A entrevista nas pesquisas qualitativas de enfermagem pediátrica
INTRODUÇÃO
Grande parte das pesquisas que buscavam conhecimento para fundamentar o cuidado
das crianças tinha como fonte de dados, em sua maioria, suas mães, a fim de
obterem-se dados sobre a criança e não com a criança. Atualmente, essa prática
está sendo revista, pois a criança pode fornecer dados sobre ela própria. A
literatura(1-4) aponta que as crianças são as melhores fontes para levantar
dados sobre elas mesmas, contudo, a tarefa de entrevistar crianças não é fácil.
É desejável que os pesquisadores registrem seus sucessos e dificuldades no
processo de entrevistar crianças, para que possam auxiliar outros
pesquisadores.
A literatura internacional traz algumas diretrizes para a condução da
entrevista com crianças, mas, sabendo-se que o contexto é importante para o
sucesso dessa técnica, se faz necessário dar visibilidade à contribuição dos
pesquisadores que desenvolveram suas investigações nessa temática, no cenário
nacional. A sistematização desse conhecimento poderá auxiliar a comunidade de
enfermeiros pediátricos na condução de pesquisas futuras, utilizando a
entrevista, com essa clientela. Nesse sentido, o presente estudo tem como
objetivo explorar as contribuições da produção nacional da enfermagem acerca da
utilização da entrevista como técnica de coleta de dados em pesquisas com
crianças.
MÉTODO
Para o alcance do objetivo proposto selecionou-se como método de pesquisa a
revisão sistemática, seguindo-se passos que denotam o rigor na sua condução(5)
e para a qual delimitamos as seguintes etapas: identificação do problema
(elaboração da pergunta norteadora, estabelecimento de palavras-chave e de
critérios para inclusão e exclusão de artigos), seleção dos artigos, definição
das informações a serem extraídas dos trabalhos revisados, bem como a
realização da análise dos mesmos, a discussão e interpretação das publicações
e, por fim, a síntese do conhecimento.
Estabelecemos como pergunta norteadora para a revisão: "Qual o conhecimento
científico resultante da produção nacional de enfermeiros, acerca da utilização
da entrevista como técnica de coleta de dados em pesquisas com crianças?". Os
critérios de inclusão foram: artigos publicados em periódicos nacionais, no
período de 1998 a 2008; que tivessem como participantes crianças menores de 12
anos; autores enfermeiros; publicações em português; ter utilizado a entrevista
com crianças como técnica principal ou integrante das técnicas na triangulação
de métodos e técnicas; publicação com resumo e texto disponível e indexado nas
bases de dados virtuais acessíveis por meio da Biblioteca Virtual em Saúde -
BVS. Excluímos as publicações nas quais as entrevistas foram realizadas com
familiares, cuidadores ou profissionais de saúde; aquelas publicadas em
periódicos nacionais, mas produzidas fora do Brasil; pesquisas realizadas por
profissionais não enfermeiros; artigos produzidos por enfermeiros, mas
publicados em periódicos não nacionais; as publicações classificadas como
comentários, resenhas, informativos governamentais, dissertações e teses.
Para a seleção das publicações, foi realizada a leitura de cada título e resumo
repetidamente para nos certificar de que os mesmos contemplavam a pergunta
norteadora desta revisão e atendiam aos critérios de inclusão e exclusão
estabelecidos. Estudos que foram encontrados em mais de uma base de dados foram
considerados somente uma vez.
O levantamento bibliográfico foi realizado pela Internet, na Biblioteca Virtual
em Saúde - http://www.bireme.br - BIREME/OPAS/OMS, nas seguintes bases de
dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde - LILACS,
Saúde na Adolescência - Adolec, Base de Dados de Enfermagem - BDENF e na
biblioteca eletrônica Scientific Electronic Library Online - SciELO. Para a
busca dos artigos utilizou-se como palavras-chave os seguintes descritores
controlados no Terminologia em Saúde - DeCS, em diversas combinações: criança,
adolescente, entrevista, técnicas de investigação, enfermagem, técnicas de
pesquisa, métodos de levantamento de dados e pesquisa metodológica em
enfermagem.
