Análise do sistema eletrônico de compras do governo federal brasileiro sob a
perspectiva da criação de valor público
1. Introdução
Surgido em 2001, o sistema eletrônico de compras do Governo Federal consiste em
uma ferramenta de gestão criada para aproveitar toda a potencialidade da
tecnologia da informação e comunicação nas compras públicas. Essa
potencialidade a ser explorada tinha como motivação principal os prováveis
ganhos de eficiência e economia de recursos financeiros nas compras do Governo
Federal. Devido à sua criação recente, pode-se considerar que esse sistema
ainda esteja em processo de desenvolvimento, entretanto já é possível perceber
alguns impactos gerados após sua implantação.
O foco do sistema eletrônico de compras públicas tende para a busca dos
quesitos de eficiência e economia de recursos. Esse quadro torna-se
compreensível, uma vez que os órgãos governamentais deparam, cada vez mais, com
restrições orçamentárias de um lado, e aumento das demandas sociais de outro.
No entanto, tratando-se de organizações públicas, não se deve esquecer que há
outros parâmetros igualmente importantes e que, às vezes, deixam de ser
considerados em virtude da lógica utilitarista de mercado que domina esse
ambiente. Em outras palavras, orientar a tomada de decisões do sistema sem
considerar outros aspectos relevantes, como a transparência ou o próprio
interesse público, pode conduzir a efeitos contrários ao que foi planejado.
Mintzberg (1996) faz um alerta de que os valores do setor privado estão
invadindo toda a sociedade. A iniciativa privada, provavelmente, nunca tenha
sido tão influenciadora como agora. Assim, o setor público e os outros setores
deveriam ser cautelosos acerca das iniciativas em gestão que absorvem da
iniciativa privada. O setor público está inserido em um contexto com diferenças
significativas em relação à realidade do setor privado. Este busca,
primordialmente, o lucro e a maximização da riqueza de seus acionistas. Os
órgãos de governo, por sua vez, têm como norteadoras de suas atividades as
diretrizes de bem-estar social e de interesse público. Bozeman (2007) coloca o
conceito de valor público como um contraponto à força utilitarista do mercado.
Nesse sentido, o objetivo neste trabalho consiste em verificar se o sistema de
compras públicas do Governo Federal está organizado para superar a tendência da
simples busca da eficiência por meio de aprimoramentos para dar respostas
eficazes ao cidadão e à sociedade pela criação de valor público.
Adotou-se para tanto uma abordagem sistêmico-complexa, pois a complexidade
ajuda a questionar a fragmentação e o esfacelamento do conhecimento, em que o
pensamento linear, oriundo do século XIX, colocava o desenvolvimento da
especialização como supremacia da ciência, contrapondo-se ao saber generalista
e globalizante (MORIN, 1977). Enfim, significa dizer que foi realizado um
esforço para analisar o sistema de compras públicas como um todo, sem segmentá-
lo. O presente artigo encontra-se assim estruturado: inicialmente, trata-se das
peculiaridades da administração pública e do conceito de valor público. Depois,
são levantadas as categorias de análise (eficiência, transparência,
accountability e interesse público). No tópico seguinte apresenta-se como a
pesquisa foi conduzida. Finalmente, apresentam-se os resultados e as
considerações finais.
2. Administração pública e criação de valor público
Na tentativa de estabelecer uma definição para administração pública, Amato
(1955, apud Jameson, 1962) afirma que, em sentido amplo, ela consiste em todo o
sistema de governo, todo o conjunto de ideias, atitudes, normas, processos,
instituições e outras formas de conduta humana, que determinam como se
distribui e se exerce a autoridade política, e como se atende aos interesses
públicos.
No Brasil, conforme documento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(MPOG) (BRASIL, 2008), podem-se verificar algumas características inerentes à
natureza pública das organizações da administração pública e sua diferenciação
das organizações da iniciativa privada. Esse órgão destaca que, enquanto as
organizações do mercado são conduzidas pela autonomia da vontade privada, as
organizações públicas são regidas pela supremacia do interesse público e pela
obrigação da continuidade da prestação do serviço público. A atividade pública
é financiada com recursos públicos, oriundos de contribuições compulsórias, que
devem ser direcionados para a prestação de serviços públicos e a produção do
bem comum. Assim, a administração pública não pode fazer acepção de pessoas. O
tratamento diferenciado restringe-se apenas aos casos previstos em lei. O
controle social é requisito essencial para a administração pública
contemporânea em regimes democráticos, o que implica garantia de transparência
de suas ações e atos, e a institucionalização de canais de participação social
(BRASIL, 2008).
É importante, também, compreender o atual contexto no qual está inserida a
administração pública e suas respectivas transformações. De acordo com Bresser
Pereira (1997), na década de 1980, logo depois da eclosão da crise de
endividamento internacional, o tema que prendeu a atenção de políticos e
economistas em todo o mundo foi o ajuste estrutural ou, em termos mais
analíticos, o ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado. Nos anos
1990, embora o ajuste estrutural permaneça entre os principais objetivos, a
ênfase deslocou-se para a reforma do Estado, particularmente para a reforma
administrati-
va. Para o autor, a questão central é como reconstruir o Estado, ou seja, como
redefinir o novo Estado que está surgindo em um mundo globalizado (BRESSER
PEREIRA, 1997).
Um dos pontos sustentados pelo autor consiste na transformação da lógica da
administração pública brasileira, ou seja, de uma lógica burocrática para uma
lógica gerencial. A administração pública gerencial emergiu, na segunda metade
do século passado, como resposta à crise do Estado, ou seja, como modo de
enfrentamento da crise fiscal, por meio de estratégias para reduzir custos e
tornar mais eficiente a administração dos serviços que cabem ao Estado. Também
foi um instrumento para proteger o patrimônio público contra os interesses da
corrupção aberta. Mais especificamente, desde o início da década de 1970
crescia uma insatisfação, amplamente disseminada, em relação à administração
pública burocrática (BRESSER PEREIRA, 1997).
Bresser Pereira (1997) cita algumas características básicas que definem a
administração pública gerencial. Segundo o autor, ela é orientada para o
cidadão e para a obtenção de resultados; pressupõe que os políticos e os
funcionários públicos são merecedores de um grau real, ainda que limitado, de
confiança; como estratégia, serve-se da descentralização e do incentivo à
criatividade e à inovação; o contrato de gestão é o instrumento mediante o qual
ela faz o controle sobre os órgãos descentralizados.
Os objetivos na administração pública, conforme destaca Moore (1995), parecem
ser menos claros, dadas as peculiaridades da gestão e das ambiguidades
presentes na criação de valor. Além disso, os valores que têm sido criados são
de difícil mensuração e avaliação. O autor afirma que o objetivo do gestor
público é criar valor público, assim como o objetivo da administração no setor
privado é criar valor privado. Sem definir explicitamente o conceito de valor
público, Moore (1995) cita o exemplo em que os gestores públicos criam valor
público por meio de suas decisões, tais como defender o país de inimigos
estrangeiros, manter as ruas limpas e seguras, educar as crianças, proteger os
cidadãos contra desastres naturais ou humanos. É nesse ponto que o governo cria
valor para a sociedade.
