Von Thünen e o abastecimento madeireiro de centros urbanos pré-industriais
Introdução
Sociedades pré-industriais podem ser definidas como estruturas sociais
razoavelmente diferenciadas, dotadas de aparato estatal, ocupando territórios
escassamente povoados e pouco ou nada mecanizados (o que significa
deslocamentos lentos e caros), cuja base de sustentação econômica era a
agricultura. Principalmente em razão da matriz energética pré-fossilista e da
incipiente especialização da produção, os empreendimentos agrícolas eram
caracterizados por baixos níveis de produtividade. Nesse contexto
socioeconômico e ecológico, as cidades eram tipicamente pequenas e pouco
numerosas. A baixa eficiência da agricultura e o alto custo do transporte
inviabilizavam um aprovisionamento em larga escala, fazendo com que as
populações urbanas permanecessem relativamente diminutas (CRONE, 1989).1
Responsável pela primeira sistematização conceitual a respeito da cidade pré-
industrial, Sjoberg (1960) interessou-se essencialmente pela estrutura interna
das comunidades urbanas, em seus aspectos sociais, econômicos, políticos e
culturais. Salvo observações esparsas, seu estudo não contempla as relações
socioecológicas estabelecidas pela cidade pré-industrial com o espaço regional
mais amplo no qual se inseria. Embora critiquem vários aspectos do modelo de
Sjoberg, os historiadores sociais têm basicamente as mesmas preocupações, como
mostra o trabalho de Burke (1975). Eles concentram sua atenção em temas
"intramuros" e falham em considerar a interconexão das cidades em redes de
suprimento material e disposição de rejeitos (RADKAU apud KNOLL, 2006, p. 80).
Mais recentemente, os historiadores ambientais vêm propondo uma nova e
estimulante leitura dessas dinâmicas urbanas do passado. Para Cronon (1991, p.
19), em seu clássico Nature's metropolis, "desconsiderar as relações da cidade
com a natureza e o campo é na verdade desconsiderar muito do que a cidade é".
Hughes (1998, p. 105) atenta para o fato de que a cidade não é somente "uma
série de relações sociais humanas e arranjos econômicos". A cidade é parte dos
ecossistemas dentro dos quais existe e funciona. Neste sentido, a cidade pré-
industrial pode ser concebida como "relação humana estruturada com o ambiente
natural" (HUGHES, 1998, p. 105).
Toda atividade urbana requer algum recurso natural das áreas rurais adjacentes,
ensejando uma situação de estreita interação espacial. Melosi (2009) clama pela
inserção da cidade no mundo natural por meio de um nexo conceitual que una o
processo de construção das cidades às dinâmicas ecológicas, tanto dentro do
próprio espaço urbano quanto no âmbito das relações com a hinterlândia. A
história ambiental norte-americana e a europeia têm se dedicado cada vez mais
ao estudo dessas "hinterlândias de recursos" (resource hinterlands), isto é, as
áreas que "suprem as cidades com os alimentos, água, combustível e materiais de
construção essenciais através de redes de comércio" (BRANNSTROM, 2005, p. 396).
O principal recurso não-alimentício necessário ao metabolismo das cidades pré-
industriais era a madeira. Não foi por acaso que o sociólogo alemão Werner
Sombart designou o período pré-industrial de "Era da Madeira" (SOMBART apud
WARDE, 2006, p. 6). A madeira constituía o arcabouço fundamental da vida
cotidiana. Das quatro necessidades básicas da vida humana ' comida, vestuário,
aquecimento e moradia ', a satisfação das duas últimas requeriam direta e
indispensavelmente a madeira, e muitos itens da dieta dos povos pré-industriais
não poderiam existir como tais sem o cozimento feito por meio da queima de
biomassa lenhosa (WARDE, 2006, p. 6). A madeira não era somente o aço e o
alumínio, o plástico e a fibra de vidro, mas também o petróleo, o carvão e o
gás dos humanos pré-industriais (MILLER, 2000, p. 4).
Estruturalmente, a madeira não tinha competidores, já que era a única
substância de ocorrência natural que exibia força de tensão. Quase toda a
tecnosfera humana era construída com madeira. Referindo-se à Europa entre 1500
e 1750, Williams (2003, p. 179-180) sintetiza:
As florestas forneciam a principal matéria-prima para os edifícios,
moinhos, teares, móveis, arados, carroças e rodas; a madeira era
usada até mesmo nas rodas de engrenagem de relógios. Todas as
ferramentas e instrumentos eram de madeira, exceto aqueles que
precisavam de fio cortante, que eram de ferro. [ ] Era uma 'idade da
madeira', e então temos que encarar como um dado o uso ubíquo e
universal da madeira para construções, ferramentas e implementos
[...].
A importância da madeira era tão grande nesse mundo pré-industrial que, na
visão de um observador da cidade do Rio de Janeiro, no final do século XVIII,
eram simplesmente indispensáveis "os cortes das madeiras para a construção das
fábricas, e construções das propriedades desta cidade [do Rio de Janeiro], pelo
contrário cessava tudo" (CABRAL, 2007a, p. 92-3).
Em contraste com suas congêneres industriais ' cujo sistema de produção baseia-
se no uso de fontes inanimadas de energia para multiplicar o esforço humano ',
as cidades pré-industriais dependiam de fontes animadas (humanas, animais ou
vegetais) aplicadas direta ou indiretamente sobre o objeto do trabalho
(SJOBERG, 1975, p. 17). A queima de biomassa, em combinações histórica e
geograficamente particulares com a força hidráulica, a tração animal e a
escravidão, constituía o sistema energético característico das sociedades pré-
industriais.
Ainda que sobre bases documentais não divulgadas e abarcando uma enorme nesga
de espaço e tempo (Eurásia, c.1500-c.1800), Blainey (2008, p. 232) alega que
uma cidade de 30 mil habitantes precisava de 600 a mil carroças de lenha por
semana. Um observador relatou que, em 1888, 500 carroções de lenha eram
vendidos diariamente na cidade do Rio de Janeiro, sugerindo (a uma tonelada e
meia por carroção) mais de 270 mil toneladas por ano (DEAN, 1996, p. 211). Os
níveis de demanda per capita também eram muito expressivos: estimou-se, por
exemplo, para a cidade de Londres c.1600, um consumo de 1,76 tonelada por
habitante anualmente (GALLOWAY et al., 1996, p. 455). Para o conjunto da Europa
setentrional dos séculos XVI ao XVIII, Bairoch (1985, p. 35-6) estipulou um
consumo per capita da ordem de 1,6 a 2,3 toneladas. Supondo-se uma produção
anual de lenha de 20 a 25 toneladas por km2, uma cidade de 100 mil habitantes
precisaria de uma área de 10 mil km2 de florestas para aquecer seus habitantes.
Em razão da baixa relação valor/volume dos produtos madeireiros, a
espacialidade da economia florestal pré-industrial era largamente determinada
pelo custo de transporte. Desse modo, um arcabouço teórico fundamental para a
compreensão do abastecimento madeireiro dos centros urbanos é o clássico modelo
de Thünen sobre o efeito da distância do mercado sobre a estrutura da produção
agrária (HALL, 1966).
Ao aplicar o modelo thüniano em paisagens do passado, os pesquisadores
privilegiam a teoria geral da localização dos cultivos (ou simplesmente teoria
dos cultivos), que postula a existência de anéis concêntricos à cidade
aglutinadores de um determinado tipo de produção agrícola. Outra forma de se
encarar a questão é pela teoria da intensidade, no âmbito da qual não são
focalizados os produtos, mas sim o nível de investimento de fatores de produção
(na formulação original de Thünen, notadamente o trabalho), considerando apenas
um tipo de produto.
Procurando uma confluência dessas duas abordagens, formula-se, neste artigo,
uma hipótese teórica para situações em que há associação funcional, dentro de
uma mesma unidade de gestão, entre agricultura e exploração madeireira, e em
que esta é subsidiária daquela. Neste caso, a atividade florestal não existe
como uso do solo autônomo na economia rural e, portanto, não pode ser
considerada um anel ou uma zona. É estudada teoricamente a relação entre
distância do mercado urbano, intensidade da agricultura e "intensidade" da
exploração madeireira. Para isso, procurou-se combinar a teoria da intensidade
thüniana com uma teoria da intensificação agrícola que dê conta da dinâmica de
sucessão florestal e, consequentemente, da disponibilidade de recursos
florestais no sistema. Esta teoria da intensificação é encontrada no clássico
trabalho de Boserup (1987) sobre crescimento demográfico e desenvolvimento
agrícola.
