Recreação para crianças em sala de espera de um ambulatório infantil
1. INTRODUÇÃO
O desenvolvimento infantil está vinculado ao brincar, principalmente porque
esta atividade apresenta-se como uma linguagem própria da criança. É através do
brincar e dos diferentes tipos de brinquedos que esta, de acordo com a idade,
vai desenvolvendo o seu potencial nas áreas de socialização, linguagem,
psicomotricidade e criatividade(1).
Os jogos/brincadeiras, com seus meios universais de compreensão, fazem com que
as crianças aprendam o que ninguém pode ensiná-las, além de lhes ensinar sobre
seus mundos, e como lidarem com esse ambiente de objetos, tempo, espaço,
estrutura e pessoas. O jogo/brincadeira constitui-se no trabalho da criança e a
ensina como agir dentro do seu ambiente - o que pode fazer, como se relacionar
com as coisas e situações e como adaptar-se às demandas que a sociedade lhe
impõe. Ao brincar, as crianças praticam continuamente os processos complicados
e estressantes do cotidiano, bem como adquirirem maiores habilidades para se
comunicar e alcançar relações satisfatórias com outras pessoas(2).
Dentre os recursos disponíveis para a intervenção de enfermagem na assistência
à criança, em nível emocional, o brinquedo é um instrumento valioso, pois cria
a situação de brincar(3). Brincando, a criança pode enfrentar melhor as
diversas situações no hospital, muitas vezes, estressantes e ameaçadoras, como
tratamento, internações, rotinas, tempo de espera para atendimento, dentre
outras(4). O brincar/brinquedo ainda lhe possibilita explorar estas situações
com certo distanciamento(5), bem como trabalhar difíceis emoções ali
vivenciadas(6)
Em alguns casos, estes sentimentos são agravados ainda mais em decorrência das
próprias condições de saúde da criança, da insegurança dos familiares, dos
fatores culturais e de outras possíveis intercorrências. Devemos considerar
também, que os pais ou outros membros da família que acompanham as crianças
sentem-se ameaçados e desprotegidos no ambiente hospitalar. Nesse sentido, a
recreação possibilita que os pais/acompanhantes tenham a oportunidade de ver a
criança apreciar uma brincadeira e esquecer da sua doença, permitindo assim,
que reserve seu emocional para lidar melhor com as situações adversas(7).
Dentre as modalidades de brinquedos, estão os normativos, com finalidades de
divertir, brincar e causar satisfação nas crianças e os terapêuticos, que tanto
na sala de espera de um ambulatório infantil quanto nas enfermarias, cumprem
sua função, ou seja, buscam transformar esses ambientes em locais mais
descontraídos, proporcionando, assim, condições psicológicas mais favoráveis às
crianças e adolescentes(8). A utilização do brincar/brinquedo com as crianças
proporciona, de forma indireta, aos pais e familiares o benefício de se
sentirem acolhidos e "cuidados" em um ambiente que, por si só, ameaça o papel
protetor dos mesmos. Na mesma direção, Elliott(9) complementa que os programas
que visam trazer o humor e a brincadeira para dentro do hospital podem
beneficiar não só os pacientes, como também aos familiares e equipe de
funcionários, favorecendo-os através de um ambiente mais descontraído.
Com base nesses pressupostos, vimos a necessidade de implantar um projeto de
recreação para crianças que aguardam o atendimento ambulatorial, cuja ênfase
era o brincar, visando, assim, estabelecer um processo de comunicação
terapêutica que possibilitasse sua compreensão acerca da situação que ela
estava vivenciando. Brincando, a criança pode conviver melhor com as diferentes
situações surgidas no hospital, como o tratamento médico, internações, rotinas
de idas e vindas e a espera no ambulatório para a realização de consultas
médicas ou outros atendimentos. Nesse sentido, o brincar permitirá à criança
explorar essas situações de maneira menos traumática; trabalhar as emoções
difíceis, vivenciadas nesses momentos; diversão e relaxamento; sentir-se mais
segura em um ambiente estranho; além de ser um meio para aliviar tensão e
facilitar a expressão de sentimentos, encorajando a interação e o
desenvolvimento de atitudes positivas em relação a outras pessoas; o que
possibilitará a expressão de idéias e interesses criativos, visando atingir um
modo terapêutico de orientação(10). Ao brincar a criança reinventa o seu mundo,
explora seus próprios limites através do "faz de conta", podendo conseguir
lidar melhor com as adversidades estabelecidas(11).