Avançando sobre a ideia de criação de valor público, Bozeman (2007) define o
termo como aqueles valores que fornecem consenso normativo sobre: os direitos,
benefícios e prerrogativas designados aos cidadãos; as obrigações dos cidadãos
para com a sociedade, o Estado, e um ao outro; e os princípios nos quais os
governos e as políticas deveriam ser baseados. Jorgensen e Bozeman (2007)
ressaltam a importância do assunto, afirmando não existir tópico mais
importante em administração pública do que o valor público. No entanto,
advertem que o tópico é tão fundamental quanto de difícil gerenciabilidade. De
forma semelhante a Moore, os autores afirmam que a avaliação de valores
públicos é uma tarefa muito mais difícil do que sua identificação. Em uma
tentativa de identificar os valores públicos, os autores realizam um estudo que
lista 72 valores. Dentre eles, aparecem os conceitos de transparência,
accountability, produtividade, efetividade, bem comum e interesse público.
No Brasil, a administração gerencial visou à busca da eficiência e de melhores
resultados, em termos de redução dos gastos, tendo sido o paradigma desde os
anos 1990. Contudo, acredita-se que a ênfase dada à economia de recursos poderá
ser ponderada pela busca do valor público, expressão moderna e que consegue
captar melhor a complexidade da administração pública. No próximo tópico serão
tratadas, especificadamente, a questão do sistema de compras públicas e as
categorias de análise que expressam a noção de valor público para a análise
desse sistema.
3. Categorias de análise para um sistema de compras públicas
Antes de se apresentarem as categorias de análise, é importante conceituar o
sistema de compras. Hansen, Henriksen e Mahnke (2004) definem sistema de
compras como sistemas de informação entre organizações que, por intermédio de
seus mercados eletrônicos, permitem aos compradores e fornecedores trocar
informação sobre preços e oferta de produtos rapidamente e com eficiência de
custos. Gayialis, Panayiotou e Tatsiopoulos (2004) trazem definição semelhante
ao afirmar que um sistema eletrônico de compras é um sistema de informação
interorganizacional que possibilita às organizações a realização de melhorias
significativas na eficiência de seu processo de compras. No caso do Governo
Federal, nota-se que o sistema de compras está coerente não só com o conceito,
mas também com o propósito da eficiência.
Contudo, visando ampliar a noção de eficiência nos sistemas de compras públicas
para uma percepção de valor público, incluiram-se, por meio de um levantamento
teórico, outros atributos para análise do sistema de compras do Governo
Federal. Para tanto, realizou-se uma busca na literatura por tais atributos,
encontrando-se as seguintes categorias: eficiência (Benjamin e Morton, 1986;
Wigand, 1997; Ethiraj, GULER e SINGH, 2000), transparência (Fernandes, 2002;
Santos, 2002; Speck, 2004; Hood, 2006; OECD, 2007, Meijer, 2009),
accountability (Heeks, 1998; Oliveira, 2001; Northrup e Thorson, 2003; Thomas,
2003) e interesse público (Thai, 2001; Erridge, 2004; Neyrinck, 2007; OECD,
2007). Essas categorias possuem conotações diversas, mesmo quando abordadas no
contexto específico da gestão pública, dado o caráter político e jurídico que
os envolve. Por vezes, tais conceitos podem conter ou estar contidos um no
outro; por exemplo, o conceito de interesse público pode conter noções de
transparência, accountabilityou mesmo a ideia de eficiência. Para esclarecê-
los, procurou-se tratá-los e conceituá-los no contexto da administração
pública, com foco no sistema eletrônico de compras, objeto de estudo deste
artigo. As quatro categorias de análise serão detalhadas para um sistema
eletrônico de compras ligado à administração pública. Entende-se por categoria
de análise os objetivos que um sistema eletrônico de compras deve alcançar para
ser considerado efetivo.
Segundo Aragão (1997), o conceito de eficiência recebe várias conotações.
Partindo-se de uma visão econômica, o conceito está conexo às relações de
mercado. Em termos organizacionais, vincula-se a questão ao uso adequado de
recursos e ao desempenho das pessoas e da organização. No ambiente
administrativo, o conceito de eficiência é colocado ainda como componente
técnico e econômico da eficácia, segundo Katz e Kahn (1987). Em outras
palavras, enquanto a eficiência é restrita aos aspectos internos, em termos do
uso econômico de tecnologias e competências, a eficácia engloba esses elementos
somados à capacidade política de lidar com os aspectos externos da organização,
visando maximizar os resultados.
A categoria eficiência, quando tratada no contexto de um sistema de compras
públicas, apoia-se no emprego da tecnologia da informação como instrumento para
reduzir os custos das trocas econômicas. Benjamin e Morton (1986) afirmam que a
tecnologia da informação possibilita novas formas de integração nas
organizações, reduzindo radicalmente custos de transação e assegurando
vantagens estratégicas importantes. Estudos mais recentes envolvendo a
tecnologia da informação referem-se a seu impacto no comércio eletrônico.
Segundo Wigand (1997), o comércio eletrônico denota a aplicação sem rupturas da
tecnologia da informação e comunicação ao longo de toda cadeia dos processos
organizacionais, conduzidos eletronicamente e desenhados para atingir os
objetivos organizacionais. Esses processos podem ser parciais ou completos e
podem englobar transações entre empresas, ou entre empresas e consumidores.
Dentro desse contexto, a tecnologia da informação pode ser analisada como uma
ferramenta que promove a eficiência de mercado. Baseados no trabalho de Malone,
Yates e Benjamin (1987), Ethiraj, Guler e Singh (2000) discutem o impacto da
tecnologia da informação na eficiência de mercado, a partir de três categorias
conceituais: comunicação (baixo custo de comunicação), corretagem (encontro
direto entre comprador e vendedor) e integração (ligação mais forte nas
relações entre comprador e fornecedor).
Em relação aos efeitos da comunicação, os autores enfatizam a importância da
informação no funcionamento eficiente da economia e do comportamento racional
dos agentes econômicos. A informação permite aos agentes: reduzirem a incerteza
dos consumidores, obterem conhecimento das possibilidades de produção e
determinarem as relações entre os inputs de produção. Consequentemente, a
disponibilidade e o acesso à informação são condição necessária para a
eficiência do mercado.
Os efeitos da corretagem referem-se ao encontro direto de compradores e
vendedores. Por exemplo, Berthon (1996, apud Ethiraj, Guler e Singh, 2000)
compara a Internet com um mercado gigante onde potenciais compradores e
vendedores se encontram, e é caracterizado pela abertura, informalidade e
interatividade. O efeito da corretagem afeta pelo menos dois motivos de
imperfeições da competitividade: o número e a natureza de ligações entre
produtores e consumidores em um mercado, e a consciência da oferta de produtos
alternativos.