O artigo se desenvolve ao longo de quatro seções: a primeira apresenta
sucintamente a teoria de Thünen, diferenciando a perspectiva dos cultivos e a
perspectiva da intensidade; a segunda seção discute os achados das pesquisas
históricas que se valeram do pensamento de Thünen; a terceira é dedicada ao
desenvolvimento de um esquema conceitual que articula frequência de cultivo e
intensidade da exploração madeireira; e a quarta aplica esse esquema
interpretativo ao caso do Rio de Janeiro, no final da era colonial.
O Estado Isolado e a questão do abastecimento madeireiro
O Estado isolado em sua relação com a agricultura e a economia nacional, do
agricultor prático e economista prussiano Johann Heinrich von Thünen, é o
trabalho inaugural na história da teoria dos lugares centrais. Publicado pela
primeira vez em 1826, trata-se do primeiro estudo que procura explicar, de uma
perspectiva nomotético-racionalista, a ordem espacial da produção agrícola.2
Como se sabe, Thünen utiliza, como variável explicativa, a distância em relação
aos mercados urbanos. Para isolar essa variável, ele precisou assumir algumas
condições em seu experimento mental: 1) tudo se passa em uma planície
biofisicamente uniforme (qualidade dos solos, tipo de relevo, etc.), ao redor
da qual se ergue uma densa floresta "virgem" (uncultivated wilderness); 2) não
há movimento de importação-exportação para além dessa floresta; 3) a planície é
por toda parte habitada por agricultores de mesmo nível cultural; 4) esses
agricultores produzem sempre para a venda e sempre procurando maximizar a renda
advinda dessa venda; 5) o único mercado disponível a esses agricultores é
aquele de uma cidade centralmente localizada na planície; 6) a única forma de
os agricultores levarem suas mercadorias para a cidade é por meio de carros de
tração animal. Nesse cenário, o único elemento que diferencia os agricultores '
e que, consequentemente, estrutura espacialmente a produção ' é sua posição
geográfica relativamente ao mercado da cidade, o que se traduz em gradiente de
custo de transporte.
O gradiente de custo de transporte cria uma variação de renda da terra, isto é,
de produto líquido: quanto mais longe da cidade, menor esse produto. Essa curva
descendente afeta o uso da terra em duas dimensões: quanto ao sistema de
cultivo e quanto aos gêneros que são cultivados. Estes são, em larga medida,
objetos de estudo diferentes ' embora certamente interdependentes ', na obra de
Thünen. A primeira questão pode ser formulada da seguinte forma:
Uma dada cultura, digamos, uma cultura de grãos, pode ser cultivada
sob diferentes sistemas, alguns mais intensos do que outros; ou seja,
alguns sistemas implicam custos mais elevados do que outros, mas que
(em certas circunstâncias) trazem maiores retornos. Podemos encontrar
que, embora a cultura seja a mesma, ela é produzida por um sistema
intensivo em um lugar, em um sistema extensivo em outro. Como, Thünen
pergunta, esta variação está relacionada à distância em relação ao
único mercado consumidor? (HALL, 1966, p. xxiii)
A esta pergunta Thünen responde com sua teoria da intensidade. Basicamente, ela
postula que, a preços maiores ' isto é, em sítios mais próximos ao mercado ',
escolhe-se um sistema de cultivo mais intensivo, no qual um número maior de
unidades de capital e trabalho pode ser invertido antes que se atinja o nível
crítico de produtividade marginal (ou seja, quando a renda da terra é nula)
(HALL, 1966, p. xxix). De acordo com este mecanismo, desenvolvem-se sistemas
agrícolas progressivamente mais extensivos num gradiente de distância cada vez
maior da cidade.
Mas estes sistemas representam métodos de cultivo ou níveis de investimento de
capital e trabalho utilizados para o cultivo de um mesmo gênero. Faz-se variar,
portanto, os custos de produção. Mantendo estes custos fixos e fazendo variar
os gêneros, qual seria a estrutura de alocação tal como influenciada pela
distância do mercado? Este é o segundo grande objeto de estudo de Thünen. Como
resposta, ele constrói uma teoria geral da localização dos produtos agrícolas '
a teoria dos cultivos, conforme ficou conhecida na literatura especializada.
Ela postula que o lugar mais próximo ao mercado será apropriado para aquele
produto que apresenta a maior redução de custo de transporte naquela
localização. O valor desta redução é encontrado multiplicando-se o custo de
cada carregamento transportado ao mercado pelo número de carregamentos
preenchidos por unidade de área cultivada. Como os custos de produção são
mantidos constantes, o produto dessa multiplicação reflete as características
intrínsecas do gênero (produtividade natural, volume e perecibilidade) e a
natureza da demanda urbana (magnitude e frequência).
Baseado neste tipo de cálculo, Thünen estipulou a estrutura locacional dos
diversos cultivos e combinações de cultivos em seu famoso diagrama com seis
anéis (Figura_1). No primeiro, estão verduras, legumes e frutas; o segundo,
lenha (numa primeira subzona) e madeira de construção (na segunda subzona); no
terceiro, um sistema de rodízio entre cereais e tubérculos, com adubação uma
vez por ano; no quarto, um sistema de rodízio entre cereais e pastos com
pousio; no quinto, os mesmos produtos em um sistema de três campos ' um com os
cultivos de inverno (trigo ou centeio), outro com os de primavera (cevada ou
aveia) e o terceiro em pousio; e, no sexto anel, pecuária extensiva de corte e
leiteira. Neste, também seriam produzidos alguns manufaturados, como
laticínios, óleos vegetais, fumo e linho que, em razão do alto valor agregado
por unidade de volume, suportariam distâncias maiores (Waibel, 1948).
![](/img/revistas/rbepop/v28n2/a10fig01.jpg)
É importante contrastar nitidamente as duas dimensões do efeito da distância,
tal como estudadas por Thünen. Na teoria dos cultivos, os fatores de produção
(capital e trabalho) são mantidos constantes e, com o aumento da distância ao
mercado urbano, a renda da terra declina para todos os cultivos. O que
diferencia a paisagem são as características físicas de cada cultivo,
notadamente a relação valor/volume. A teoria da intensidade pode ser vista como
um caso especial da teoria dos cultivos, na qual se permite que os fatores de
produção variem. Ela postula que, para cada cultivo, dentro de seu anel, a
quantidade de fatores de produção diminui com o aumento da distância
(KELLERMAN, 1983, p. 1521).
Da perspectiva da teoria dos cultivos, a produção madeireira é estudada
isoladamente, sem interações funcionais com a agricultura. De fato, para
Thünen, matejo e agricultura são sistemas de uso da terra mutuamente
excludentes. Ele deseja aferir qual deles propicia a maior renda da terra e,
subsequentemente, qual "empurra" o outro para mais longe da cidade. Em suas
palavras: "Lavoura comercial e silvicultura competem pela mesma terra: ambas
reivindicam o sítio mais próximo à Cidade. Mas desde que estes sistemas não
podem existir lado a lado, devemos envidar esforços para descobrir qual dos
dois vai desalojar o outro" (THÜNEN apud HALL, 1966, p. 124). O objetivo de
Thünen é alocar a produção madeireira como atividade autônoma num sistema geral
que fizesse encontrar o maior lucro para o produtor e o menor preço para o
consumidor urbano, considerando todos os tipos de gêneros necessários aos
citadinos. Procedendo desta maneira, ele não poderia ter chegado a outra
conclusão que não esta:
O anel florestal abastecerá apenas a Cidade e o anel de lavoura
comercial com combustível. Os distritos a uma distância maior da
Cidade vão produzir combustível para seu próprio uso, mas por serem
muito remotos para enviar este produto à Cidade, eles não nos dizem
respeito em nossa investigação; e a silvicultura não será mencionada
quando passarmos a estudar os sistemas dos outros anéis. (THÜNEN apud
HALL, 1966, p. 122)
O anel florestal é o segundo menos extenso do Estado Isolado (22 km), maior
apenas do que o anel de rotação de cereais e raízes situado depois dele (18
km). Isto é causado pelos altos custos do transporte dos produtos madeireiros,
fazendo com que a curva da renda da terra tenha uma inclinação muito acentuada;
assim, a exploração florestal é rapidamente substituída, no espaço, pelo
consórcio de cereais e raízes (Figura_1).
