Comportamentos e práticas sexuais de homens que fazem sexo com homens
INTRODUÇÃO
No contexto epidemiológico da AIDS, a população de homens que fazem sexo com
homens (HSH) é considerada uma das mais vulneráveis, apresentando um elevado
número de casos dessa doença nas categorias de exposição sexual, homo e
bissexual, apesar de demonstrar uma tendência à estabilização nos últimos anos
no Brasil. Tais dados epidemiológicos apontam para a prevalência preocupante de
39,4% de casos da doença decorrentes de exposição sexual nessas categorias(1).
Nesse cenário, a categoria HSH vem sendo amplamente utilizada para designar
homossexuais, bissexuais e outros homens que assumem tal prática, mas que podem
sentir dificuldade em se definirem como homossexuais. Essa terminologia tem
sido adotada por grande parte dos estudos de saúde coletiva, que concentram
esforços para a compreensão da dinâmica da epidemia de AIDS nessa população(2).
Esses inquéritos têm investigado os diversos fatores que favorecem a
transmissão do HIV/AIDS no subgrupo de HSH, como a adoção de práticas sexuais
desprotegidas, a aquisição de comportamentos de risco, e o preconceito e a
discriminação, o que torna os HSH uma das populações mais vulneráveis no
contexto da epidemia do HIV/AIDS(2-3).
Ao longo da epidemia, o conceito de risco esteve atrelado às políticas e
práticas preventivas direcionadas a populações específicas, muitas vezes com
conotação discriminatória e estigmatizante. Dessa forma, atualmente o conceito
de "vulnerabilidade" é adotado, pois abrange a percepção do adoecimento como
resultado de um conjunto de aspectos, não apenas individuais, mas também
coletivos e contextuais, que acarretam maior suscetibilidade ao sujeito(4).
Cabe ressaltar que o enfrentamento da epidemia de AIDS em qualquer segmento
populacional, incluindo a população HSH, exige o reconhecimento da
vulnerabilidade, especialmente de aspectos relacionados aos comportamentos e
práticas sexuais adotadas pela população citada. Desse modo, é imprescindível a
realização de estudos que investiguem as práticas sexuais na população
específica de HSH, com vistas ao desenvolvimento de intervenções direcionadas
ao subgrupo e à avaliação das iniciativas já existentes para prevenção do HIV/
AIDS entre HSH.
O presente estudo objetivou identificar os comportamentos e as práticas sexuais
de HSH, a fim de reconhecer o contexto de vulnerabilidade em que a referida
população está inserida, bem como identificar o perfil social e sexual dos HSH.
Nesse contexto, o enfermeiro, como um dos principais promotores de saúde, detém
uma grande responsabilidade, desempenhando esse papel em sua prática
profissional por meio de ações específicas para esse grupo, como a realização
de estratégias educativas, a participação em programas de prevenção e no
acolhimento humanizado, por meio de uma escuta ativa das demandas dos HSH nas
diversas instituições da saúde.
METODOLOGIA
Tratou-se de um estudo transversal do tipo exploratório descritivo. O inquérito
foi realizado em uma boate localizada no centro da cidade de Fortaleza, no
Estado do Ceará, reconhecida como um dos principais locais de sociabilidade gay
da cidade. O local foi descrito minuciosamente em estudo etnográfico, sendo
evidenciado como um local tradicional de sociabilidade dessa população, o que
justificou a seleção do mesmo para realização desta pesquisa(5). A opção pelo
recrutamento da amostra em locais de sociabilidade gay seguiu uma tendência
observada em outros estudos realizados com a referida população(2,6).
Empregou-se a amostragem não probabilística, método utilizado em situações que
não é possível construir uma amostra-padrão adequada de locais ou situações em
que integrantes de uma subpopulação se reúnem. Esse tipo de amostra gera dados
relevantes e vem sendo utilizada nos estudos direcionados à população HSH(6-7).
O tamanho amostral foi calculado por meio da fórmula para populações finitas,
totalizando 189 HSH, que atenderam aos os seguintes critérios de inclusão:
maiores de 18 anos, brasileiros, que tivessem se relacionado sexualmente pelo
menos uma vez no último ano e que frequentassem locais de sociabilidade gay.
