Rio Grande do Sul (02), Bahia(02) e Santa
Catarina(01).
Quanto à metodologia adotada, na produção internacional houve maior freqüência
dos artigos de reflexão teórica (13), sendo as demais publicações categorizadas
como: estudos quantitativos (8), revisões bibliográficas (06), relato de
experiência (01) e qualitativo (01). A distribuição dos textos nacionais
segundo o enfoque metodológico foi: estudos quantitativos (03), artigos de
reflexão teórica (02), revisão bibliográfica (01), abordagem qualitativa (01) e
quanti-qualitativo (01).
No que se refere à distribuição da freqüência das produções científicas nos
últimos 10 anos, não se visualizou um aumento significativo do número de
publicações: O período 1996-2000 concentra a maior parte das publicações, sendo
15 internacionais e 04 nacionais; no período 1993-1995 foramencontrados 5
artigos internacionais e 03 nacionais e no período 2001-2003 houveram 9
publicações internacionais e apenas 1 artigo em revista nacional.
Os resultados deste estudo no âmbito nacional, foram semelhantes aos dados
obtidos em estudos bibliográficos anteriores(5-6) que localizaram um número
pequeno de produções científicas brasileiras com enfoque na Enfermagem e a
atenção à violência familiar na infância. Uma pesquisa bibliográfica(5)acerca
daspropostas de prevenção à violência, constatou que num universo de 48
produções científicas, apenas 2,1% eram da Enfermagem. Outro estudo(6), num
total de 105 trabalhos encontrou apenas sete produções de Enfermeiros. Isto é
preocupante, pois considerando a exposição da temática na mídia, os dados
relativos à epidemiologia da violência e os aspectos jurídicos que comprometem
os profissionais de saúde com este problema de saúde pública, uma repercussão
maior no meio acadêmico seria esperada.
Os temas enfocados no corpus de análise deste estudo apresentaram uma grande
heterogeneidade. A bibliografia internacional no que se refere às vítimas da
violência destacou de forma associada os idosos, as mulheres e as crianças como
os mais freqüentemente vitimizados. Os textos nacionais enfatizaram a criança
como vítima e a perspectiva da atenção extensiva a toda a família.
A análise da produção científica possibilitou a constituição de três núcleos
temáticos: a) atuação do enfermeiro frente aos casos de crianças vítimas de
violência familiar, enfatizada em 23 (79,3%) dos trabalhos internacionais e 4
(50%) das publicações em âmbito nacional ; b) o diagnóstico da violência
familiar contra a criança foi enfocado em 21 (72,4%) textos internacionais e 6
(75%) nacionais e c) a capacitação do enfermeiro para atender à crianças
vítimas de maus tratos familiares foi abordada em 11 (37,9%) estudos
internacionais e 3 (37,5%) nacionais. Como alguns trabalhos abordaram vários
temas, o total excede o número de trabalhos avaliados.
3.2 O diagnóstico: primeiro passo na atenção à crianças vítimas de violência
familiar
Constatou-se que as produções nacionais e internacionais enfatizaram a
importância do diagnóstico como um primeiro passo na atenção de enfermagem à
criança vítima de violência familiar.Para o diagnóstico do problema considera-
se fundamental o reconhecimento e a definição do que se entende por violência.
Os textos internacionais e nacionais de certa forma foram convergentes ao
caracterizar a violência como um problema complexo, multi-fatorial e queafeta a
saúde individual e coletiva(7-13). Devido ao caráter multidimensional, há o
reconhecimento que a atenção às criança vítima de violência envolve diferentes
setores da sociedade. Contudo, não se visualizou um consenso no que se refere à
definição da temática, predominando uma certa indefinição e multiplicidade do
que se considera violência familiar contra a criança.