Por fim, os efeitos da integração ocasionados pela tecnologia da informação
podem diminuir os custos de transação e coordenação. Holmstrom e Tirole (1998,
apud Ethiraj, Guler e Singh, 2000) afirmam que a informação, a fonte primária
dos custos de transação, pode ocasionar pelo menos dois problemas de
coordenação: o processamento de informação requer tempo e esforço; indivíduos
com diferentes objetivos e informação podem perseguir agendas próprias,
resultando em um desempenho organizacional subótimo. Assim, a informação é
essencial ao problema de coordenação da organização. A difusão da tecnologia da
informação que influencia padrões de comunicação, dentro e entre empresas, pode
também afetar a organização da atividade produtiva, melhorando a eficiência
informacional e possibilitando melhor monitoramento da interação entre os
indivíduos (Ethiraj, Guler e Singh, 2000).
A segunda categoria de análise diz respeito à transparência no sistema de
compras públicas. Speck (2004) considera que o principal instrumento para
combater a corrupção em licitações é a existência de regulamentos que garantam
máxima abertura à participação de empresas e maior visibilidade possível aos
atos da administração. Oliver (2004, apud Meijer, 2009) indica que a
transparência pode ser descrita por três elementos: um observador, algo
disponível a ser observado e um método para a observação. Moser (2001, apud
Meijer, 2009), por sua vez, define transparência como a abertura dos
procedimentos não imediatamente visíveis àqueles não diretamente envolvidos a
fim de demonstrar o bom trabalho de uma instituição.
Meijer (2009) explica que a transparência tem sido mencionada como uma
característica fundamental da tecnologia da informação desde os primeiros
debates sobre informatização na década de 1980. Uma característica das formas
de transparência nos dias atuais é que elas são mediadas. Hood (2006) enfatiza
que as formas atuais da transparência diferem da transparência face a face de
antigamente. As novas mídias, especialmente a Internet e outros sistemas
informatizados, desempenham atualmente um papel fundamental em mediar a
transparên-
cia governamental. A transparência mediada pelos computadores refere-se à
habilidade em olhar pelas janelas da instituição por meio do uso de sistemas
informatizados. Ainda, a Internet pode ser considerada um meio de comunicação
interativa que permite que a informação flua em diversos sentidos (Meijer,
2009), ampliando a capacidade de transparência de um sistema.
De acordo com documento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (Organisation for Economic Cooperation and Development - OECD), as
compras públicas caracterizam-se como a atividade governamental mais vulnerável
à corrupção. As compras governamentais representam uma das principais
interfaces entre o setor público e privado, podendo apresentar múltiplas
brechas para agentes públicos e privados desviarem recursos públicos para
ganhos privados. Para a OECD, a corrupção desenvolve-se na falta de publicidade
e, por isso, a transparência e a accountabilitytêm sido reconhecidas como
condições-chave para promover a integridade e prevenir a corrupção nas compras
públicas (OECD, 2007).
Fernandes (2002) argumenta que o uso de mecanismos eletrônicos possibilita
maior transparência às transações realizadas pelo setor público. No caso dos
fornecedores, a Internet permite que todos possuam o mesmo tipo de informação,
diminuindo o risco de um licitante possuir informação privilegiada. Em relação
à sociedade, todos podem acompanhar o processo de compras do governo, em todas
as suas etapas, e verificar sua legalidade a posteriori, por meio dos registros
em atas virtuais. Desse modo, a análise pública da gestão dos governos, abertas
na Internet, é um poderoso elemento dissuasivo do mau gerenciamento dos fundos
públicos, pela visibilidade e facilidade de reação que proporcionam.
Santos (2002) explica que a transparência somente se realiza se o usuário
compreende e age em relação à publicidade. A transparência não se simplifica em
colocar à disposição da sociedade as informações sobre as compras,
característica da publicidade, mas colocá-las em forma compreensível para toda
a sociedade. Embora não seja tarefa própria do portal de compras, dever-se-iam
encontrar modos de tabular os dados e estruturar os resultados de forma clara
para a sociedade, em harmonia com os resultados do controle interno e do
controle externo, bem como com a assessoria econômica que cuida da aplicação da
responsabilidade fiscal. De acordo com Northrup e Thorson (2003), a
transparência é um meio para o cidadão garantir a accountability, ao permitir
desenvolver expectativas realistas sobre o que o governo pode e não pode, e
monitorar o desempenho real do governo.
A accountability representa a terceira categoria de análise para um sistema de
compras públicas. Oliveira (2001) afirma que o termo accountability, próprio do
sistema anglo-saxão, é de difícil tradução. A ideia é a de que, para o cidadão
fiscalizar os atos do Estado, duas condições são necessárias: o fornecimento de
informações completas, claras e relevantes; e cidadãos conscientes e
organizados em torno de suas reivindicações.
De acordo com Thomas (2003), o termo accountability pode ser empregado para
atribuir um senso geral e subjetivo de responsabilidade, a manutenção de
valores e padrões profissionais mesmo na ausência de escrutínio externo, uma
tempestividade no atendimento a clientes específicos ou ao público em geral, e
um diálogo democrático e uma participação pública na governança. O autor
diferencia a accountability da transparência, explicando que esta última é um
valor altamente consagrado, mas em uma interpretação estrita consiste em um
meio para alcançar a accountability, e não um fim em si mesmo.
Para Heeks (1998), o surgimento de novos sistemas de informações teve uma
influência importante para a accountability. Quando uma decisão é tomada, a
informação sobre essa decisão e seus resultados precisa fluir para todos
aqueles atingidos por esses atos. Sem tal fluxo de informação e sem o sistema
de informação para carregar esse fluxo, não haverá accountability devido à
inexistência do conhecimento dessa decisão. O autor afirma ser essencial para
uma accountability de resultados, a informação confiável, atualizada e
relevante sobre o desempenho dos serviços e programas.
A quarta categoria refere-se à questão dointeresse público. No contexto das
compras públicas, Neyrinck (2007) afirma que o setor público não apenas regula
o mercado, mas também participa ativamente nele como comprador. Para a autora,
as decisões não deveriam ser pautadas somente pelo critério financeiro, que não
é um fim em si mesmo, mas ir além de considerações puramente econômicas. Na
visão dessa autora, o mais barato não é, necessariamente, o melhor. Ao mesmo
tempo em que exerce seu poder de compra, os órgãos compradores deveriam agregar
valor, gastando o orçamento de maneira a promover questões ambientais, sociais
e humanas. A inserção de critérios sociais pode ser uma ferramenta efetiva para
promover o emprego, proteger condições de trabalho ou auxiliar a sociedade a
promover oportunidades igualitárias. No longo prazo, tal estratégia de compra
pode compensar com a redução de gastos com benefícios sociais.