A coleta de dados ocorreu no período de novembro de 2010 a março de 2011. A
abordagem dos sujeitos deu-se de maneira aleatória antes da entrada no local
supracitado. O formulário foi preenchido com dados sociodemográficos, de
história e de práticas sexuais. Esse instrumento foi construído a partir da
adaptação de instrumento utilizado em outro estudo de âmbito nacional(2).
A análise dos dados consistiu na descrição das frequências e médias, dispostas
na forma de tabelas ilustrativas. O programa Statistical Package for the Social
Sciences (SPSS), versão 17.0, foi utilizado e discutiram-se os resultados
conforme a literatura pertinente. Os aspectos éticos e legais envolvendo a
pesquisa com seres humanos foram respeitados. A pesquisa foi aprovada pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, conforme
protocolo 247/10.
RESULTADOS
Os dados referentes às características sociodemográficas da amostra estão
disponibilizados na Tabela_1.
Tabela 1 Distribuição dos dados sociodemográficos de homens que fazem sexo com
homens-HSH, Fortaleza, Ceará, 2011
Caracterização f (%)
Faixa etária, anos (n = 189)
18-25 95 (50,3)
25-34 68 (35,8)
35-44 21 (11,0)
45-55 5 (2,6)
Escolaridade (n = 189)
Fundamental incompleto 3 (1,6)
Fundamental completo 4 (2,1)
Médio incompleto 17 (9,0)
Escolaridade (n = 199)
Médio completo 89 (47,1)
Superior incompleto 35 (18,5)
Superior completo 28 (14,8)
Pós-Graduação 13 (6,9)
Estado civil (n=199)
Solteiro 162 (85,7)
Casado/amigado com homem 24 (12,7)
Separado 1 (0,5)
Divorciado 2 (1,1)
Com relação à idade, todos os participantes eram maiores de 18 anos, com média
de idade 26,54 anos, sendo a mínima de 18 e a máxima de 55 anos, com desvio
padrão de 7,40. A escolaridade dos sujeitos, medida por nível de escolaridade,
foi considerada alta, pois 87,3% (155) dos sujeitos estudados eram homens com,
no mínimo, Ensino Médio completo.
História sexual
Os dados referentes ao comportamento sexual dos participantes, como sexarca,
relação heterossexual, história de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e
realização de teste anti-HIV estão dispostos na Tabela_2.
Tabela 2 Distribuição dos dados da história sexual de homens que fazem sexo com
homens, Fortaleza, Ceará, 2011
História sexual f (%)
Idade da primeira relação sexual, anos (n = 189
Menos de 10 18 (9,6)
11-15 99 (52,3)
16-20 64 (33,8)
21-23 7 (3,7)
Não lembra 1 (0,5)
Relação heterossexual (n = 189)
Sim 117 (61,9)
Não 72 (38,1)
História pessoal de DST (n=189)
Sim 26 (13,8)
Não 162 (85,7)
Não lembra 1 (0,5)
Tratamento de DST (n=26)
Sim 21 (86,2)
Não 5 (11,1)
Realização do teste anti-HIV (n = 189)
Sim 139 (73,5)
Não 50 (26,5)
DST: Doenças Sexualmente Transmissíveis.
Referente à sexarca, a idade média de início sexual foi de 14,6 anos, sendo a
menor 6 anos e a maior 23 anos, com desvio padrão de 3,1.
Práticas sexuais
As práticas sexuais também foram investigadas, e os dados relativos a essas
informações estão na Tabela_3.