Outro aspecto importante no reconhecimento da vitimização familiar contra a
criança é a demonstração da magnitude deste problema. Embora, a maioria das
publicações ressalte a relevância da temática, constatou-se que os textos
norte-americanos apresentaram estatísticas oficiais relativas à prevalência de
violência familiar(12,14-17). Nos textos nacionais os dados estatísticos,
quando apresentados se referiram a estudos de prevalência restritos a
determinada localidade ou região(8,18)
Ao demonstrar a relevância da atenção de enfermagem à vitimização infantil no
contexto familiar, muitas publicações alertaram para as conseqüências deste
problema no desenvolvimento bio-psico-social das crianças. O impacto
psicológico foi ressaltado como um dos mais preocupantes uma vez que as
crianças, por estarem ainda em processo de desenvolvimento, são mais
vulneráveis à influência dos adultos(7,11,19-21). Entre as respostas
psicológicas, foram descritas: estresse, ansiedade e preocupação. Sendo
analisado que o processo de vitimização pode levar a criança a não interagir
socialmente, o que muitas vezes pode ser um fator que dificulta o diagnóstico e
em outras vezes pode ser caracterizado como um indicador de violência,
facilitando assim a identificação de situações de sofrimento infantil, por
parte do profissional. Este processo está estritamente relacionado à
capacitação do profissional no reconhecimento dos indicadores de cada tipo de
abuso.
As publicações abordaram de forma associada ou isolada, diferentes modalidades
de violência familiar contra a criança, predominando os textos sobre abuso
físico e sexual. A violência psicológica também foi muito destacada, sendo mais
freqüentemente descrita como associada a outras modalidades de violência. A
negligência foi o tipo de violência menos enfocado na bibliografia
internacional, todavia alguns autores brasileiros(7) estudaram de forma
bastante aprofundada esta modalidade de violência.
No que se refere ao diagnóstico dos casos de crianças vitimizadas, nas
publicações internacionais, constatou-se um esforço na utilização de
indicadores, roteiros e escalas para reconhecer e classificar os sinais de
violência(10,14). Alguns estudos tiveram como objetivo a avaliação da
capacidade dos profissionais na identificação dos casos de violência,
geralmente utilizando instrumentos de avaliação que mensuravam os conhecimentos
pré e pós treinamentos realizados(14,22). Nos textos nacionais, a ênfase maior
foi na sensibilização dos profissionais para a problemática: um estudo
apresenta roteiro de identificação de casos(20), 5 trabalhos pontuam o papel do
enfermeiro(7,9,19,20,23)e 2 textos buscaram caracterizar o problema através de
estudos de prevalência de forma a subsidiar a ação da enfermagem(8,18).
Apontam, portanto para a necessidade de estudos nacionais que possam
fundamentar e preparar os enfermeiros para identificar e atender a criança
vítima de violência familiar contra a criança.
3.3 O Enfermeiro está capacitado para cuidar de crianças vítimas de violência
familiar?
Embora este tema tenha sido o menos abordado nos textos analisados, sua
relevância mostra-se fundamental para o enfrentamento dos maus-tratos na
infância pelo setor de saúde.
A importância da capacitação do Enfermeiro foi apontada por alguns autores,
assinalando a relevância da inclusão da temática no currículo. Na produção
científica internacional, este tema foi abordado em alguns estudos de forma
sistematizada, relatando experiências de currículo de enfermagem que
contemplaram a temática(16,24,25). Foram publicados também relatos de
experiências de capacitação de profissionais já formados sendo destacados
aspectos como: o conhecimento dos fatores associados aos maus-tratos, as
conseqüências da violência, o sistema de proteção legal e os recursos da
comunidade que podem contribuir para a prática de enfermagem(26).
No âmbito nacional, alguns textos enfocaram a importância da inserção da
temática nos currículos(7,9,20,23), isto sinaliza a necessidade do
aprofundamento da discussão desta questão nas associações de classe e
instituições responsáveis pela formação dos enfermeiros.