Neyrinck (2007) afirma que, até recentemente, as compras públicas e o
desenvolvimento sustentável possuíam caminhos paralelos. Atualmente, muitas
administrações públicas vêm adotando uma abordagem integrada a fim de promover
compras públicas sustentáveis. O conceito sustentável implica uma combinação de
crescimento econômico, progresso social e respeito pelo meio ambiente
(NEYRINCK, 2007). Em consonância com esse argumento, documento da OECD afirma
que os desafios de alcançar a sustentabilidade em uma economia global ilustram
as decisões atuais das compras públicas. Em particular, uma das dificuldades
para os governos consiste em monitorar a implementação do contrato pelos
contratados e subcontratados e garantir que as condições ambientais e de
trabalho sejam respeitadas (OECD, 2007).
Apesar disso, como observa Thai (2001), enquanto alguns países impõem políticas
sociais, tais como a reserva de uma proporção das compras públicas para
pequenas empresas ou cujos proprietários são mulheres, a maioria dos órgãos de
governo utiliza o enorme poder de compra para estabilização econômica ou
propósitos desenvolvimentistas, como a preferência por empresas nacionais ou de
determinadas regiões do país. Erridge (2004) argumenta que o potencial das
compras públicas para alcançar objetivos socioeconômicos tem sido restringido
devido a uma maior ênfase em objetivos comerciais orientados pelo mercado,
valorizando-se a economia e a eficiência em detrimento do bem-estar social e do
valor público.
Percebe-se que a noção de interesse público é ainda bastante controversa. Para
Childs (1967), o conceito de interesse público está vinculado à ideia de
opinião pública, ou seja, o interesse público é o que a opinião pública
expressar como tal. Contudo o conceito de interesse público é em geral mais
abstrato e mais complexo do que parece, pois envolve aspectos políticos e
jurídicos. Por exemplo, segundo Graziano (1997), o conceito de interesse
público está relacionado a um espaço que pertence ao mesmo tempo ao Estado e à
sociedade. Essa ideia parece superar a visão de Childs sobre o assunto. No
Brasil, conforme Meirelles (2003), o interesse público é considerado um dos
princípios da administração pública e está relacionado à ideia de interesse
geral e à priorização do público sobre o interesse privado. Nesse sentido, é
importante concordar com Bandeira de Mello (2008) quando ele chama a atenção
para a necessidade de clareza do conceito, que envolve o contraste entre
público e privado ao mesmo tempo em que consiste em ser mais do que um
somatório de interesses individuais.
O quadro_1 sintetiza as categorias de análise levantadas, destacando o conceito
e a importância de cada uma. Elas representam objetivos que vão ao encontro do
valor público, superando a ideia de eficiência, mas não a negando, e alcançando
outros valores considerados relevantes para o cidadão e a sociedade.
A abordagem de compras públicas não orientadas por valores exclusivamente
econômicos ou por questões utilitaristas é uma corrente minoritária na
literatura revisada. O uso do poder de compra do governo tendo como diretrizes
os aspectos de interesse público parece não ser tão óbvio, até mesmo porque
esse conceito requer ainda ser mais bem estudado. Para fins deste trabalho,
pode-se entender a promoção do interesse público nas compras governamentais
como o uso do poder de compra do governo visando ao bem-estar social, à
sustentabilidade, ao incentivo a pequenas e médias empresas, à promoção de
emprego, à proteção de minorias e à inclusão social. Enfim, significa utilizar
as compras públicas tendo em vista a geração de valor público.
4. Estratégia de pesquisa
Com a revisão da literatura foram identificadas quatro categorias de análise
associadas ao conceito de valor público: eficiência, transparência,
accountability e interesse público. A estratégia adotada na pesquisa aproxima-
se do estudo de caso, pois procurou-se encontrar respostas por meio da
triangulação de múltiplas fontes de evidências, conduta recomendada por Yin
(2001).
Para a coleta de dados sobre o sistema de compras do Governo Federal, unidade
de análise em questão, utilizaram-se informações provenientes do extrator de
dados utilizado na Gerência de Informações Estratégicas do MPOG. Para verificar
a eficiência do sistema de compras, foi realizada uma análise da economia
gerada nas compras por pregão eletrônico. As fontes primárias foram obtidas
diretamente a partir de entrevistas com servidores do MPOG.
Decidiu-se por entrevistar indivíduos que conhecessem todas as fases do
processo de compras, além do próprio sistema eletrônico de compras. Justifica-
se a decisão pelo fato de a pesquisa abordar o sistema de compras como um todo.
Assim, tornou-se importante que os entrevistados possuíssem uma visão
abrangente do objeto de pesquisa.
Assim, a escolha dos entrevistados foi realizada privilegiando aqueles
servidores que possuíam uma visão mais ampla do sistema e tinham conhecimento
de todas as fases do processo de compras. O grupo de entrevistados foi
representado por diversas posições hierárquicas, desde servidores no nível de
gerência até no nível mais operacional, especificamente: três servidores do
MPOG da área responsável pelo gerenciamento do sistema eletrônico de compras;
um servidor do MPOG de área relacionada ao sistema de compras, detentor de
conhecimento da inter-relação entre esse sistema e os demais sistemas do
Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG); e cinco
servidores públicos, no nível de usuário do sistema, que possuem conhecimento
razoável de todas as fases do processo de compras.
O questionário usado nas entrevistas foi elaborado utilizando-se os conceitos
do instrumento de avaliação de organizações desenvolvido pelo Núcleo
Interdisciplinar de Estudos em Ges-
tão da Produção e Custos (NIEPC), vinculado ao programa de pós-graduação em
administração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e registrado no
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O NIEPC
desenvolveu essa metodologia de análise utilizando a concepção de pensamento
sistêmico e complexo e aplicou-a originalmente em ambientes de manufatura
(SCHULZ, 2008).
Assim, o motivo para utilização dessa metodologia consiste na intenção de
analisar o sistema de compras não apenas sob uma perspectiva isolada das quatro
categorias levantadas, mas também, sob uma ótica integrada. Buscou-se ir além
do paradigma reducionista que divide o todo em partes e as estuda em separado.
Por sua vez, entende-se que o objeto de estudo em questão possui significativas
diferenças e peculiaridades, como demonstrado na revisão da literatura sobre a
administração pública. Desse modo, a ferramenta do NIEPC aplicada na pesquisa
considera essas especificidades e utiliza as categorias de análise pertinentes
ao tema. No entanto, a concepção original do NIEPC é mantida, ou seja, a
análise sob a lógica do pensamento sistêmico e complexo.