Tabela 3 Distribuição das práticas sexuais de homens que fazem sexo com
homens, Fortaleza, Ceará, 2011
Práticas sexuais f (%)
Sexo oral (n=189)
Sim 182 (96,3)
Não 7 (3,7)
Uso do preservativo no sexo oral (n=182)
Sempre 60 (31,7)
Às vezes 42 (22,2)
Não usa 77 (40,7)
Apenas quando realizo (insertivo) 3 (1,6)
Sexo anal (n = 189)
Sim 185 (97,9)
Não 4 (2,1)
Uso do preservativo no sexo anal (n=185)
Sempre, independente do tipo 139 (73,5)
Apenas quando é passivo (receptivo) 2 (1,1)
Apenas quando é ativo (insertivo) 7 (3,7)
Não usa 24 (12,7)
Às vezes 13 (6,9)
A maioria dos respondentes (182; 96,3%) relatou a realização de sexo oral.
Quanto à prática do sexo anal, também quase totalidade (185; 97,8%) dos
sujeitos a referiu. Foram encontrados resultados que ressaltam a elevada
prevalência da prática do sexo anal desprotegido na amostra estudada, pois
12,7% (24) dos entrevistados referiram que não usavam proteção e 6,9% (13)
assumiram a utilização da proteção "às vezes".
DISCUSSÃO
A idade dos participantes do estudo denotou uma população jovem usuária dos
locais de sociabilidade gay, congruente com o apresentado em estudos
semelhantes. Pesquisa desenvolvida com amostragem semelhante, na qual
entrevistaram-se 465 HSH na cidade de Brasília, revelou amostra formada
predominantemente por jovens, com 92,7% entre 18 e 39 anos e média de 27 anos
de idade, corroborando os dados do presente estudo(7).
Os estudos realizados com essa população têm demonstrado, de maneira geral, um
nível de escolaridade elevado, o que está em consonância com o presente
inquérito. Pesquisa realizada no Rio de Janeiro demonstrou que 44% (176) dos
entrevistados (400 HSH) informaram ter concluído o Ensino Médio, 29,5% (118) o
Superior incompleto e 102 (25,5%) o Superior completo. Logo, 55% possuíam o
Ensino Superior incompleto ou mais(6).
No tocante ao estado conjugal, os achados da presente pesquisa estiveram de
acordo com a literatura(2). O estado civil solteiro foi referido por 68,7% dos
HSH de inquérito nacional realizado com 487 HSH(2).
Em relação à iniciação sexual precoce, a idade média de início de
relacionamento sexual de 17% dos entrevistados em Campo Grande esteve por volta
dos 8 anos de idade; 44% estiveram em torno dos 13 anos de idade,
caracterizando um importante elemento favorável à aquisição de DST, inclusive a
AIDS(8). O início sexual precoce está associado ao não uso ou uso inadequado do
preservativo, além do uso do tabaco, álcool e consumo de outras drogas(9).
Percebeu-se elevada prevalência de HSH que referiram relação sexual com
mulheres em algum momento da vida. Tal fato pode ter relação com o período em
que a identidade sexual ainda não é totalmente compreendida pelo homossexual,
levando-o à busca de diversas experiências sexuais, inclusive a relação
heterossexual(10). Por outro lado, pode-se pensar nesse achado como uma
expressão da bissexualidade. Estudo evidenciou que a vulnerabilidade para HIV/
AIDS foi mais frequente entre os homens que relataram atividade bissexual. Os
comportamentos sexuais e de proteção diferem conforme gênero e estabilidade da
parceria, havendo maior desproteção nas parcerias fixas do gênero feminino
entre os bissexuais(11).
Ademais, pensa-se também na necessidade de, muitas vezes, esconder a orientação
sexual, pois o homossexual pode ser vítima de preconceitos ou isolamento da
sociedade e, inclusive, da própria família. Estudo sobre o preconceito contra
homossexuais aponta para presença de um esquema social discriminatório contra o
homossexual na sociedade brasileira(12).
Nota-se que, embora o número de homens que afirmaram história pessoal de DST
não seja o mais prevalente, esse dado ainda é significativo. Em pesquisa
desenvolvida no Distrito Federal, tendo a participação de 465 homens, 7,5%
afirmaram ter apresentado algum sintoma de DST nos últimos 6 meses(7). Já no
presente estudo foi considerável o número de pessoas com história pessoal de
DST e, embora não tenha sido a maior prevalência, os números demonstraram a
vulnerabilidade desse grupo frente à aquisição dessas doenças.