No primeiro levantamento, com as palavras-chave criança e entrevista, obtivemos
6652 títulos, a partir do qual realizamos o cruzamento com os demais
descritores, pois a base de dados permitiu o cruzamento de quatro palavras-
chave ao mesmo tempo, o que refinou a busca e trouxe resultados mais próximos
de nosso objeto de estudo. Na etapa seguinte, de 108 referências pré-
selecionadas, a partir da observância dos critérios de inclusão, obtivemos 43
referências, das quais, grande parte apareceu de forma duplicada nas bases de
dados e, por isso, necessitaram de um trabalho de comparação entre elas. A base
de dados escolhida para comparação das referências foi a LILACS, em função de
ter o maior número de referências selecionadas em praticamente todas as
palavras-chaves. Então, as referências que se repetiram e estavam contidas na
LILACS, nesse momento, deixaram de ser contempladas nas demais bases, obtendo-
se, assim, uma amostra final de seis artigos.
Além da busca sistematizada nas bases de dados citadas, realizamos outra
complementar, a partir dos periódicos nacionais de maior projeção na
enfermagem, de acordo com a classificação Qualis Capes 2006 (referência
bibliográfica). Os mesmos critérios estabelecidos para a revisão foram
aplicados a essa etapa. Procuramos por periódicos classificados como
internacional A para a área da enfermagem, porém, não encontramos periódicos
nacionais nessa classificação. Procuramos, então, por periódicos classificados
como internacional B, obtendo o seguinte resultado: Texto e Contexto
Enfermagem, Revista Latino Americana de Enfermagem, Acta Paulista Enfermagem e
Revista da Escola de Enfermagem da USP. Além dessas revistas, incluímos a
Revista Brasileira de Enfermagem, classificada com internacional C, pela
importância histórica que tem para a enfermagem brasileira e por sua
abrangência na profissão. Nesses periódicos efetuamos busca manual, ano a ano,
volume por volume, nos sumários de cada um deles, a partir da leitura dos
títulos dos artigos publicados, a fim de abranger o maior número possível de
pesquisas com crianças que tiveram a entrevista como técnica de coleta de
dados. Aqueles que se adequavam aos critérios estabelecidos foram incluídos na
revisão, totalizando sete novos artigos. A amostra final da pesquisa
constituiu-se, portanto, de 13 artigos.
Um instrumento de coleta de dados foi desenvolvido para a coleta sistematizada
das informações com cada artigo da amostra da pesquisa, o qual continha dados
sobre a identificação do artigo e autores, fonte, ano de publicação, sujeitos
da pesquisa, método, considerações éticas, técnica de coleta e procedimentos de
análise dos dados. O processo de avaliação crítica dos artigos consistiu na
leitura dos estudos na íntegra, seguida da sua análise, preenchimento do
instrumento, denominado de matriz de revisão e discussão entre os autores. Os
dados resultantes de cada estudo selecionado foram agrupados para a
apresentação da síntese da revisão.
RESULTADOS
Os estudos selecionados foram publicados nas revistas nacionais, conforme
segue: o maior número na Revista Latino-Americana de Enfermagem, com nove dos
estudos(6-14) em seguida, as Revistas da Escola de Enfermagem da USP(15),
Revista Brasileira de Enfermagem(16), Acta Paulista de Enfermagem(17) e
Einstein(18), com um estudo em cada uma delas.
Na distribuição dos resultados da busca por ano, encontrou-se uma publicação
heterogênea, com a maioria obtida nos anos de 2007 e 2004, com três artigos
publicados em cada um(11-13,14,16, 18) seguido por 2005(15,17).
Em relação às temáticas encontradas nos estudos, realizou-se um agrupamento dos
mesmos, obedecendo-se a dois critérios: artigos que tinham como participantes
apenas crianças (oito deles) e aqueles que incluíram como participantes da
pesquisa crianças e adolescentes (cinco).
Os estudos com crianças contemplaram temáticas como hospitalização da criança
com fibrose cística(16); bexiga neurogênica em crianças(10); diabetes na
infância(7); compreensão do processo saúde-doença pela criança(9);
hospitalização infantil(15,18); a brincadeira no cuidado à criança(14) e
cirurgia infantil(13). Já aqueles desenvolvidos com crianças e adolescentes
abrangeram temáticas como crianças com doenças crônicas(8); qualidade de vida
após o transplante de medula óssea(12); insuficiência renal crônica(17);
criança e adolescente com câncer(11); e, hospitalização infantil(6).