Para isso, foram desenvolvidos seis quadros com três assertivas cada, as quais
contêm cenários pessimistas e otimistas. As assertivas foram elaboradas inter-
relacionando-se os conceitos das categorias de análise: por exemplo, os
conceitos de eficiência, quando relacionados aos conceitos de transparência,
geraram assertivas com foco na base de dados e na comunicação entre compradores
e fornecedores. Já os cenários foram elaborados a partir das assertivas e
orientaram o entrevistado a posicionar-se dentro de uma escala tipo likert. Ao
todo são 18 questões baseadas nas inter-relações das categorias de análise
apresentadas anteriormente no quadro_1. Essas categorias foram combinadas em
pares. Cada assertiva foi respondida em escala likert, em que a nota mais baixa
(um) equivale a uma relação fraca e a nota mais alta (cinco) denota uma relação
forte entre as duas categorias de análise. A análise foi conduzida por meio da
comparação da percepção dos entrevistados com evidências encontradas em
documentos e em dados secundários, em relação às assertivas elaboradas a partir
da teoria. Também foram feitas comparações entre os achados com a ajuda dos
graus atribuídos pelos entrevistados, o que permitiu encontrar discrepâncias
entre as categorias.
5. Resultados
Apresentam-se a seguir os principais resultados da pesquisa, as ideias e
possibilidades de melhoria do sistema de compras públicas. Destaca-se que cada
quadro apresenta três assertivas, cada uma com dois cenários (pessimista e
otimista). Primeiramente, é apresentado, quadro a quadro, o grau médio recebido
pelas assertivas, dentro dos respectivos cenários. As descobertas evidenciadas
são detalhadas no texto, bem como sugestões de melhorias que emergiram das
entrevistas com o pessoal do MPOG. Os entrevistados avaliaram, de acordo com
sua percepção, e assinalaram um grau que melhor representasse a situação real
entre as categorias de análise.
5.1. Eficiência e transparência
No quadro_2, apresenta-se a relação entre as categorias eficiência e
transparência. No questionário aplicado aos servidores do MPOG, constatou-se
que essas duas categorias possuem uma boa integração. A média de cada uma das
três assertivas indica tal fato. Uma possível explicação pode ser o alto grau
de relação entre as duas categorias. O desenvolvimento da transparência nas
compras públicas, por exemplo, leva naturalmente a maior eficiência do sistema.
Esse fato é captado pela segunda e terceira assertivas do questionário. Na
média, os entrevistados deram nota 4 para a terceira assertiva, que afirma que
a maior visibilidade dos avisos de licitação ocasionou um aumento da
concorrência entre os fornecedores. Antes do sistema eletrônico, as licitações
eram divulgadas apenas em meios impressos, no Diário Oficial da União. O
licitante interessado deveria, então, conseguir uma cópia do diário a fim de
saber quais licitações iriam ocorrer. Atualmente, a obrigatoriedade de
registrar a licitação no sistema gera automaticamente um aviso de licitação.
Isso fez com que todas as compras dos órgãos usuários do sistema sejam
divulgadas na Internet. É provável que esse fato tenha contribuído para um
aumento na concorrência entre os fornecedores.
A segunda assertiva, por sua vez, explora a questão da comunicação entre o
governo e os fornecedores. Na percepção dos entrevistados, a melhor divulgação
dos atos administrativos, decorrente das funcionalidades da tecnologia da
informação, facilitou o contato entre esses dois agentes. Os atos
administrativos, nesse caso, referem-se a todos os passos envolvidos na
licitação, tais como: a divulgação da licitação e do edital, a sessão pública,
a adjudicação, a homologação e os recursos. Além disso, o sistema possibilita
aos fornecedores realizarem consultas diversas, alteração de dados cadastrais,
envio de propostas de preços, envio de planilha da proposta atualizada etc.
Tudo isso se configura como uma melhora na comunicação entre o governo e os
fornecedores, viabilizada pelo sistema eletrônico. Desse modo, verifica-se que
a maior transparência promovida pelo sistema tem sido revertida em prol da
eficiência. O inverso, no entanto, poderia não ser verdade. Isto é, poder-se-ia
ter maior eficiência na comunicação de dados devido à tecnologia da informação,
mas o sistema não disponibilizar a informação de maneira transparente. No caso
em questão isso parece não ocorrer. O uso do potencial da tecnologia da
informação para a comunicação de dados tem sido revertido em maior
transparência ao processo de compras. A primeira assertiva coloca justamente
esse ponto e a média 4 dos entrevistados confirma essa expectativa.
Assim, observa-se que as duas categorias de análise possuem alta integração e
influenciam-se mutuamente. Os benefícios do desenvolvimento de uma categoria
têm sido revertidos em prol da outra, e vice-versa.
5.2. Eficiência e accountability
Apresenta-se no quadro_3 a relação entre as categorias eficiência e
accountability. Analisando-se essas categorias, percebe-se que, apesar de uma
maior eficiência possibilitar um melhor controle, isso não é totalmente
atingido. O efeito da eficiência sobre a accountability está restrito às
questões mais simples, tais como acessar instantaneamente a base de dados e
obter informações atualizadas sobre responsáveis pelos processos de compras.
Esse é o máximo de informação que o sistema oferece em relação aos processos de
accountability. Em certo sentido, esse nível mais básico já pode ser
considerado um avanço comparando-se com a situação anterior ao sistema
eletrônico.
A primeira assertiva desse grupo tenta captar essa percepção dos entrevistados
ao afirmar que o acesso completo e instantâneo à base de dados tem auxiliado no
controle dos processos licitatórios. A média 3,75 mostra uma concordância com a
assertiva, já denotando uma leve melhora na accountability decorrente de uma
maior eficiência do sistema. No entanto, ainda não se tem dentro do sistema um
mecanismo automático que identifique possíveis operações suspeitas de
irregularidades. A partir de critérios, como valor extremamente alto em relação
a determinado objeto ou uso de códigos de materiais/serviços em discordância
com a descrição do objeto, seria possível criar regras de filtros das operações
suspeitas. Isso seria útil para bloquear essas transações ou, pelo menos,
listar essas compras para posterior avaliação pelos órgãos de controle.
A segunda assertiva aborda justamente esse aspecto e sua nota média, 1,75,
identifica um caso de relação fraca entre as categorias eficiência e
accountability. Dado que essa automatização no sistema é factível, considera-se
que se tem aqui uma oportunidade a ser explorada no desenvolvimento do sistema.
Outro ponto a ser desenvolvido no sistema refere-se a um mecanismo de mineração
de dados (datamining) que possibilitaria varrer toda a base de dados em busca
de compras irregulares. Um mecanismo de datamining consiste em um software que
tenta extrair padrões e modelos de um banco de dados. É comumente utilizado,
dentre outras atividades, para a detecção de fraudes. Isso aumentaria o
controle sobre as compras públicas, uma vez que a análise não seria restrita a
apenas uma amostra, como é feito normalmente.
A terceira assertiva, que tenta capturar essa ideia, mostra que esse é um ponto
a ser explorado dentro do sistema. Sua nota média, 2,75, indica uma provável
subutilização das potencialidades da tecnologia da informação que, com o avanço
na capacidade de processamento de hardware e software, possibilita realizar a
auditoria em toda a base de dados. Assim, analisando-se as categorias
eficiência e accountability,percebe-se que o sistema auxiliou em um estágio
inicial de controle a partir de mecanismos básicos. No entanto, dado o
potencial da tecnologia da informação disponível, soluções mais sofisticadas
poderiam ser implantadas.