Passando para a análise de Thünen da atividade madeireira ao nível do anel
florestal, ou seja, da perspectiva da intensidade, o primeiro e talvez mais
importante ponto a assinalar é o fato de que ele concebe a atividade florestal
como silvicultura e não meramente como extrativismo. Para o autor, a compra de
uma herdade florestal e a simples "colheita" da sua madeira não constituem um
investimento viável, visto que o incremento anual de biomassa no corpo das
árvores (1/20, 1/30 e até 1/40 do estoque total) fica abaixo da taxa geral de
juro estabelecida para o Estado Isolado (5%) (THÜNEN apud HALL, 1966, p. 118).
Isto leva ao seguinte desdobramento de derivações lógicas:
não somente o solo florestado não oferece renda da terra, mas
também seu produto é, de fato, negativo;
desta forma, a decisão racional do possuidor de uma área de mata é
derrubá-la por completo, vender a madeira e aplicar o capital
liberado. Mesmo que o mercado não seja grande o bastante para poder
absorver toda a madeira, ele irá desmatar gradualmente, sem se
importar em replantar as árvores cortadas;
a destruição progressiva das florestas (no conjunto do Estado
Isolado) deve elevar o preço da madeira. Contudo, mesmo isto não será
capaz de tornar a exploração madeireira uma atividade rentável, já
que, com o aumento do preço, o valor do estoque de biomassa dos
rurícolas também irá aumentar ' bem como, proporcionalmente, os
ganhos obtidos pelos juros sobre o capital. As duas únicas soluções
para o holocausto florestal seriam, portanto, a queda da taxa de
juros e, na impossibilidade disto ocorrer, a intervenção estatal no
sentido de restringir legalmente a proporção das propriedades
privadas que pode ser desmatada. (Embora este tipo de medida não seja
muito eficaz, tendo em vista a tendência ao descuido e negligência
dos agentes privados no trato de suas matas.) (THÜNEN apud HALL,
1966, p. 118-9).
Embora esse estado de coisas derive originalmente da taxa de incremento anual
de biomassa, não se pode culpar a natureza. Thünen (apud HALL, 1966, p. 121)
argumenta que é uma estratégia de corte inadequada a verdadeira responsável
pelos parcos rendimentos obtidos na atividade madeireira:
Em bosques onde árvores de 100 e 200 anos encontram-se lado a lado
com as de 10 e 20 anos, e árvores que tenham parado de crescer ocupam
o espaço que as mais jovens precisam para o seu desenvolvimento, o
incremento absoluto será, naturalmente, muito pequeno (sendo uma
proporção do grande estoque total), e pode facilmente cair abaixo de
2,5 por cento ou menos.
Esta sorte de manejo ' que se justificaria apenas onde o valor da terra é tão
baixo ao ponto de não pagar a limpeza para o cultivo agrícola ' é criticada por
Thünen. Podia-se ainda observar, segundo ele, "muitos bosques e florestas
manejadas com métodos que há muito se tornaram ultrapassados e irracionais". O
autor advoga que, conquanto tenha sido normal e razoável, em séculos passados,
uma atitude econômica lasciva em relação às florestas, ela já estava
completamente fora de sintonia com as novas condições reinantes. Para Thünen,
era preciso implementar sistemas de manejo que otimizassem a produção anual de
biomassa, agrupando os indivíduos arbóreos da mesma idade e cortando-os antes
que a taxa média de incremento vegetativo caísse a 5% ao ano ' quando então a
renda da terra seria nula.
Hall (1966, p. 166) identifica neste argumento "a primeira abordagem de Thünen
do princípio dos rendimentos de produtividade marginais". O "cultivo" das
árvores deveria ser buscado até o ponto marginal, em que o incremento anual em
valor igualar-se-ia ao retorno advindo de um investimento alternativo do
capital contido no estoque total de madeira. Trata-se de uma questão de custo
de oportunidade. O período de tempo durante o qual não se cortam as árvores
representa um tempo "gasto", pois o capital armazenado como estoque de madeira
poderia ser empregado de outra forma; por exemplo, ele poderia ser emprestado,
rendendo 5% ao ano. Em termos da contabilidade da empresa madeireira, portanto,
o tempo de crescimento das árvores representa um custo de produção.
Este custo difere segundo o tipo de produto florestal. Embora a
combustibilidade da madeira de árvores mais maduras seja maior do que a
daquelas mais jovens ' elevando o preço e permitindo um ciclo de crescimento
além do ponto marginal de 5% ', o incremento em valor não é capaz de compensar
o custo de produção por muitos anos. As peças de construção, por outro lado,
precisam ser extraídas de árvores dotadas de grande altura e dureza, o que
eleva sobremaneira o tempo de crescimento vegetativo e, subsequentemente, o
custo de produção. Mas, por serem extremamente importantes à economia urbana,
os preços dessas peças acompanham os custos.
Esta diferença de custos de produção acarreta também uma diferença nos custos
de transporte. A um certo nível de peso, a madeira construtiva alcança um preço
maior do que a lenha e, relativamente ao seu valor, a primeira custa menos para
ser transportada do que a segunda. Aí está a explicação da subdivisão do anel
florestal, com a lenha ocupando a porção mais interna e a madeira de
construção, a mais externa. Não compensaria transportar os restolhos da
serragem das peças construtivas como lenha, para venda na cidade; mais vale
serem transformados em carvão, que é um combustível de maior peso específico,
capaz de ser vendido com lucro no mercado. Portanto, a porção mais externa do
anel florestal abriga a produção carvoeira (THÜNEN apud HALL, 1966, p. 121).
Aplicações históricas do modelo thüniano
A maioria das pesquisas que buscaram auxílio no modelo thüniano ' seja como
instrumento interpretativo para a compreensão de configurações agrárias do
passado, seja para testar a validade empírica dos seus padrões conclusivos '
adotou a perspectiva da teoria geral dos cultivos.3 O interesse foi muito mais
pelo uso da terra de forma geral do que especificamente pela exploração
madeireira. A seguir, é feita uma breve revisão desses estudos.
Embora não utilize o Estado Isolado, explicitamente, como referência teórica,
Hoffmann, em trabalho sobre as cidades medievais europeias, fez notar que as
"zonas de produção dos cereais e da lenha de cada cidade conformavam-se aos
anéis espaciais da teoria clássica da localização" (HOFFMANN, 2007, p. 313) '
uma clara alusão à teoria dos cultivos thüniana.
Galloway e colaboradores (1996) testaram o modelo thüniano em relação ao
sistema de abastecimento de madeira combustível da Londres medieval.
Respaldados por vasta e detalhada pesquisa empírica ' utilizando, sobretudo,
inventários de domínios senhoriais ', os autores constataram a existência de
uma produção especializada de lenha, caracterizada por altos rendimentos
advindos da sua comercialização, bem como pelo seu preparo específico e venda
para consumidores domésticos e industriais, na cidade. Esta diferenciação
espacial, todavia, emergia muito mais no plano da produção e comercialização do
que no do uso da terra propriamente. Os autores salientam que não havia uma
"zona florestal" que excluísse outras formas de aproveitamento do solo. Ainda
assim, existia uma alta valorização dos recursos madeireiros nesta área,
justificando o desvio de trabalho para este tipo de produção.
Em outro estudo com fontes quase miraculosas, John Lee (2003) apreciou o caso
de Cambridge, no final do medievo. Baseando-se nos registros de compra de dois
colégios da Universidade (King's Hall e King's College), o autor mapeou a
proveniência dos suprimentos alimentares e da madeira combustível. No que tange
a esta última, seus achados mostraram que a estrutura de abastecimento diferia
consideravelmente daquela prescrita por Thünen. Por se encontrarem escasseadas
nas redondezas mais imediatas de Cambridge, a lenha e a madeira construtiva
eram trazidas de lugares mais distantes do que os grãos. Além disso, o
suprimento concentrava-se apenas num local, que parece ter se especializado na
produção de lenha ' embora houvesse florestas em outras localidades
equidistantes. Apesar de não ser um ponto discutido pelo autor, isto pode
refletir o fato de Cambridge constituir, na época, apenas uma cidade média,
incapaz, portanto, de modelar o uso da terra, sendo, pelo contrário, modelada
pela estrutura da economia rural, que podia se valer de outros mercados.
Em seu trabalho sobre o rio Tejo (Portugal), Gaspar (1970) utiliza a teoria dos
cultivos thüniana para examinar a organização agrária que tinha como foco a
cidade de Lisboa. A produção de lenha, "produto indispensável na vida de uma
cidade antes da revolução dos combustíveis", situava-se bastante próxima a
Lisboa. À medida que aumentava a distância, a fabricação de carvão ' produto de
maior valor agregado ' ia tomando o lugar da lenha; essa sucessão se dava tanto
ao longo do rio quanto a partir dele em direção às terras interiores. Também
áreas mais longínquas, mas com bom acesso por mar, forneciam carvão a Lisboa.