Em relação à faixa etária, nos estudos com crianças, três foram conduzidos com
crianças de três a seis anos(13,15,18), um de seis a 11 anos(16), dois com
crianças de sete a 12 anos(7,9), um com crianças com ou maiores de sete anos
(14), e um cuja definição era crianças em idade escolar(10). Aqueles
desenvolvidos com crianças e adolescentes compreenderam as faixas etárias de
seis a 16 anos em um estudo(17), sete a 14 anos(8), sete a 16 anos(11), sete a
17 anos(12) e oito a 14 anos(6) nos demais estudos.
Ainda sobre a idade das crianças, os três estudos que trabalharam com crianças
menores de sete anos(13,15,18), associaram mais de uma técnica, além da
entrevista, para a obtenção dos dados, tais como o brinquedo terapêutico e o
desenho como estratégia de comunicação. Os demais, que realizaram a coleta de
dados apenas com a entrevista, em suas diversas variações, e incluíram como
participantes crianças maiores de seis ou sete anos. As justificativas para a
seleção dessa faixa etária estiveram pautadas na fase de desenvolvimento em que
essa clientela se encontrava, com pensamento lógico e coerente, facilitando a
comunicação verbal da experiência vivida(8,11,12,14) e na capacidade de
verbalização e domínio da linguagem, oferecendo informações precisas nas
entrevistas(16, 10). Na tabela_1, apresentamos uma síntese dos artigos
selecionados, de acordo com o número de participantes na pesquisa, idade das
crianças e técnica de coleta de dados (Tabela_1).
Em relação ao tipo de estudo, optou-se por adotar, na definição, a própria
nomenclatura que os autores utilizaram, encontrando predominância da pesquisa
qualitativa, em 12 dos estudos(6,8-18). Muitos deles não definiram
explicitamente o referencial teórica ou o método utilizado, mas boa parte o
fez. Conforme as opções eleitas pelos autores, os estudos foram classificados
da seguinte forma: dois deles apontaram a pesquisa qualitativa(11-12), sem
fazer referência ao delineamento teórico ou ao método adotado; outro estudo
descritivo utilizou o estudo de caso como método de investigação(7), um
descreveu-se como estudo descritivo com abordagem qualitativa(16); três como
estudos descritivos e exploratórios, com abordagem qualitativa(8,14,18) e um
como estudo exploratório(6).
Aqueles que explicitaram seu referencial teórico e o método utilizaram os
pressupostos de Mayeroff(17); a teoria das representações sociais(10); dois dos
trabalhos apontaram o interacionismo simbólico e a teoria fundamentada em dados
(9,13) e outro, além dessas, a teoria de Vygostky(15).
Com relação à forma de obtenção dos dados, os estudos utilizaram uma técnica ou
uma associação delas. Aqueles que utilizaram apenas uma técnica de coleta de
dados optaram pela entrevista focalizada, pouco estruturada(16); entrevista
semi-estruturada(9,11); entrevista livre(8); entrevista dirigida, com roteiro
sistematizado(7); entrevista a partir de uma escala analógica de carinhas(6) e
somente entrevista(12). Aqueles que optaram por mais de uma técnica, citaram a
entrevista semi-estruturada e desenho-estória como tema(17); análise
documental, entrevista semi-estruturada auxiliada pelo desenho livre e
observação livre(10); entrevista semi-estruturada e diário de campo(14);
entrevista com brinquedo terapêutico(13); observação e entrevista com desenho
(18) e observação participante e entrevista com brinquedo terapêutico(15).
Para a obtenção dos dados durante a entrevista, autores(19) trazem a
importância do preparo do entrevistador, com o domínio da técnica da entrevista
para o sucesso da investigação. Nesse sentido, buscamos nos estudos identificar
quem foi o entrevistador das crianças e se havia menção ao seu preparo para o
desenvolvimento da técnica. Cinco dos estudos não fazem referência ao
entrevistador(8,10,12,15,16), dois não fazem menção direta, mas sugerem que foi
o próprio pesquisador(6,13), cinco fazem referência direta ao entrevistador
como o próprio pesquisador(7,9,14,17,18) e outro cita o entrevistador como
sendo bolsista de iniciação científica(11).