5.3. Eficiência e interesse público
No quadro_4 apresenta-se a relação entre as categorias eficiência e interesse
público, em que se nota que a melhora na comunicação e na acessibilidade do
sistema ficou concentrada nas iniciativas para promover a participação de
pequenas e médias empresas nas compras governamentais. Desse modo, houve um
impacto conjunto da legislação, que impôs critérios de preferência por esses
tipos de empresas, e da tecnologia da informação, que diminuiu os custos de
transação para participação nos processos licitatórios. Assim, pode-se dizer
que, nesse caso específico, a eficiência do sistema eletrônico de compras
conseguiu ser revertida para promover uma questão de interesse público.
O sistema de compras, por sua vez, guarda uma enorme base de dados que se
referem, principalmente, ao comprador, ao objeto licitado, à data e à
localização da compra. Esses dados poderiam ser trabalhados a fim de obter-se
informações úteis para a formação de estratégias visando a ações de interesse
público. Poder-se-ia citar, por exemplo, a identificação dos órgãos federais
que mais compram determinados bens ou serviços ou agrupar essa demanda e
direcioná-la para fornecedores de determinadas regiões menos desenvolvidas. A
ideia seria utilizar o poder de compra do Governo Federal para promover
localidades mais necessitadas, mesmo que isso significasse maior gasto
orçamentário. De acordo com os entrevistados, porém, os dados presentes no
sistema não têm sido utilizados para criar políticas públicas nesse sentido.
A análise conjunta das categorias eficiência e interesse público mostram que os
benefícios da primeira categoria influenciam a segunda apenas na questão das
pequenas e microempresas. A eficiência introduzida pelo uso da tecnologia da
informação não é capaz de criar, por si só, benefícios positivos em todas as
questões de interesse público. Obviamente, algumas externalidades positivas
podem estender-se, por exemplo, a regiões mais distantes sem a necessidade de
uma intervenção ou ações adicionais do governo. Esse é o caso da provável
economia nas compras públicas em regiões menos desenvolvidas e/ou mais
distantes dos grandes centros urbanos, após a utilização do sistema eletrônico.
Porém, o uso do poder de compra para estabelecer estratégias de fomento a
determinados setores da economia só se realiza a partir de ações de gestão
governamental. Em outras palavras, é necessária a ação humana para extrair o
potencial da tecnologia da informação e direcioná-la para pontos para os quais
o mercado naturalmente não direcionaria. Percebe-se aqui um ponto passível de
ser explorado com as potencialidades do sistema eletrônico de compras.
5.4. Transparência e accountability
No quadro_5, observam-se os resultados relativos às categorias transparência e
accountability. Na verdade, a primeira é um prerrequisito para alcançar a
segunda categoria. Assim, as três assertivas desse grupo tentam auferir a
influência da primeira categoria sobre a segunda. A maior divulgação dos atos
da administração aumentou o controle sobre suspeitas de fraudes nas compras
públicas. O controle com o sistema eletrônico foi sensivelmente melhorado, pois
os atos da administração ficam expostos à apreciação da sociedade. Contribui
para isso a possibilidade de identificar os órgãos e servidores responsáveis
pela despesa, além da quantidade e valor da compra realizada pelo pregoeiro e
autorizada pelo ordenador de despesa. As médias elevadas obtidas nas duas
primeiras assertivas confirmam esses fatos.
Contudo, os dados presentes no sistema ainda são apresentados de maneira bruta,
isto é, não são organizados e estruturados de forma a fornecer informações para
a tomada de decisão. Os dados estão expostos na Internet de acordo com a
estrutura original do banco de dados. As consultas disponíveis são
predeterminadas, isto é, são obtidas por meio de parâmetros fixos que não podem
ser alterados. Por exemplo, é possível ver o resultado individual das
licitações de determinado órgão. No entanto, não é possível realizar uma
consulta de todas as compras desse órgão de determinado material ou fornecedor.
Assim, considera-se que a transparência é limitada, ou seja, a informação está
disponível, mas de modo que impossibilita ou dificulta a tomada de decisão de
um observador. Contudo, de acordo com explicações de um dos entrevistados, há
um projeto em andamento que visa preencher essa lacuna. Um site disponibilizará
consultas pré-formatadas sobre compras públicas, possibilitando ao usuário
escolher seus parâmetros.
Outro problema que afeta as duas categorias consiste em não se conseguir
comparar e avaliar se determinada licitação está fora dos padrões, com valores
ou objetos suspeitos. Os resultados das licitações mostram apenas os valores do
objeto em questão. Não há parâmetros para avaliar se tais valores licitados
estão fora dos padrões aceitáveis. Uma forma de avaliar isso seria
disponibilizar os preços médios unitários de licitações anteriores ou preços de
mercado e colocá-los como referência para comparar com o valor da licitação em
questão. Diante do exposto, considera-se que a transparência proporcionada pelo
sistema cumpre seu papel ao mostrar as informações básicas das compras
públicas: órgão comprador, servidores responsáveis pela licitação, material ou
serviço adquirido, valor e quantidade comprados. Apenas com essas informações
já é possível acreditar que o nível de accountability tenha melhorado com a
introdução do sistema eletrônico. Entretanto, dadas as oportunidades oferecidas
por essa ferramenta informatizada, acredita-se que ainda haja vários pontos a
serem melhorados na transparência e que podem influenciar diretamente a
accountability.
5.5. Transparência e interesse público
Apresentam-se, no quadro_6, as categorias transparência e interesse público.
Buscou-se aqui verificar como a transparência efetivada pelo sistema consegue
beneficiar questões de interesse público. Como demonstrado anteriormente, uma
das grandes vantagens do sistema eletrônico de compras reside na transparência
que pode ser proporcionada aos integrantes do sistema. Esse fato é
especialmente importante para aquelas empresas com menos recursos e/ou de menor
porte. No caso em questão, uma das maiores beneficiadas por essa característica
do sistema foram pequenas e médias empresas. Além de elas acompanharem as
licitações em andamento, um mecanismo dentro do sistema dispara automaticamente
um aviso sempre que ocorrerem licitações de interesse desses fornecedores. Isso
é possível, pois no momento do cadastro os fornecedores informam os materiais
ou serviços que fornecem. Assim, nas licitações desse tipo de material ou
serviço, todos os fornecedores relacionados serão avisados.
Verificou-se, também, a transparência do sistema para aqueles que não possuem
um conhecimento prévio do assunto. Uma vez que o sistema está disponível na
Internet, torna-se necessário que a linguagem utilizada seja acessível a todos
os cidadãos. Conforme apontado pela revisão teórica, a mera disponibilização da
informação na Internet não significa, necessariamente, transparência. A
informação pode ser tão inacessível ao usuário comum que a transparência, nesse
caso, seria irreal. Existem termos específicos no sistema que deveriam ser
acompanhados de uma breve explicação. Para realizar uma simples consulta, é
preciso entender o significado de diversos conceitos não conhecidos por um
usuário leigo.