Mais distante ainda, a exploração florestal mantinha-se rentável apenas como
produção de cinza para as saboarias. Quanto às madeiras de construção, Gaspar
afirma que elas se situavam numa "posição de acessibilidade ao mercado idêntica
a das lenhas", com a diferença de que podiam suportar maior custo de transporte
' embora ele não relacione empiricamente os dois tipos de produto. Segundo o
autor, a ótima localização das duas grandes áreas florestais da hinterlândia
havia impedido que Lisboa sofresse, como a maioria dos países europeus, graves
problemas de abastecimento.
Ewald (1977) procurou correspondências entre os círculos da teoria dos cultivos
thüniana e a paisagem agrária do México colonial. Sempre atenta às adaptações
necessárias à identificação dos sistemas agrários, Ewald indica que a zona de
exploração florestal "desenvolveu-se perfeitamente ao redor dos maiores centros
urbanos e também ao redor de todos os distritos mineradores". Mas esta
atividade, como dá a entender a autora, era conformada mais pelas condições
físico-ambientais do que pelo fator distância. O "círculo florestal", escreveu
Ewald, "deve ser interpretado como as vizinhanças montanhosas ou áridas das
cidades, onde a agricultura não era possível". Nesses lugares, o fornecimento
de madeira construtiva e combustível era realizado pelos indígenas.
Estudando a capital etíope (Addis Ababa), nos anos 1960, Horvath (1969)
encontrou fortes evidências da conformação da hinterlândia madeireira ao modelo
do Estado Isolado. Florestas plantadas de eucalipto estendiam-se por toda a
circunvizinhança da cidade, alongando-se em padrão cuneiforme segundo os eixos
das grandes estradas, de forma bastante semelhante ao efeito do canal fluvial
introduzido analiticamente por Thünen. Não havia, entretanto, uma diferenciação
espacial entre as áreas florestal e de horticultura; elas encontravam-se
entremeadas na paisagem. Outro ponto confirmativo é a presença constante dessas
plantações de eucalipto ao redor dos centros urbanos menores situados na região
de influência de Addis Ababa.
Os geógrafos Moss e Morgan (1981) propuseram um modelo de zonas concêntricas
para descrever o sistema de abastecimento urbano de biomassa combustível, nos
trópicos úmidos dos anos 1970, com ênfase na África e no sul asiático. Seu
esquema estipula quatro zonas: peri-urbana; agrícola imediata (fazendas
"urbanizadas"); agrícola principal; e florestal. Na primeira zona, observa-se
agricultura intensiva com pousio curto ou inexistente, bem como porções de
terra degradada. Aqui, ainda há acesso direto dos habitantes citadinos aos
recursos florestais; notadamente, as pessoas mais pobres, moradoras das zonas
mais periféricas, vêm buscar elas mesmas sua lenha e material construtivo, seja
em espaços de uso comum, seja em propriedades alheias, neste caso gerando
conflitos. Na segunda zona, observa-se a limpeza de capoeiras associada ao
decote e remoção de árvores indesejadas. Destas práticas resultam, sobretudo,
toras semidesdobradas e alguma madeira em pranchas. Na terceira zona, o pousio
torna-se mais extensivo, permitindo a produção de carvão; produzem-se mais
madeira em pranchas e menos toros semidesdobrados. Finalmente, na última zona,
a paisagem é composta por reservas florestais, fazendas com pousio longo e
algumas plantações para produção de madeira, com alguma produção de carvão.
Nichol (1990) estudou o impacto do aumento da demanda por madeira combustível
da cidade de Kano (norte da Nigéria) sobre os sistemas agromadeireiros da
hinterlândia. Ela concluiu que dois grandes fatores mediavam esse impacto: a
distância em relação à cidade e a abrangência do regime de propriedade privada
da terra. Ao contrário do que sugerem os estudos feitos em áreas tropicais
úmidas, a conversão de sistemas comunitários de agricultura de alqueive para
sistemas individualizados de agricultura permanente aumentava a disponibilidade
de madeira combustível. Nas circunvizinhanças imediatas da cidade, onde a
apropriação privada da terra havia sido concluída, os rurícolas cultivavam
cereais em regime de pousio curto ou nulo, adubando a terra com refugos
urbanos, fertilizantes artificiais e esterco animal. Nesta área, a madeira era
produzida em um sistema "conservacionista", isto é, plantando-se ou
simplesmente protegendo-se as árvores valiosas, tanto para as necessidades
domésticas quanto para venda. Mais longe da cidade, onde a apropriação privada
estava em pleno curso, eliminando as terras comuns e intensificando a prática
agrícola, a exploração madeireira evoluía de maneira insustentável, ocasionando
a diminuição da densidade de árvores e o envelhecimento das comunidades
vegetais (os indivíduos jovens cortados não eram repostos por plantação). Isto
se dava, segundo a autora, em razão da concentração da terra nas mãos de ricos
proprietários absenteístas ' para os quais as árvores não eram, como para os
pequenos produtores familiares, recursos-trunfo contra adversidades climáticas
e econômicas ' e do desestímulo à conservação da vegetação em sistemas
consuetudinários de acesso à terra ' como verificado nessas áreas de fronteira
mais distantes da cidade ', que estipulavam o uso, a "limpeza" da terra, como
evidência do direito a essa terra.
Este tipo de abordagem empregada tanto por Moss e Morgan quanto por Nichol '
conferindo um papel importante à intensidade da atividade agrícola ' parece ser
extremamente útil para o exame de economias pré-industriais em que a atividade
madeireira ocorre como extrativismo associado à agricultura, e não como
silvicultura. Diferentemente da Europa ocidental ' onde, desde o final do
século XII, o alto grau de desflorestamento e as oportunidades comerciais
abertas pelos mercados urbanos em expansão estimularam o progressivo
desenvolvimento da silvicultura como um uso da terra especializado (KEYSER,
2009) ', nas áreas tropicais úmidas dotadas de vasto estoque florestal e baixa
densidade demográfica, a exploração madeireira nunca deixou de ser um apêndice
dos sistemas agrícolas. Neste tipo de cenário, talvez seja mais adequado
considerarmos a produção madeireira não como um uso do solo autônomo capaz de
formar um anel ou uma zona, mas sim como uma atividade imiscuída nos sistemas
agrícolas e subordinada ao comportamento desses sistemas. Conforme mostraram
Balée e Gely (1989), para o caso dos ka'apor da Amazônia, a agricultura de
alqueive não é uma técnica de produção isolada, mas que se integra a um sistema
mais amplo de manejo da floresta ' uma asserção que poderia ser estendida a
grupos orientados para o mercado. A agricultura de alqueive cria um mosaico de
áreas de diferentes idades e, portanto, em diferentes níveis de regeneração
florestal, as quais podem estar relacionadas a diversos recursos e atividades.
É comum, ainda, que certos tratos de terra não sejam nem mesmo incluídos na
rotação, sendo reservados à economia extrativa.4 Há muitos estudos ' que
abordam tanto casos históricos quanto contemporâneos ' mostrando que o corte de
madeira é uma atividade acessória, part-time, que ajuda na complementação da
renda das unidades agrícolas (ver, entre outros, REES, 1971; MOSS e MORGAN,
1981; CLINE-COLE et al., 1988; MEDINA, 2004; CABRAL, 2007b).
Para estudar a forma como a agricultura determina as condições da exploração
madeireira, em um gradiente espacial de custo de transporte, é preciso
abandonar a perspectiva dos cultivos e se concentrar na perspectiva da
intensidade. O que se procura, portanto, não é uma "localização absoluta" da
produção madeireira, mas sim uma "localização relativa" determinada pelas
variações agrícolas. Em outras palavras, busca-se a relação entre intensidade
da agricultura e "intensidade" da exploração madeireira. A seguir, procura-se
desenvolver conceitualmente esta relação.