3.4 A atenção à criança vítima de violência familiar: um desafio para a
Enfermagem
O tema mais destacado nos textos foi a atenção às vítimas, tendo a perspectiva
da atuação multidisciplinar norteado vários estudos. Contudo, a Enfermagem foi
apontada nas produções nacionais(7,9,19,20,23) e internacionais(11,12,17,27),
como uma categoria profissional com um papel fundamental na identificação dos
casos, no tratamento e proteção das vítimas.
Não obstante, a prioridade dos autores deste artigo tenha sido a atuação dos
enfermeiros da área pediátrica, a análise das publicações nacionais e
internacionais possibilitou a identificação de outras especialidades da
Enfermagem com ação direta no atendimento às vítimas de violência. Além da
pediatria, foram relacionadas áreas de saúde pública, saúde mental e
emergência. Na bibliografia internacional destaca-se ainda a área do
atendimento domiciliar, considerada prioritária tanto na prevenção da
violência, quanto no acompanhamento e tratamento dos casos após a
identificação. Outro aspecto ressaltado na produção internacional e ausente na
bibliografia nacional foi, a importância de profissionais de enfermagem sem
formação superior atuando frente aos maus-tratos. Um estudo(12) aponta que
profissionais de enfermagem com vários níveis de educação e escolaridade podem
realizar ações como: identificação de casos, intervenções em crises e terapia
físicas.
A atenção nos diferentes níveis de complexidade foi amplamente abordada, mas
muitos autores priorizaram as ações de prevenção analisando a importância de
atividades como: orientação aos pais quanto aos cuidados com as crianças
pequenas, programas de educação preventiva nas escolas e diagnóstico precoce
através de visitas domiciliares(17,27,28,29).
A história de vida, a postura profissional e as atitudes pessoais dos
profissionais de enfermagem foram apontadas como aspectos que interferem na
atuação frente aos casos de crianças vitimizadas por suas famílias(19,20,23).
Enfatizou-se a necessidade dos Enfermeiros terem uma atitude baseada na
sensibilidade, capacidade de escuta e compreensão. Nesta perspectiva ressaltam-
se alguns textos brasileiros que abordam com muita propriedade o impacto da
violência na vida de enfermeiros que cuidam de crianças vitimizadas(7,9,19,23),
demonstrando o quanto são conflitantes as atitudes idealizadas e as
concretizadas.
Neste sentido, considera-se fundamental a discussão acerca dos dilemas ético-
legais na atenção às crianças vitimizadas no contexto familiar, destacando-se
os decorrentes da obrigatoriedade de notificação dos casos às autoridades
judiciais e os inerentes à assistência de enfermagem orientada pelos princípios
éticos da beneficiência, autonomia e justiça(7,9,11,13,20).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo constatou-se que a produção científica da Enfermagem assinala a
relevância da atuação dos Enfermeiros nos diferentes níveis da atenção à
criança vítima de violência familiar, com especial destaque para as ações
preventivas. Esta atuação prioriza o cuidado à criança e sua família,
considerando-se a violência como um problema multidi-mensional e que para
enfrentá-lo é necessário capacitação e trabalho em equipe.
O universo das abordagens sobre violência foi muito heterogêneo, sendo difícil
apontar uma única tendência na produção científica acerca da temática. Entre os
estudos nacionais predominaram as pesquisas relacionadas a sensibilização da
enfermagem para a problemática e no âmbito internacional um dos temas mais
focalizados foi a importância da enfermagem no diagnóstico precoce dos casos de
violência familiar contra criança.
Mesmo reconhecendo que este estudo não abarcou a totalidade da produção
científica sobre a temática, considera-se a produção científica nacional ainda
incipiente, sendo fundamental aprofundar a reflexão visando a produção de mais
estudos da Enfermagem sobre a sua atuação na atenção à criança vítima de
violência familiar. Chama atenção o pequeno crescimento da produção na área de
enfermagem, face ao grande investimento que está havendo na área da atenção às
crianças vítimas de violência no Brasil.