Outro aspecto importante para o desenvolvimento da entrevista é o ambiente em
que esta será realizada. Nos estudos analisados, em três deles as entrevistas
foram realizadas no ambulatório de um hospital público ou hospital escola
(7,11,14), um no consultório médico e ambulatório de cirurgia pediátrica de um
hospital público(13), seis na unidade de internação hospitalar(6,9,15-18), um
no domicílio(10), outro colheu dados no ambulatório e domicílio(12) e, por fim,
um dos estudos não fez referência ao local de coleta de dados(8).
Sobre o registro dos dados, onze estudos gravaram as entrevistas(6,8-14,16-18);
um deles filmou a entrevista em sessão de vídeo(15) e outro fez o registro
manual das respostas das crianças(7).
Quanto à abordagem de aproximação do entrevistador e crianças, estratégia que
pode auxiliar na realização da entrevista, apenas dois estudos(14,18) fizeram
referência a uma abordagem preparatória, a qual foi denominada de exploração de
campo. Os demais estudos não mencionaram a esse respeito ou ao reconhecimento
prévio do grupo pesquisado.
Sobre os aspectos éticos, todos os estudos relatam ter aprovado seus projetos
de pesquisa em comitês de ética em pesquisa com seres humanos, assim como ter
obtido o consentimento formal por meio do termo de consentimento livre e
esclarecido dos responsáveis pelas crianças. Alguns deles colheram também a
assinatura da própria criança nos termos(14,17); outros apenas sua anuência
verbal(6,8,9,15,16) e outros somente dos familiares(10,13,18). Apenas um estudo
relata ter feito uma discussão prévia do termo, em linguagem acessível, com
crianças e familiares(12).
Para a realização das entrevistas, somente três estudos(10,11,13) fazem
referência a permanência de um acompanhante durante as mesmas, sendo que em um
deles há relato de que a mãe foi informada que poderia permanecer no local onde
a entrevista estava sendo realizada, e algumas assim o fizeram(11). Em um
desses três estudos, o pesquisador menciona que a mãe ou o pai permaneciam
próximos da criança, para que ela pudesse se sentir protegida e segura, já que
estava conhecendo o entrevistador naquele momento(13).
Com relação aos sentimentos da criança durante a entrevista, nenhum dos estudos
fez referência a essa questão. Apenas um deles(15) citou que durante a condução
da entrevista, uma criança não permitiu que a filmagem fosse realizada e,
então, as ocorrências foram anotadas no seu decorrer, mas também não menciona
os sentimentos da criança durante esse processo.
DISCUSSÃO
O termo entrevista advém dos radicais latinos inter e videre e pode-se entendê-
lo etimologicamente como "entre olhos", "no meio dos olhares", "dar uma
olhada", "ver-se mutuamente", "ver juntos" e situações observáveis numa relação
de entrevista pessoal(20). É um instrumento precioso de conhecimento
interpessoal(21). Facilita, no encontro face a face, a apreensão de uma série
de fenômenos, de elementos de identificação e de construção potencial do todo
do entrevistado(20).
A entrevista é apresentada como evento discursivo complexo, que ocorre entre
entrevistador e entrevistado por meio de imagens, representações, situações,
expectativas que circulam no momento de realização da entrevista, assim como na
escuta e na análise desta(22). Apresenta algumas vantagens, dentre as quais
destacamos: a possibilidade da obtenção de dados referentes aos mais diversos
objetos de interesse para a enfermagem, como percebemos pela heterogeneidade de
temáticas nos estudos analisados; é uma técnica eficiente para obtenção de
dados em profundidade acerca do comportamento humano; os dados obtidos são
suscetíveis, tanto para classificação quanto quantificação; pode ser aplicada
com pessoas que não sabem ler e escrever, permite um contato mais próximo do
sujeito da pesquisa, o que possibilita identificar dúvidas e estabelecer uma
relação de confiança necessária na pesquisa com crianças.