Outro ponto importante para os usuários do sistema é em relação à transparência
de sua utilização e funcionamento. Dado que o sistema contém diversas
funcionalidades e mecanismos próprios, torna-se fundamental ao usuário do
sistema receber informação ou treinamento necessário para operá-lo. Isso pode
ser mais complicado para aqueles que estão distantes dos centros urbanos onde
são ministrados os cursos e treinamentos. A saída encontrada para atender a
toda essa demanda em escala nacional foi disponibilizar manuais no site
Comprasnet. Acredita-se que os manuais sejam úteis para obtenção de informações
básicas, mas talvez não consigam preencher todas as necessidades dos usuários.
Esse canal de comunicação entre o órgão gerenciador do sistema e os usuários
poderia ser melhorado por outras ferramentas mais interativas como videoaula ou
tutoriais.
Percebe-se que o conceito de transparência é amplo e atinge desde os cidadãos
até os servidores que utilizam o sistema de forma profissional. Em ambos os
casos, a transparência não pode ser resumida apenas à disponibilização das
informações. É preciso que haja entendimento e compreensão por parte daqueles
que irão utilizar o sistema. A análise conjunta das categorias indica que esse
conceito mais amplo de transparência ainda não é totalmente aplicado na
operacionalização do sistema. Uma das grandes vantagens do sistema eletrônico
de compras reside na transparência que pode ser proporcionada aos integrantes
do sistema. Esse fato é especialmente importante para aquelas empresas com
menos recursos e/ou de menor porte. No caso em questão, algumas das maiores
beneficiadas por essa característica do sistema foram pequenas e médias
empresas.
5.6. Accountability e interesse público
No quadro_7, apresentam-se as categorias accountability e interesse público. Em
linhas gerais, tentou-se verificar se o sistema eletrônico de compras oferece
mecanismos para a sociedade realizar a accountability. Conforme apontado pela
literatura, quando uma decisão é tomada, a informação sobre ela precisa fluir
para todos aqueles atingidos por esses atos. Sem o carregamento desse fluxo de
informação, não haverá accountability devido à inexistência do conhecimento
dessa decisão. Nesse quesito, o sistema eletrônico trouxe alguns avanços. Como
demonstrado pela primeira assertiva do quadro_7, as decisões sobre as compras
dos órgãos são informadas por meio das atas virtuais, que permitem aos cidadãos
verificar a legalidade da licitação. Como nesse caso a informação não precisa
ser trabalhada e é reproduzida em seu formato original (a ata da licitação), o
sistema cumpre bem a tarefa e isso é comprovado pela nota média elevada dos
entrevistados.
Outro fluxo de informação importante é o da informação detalhada por órgão,
materiais adquiridos, serviços contratados e recursos gastos. A terceira
assertiva tenta captar esse item no sistema e parece que a informação
disponibilizada também auxilia no processo de accountability. A ressalva é a
impossibilidade de o cidadão parametrizar suas consultas, escolhendo os
critérios e detalhando a informação conforme suas necessidades. Em outras
palavras, o cidadão fica restrito a uma consulta pré-formatada do sistema.
A segunda assertiva tenta verificar o caminho inverso do fluxo de informação
necessário para que o processo de accountabilityaconteça. Do mesmo modo que
deve existir um canal de comunicação entre os órgãos governamentais e a
sociedade, o inverso também é imprescindível. No entanto, não há um canal
disponível no sistema que permita ao cidadão reportar aos órgãos responsáveis
as compras suspeitas de irregularidades. Esse fato vai de encontro à literatura
revisada, que sugere uma fluidez de informações entre todos os interessados
(Heeks, 1998; Meijer, 2009), denotando que, apesar de a tecnologia da
informação possibilitar uma comunicação mais interativa, ela é apenas utilizada
de modo unidirecional. Uma das sugestões dadas nas entrevistas refere-se à
avaliação dos fornecedores. O sistema poderia permitir que os órgãos
compradores relatassem sua experiência no cumprimento do contrato pelos
fornecedores e avaliassem as empresas no período pós-compra. Dessa forma, isso
serviria como um alerta para a prestação do serviço pelo contratado, além de
formar uma base com informações sobre os bons e maus fornecedores. Esse tipo de
informação serviria de orientação para as compras futuras do próprio órgão e de
outros órgãos da administração pública. Acredita-se que a avaliação do
fornecedor seja uma forma de accountability, pois enquadra-se no conceito
utilizado neste trabalho de responsabilidade de uma pessoa ou organização
perante terceiros.
Em resumo, a análise conjunta das duas categorias mostra que um dos pontos
cruciais consiste no carregamento do fluxo de informação sobre as compras
públicas. Esse fluxo precisa acontecer nos dois sentidos entre os participantes
da relação governo-sociedade. Dada a característica interativa da Internet, que
facilita a comunicação dessa relação, percebe-se que há uma subutilização do
potencial oferecido por esse meio de comunicação.
5.7. Discussão
A categoria eficiência é o aspecto mais desenvolvido no sistema eletrônico de
compras do Governo Federal. Parte dessa explicação deve-se ao fato de ter sido
esse um dos motivos principais para sua implantação dentro do setor público.
Vários aspectos identificados no sistema confirmam o grau de desenvolvimento da
categoria eficiência no sistema de compras. De modo geral, o indicador que
melhor representa a eficiência é a economia gerada com o uso do pregão
eletrônico. O cálculo realizado consiste na diferença entre o valor que seria
pago com o preço de referência e o valor homologado com o uso do pregão
eletrônico. Em 2008, por exemplo, essa diferença representou uma economia de
24% sobre o valor de referência. Isso significou uma economia de mais de R$ 6
bilhões nas compras realizadas pelos órgãos federais comprovando, assim, o
enorme potencial do uso da tecnologia da informação nas compras públicas.
Avaliando-se a categoria transparência no sistema de compras, pode-se notar um
grau adequado na publicidade dos atos administrativos. Tomando a modalidade
pregão eletrônico, por exemplo, todas as fases a partir do aviso da licitação
são realizadas via sistema eletrônico e divulgadas no site Comprasnet. No
entanto, essa transparência na fase licitatória não é acompanhada no resto do
ciclo de compras. De acordo com a literatura sobre o tema, os esforços em
relação à transparência recaem geralmente sobre o processo licitatório por ser
essa a fase mais visível do processo de compras. Contudo, existem áreas
cinzentas menos sujeitas a requisitos de transparência e, portanto,
potencialmente vulneráveis à corrupção. Dentre essas áreas cinzentas, incluem-
se as fases anteriores e posteriores à licitação, da avaliação de necessidades
até o contrato e o pagamento.