Assim, o objetivo desse trabalho é relatar a vivência de alunos de graduação na
implantação de um grupo de recreação que utiliza o brincar/brinquedo como
estratégia terapêutica de intervenção na assis-tência à criança que permanece
em sala de espera de um ambulatório infantil.
2. O CAMINHO PERCORRIDO
Trata-se de um estudo descritivo, no qual relatamos nossa vivência com a
implantação do projeto "A utilização do brincar/brinquedo em sala de espera de
um ambulatório infantil". O local escolhido para realização das atividades foi
o ambulatório pediátrico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, unidade localizada no campus
universitário. A instituição em questão é um hospital-escola de referência
terciária, situado em um município do interior do estado de São Paulo, o qual
presta assistência à população de qualquer região do país, seja com atendimento
médico de emergência, ambulatorial ou internação programada.
A área de atendimento ambulatorial situa-se no segundo andar do hospital, é
dividida em especialidades e conta com um espaço físico próprio para a
pediatria. No ambulatório pediátrico, o atendimento às especialidades é feito
em dias determinados, ou seja, cada dia atendem-se crianças com determinadas
especialidades, dentre elas: patologias renais, cardíacas, imunológicas,
endocrinológicas, gastroenterológicas, oncológicas, hematológicas, dentre
outras.
As crianças podem agendar consultas nos períodos da manhã ou tarde e, na
maioria das vezes, chegam ao hospital por volta da 7 horas, seja para
realização de exames, ou seja porque a locomoção até o hospital é feita por
meio de transporte municipal da sua cidade e este realiza apenas uma viagem
diária de ida e volta para atender a todos os pacientes. Sendo assim, a criança
e seu acompanhante permanecem o dia todo no ambulatório, mesmo que o seu
atendimento tenha sido agendado para o período da manhã e esta fique dispensada
ainda neste período. Nesse contexto, o brincar/brinquedo proporciona lazer,
além de auxiliar o desenvolvimento da criança nesse período ocioso que
permanece no ambiente hospitalar.
Para implantação do projeto, inicialmente, mantivemos contato com a enfermeira
responsável pelo ambulatório pediátrico para que esta conhecesse não só o
projeto, mas também os bolsistas que dele participariam, procedimento que
adotamos, também, com relação ao responsável pelo Departamento de Pediatria e
Puericultura da instituição onde o projeto seria realizado. Na ocasião,
reiteramos nossos esforços para a busca de estratégias que contribuíssem para a
humanização da assistência às crianças e seus familiares, que se encontrassem
na situação em questão, bem como nos empenhamos para adequar a implementação
das atividades às rotinas do ambulatório.
O programa foi implantado em maio de 2003, sob a coordenação de docente da área
de enfermagem pediátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo e desenvolvido, inicialmente, por dois alunos de
graduação, um do curso de enfermagem e outro do curso de pedagogia, ambos
bolsistas do programa COSEAS/USP, posteriormente, contamos com a participação
de quatro voluntários. No período de maio de 2003 a dezembro de 2004 o programa
atendeu a 840 crianças na faixa etária de 3 a 12 anos, que aguardavam
atendimento ambulatorial.
As atividades eram realizadas três vezes na semana, com duração de 2 horas, nos
períodos em que as crianças estavam aguardando atendimento ambulatorial. Em um
primeiro momento os integrantes do programa faziam a apresentação dos
participantes, especificando os objetivos do projeto para os responsáveis pelas
crianças e, somente após a permissão dos mesmos, as crianças eram convidadas a
participar das brincadeiras que aconteciam no próprio local de espera.
As diversas atividades desenvolvidas incluíam: colagem, desenho, dobradura,
pintura, modelagem com massa não-tóxica; trabalhos manuais, confecção de
brinquedos e de enfeites; jogos; canções e cantigas infantis. Havia, também, o
"contador de histórias" que narrava às crianças contos e fábulas infantis,
tendo à mão a "caixa mágica", a qual guardava fantoches e outros objetos que
permitiam o recurso visual e ambientação dos ouvintes no processo do "faz-de-
conta". Além disso, utilizamos brinquedos que possibilitavam às crianças
simularem situações semelhantes às que normalmente vivenciavam, como estetos-
cópios, termômetros, seringas e frascos de soros.