Associada à vulnerabilidade para DST, encontrou-se, também, alta prevalência de
realização de testagem anti-HIV. Nesse sentido, percebe-se uma consonância com
investigação na cidade do Rio de Janeiro, na qual 72,5% dos entrevistados
comunicaram a realização do teste anti-HIV(6). A alta prevalência de testagem
entre a população estudada pode estar relacionada com a prática recorrente de
comportamentos de risco, que provocaria medo de ter contraído o HIV e que
levaria à procura pelo teste, em parte como forma de reduzir a culpa e o medo
relacionados à prática insegura, além da falsa segurança proporcionada por um
resultado negativo(7).
A investigação acerca do sexo oral esteve em consonância com outras pesquisas.
A preferência pelo sexo oral foi investigada em uma pesquisa com 577 HSH,
usuários da internet, na qual se aplicou uma escala de gradação de prazer em
relação ao sexo oral insertivo e receptivo. Assim, foi considerada uma prática
"prazerosa" por 74,2% e 73,9% dos entrevistados, respectivamente. Existem
evidências científicas que apontam para o sexo oral como uma via de transmissão
para o HIV. Porém, os estudos realizados até o momento não são precisos quanto
à quantificação e à qualificação desse risco(13).
Cabe notar a grande preferência da população de HSH estudada pela realização da
prática do sexo anal. Percebe-se que a realização desse tipo de prática pelos
HSH tem, na realização dessa prática, uma importante dimensão da identidade
sexual, possuindo um significado simbólico dentro do cenário das práticas
sexuais dessa população(14). De forma semelhante, entre as práticas sexuais
mais comuns dos HSH entrevistados na Região Sul do país, destacou-se o sexo
anal insertivo com 87% e o sexo anal receptivo com 73%(15). Sabe-se que o sexo
anal insertivo e o receptivo são consideradas como práticas de grande risco
para a infecção pelo HIV/AIDS, dentro de uma hierarquia de prevenção(2).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os achados desta pesquisa permitiram constatar que, apesar de não existirem
estratégias de ampla escala no contexto da prevenção da transmissão do HIV/AIDS
entre os HSH, verificaram-se mudanças que apontaram para uma maior proteção
dentro desse grupo.
Notou-se que, apesar do uso do preservativo no sexo anal estar presente na
maior parte da amostra, cabe ressaltar ainda a existência de vulnerabilidades
pela prática desprotegida. Em contrapartida, os dados epidemiológicos vêm
apontando para uma estabilização do número de casos diagnosticados, por meio da
contaminação homossexual e bissexual. Tais resultados apontaram para o
crescimento da capacidade desse grupo em reagir positivamente aos desafios
impostos pela epidemia.
Contudo, a suscetibilidade de determinados grupos e a identificação e
compreensão de suas particularidades constituem, ainda, um grande desafio a ser
enfrentado em todos os espaços em que condições de risco para aquisição de DST/
AIDS estejam presentes.
Ressalta-se a pouca adesão do preservativo na realização do sexo oral entre os
sujeitos estudados. Sugere-se uma melhor compreensão dessa especificidade por
meio de um conhecimento mais aprofundado, com o objetivo de subsidiar
intervenções que visem à redução do comportamento de risco entre os HSH. Con-
sidera-se importante a realização de novas pesquisas que objetivem aprofundar a
investigação sobre as razões associadas a não utilização de preservativos, seja
na prática do sexo oral ou anal.
Cabe salientar que, devido aos métodos de amostragem, os resultados obtidos não
permitiram uma generalização para toda população de HSH, mas demonstraram
informações importantes, que podem subsidiar a construção de ações educativas,
de políticas e programas direcionados para esse segmento populacional.
Nesse contexto, o profissional enfermeiro deve desempenhar um papel fundamental
na promoção da saúde sexual desse grupo específico, por meio de uma atenção
humanizada pautada no cuidado holístico, livre de preconceitos, e em atividades
de caráter educativo, com vistas a mudanças de comportamento, em busca da
prática sexual segura.