Distância ao mercado urbano, intensidade agrícola e intensidade da exploração
madeireira
A análise que Thünen faz da exploração florestal segue a diferença geral entre
as perspectivas dos cultivos e da intensidade, o que pode ser visto como um
problema de escala geográfica. Na escala do Estado Isolado, sua análise é
orientada para o padrão locacional dos gêneros e os produtos madeireiros são
vistos dentro desse sistema geral. Na escala do anel florestal, como visto,
Thünen dedica-se à questão das espécies de mercadorias (lenha, madeira e
carvão), na resolução da qual se percebe, subjacente, o recurso ao princípio da
intensidade. Como, no que concerne à produção madeireira, o tempo de
crescimento das árvores representa um custo de produção e cada um daqueles
tipos de produto requer tempos de crescimento diferenciados, há uma gradação de
intensidade dentro do anel florestal. Este ponto fica claro na seguinte
passagem:
Pode ser rentável, na franja mais interna do anel florestal, plantar
árvores com uma taxa de crescimento muito alta, pois, apesar de sua
madeira não ser tão valiosa, numa comparação com um peso igual de
faia, por exemplo, o produto anual será maior por unidade de área. A
parte exterior do anel florestal, por outro lado, não se pode dar ao
luxo de abastecer a Cidade a não ser com a mais cara espécie de
combustível. (THÜNEN apud HALL, 1966, p. 122)
O desafio aqui, portanto, é articular esse esquema de intensidade com a
agricultura, tomando esta como a atividade central do sistema. Para investigar
a natureza dessa relação, é necessária uma teoria da intensificação agrícola
que incorpore o manejo das áreas de pousio. As áreas de pousio desempenham
papel fundamental nos sistemas de agricultura de alqueive, permitindo a
recuperação do solo e fornecendo a biomassa necessária à geração de energia e à
construção. Essa biomassa é extraída em vários momentos durante o pousio, mas a
maior parte é coletada no próprio processo de arroteamento (Moss; Morgan, 1981;
ADESINA, 1990; DALLE; DE BLOIS, 2006). As possibilidades abertas a esse
extrativismo dependem do grau de regeneração estrutural das comunidades
vegetais (Moss; e Morgan, 1981) e essa regeneração, por sua vez, depende do
tempo que o trato de terra é mantido em repouso.
Nos trópicos úmidos, os primeiros anos de regeneração testemunham um rápido
aumento do montante de biomassa no ecossistema florestal: o acúmulo pode chegar
a 100 toneladas por hectare, nos 15-20 anos após o abandono da área
(GUARIGUATA; OSTERTAG, 2001). Essa biomassa é distribuída, majoritariamente,
por espécies pioneiras de pequeno diâmetro de tronco e muito abundantes por
unidade de área. As pioneiras, com suas altas taxas de crescimento e elevada
produção de sementes, favorecem a atividade extrativa de lenha, um produto
madeireiro de baixo valor por unidade de volume e demanda praticamente
ininterrupta no tempo. (Contudo, mesmo a lenha não é viável em tratos cujo
pousio não alcança uma duração mínima de cinco anos [ADESINA, 1990]). O limite
da viabilidade da extração de madeiras de construção, evidentemente, é bem
maior, posto que esses produtos requerem espécies com lenho de maior densidade
(dureza) e diâmetro. Essas espécies são aquelas pertencentes, na maioria das
vezes, ao grupo conhecido na literatura ecológica como "climácicas": elas
possuem baixas taxas de crescimento, sendo geralmente necessários, no mínimo,
de 20 a 25 anos para que atinjam estágio adequado de corte ' e algumas espécies
da floresta tropical úmida precisam de bem mais do que isso.
A duração do pousio não é um elemento estático dos sistemas agrícolas. Ao
contrário, ela é dinâmica, respondendo às flutuações demográficas e ao
correspondente nível de demanda por alimentos. Este é o mote do clássico
trabalho da economista E. Boserup (1987), The conditions of agricultural growth
(traduzido para o português como Evolução agrária e pressão demográfica), no
qual ela desenvolve o conceito de "frequência de cultivo".
Boserup parte da crítica da abordagem clássica, que se vale da distinção entre
expansão extensiva (incorporação de terras não-cultivadas) e expansão intensiva
(por maior inversão de trabalho e capital) da produção. Para a autora, estas
categorias não servem a uma teoria geral do desenvolvimento agrícola exatamente
pelo fato de grande parte dos sistemas observados no registro histórico ser
itinerante. Não há, neste caso, distinção clara entre criação de novos campos e
mudança dos métodos nos campos já existentes; o que há é
um contínuo de tipos de uso da terra, do caso extremo de terra
verdadeiramente virgem, nunca cultivada, passando pelos casos de
terras onde se colhe e planta a intervalos cada vez mais curtos, até,
finalmente, àqueles territórios onde se semeia tão logo a cultura
anterior tenha sido colhida. (BOSERUP, 1987, p. 9)
Em termos práticos de método, isto equivale a tratar toda forma de cultivo como
itinerante, variando apenas no grau.
Seguindo este raciocínio, Boserup introduz a seguinte tipologia: sistemas de
pousio longo ou florestal (de 20 a 30 anos); sistemas de pousio arbustivo (de
seis a dez anos, com os períodos de cultivo ininterrupto variando
consideravelmente); sistemas de pousio curto (um ou dois anos); sistema de
cultivo anual ' que, embora não usualmente, pode ser considerado um sistema de
alqueive, pois frequentemente a terra é deixada em repouso por alguns meses,
entre a colheita e o plantio seguinte '; e sistema de cultivos múltiplos, em
que o mesmo solo suporta duas ou mais colheitas ano após ano. Depois destas
definições, Boserup avança argumentando que, a despeito das lacunas no
conhecimento sobre a evolução agrícola em muitas regiões do mundo, pode-se
considerar que, em geral, a trajetória histórica dos povos foi sempre no
sentido da progressiva intensificação da produção, ou seja, a transição dos
sistemas de pousio longo para os de cultivos múltiplos.
Analisando o problema da coexistência de diversos sistemas de pousio, Boserup
restringe-se a constatar a espacialidade diferenciada resultante dos ritmos de
crescimento ou retrocesso demográfico. A incorporação de terras aos tratos mais
intensivos, nota ela, ocorre de forma seletiva, e não generalizada (BOSERUP,
1987,
p. 65-73). Mas a autora não avança nas potencialidades geográficas de sua
análise. Devemos considerar que o fator populacional apresenta-se, mesmo no
plano sincrônico, como uma variável importante a influenciar a organização dos
sistemas agrícolas; em outras palavras, é necessário avaliar de que forma a
densidade da população distribui-se espacialmente. Aqui deve-se recorrer a
Thünen.
Conforme alertaram Müller e Diaz (1973), as assunções thünianas não incluem uma
distribuição uniforme dessa variável. Embora implicitamente, o Estado Isolado é
caracterizado por um declínio da densidade populacional com o aumento da
distância em relação ao centro urbano. Na verdade, esta é uma condição sine qua
non para a gradação da intensidade agrícola e da renda da terra. Segundo o
próprio Thünen (apud HALL, 1966, p. 286), "se a população da Cidade for
distribuída por várias cidades pequenas, distribuindo-se uniformemente por todo
o país, o cultivo seria, em todos os lugares, tão intenso quanto é perto da
Cidade [ ]".
Essa correlação entre concentração populacional e intensificação da produção
agrícola é verificada em inúmeras situações. As causas da concentração são
muitas: guerras tribais, comércio de escravos, políticas de uso da terra, etc.
A concentração da população também ocorre em manchas de solo mais fértil e
outras condições ambientais favoráveis à emergência de núcleos urbanos.
Documentou-se, ainda, que ameaças militares a tribos Kofyar (etnia da Nigéria
central) isoladas levavam à concentração do povoamento, motivando a
intensificação das práticas agrícolas nos núcleos a serem defendidos e
permitindo que áreas periféricas fossem revertidas a usos mais extensivos.
Vilarejos Kachin, nas montanhas birmanesas, destinados a proteger as rotas de
comércio com a China, geravam sistemas intensivos de terraço em suas
redondezas, embora a densidade demográfica média da região como um todo fosse
baixa (PINGALI et al. apud NETTING, 1993, p. 266).
Tais exemplos etnográficos são, evidentemente, de caráter excêntrico e servem
muito mais para mostrar a amplitude potencial de contextos de ocorrência do
fenômeno que aqui se estuda. Em todos esses casos, o mercado tende a se
concentrar espacialmente, em maior ou menor grau, trazendo consigo um
comportamento correspondente dos níveis de produtividade agrícola, por meio do
efeito ou "fricção" da distância. De fato, a hipótese boserupeana da correlação
positiva entre intensidade agrícola e densidade demográfica confirma-se para um
amplo espectro de situações (NETTING, 1993, p. 268). Apesar de a dinâmica
urbana ' e, mais amplamente, do mercado ' estar virtualmente ausente da análise
de Boserup, ela chegou a reconhecer que, para produtores comerciais,
a motivação para a intensificação agrícola emerge quando o
crescimento da população ou rendas urbanas crescentes elevam a
demanda por alimentos e pressionam os preços até que cultivos mais
freqüentes tornam-se lucrativos, a despeito dos custos crescentes de
produção ou da necessidade de mais investimento de capital. (BOSERUP
apud NETTING, 1993, p. 289, grifo nosso)
Desse modo, pode-se sustentar que as teorias de Thünen e Boserup convergem.