A partir desse entendimento, buscamos nos estudos apreender aspectos que dizem
respeito ao desenvolvimento de uma entrevista, tais como: a idade das crianças
foi determinante para a escolha da técnica ou para o agrupamento de técnicas?
Qual foi o agente entrevistador das crianças? Os entrevistadores eram
experientes na condução de entrevistas com crianças ou, se não, receberam
treinamento prático para a coleta de dados na pesquisa em questão? Qual foi o
ambiente de coleta de dados? As entrevistas foram gravadas e filmadas? foram
utilizadas estratégias de abordagem às crianças antes do início da entrevista?
Outras técnicas foram associadas a entrevista? Foram seguidos aspectos éticos
para a condução das pesquisas/entrevistas? a criança foi entrevistada sozinha
ou na presença de um familiar? Quais foram os sentimentos das crianças durante
a entrevista? Assim, a discussão desse estudo se dá a partir da reflexão de
como esses aspectos foram abordados nas pesquisas aqui analisadas.
O primeiro ponto de destaque é em relação ao uso da técnica de entrevista,
associada ou não com outras modalidades, a depender da idade da criança. Para
aquelas não totalmente alfabetizadas, ou seja, menores de sete anos, observa-se
a associação de uma atividade lúdica à entrevista, como o brinquedo terapêutico
(13,15), o desenho-estória(17) e desenho livre(10). Os pesquisadores
utilizaram-se do auxílio da brincadeira para conseguir acessar os dados junto
às crianças. Para aquelas maiores de sete anos, ou seja, faixa etária em que as
crianças encontram-se na fase do pensamento lógico e coerente, conseguindo
comunicar verbalmente suas idéias e dar significado às suas experiências, não
houve associação desse tipo de atividade. O uso de mais de uma forma de coleta
de dados parece ter ocorrido no sentido de buscar uma triangulação de técnicas
para uma coleta de dados mais abrangente e confiável, apesar do conceito de
triangulação não estar explícito nos estudos analisados. Essa é uma estratégia
que vem ocorrendo cada vez mais nas pesquisas qualitativas, não somente com
crianças(23). Assim, nos estudos analisados, a idade foi um fator importante
para a escolha das técnicas de coleta de dados.
Quanto ao agente entrevistador, é preciso que os pesquisadores, ao publicarem
os resultados, explicitem melhor essa questão, pois não encontramos de forma
clara nos estudos quem realizou a coleta de dados. O preparo dos
entrevistadores para a coleta de dados com crianças também não foi mencionado
nas publicações. Seria desejável relatar se eram experientes na condução de
entrevistas com crianças ou se receberam treinamento prático para tal, o que
ampliaria os cuidados dos pesquisadores com a técnica e, consequentemente, no
rigor da pesquisa. Ao abordar tais aspectos e divulgá-los nos periódicos, os
pesquisadores que utilizaram a entrevista com crianças estariam contribuindo
com a área e com outros pesquisadores.
A análise dos estudos revelou que o ambiente de coleta de dados parece não ter
influenciado na coleta propriamente dita ou mesmo na qualidade dos dados
produzidos. Em todos os estudos, o local de coleta foi aquele onde a criança se
encontrava em função de sua necessidade de saúde, muito embora a literatura(24)
aponte a importância do ambiente para a realização de pesquisas com crianças,
observando que, quando se encontram em suas casas, sentem-se mais seguras,
demonstram criatividade e expressividade na participação das entrevistas.
Quando isso não é possível, um ambiente estruturado para a pesquisa pode ser
importante. Ainda assim, não encontramos a descrição de que tenha sido
produzido um ambiente de pesquisa nos estudos analisados, mas utilizado o
ambiente real onde a criança se encontrava e este fato foi um facilitador para
o contato com as crianças e suas famílias. Alguns estudos(10,12) incluíram
também o domicílio das crianças para a continuidade dos contatos, mas a
primeira abordagem, e muitas vezes a única, se deu no ambiente de cuidados em
saúde.