Em relação à categoria accountability, nota-se que os controles no sistema
eletrônico se limitam à identificação dos responsáveis pela licitação. De certa
maneira, a accountability estabelece a responsabilidade de uma pessoa ou
organização perante terceiros. No entanto, não há aqueles mecanismos citados
pela literatura que propiciem o ciclo completo da accountability -
monitoramento, comparação e controle. Além disso, outro ponto observado é o
problema da unidirecionalidade da informação apesar de as tecnologias e de a
Internet já permitirem a fluidez informacional em vários sentidos. Como bem
apontado pela literatura, essa característica unidirecional parece estar em
contradição com as oportunidades oferecidas pela Internet. A interatividade,
característica da Internet, possibilita a comunicação nos dois sentidos,
criando um canal de comunicação entre os cidadãos fiscalizadores e os
responsáveis por receberem as denúncias.
Por fim, na legislação de compras públicas, foi encontrada apenas uma norma que
pode ser considerada como de promoção da categoria interesse público. Essa
norma estabelece diretrizes gerais relativas ao tratamento diferenciado e
favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte. Em
comparação com as outras três categorias, essa é a menos explorada no sistema
de compras. Isso é comprovado pela única iniciativa encontrada na legislação
que visa utilizar o poder de compra do governo para promover o interesse
público. De modo semelhante, tal escassez referente ao tema é encontrada na
literatura sobre compras públicas.
A análise global das categorias indica uma característica comum a quase todos
os casos. Percebe-se que os recursos da tecnologia da informação poderiam ser
mais bem aproveitados. Como já esperado, a categoria eficiência é a que melhor
utiliza esse potencial da tecnologia da informação. Isso se deve ao foco no
desenvolvimento do sistema ser dado a essa categoria e, em especial, à
expressiva economia de recursos obtida nas licitações. A categoria
transparência é bem desenvolvida dentro do sistema, considerando-se a
disponibilização das informações. Contudo, é importante ressaltar o conceito
mais amplo de transparência trazido pela literatura. A transparência não se
resume apenas em disponibilizar as informações na Internet. É preciso que essa
informação seja inteligível àqueles que irão utilizar o sistema. Analisando-se
o sistema eletrônico de compras como um todo, percebe-se que esse conceito
ainda não é totalmente aplicado.
6. Considerações finais
No trabalho aqui relatado, teve-se por objetivo analisar o sistema de compras
públicas do Governo Federal a partir de uma perspectiva de criação de valor
público. Para tanto, a pesquisa foi conduzida por meio de entrevistas, análise
de documentos e dados secundários. Os principais resultados encontrados vão ao
encontro da teoria, evidenciando a ênfase do sistema no objetivo eficiência em
relação aos outros objetivos. Uma das iniciativas mais importantes do governo
eletrônico brasileiro está nas compras dos órgãos federais. São inegáveis os
benefícios advindos da utilização dos recursos da tecnologia da informação nas
compras públicas. O benefício mais visível e perseguido dentro do governo está
na economia de recursos nas licitações.
O ambiente no qual o sistema de compras públicas está inserido, no entanto,
apresenta algumas peculiaridades. O setor público, antes de tudo, precisa gerar
valor público. Tais valores não se resumem simplesmente à economia de recursos
buscada pela eficiência, apesar de ela mesma também ser um valor público. No
entanto, muitos valores públicos não podem ser mensurados economicamente.
Os resultados mostraram que a ênfase na eficiência pode ocultar outros
objetivos, sobretudo, o interesse público. Além disso, a análise conjunta das
categorias indica uma característica comum a quase todos os casos. Percebe-se
que os recursos da tecnologia da informação não são aproveitados totalmente.
Dado seu surgimento recente e a demanda por melhorias, o sistema encontra-se
ainda em fase de desenvolvimento. Acredita-se que, a partir de uma visão mais
completa do todo, este estudo tenha indicado oportunidades de melhoria. Os
resultados alcançados mostraram que analisar as categorias e suas inter-
relações pode trazer à luz insights para a melhoria do sistema. A análise
conjunta das categorias indica que os recursos da tecnologia da informação não
são aproveitados totalmente. Além disso, a visão sistêmico-complexa do sistema
eletrônico de compras mostra um desenvolvimento na categoria eficiência muito
maior do que nas demais. Assim, outros benefícios podem ser alcançados,
tornando o sistema mais desenvolvido em todos os seus aspectos.
A accountability, por sua vez,é subdesenvolvida dentro do sistema eletrônico de
compras. Um dos motivos é não explorar todos os recursos da tecnologia da
informação. No entanto, a accountabilitydepende fortemente de outros
componentes, como a gestão, os processos e as pessoas. A tecnologia da
informação é uma peça importante que pode potencializar os mecanismos de
controle,mas não pode criar, por si só, a accountability, pois não possui tal
propriedade intrínseca.
De modo semelhante, a eficiência natural introduzida pelo uso da tecnologia da
informação não é capaz de criar, por si só, benefícios positivos em todas as
questões de interesse público. É necessária a ação humana para extrair o
potencial da tecnologia da informação e direcioná-la para pontos aos quais o
mercado naturalmente não direcionaria. Percebe-se que, atualmente, as ações de
interesse público estão concentradas exclusivamente no incentivo a pequenas e
microempresas.
Outro ponto que merece destaque foi a aplicação das categorias como forma de
diagnóstico organizacional, por meio dos quadros que contêm as assertivas com
inter-relações das categorias e cenários pessimista e otimista. Esse modo de
aplicação, baseado em uma perspectiva sistêmico-complexa, procurou aproximar-se
mais da realidade, sendo também facilmente entendido pelos respondentes ao
mesmo tempo em que tornou oportuna a reflexão sobre o sistema e a geração de
ideias de melhorias para seu aprimoramento. Isso significa dizer que poderá vir
a ser empregada como ferramenta para gestão do sistema de compras.
Algumas limitações do trabalho valem ser destacadas, como o fato de ter
coletado dados em corte transversal no tempo, limitando as análises ao período
do estudo. Também, o estudo focou apenas o sistema do Governo Federal, outros
sistemas de compras similares em uso em outros países poderiam trazer novas
contribuições. A intenção da pesquisa foi compreender um sistema de compras
públicas, o que impede a generalização das conclusões para outros sistemas.
Sugere-se que novas pesquisas que utilizem a lógica sistêmico-complexa sejam
realizadas, as categorias de análise podem ser ampliadas, e um acompanhamento
da evolução do sistema de compras do Governo Federal ao longo do tempo poderia
trazer novas contribuições. Um estudo comparativo com outros sistemas de
compras também poderia ser realizado utilizando essas categorias de análise. A
compreensão da expressão valor público - não só nos sistemas de compras, mas
por toda a administração pública - pode permitir que a gestão alcance um novo
paradigma, mais vinculado ao cidadão e à sociedade.
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Campus Universitário Trindade
88040-900 - Florianópolis - SC
E-mail: ronaldoinamine@yahoo.com
Recebido em 01/dezembro/2010
Aprovado em 28/setembro/2011