Os mercados centrais desenvolver-se-iam nos lugares de maior
densidade populacional e a produção intensificar-se-ia ao redor
deles, isto é, a produção iria intensificar-se naquelas áreas que
fossem, simultaneamente, próximas aos mercados centrais e que
tivessem as maiores concentrações populacionais [...]. [Tudo o mais
sendo constante], a densidade de população iria variar diretamente
com a distância dos grandes mercados centrais, de modo que ambas as
teorias [de Thünen e de Boserup] prediriam adequadamente a
intensidade da produção. (SMITH apud NETTING, 1993, p. 291)
Na medida em que as possibilidades de exploração florestal estão ligadas aos
regimes de pousio ' e estes à distância em relação ao mercado ', abre-se a
possibilidade de se construir um modelo Thünen-Boserup da estrutura espacial da
hinterlândia madeireira de um centro urbano pré-industrial. Como as altas
densidades urbanas nada mais são do que grandes concentrações espaciais de
demanda, pode-se supor que elas tenham o efeito de estruturar a economia
agrária que lhes adjaz no espaço segundo o continuum de intensidade agrícola
sugerido por Boserup. Nesse sentido, o efeito da proximidade em relação aos
mercados urbanos corresponderia, no plano geográfico, ao efeito que o
crescimento demográfico exerce no raciocínio de tipo histórico de Boserup. Em
outras palavras, a gradação temporal pode ser esquematizada como uma gradação
espacial, na qual distância do mercado urbano e tempo de pousio estão
positivamente correlacionados; Boserup encontra Thünen, cuja teoria da
intensidade incorpora, ainda que de forma implícita, a variação do tempo de
pousio. Na análise do primeiro anel agrícola, ele desenvolve brevemente este
ponto:
Nenhuma renda da terra iria repousar sobre terra em pousio. Em
primeiro lugar, a renda da terra aqui é muito alta para permitir que
qualquer porção de terra arável permaneça inculta e, em segundo
lugar, a fertilidade do solo pode, mediante a compra de adubo da
Cidade, ser aumentada até o ponto em que a terra produza a sua
capacidade máxima, de modo que, em contraste com os anéis mais
longínquos, aqui não há necessidade de se cuidar do solo por meio de
pousio. (THÜNEN apud HALL, 1966, p. 10)
De fato, o terceiro, o quarto e o quinto anéis do Estado Isolado podem ser
vistos como um único e grande anel, no qual a produção de cereais vai perdendo
intensidade e passando de um sistema com adubação e pousio inexistente para um
sistema com pousio curto (um ou dois anos); com a ampliação da distância,
portanto, aumenta o tempo de pousio e diminui, consequentemente, o input de
trabalho. Essa correlação negativa entre distância do mercado urbano e
frequência de cultivo ' ou correlação positiva entre distância e duração do
pousio ' foi elaborada matematicamente por Jones e O'Neill (1993) e Angelsen
(1994).
O esquema boserupiano dos níveis de intensidade medidos pela frequência de
cultivo fornece uma chave para incorporamos a prática agrícola em um modelo
teórico do abastecimento madeireiro. Sistemas agrícolas de pousio curto, mais
próximos ao mercado urbano, proveem condições mais favoráveis a explorações
florestais baseadas em baixos custos de produção biológicos, ou seja, tempos
mais curtos de regeneração do ecossistema, enquanto sistemas de pousio longo,
mais distantes do mercado urbano, são mais propícios a explorações florestais
baseadas em altos custos biológicos. Elevadas frequências de cultivo impedem
que a área em pousio complete o ciclo que leva o solo nu (pós-colheita) ao
estado de mata secundária (capoeira pouco regenerada) e deste novamente ao
estado florestal (S → M → F); o ciclo é "atalhado" por uma nova derrubada,
restringindo a trajetória a um circuito "interno" que leva o solo nu à mata
secundária e esta de volta àquele (S → M → S) (Figura_2) ' uma dinâmica que
pode ser bem observada contrastando-se unidades de gestão de diferentes
tamanhos (D'ANtona et al., 2006). Neste sentido, altas frequências de cultivo
reduzem a disponibilidade de espécies associadas a estados mais tardios da
sucessão florestal, que são aquelas que geralmente possuem maior valor
comercial por unidade de volume. Sistemas de pousio curto, portanto, tendem a
estar associados à extração de lenha, pois este produto pode ser obtido de
capoeiras menos regeneradas, e mesmo pela coleta de galhos e gravetos caídos no
chão da capoeira. O carvão, obtido pela eliminação da umidade e enriquecimento
do teor de carbono da lenha, estaria associado a durações intermediárias de
pousio. Embora sua produção seja realizada a partir de lenha e, portanto, de
formações vegetais semelhantes ' não sendo recomendável usar pedaços muito
grossos de madeira ', a aplicação de trabalho e a redução de volume5 permitem
uma localização mais distante do que a de sua matéria-prima.
[/img/revistas/rbepop/v28n2/a10fig02.jpg]
Em regiões densamente florestadas, o transporte fluvial propicia o meio mais
viável e eficaz de penetração, povoamento e exploração econômica do ambiente
(SMITH, 1969, p. 106). Desse modo, a forma espacial das zonas produtivas seria
decisivamente modelada pelos cursos de água, ensejando o padrão alongado
vislumbrado por Thünen quando este estudou os fatores do mundo real que
poderiam "distorcer" seu modelo (THÜNEN apud HALL, 1966, p. 215 e seg.).6 De
forma bastante expressiva, os rios causariam um aprofundamento dendrítico no
alcance das zonas, enquanto o alto custo do transporte terrestre restringiria
bastante seu alargamento, produzindo um padrão "endentado". Na Inglaterra do
século XVII, por exemplo, o alto custo da tração animal limitava o corte de
árvores a uma distância de menos de cinco quilômetros das margens fluviais
(ALBION apud BUNKER, 2003, p. 223). Um esquema gráfico de tal padrão é
apresentado na Figura_3.
[/img/revistas/rbepop/v28n2/a10fig03.jpg]
Uma consequência importante de um cenário como este é de que, ao contrário do
que estabelece a teoria dos cultivos thüniana, as maiores densidades florestais
estariam localizadas longe da cidade (não se considerando, evidentemente, a
área de floresta além da margem extensiva). Não há uma zona florestal plantada
perto do centro urbano, bem como não existe uma área de floresta "virgem"
circundando a economia rural. O que há é um aumento progressivo de densidade
florestal à medida que se avança para longe do centro urbano. Neste continuum,
a duração do pousio vai se elevando até que a sucessão ecológica seja capaz de
atingir níveis nos quais se torna difícil distinguir entre floresta primária e
floresta resultante de manejo prévio.
Observa-se, a seguir, como esse esquema pode iluminar a pesquisa histórica
sobre cidades pré-industriais, examinando o caso do Rio de Janeiro, nos últimos
anos da era colonial.
O caso do Rio de Janeiro colonial-tardio
Nas últimas décadas de domínio português, a cidade do Rio de Janeiro ascendeu
ao posto de mais importante mercado do centro-sul brasileiro. De acordo com
Brown (1986), isto se deu pela interação de dois fatores. Primeiro, a partir
dos anos 1790, os agricultores da hinterlândia imediata da cidade voltaram-se
cada vez mais para os gêneros de exportação em detrimento do cultivo de
mantimentos básicos. Em segundo lugar, o crescimento demográfico da cidade,
especialmente depois da transferência da Corte portuguesa, em 1808, criou uma
economia de fato "urbana", na qual uma grande parte da população era dependente
do mercado para obter comida, lenha e habitação (ou seja, madeira de
construção). As moradias e, de um modo geral, toda a tecnosfera urbana (fixa e
móvel, desde colheres até carruagens), precisavam de madeira para sua
construção e manutenção (isto é, periodicamente reparadas e/ou respostas).