Ao longo do desenvolvimento do projeto, observamos que as crianças maiores
preferiam a pintura, o desenho e os jogos, enquanto as menores escolhiam a
modelagem com massa, materiais hospitalares e histórias infantis.Sacchetto(12)
afirma que as crianças a partir dos 5 anos já apresentam destreza e motricidade
bem definidas, sugerindo brinquedos com modelagem em massinha, argila ou gesso,
enquanto as crianças com idade a partir de 9 anos, por apresentarem raciocínio
lógico desenvolvido em sua plenitude, podem utilizar jogos mais complexos.
Nesse sentido, pela diversidade de faixa etária das crianças que participavam
do projeto, dispúnhamos de materiais para todas as idades, e as deixávamos
livres para escolha daquele que mais lhe agradasse. No caso da escolha recair
sobre atividades manuais, ao final de cada encontro, as crianças levavam para
casa os trabalhos confeccionados. Todas mostravam-se interessadas e motivadas a
participar das brincadeiras, e de forma verbal ou não-verbal, manifestavam o
carinho e a satisfação de desenvolverem tais atividades. Aquelas que já
conheciam o projeto mostravam-se mais motivadas para os retornos ambulatoriais
e, em ocasiões em que não encontraram o grupo de recreação, relataram sua
frustração frente a essa situação nos encontros subseqüentes. O grupo de
recreação desenvolve suas atividades três vezes por semana, isto é, às
segundas, quartas e sextas-feiras, e muitas vezes as crianças não tinham a
dimensão temporal para compreender esse calendário; e mesmo aquelas que o
compreendiam, não deixavam de manifestar sua insatisfação.
Os pais e acompanhantes verbalizaram que, enquanto as atividades eram
desenvolvidas, as crianças permaneciam menos ansiosas por terem a oportunidade
de preencher o tempo livre. Há relatos tanto das crianças como de acompanhantes
a respeito da motivação para a ida ao hospital, contribuindo com a dinâmica
familiar, em virtude da expectativa de realizar as atividades recreacionais
antes do atendimento ambulatorial.
Durante a implementação do projeto, enfrentamos algumas dificuldades, sendo a
primeira delas a adequação do espaço físico para o desenvolvimento das
atividades, pois, muitas vezes, dispúnhamos somente de uma mesa e de número
insuficiente de cadeiras, o que restringia a participação das crianças. Além
disso, muitas mães/acompanhantes se juntavam ao grupo para participarem das
atividades, dificultando ainda mais seu desenvolvimento, havendo, assim,
necessidade de readequação do ambiente. Outro obstáculo referia-se ao número
reduzido de alunos para a operacionalização do projeto. Uma das formas
encontradas para minimizá-lo, foi incluir no projeto alunos voluntários.
Contar com a participação dos demais profissionais de saúde que integram a
equipe de pediatria do ambulatório para operacionalização do projeto, também,
tem sido outro desafio. Apesar de freqüentes reforços positivos e estímulos
para a continuidade das atividades, até o momento não tivemos a oportunidade de
desenvolver um trabalho conjunto com esses profissionais. A análise das
questões referentes à implementação de estratégias recreacionais, direcionadas
às crianças em sala de espera ambulatorial, pelos profissionais de saúde deverá
ser objeto de estudo de uma futura investigação.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A operacionalização do projeto tem-se mostrado bastante favorável como uma
estratégia terapêutica de intervenção na assistência à criança que permanece em
sala de espera ambulatorial. A crescente busca pela humanização da assistência
também pode ser alcançada através da compreensão de que o espaço hospitalar não
é um ambiente onde se vivencia apenas aspectos desagradáveis, como dor, medo,
ansiedade e choro; ao contrário, pode ser transformado em um local que facilita
o desenvolvimento global da criança através do exercício de suas
potencialidades, tendo como principal objetivo, o brincar.
A avaliação positiva do desenvolvimento dessas atividades, direcionadas às
crianças soma-se a outros benefícios, que podem ser alcançados com a
implementação deste projeto. O brincar/brinquedo constitui-se em um instrumento
que auxilia o profissional a compreender o momento pelo qual a criança está
passando, pois é um instrumento que possibilita à criança liberar temores e
ansiedade, além de ser estimulador do seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo em
que proporciona lazer, durante a espera do atendimento ambulatorial, facilita a
comunicação entre equipe cuidadora e criança.
Assim, o brincar/brinquedo apresenta-se como uma estratégia de intervenção em
enfermagem pediátrica, em situações de saúde e doença da criança num ambiente
hospitalar, seja de internação ou não. Apreender o significado das interações
das crianças em momentos que antecedem o atendimento ambulatorial pode
contribuir para a qualidade do cuidado a ser prestado e, ainda, repercutir
positivamente em seu acompanhante.