Quanto ao registro das entrevistas, a gravação se deu em praticamente todos os
estudos e, em nenhum deles, observa-se o relato de qualquer constrangimento,
dificuldade ou empecilho para a coleta de dados por meio desse recurso. O único
relato de alteração de comportamento da criança durante a coleta de dados diz
respeito a um recurso que ainda não é muito utilizado na obtenção de dados em
pesquisa qualitativa, que é a filmagem, relatado em um dos estudos(15), no qual
há menção que uma das crianças não aceitou que a entrevista fosse filmada.
Contudo, de qualquer forma, os dados foram obtidos por meio de registro manual,
pois mesmo não permitindo a filmagem, a criança manteve o aceite em participar
do estudo.
Outra característica que nos chama atenção é que não houve relato se foram
utilizadas estratégias de abordagem às crianças antes do início da entrevista.
Esses aspectos devem ser detalhados na divulgação dos estudos, para que possam
servir de parâmetros a outros pesquisadores que planejam utilizar a entrevista
como técnica de coleta de dados em pesquisas com crianças. Além disso, pelo
mesmo motivo, é relevante descrever os sentimentos das crianças durante a
entrevista, postura e registro de suas ações em diário de campo.
Os aspectos éticos seguidos foram os recomendados pela Resolução CNS 196/96(25)
para a condução de pesquisas com seres humanos, apesar de não ter sido
detalhado os cuidados do pesquisador com procedimentos específicos para o grupo
etário adotado como participante. Nesse sentido, precisamos discutir, como
contraponto, que o número reduzido de páginas para a publicação dos manuscritos
tem restringido cada vez mais as possibilidades de detalhar esse tipo de
informação. Os comitês de ética em pesquisa ressaltam a importância do processo
de obtenção do consentimento livre e esclarecido e não apenas a assinatura do
termo de consentimento, sendo essa última, apenas um momento final do processo
de consentimento, pois este é renovável e revogável. A obtenção de assinatura
do termo somente deve ocorrer após o sujeito estar suficientemente esclarecido
sobre os objetivos da pesquisa, possíveis riscos e benefícios, além de todas as
informações necessárias para escolher ou não participar do estudo. No contexto
dessa revisão, na discussão relativa aos aspectos éticos na condução de
pesquisa com seres humanos, enfatizamos a discussão do assento às crianças, ou
seja, ouvir o desejo das crianças de participar ou não da pesquisa, pois essa
ação denota o cuidado dos pesquisadores em relação aos sujeitos de pesquisa,
respeitando-os enquanto pessoa(26). O assentimento das crianças não é um
procedimento legal, em termos de autorização para integrar à pesquisa, fato que
nos remete, também, à necessidade de coleta do consentimento dos pais ou
responsáveis.
Além disso, autores(4) chamam atenção para a necessidade de se chegar a um
equilíbrio entre o objetivo de levar a criança a se expressar e o estresse
associado a esse fato, recomendando que se considere: deixar muito claro o
papel do pesquisador e os objetivos da pesquisa antes de iniciá-la, obtendo o
consentimento dos adultos responsáveis e instituições envolvidas; adotar
cuidados com as informações recolhidas para não expor as crianças e torná-las
vulneráveis; evitar a colocação de questões que podem provocar reações de
estresse e sofrimento nas crianças e ter conhecimento da cultura local para
evitar constrangimentos adicionais às crianças.
Somente um estudo(12) faz referência no texto a uma leitura do termo de
consentimento livre e esclarecido às crianças e famílias em linguagem
acessível, embora saibamos que é uma característica inerente a esse tipo de
documento ser construído em linguagem adequada aos sujeitos do estudo, e que,
na maior parte das vezes, pesquisador e pesquisado o lêem conjuntamente,
sanando-se as possíveis dúvidas. Após esse processo, solicita-se a anuência
formal, por meio da assinatura do termo. Em alguns estudos, as crianças foram
incluídas no processo de assinatura do termo de consentimento junto aos seus
pais, conforme apontamos anteriormente. Esse é um cuidado que demonstra,
também, o respeito à criança, principalmente daquelas que já estão em idade
escolar. O espaço reservado para a assinatura da criança no termo, legalmente,
não tem valor, mas, para a criança que participa da pesquisa, é importante que
seja reconhecido seu desejo de participar da pesquisa.