Entre os artesãos, os trabalhadores da madeira faziam boa presença, como indica
a existência de grande número de marceneiros. Como fonte de energia, a madeira
atendia às demandas de um pequeno leque de atividades manufatureiras
tipicamente urbanas (ferrarias, olarias, padarias), além da necessidade
doméstica de cozimento de alimentos.
Os viajantes e colonos estrangeiros deixaram relatos que dão muitas indicações
das relações entre agricultura e exploração madeireira, na estrutura da
hinterlândia imediata do Rio. Entre esses cronistas, Luccock, um comerciante
inglês que viveu na cidade entre 1808 e 1818, foi um dos mais argutos,
antecipando, inclusive, o princípio de Thünen, ainda que intuitivamente. "Os
objetivos e as maneiras da lavoura estão na dependência da distância da cidade
e facilidade com que os produtos possam ser levados ao mercado", observou ele.
Nas vizinhanças imediatas, havia produção intensiva de hortaliças, frutas
(laranja, banana, melancia, abóbora) e flores (mimosas e outras). Porquanto o
que importasse não fosse a distância absoluta, mas sim a distância-custo, a
produção intensiva alastrava-se até São Gonçalo, na orla oriental da baía, onde
Luccock observou experimentos de enxerto no cultivo de árvores frutíferas
(LUCCOCK, 1975, p. 176, 195, 204). Em toda essa faixa, a terra era valorizada e
a densidade demográfica mostrava-se alta. Na freguesia de Inhaúma, havia 58
habitantes por km2, sendo que a densidade de escravos era de 35 por km2
(Macedo, 2008, p. 125; MAPA, 1870, p. 137).
As propriedades eram muito pequenas para que se conseguisse manter qualquer
quantidade significativa de mata dentro de seus limites. Cultivavam-se também,
nessas terras, duas qualidades exóticas de capim: o capim-de-angola e o capim-
da-colônia, este último menos lucrativo do que o primeiro (LUCCOCK, 1975, p.
195-6). A seção de avisos da Gazeta do Rio de Janeiro está repleta de anúncios
de propriedades plantadas ou potencialmente produtoras de capim. No esquema
thüniano aplicado ao Rio, o capim substituía a madeira como produção de
biomassa de baixo custo e grande produtividade por unidade de área. De seis em
seis semanas, o agricultor podia colher 18 kg de capim por metro quadrado
(LUCCOCK, 1975, p. 195-6). O capim, como a madeira, possuía um grande mercado
na cidade. Diferentemente do que acontecia no Estado Isolado, os animais de
carga não eram de propriedade exclusiva dos rurícolas; havia um grande rebanho
dentro dos limites urbanos. "Apesar do custo de manutenção, todo mundo tem seu
cavalo", relatou Theodor von Leithold (1966, p. 24), um militar prussiano em
visita ao Rio, em 1819. Se ao menos metade disso fosse verdade, a cidade
abrigaria cerca de 55.000 comedores de capim, naquela época. Os rocios
intraurbanos não conseguiam alimentar tanto gado; na verdade, eles teriam
sofrido superexploração. No mesmo ano da observação de Leithold, dois membros
da Junta do Comércio propuseram que fossem taxados aqueles citadinos que
estabulavam cavalos e burros para seu uso pessoal. Desse modo, argumentavam os
proponentes, reduzir-se-ia a plantação de capim nos arredores da cidade, a qual
esterilizava "todos os outros frutos necessários à subsistência humana" (BROWN,
1986, p. 264).
Essa primeira zona da hinterlândia carioca abrigava também uma classe de uso
residencial. Desde a chegada da Corte portuguesa e a abertura dos portos, a
crescente burguesia nativa e estrangeira, bem como a alta burocracia estatal,
havia criado uma grande demanda por espaços residenciais afastados do centro e
dotados de amenidades paisagísticas. Essa demanda foi satisfeita pela conversão
de antigas áreas de cultivo em sítios e chácaras, processo que atingiu os
arrabaldes tanto a oeste quanto ao sul da cidade. Luccock (1975, p. 176)
celebrou o triunfo da civilização na conversão dessas matas, antigos "antros de
feras", em "prósperos estabelecimentos do homem". Nas antigas fazendas jesuítas
do Engenho Novo e do Engenho Velho, as florestas haviam sido abatidas e as
terras loteadas. Os anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821,
mostram que essas propriedades não tinham mais de 200.000 m2. Eram grandes
mansões com pasto, estrebaria, casa para abrigar escravos, poços para a coleta
de água e bosques ajardinados, onde se plantavam árvores frutíferas e de
espinho, estas com função de cerca. Por vezes, possuíam algum "mato virgem" nos
fundos, perto das encostas ou nelas próprias.7
Entre as distâncias de seis quilômetros e meio a 20 km da cidade, havia uma
zona mista de gado leiteiro e lavoura. O leite era levado ao mercado em grandes
latões de estanho, novamente à cabeça dos negros. Também se cultivava cana, uma
grande parte da qual se destinava não à produção e exportação de açúcar, mas
sim ao alimento do gado urbano. A expansão agrícola nas áreas montanhosas a
oeste da cidade propiciava uma oferta de madeira que começava a ser
aproveitada. Até o final do século XVIII, elas haviam escapado quase intactas à
apropriação econômica. Subindo o vale do Rio Maracanã, em 1792, o secretário da
embaixada britânica, George Staunton, relatou que tanto os cumes das montanhas
quanto seus sopés encontravam-se guarnecidos de matas, enquanto as baixadas do
vale eram cobertas por "árvores muitíssimo altas", de modo que "não se via um
único pedaço de terra descoberto" (FRANÇA, 1999, p. 225). Mas o crescimento da
cidade, principalmente pós-1808, havia gerado uma grande demanda por
combustível, ao mesmo tempo em que o carvão vegetal era introduzido nas
cozinhas domésticas. As terras do vale dos Rios Maracanã e Comprido foram
limpas, a biomassa transformada em carvão e o solo plantado com frutas e
verduras (LUCCOCK, 1975, p. 191-2). Concluídas na década de 1810, as obras de
melhoramento da Estrada da Tijuca contribuiriam decisivamente para que o maciço
se tornasse, em pouco tempo, uma grande fonte de carvão para a cidade
(ABREVIADA, 1892, p. 376).
Em distâncias superiores a 20 km da cidade, a densidade demográfica diminuía e
o tamanho das fazendas aumentava, tornando possível que parte da mata fosse
conservada para o suprimento de combustível ao mercado urbano (LUCCOCK, 1975,
p. 196). A freguesia de Irajá, situada no começo dessa faixa, tinha uma
densidade de 20 habitantes por km2, enquanto a de escravos era de 11 por km2
(MACEDO, 2008, p. 125; MAPA, 1870, p. 137). Em Santo Antonio de Jacutinga, a 25
km da cidade, os engenhos açucareiros já eram dominantes, como observou o
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1822. Uma década atrás, essa
planície ainda sustentava densas florestas, abrigo de veados que rondavam
incautos as casas recém-construídas. Os campos de cana que sucederam essas
matas forneciam três safras consecutivas, a partir do que eram deixados em
repouso por quatro anos (SAINT-HILAIRE, 1932, p. 25; LUCCOCK, 1975, p. 192-3).
Regimes de pousio tão curtos não são sustentáveis e esses engenhos, muito
provavelmente, estavam perdendo suas matas secundárias mais desenvolvidas. As
capoeiras certamente não eram capazes de fornecer madeiras de construção e
mesmo a lenha podia estar escasseando. O grande consumo interno pode ser
apontado como a causa primordial de os engenhos, de modo geral, não se
engajarem na atividade madeireira. Mas essa explicação é um tanto tautológica:
os engenhos não produziam comercialmente madeira porque precisavam dela na
fabricação do açúcar, ou seja, precisavam dela para ser o que eram e não outra
coisa. Além do mais, não havia motivo aparente para que os engenhos não
produzissem alguma madeira, tendo em vista que esse produto beneficiar-se-ia
muito mais do que o açúcar da proximidade da cidade.
Para compreender esse fenômeno, deve-se lembrar que, para chegar às suas
conclusões, Thünen assumiu uma harmonização entre os interesses dos produtores
rurais e dos consumidores citadinos por meio da maior redução de custo possível
para ambos. Assim, seu esquema de localização ótima expressa um equilíbrio
interno ao sistema cidade-campo. Além disso, Thünen não considerou a atuação de
intermediários, pressupondo que os próprios produtores encarregar-se-iam de
levar suas mercadorias à venda. Mas o que ocorria, no caso das cidades
coloniais brasileiras, é que o açúcar não se destinava ao consumo urbano, mas
sim à exportação para a Europa; o preço do açúcar e, portanto, a localização
dos complexos que o produziam respondiam a uma demanda externa intermediada por
agentes que extraíam lucro no processo. O principal fator a modificar o padrão
thüniano, no Rio, era essa superposição de duas subordinações diferentes: ao
mercado urbano carioca e ao mercado europeu. Assim, a área da bacia da Baía de
Guanabara constituía a hinterlândia imediata de uma crescente metrópole urbana
e, ao mesmo tempo, parte da hinterlândia tropical distante do grande centro
consumidor mundial localizado na Europa ocidental (BROWN, 1986, p. 150).
Isto significa que os produtos que pagavam o açúcar não eram produzidos na
cidade, mas no exterior, e apenas distribuídos na cidade. Outra maneira de
dizer isso é afirmar que, em um cenário de grande escassez de moeda circulante,
os rurícolas coloniais que queriam ter acesso às mercadorias europeias (tecidos
finos, manufaturas metálicas, vinho e todos os bens altamente prezados pela
oligarquia rural) precisavam engajar-se na produção de itens com demanda de
exportação. Ainda que, em uma dada localização bastante próxima à cidade, fosse
mais rentável produzir madeira do que açúcar, a falta de perspectivas de troca
em uma cidade não-manufatureira orientava o produtor a preferir o açúcar. Era
isto que fazia com que fossem relativamente raros os engenhos engajados na
atividade madeireira. Ao que tudo indica, eram os pequenos produtores de
alimentos ' os quais não podiam almejar uma remuneração "europeia" de seus
produtos ' que preenchiam o nicho de abastecer o Rio de Janeiro com madeira
combustível e para construção. Assim, a harmonia que situava os complexos
açucareiros mais próximos do que as atividades madeireiras em relação ao
mercado urbano era, na verdade, uma harmonia entre produtores de exportação e
negociantes que atuavam no comércio exterior.
Quanto mais para as cabeceiras da bacia da baía de Guanabara ' as quais
constituíam os limites da hinterlândia imediata da cidade ', menos intensivo
tornava-se o uso da terra. Na freguesia de Guapimirim, a mais ou menos 60 km do
Rio, a densidade demográfica caía para 15 habitantes por km2, mas a de escravos
para oito (MACEDO, 2008, p. 125; MAPA, 1870, p. 138). Luccock dá o panorama de
uma fazenda localizada nessa freguesia. Um terço dos seus 730 hectares estava
plantado com 10 mil pés de café "novos e florescentes" e um pouco de mandioca
para alimento dos escravos, que somavam o pequeno número de 14. Havia uma
"quantidade conveniente de pastagens" e também "extensas matas para lenha,
gênero de pronta venda na cidade". Culturas permanentes como café, cacau e
algodão arbóreo eram mais adequadas a rurícolas faltos de escravos. Além disso,
elas permitiam que uma parcela considerável das terras permanecesse florestada.
A fronteira agrícola havia demorado a alcançar essas plagas localizadas a
grande distância da capital. Luccock conheceu um senhor de 90 anos que, em sua
mocidade, conhecera essas plagas "como inteiramente mato". Esse mesmo vale
abrigava também uma indústria de madeiras de construção. Os campônios cortavam
e serravam tábuas na mata, trazendo-as para a beira do rio em uma espécie de
trenó (LUCCOCK, 1975, p. 232).
Considerações finais
O Estado Isolado foi e ainda é uma referência importante para diversas
disciplinas que lidam com a população em sua dimensão espacial, tais como a
geodemografia, a geografia econômica e o planejamento urbano e regional. Neste
artigo, procurou-se alargar esse espectro para incluir a história ambiental.
Conforme observou Schlebecker (1960, p. 187), uma hipótese histórica, para ser
útil, deve estar alicerçada sobre um denominador comum da experiência humana. E
um denominador comum razoável é o fato que todos os homens estiveram, por uma
fração considerável da história humana, localizados a certa distância de uma
cidade. Pode-se assumir que essa experiência tenha ajudado a modelar muitas das
ideias e ações de qualquer grupo de pessoas.
Não cabe, como notou Clark, esperar mais de Thünen do que ele realmente pode
oferecer, ou seja, "um dos mais profundos e interessantes estudos de uma
economia rural nos dias do transporte a cavalo" (CLARK, 1967, p. 370). A
despeito das inúmeras limitações dos padrões conclusivos de von Thünen, o
princípio que guia sua análise ' ou seja, o efeito do custo de transporte sobre
a organização espacial do uso da terra rural ' é plenamente válido. Em seu já
clássico estudo sobre as relações entre Chicago e o Great West oitocentistas, o
historiador Cronon (1991, p. 52) observou:
O zoneamento da hinterlândia do Estado Isolado pode simplificar
demais as realidades diversas do Great West, mas, não obstante, ela
sugere os tipos de princípios de mercado subjacentes que conectaram
cidade e campo para transformar uma paisagem natural em uma economia
espacial. A estória de Chicago permanece incompreensível sem algum
conhecimento dos princípios de von Thünen.
Esta afirmação é valida para a maioria dos contextos pré-industriais ou semi-
industriais ao redor do mundo.
Evidentemente, a pesquisa histórica sobre o abastecimento madeireiro tem que
levar em conta muitos outros fatores além do custo de transporte. É preciso,
sobretudo, atenção à política urbana. Muitas cidades europeias, ainda na Idade
Média, procuraram assegurar um suprimento regular de produtos madeireiros
através da propriedade direta de bosques e florestas próximas. A municipalidade
podia adquirir áreas de floresta por meio de compra, podia recebê-las como
presentes de senhores de terra, podia apropriar-se delas como conquistas de
guerra ou ainda pela captura dos bens da Igreja, durante o período da Reforma.
Essas florestas eram fiscalizadas e manejadas por funcionários da
municipalidade e a renda advinda de sua exploração podia financiar gastos com a
construção de escolas, armazéns, estradas e outras infraestruturas urbanas
(Konijnendijk, 2008, p. 56-8). A estrutura da hinterlândia florestal podia,
portanto, ser primordialmente determinada pela capacidade política dos agentes
urbanos de reservar partes estratégias do espaço circunvizinho para a
satisfação das necessidades da cidade (ou seja, uma questão eminentemente
territorial). Cidades-enclave em território hostil podiam ser facilmente
debilitadas pela interrupção do suprimento madeireiro (KNOLL, 2006, p. 78). O
reconhecimento dessa dimensão político-territorial fundamental abre caminho
para um campo de investigações ainda relativamente novo, o das relações entre
abastecimento madeireiro e formação do Estado, no âmbito do qual se destaca o
estudo de Warde (2006).
De modo mais diretamente vinculado à dinâmica das trocas de mercado, o Estado
pré-industrial desempenhava o importante papel de regular a atividade dos
comerciantes de madeira. Os traficantes de madeira eram agentes centrais na
determinação da oferta local, um poder do qual eles frequentemente abusavam.
Eles foram muitas vezes acusados de antecipar a compra junto aos cortadores e
reter a mercadoria, inflacionando artificialmente os preços pagos nas cidades.
Para combater essa estratégia, um dos expedientes usados pelos governos locais
era a construção de depósitos para o armazenamento de madeira que, em tempos de
crise, era vendida aos citadinos por um preço moderado (de modo similar ao que
acontecia com os itens alimentares mais básicos).
É preciso entender como essas e outras práticas distorciam a distância-custo e,
consequentemente, a formação das zonas agromadeireiras ao redor dos centros
urbanos pré-industriais. Além disso, os fatores fisiográficos não podem ser
esquecidos. Variações no tipo de solo, no relevo desse solo, na configuração da
rede hidrográfica, entre outras, exerciam substanciais influências na
conformação das zonas de cultivo. Neste sentido, o modelo de Thünen não deve
engessar a pesquisa empírica, mas sim fornecer subsídios básicos para a
compreensão dos padrões socioespaciais historicamente existentes. Muito da
repulsa quase automática que os estudiosos demonstram em relação a Thünen
provém do desconhecimento sobre a complexidade de seu pensamento, notadamente a
diferença entre as perspectivas dos cultivos e da intensidade. Esta última
mostra-se muito mais flexível no que concerne à sua utilização criativa para
tornar inteligível a organização da produção rural, em tempos pré-industriais.
Um modelo de intensidade que associe agricultura e exploração madeireira é,
como procurou-se demonstrar neste artigo, um exemplo desse tipo de apropriação
criativa do pensamento thüniano.