Tomando a questão específica da lei, a criança não é portadora de direitos
sobre sua pessoa, mas dependente dos pais ou responsáveis. Para além da questão
legal, chamamos a atenção para a crescente e cada vez mais recente aquisição de
capacidades das crianças em idades em que antes isso não acontecia. Assim,
incluir a criança nas decisões, com instrumentos apropriados a elas, ou mesmo
verbalmente, em linguagem que ela compreenda, parece-nos importante na condução
de pesquisas com as mesmas. Tal fato não habilita o pesquisador a dispensar a
presença de, pelo menos, um dos pais ou responsável para a condução da coleta
de dados(4), os quais não necessariamente precisam permanecer ao lado da
criança, mas é desejável que estejam perto o suficiente para que sinta-se
segura, como numa sala ao lado, por exemplo.
Se a entrevista for realizada na presença dos pais, conforme alguns dos estudos
relataram(10,11,13), isso pode proporcionar a criança maior segurança na hora
de verbalizar o que lhe está sendo perguntado. Também pode ser um fator de
inibição, ou constrangimento principalmente naquelas com idade para compreender
determinas questões que podem ser constrangedoras de serem respondidas na
presença dos pais, daí a necessidade da habilidade e experiência do pesquisador
na condução das entrevistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade de captar a voz das crianças em estudos científicos é hoje uma
realidade, pois, a partir de suas falas, medidas de proteção e atenção a saúde
podem se tornar mais eficientes e eficazes por parte das equipes de atenção a
saúde. Os problemas relatados pelas crianças podem adquirir maior nitidez para
os profissionais de saúde quando ouvidos na pesquisa com uma escuta atenta e
específica, o que envolve a compreensão da comunicação feita pelo outro, com
preparo do pesquisador para a abordagem da criança, pois este será um adulto
interpretando a fala de uma criança.
Os estudos analisados evidenciam que a entrevista, como única forma ou
associada a outras técnicas para a coleta de dados, é uma técnica adequada para
a realização de pesquisas com crianças. A obtenção de melhores ou piores
resultados ultrapassa os limites da técnica, dependendo em grande parte das
qualidades e habilidades do entrevistador, do uso isolado ou associado,
principalmente, às atividade lúdicas, no caso das crianças menores de sete
anos. Não há receitas infalíveis a serem seguidas, mas sim cuidados a serem
adotados para cada faixa etária e estes, aliados à conduta atenta do
entrevistador, levarão a uma boa entrevista e aos resultados esperados para o
estudo com crianças.
A análise da expressão oral da criança orienta-se pelas próprias intenções
postas na relação comunicativa, contudo, a linguagem oral não é central, nem
única. Em se tratando de crianças, virá acompanhada de outras expressões
corporais, gestuais e faciais, as quais requerem atenção redobrada, em virtude
dos nossos limites no grau de compreensão e nossa visão de mundo adulta.
Para que as crianças não sejam apenas mero interesse de investigação e não
sejam submetidas a constrangimentos de nenhuma natureza, é importante seu
envolvimento nas pesquisas a partir de sua participação, desde o planejamento e
organização, na análise dos dados e na validação das informações. Nesse
processo, as crianças são empoderadas para construir uma representação de seu
mundo ou do objeto sobre o qual se propõe o estudo. Deve-se, ainda, ser levada
em consideração a experiência prévia das crianças no decorrer da pesquisa.
Assim, ultrapassamos a relação em que o sujeito da pesquisa responde aquilo que
percebe ser a expectativa dominante ou a do próprio pesquisador.
Não podemos deixar de apontar a limitação de estudos com crianças dado o
pequeno número de artigos encontrados nas publicações. Em estudos posteriores
parece-nos necessário mudar os critérios e incluir também teses e dissertações
a fim de obter uma amostra mais abrangente e também informações mais detalhadas
do que aquelas encontradas nos artigos, que acabam sendo limitadas pelas normas
de publicações dos periódicos. Não pretendemos com esse artigo esgotar a
discussão sobre as pesquisas realizadas com crianças, mas sim contribuir para
iniciar uma discussão sobre esse grupo como objeto de pesquisa com seres
humanos e as formas adotadas até então pelo pesquisador a fim de obter dados
com as crianças.