Aspectos institucionais da unificação das polícias no Brasil
INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda a unificação das polícias estaduais brasileiras, militares
e civis. Meu enfoque não está na conveniência da unificação para o controle da
criminalidade. A literatura sobre as polícias é controversa quando se trata de
afirmar uma relação entre crime e prática policial (Bayley, 1994). As
organizações policiais atuam em ambientes altamente institucionalizados, nos
quais, mais que a eficiência, conta o fator legitimidade. Minha pergunta não é
se a eventual unificação reduzirá os índices de criminalidade, mas se aumentará
a legitimidade das polícias aos olhos de quem deve legitimá-las.
A existência de, no mínimo, duas polícias atuando no mesmo espaço geográfico (o
âmbito das províncias e, mais tarde, dos estados federados) tem sido o nosso
padrão histórico desde o Império (1822-1889)1. Partindo dessa constatação, por
que as recentes e reiteradas tentativas, por parte de políticos e da sociedade
civil, de unificar as atuais Polícias Militares e Civis?2 A resposta está
relacionada à extensão da cidadania no Brasil (Carvalho, 2002), que acarretou
(a) a ampliação qualitativa e quantitativa das fontes de legitimidade das
polícias e (b) a transformação de seu papel no controle social. De um lado, a
progressiva suplantação das estruturas clientelistas e a construção da
democracia tornam as polícias responsabilizáveis perante um universo político
mais extenso; de outro, as polícias abandonam antigas funções de controle
social e concentram-se no controle da criminalidade comum, atividade para a
qual a estrutura de duas polícias é vista como inadequada (Dallari, 1993; Silva
Filho, 2001; Bicudo, 2000).
Entretanto, como a idéia de unificação funciona como mito institucional (vide
próxima seção), terá de competir com outros mitos do ambiente institucional
(Meyer e Rowan, 1991). De maneira alguma há consenso sobre a unificação entre
os atores envolvidos na construção da legitimidade das polícias. Meu objetivo é
apontar aspectos pertinentes a essa disputa. Para tanto, utilizarei a idéia de
campo institucional (Lin, 2001). A principal conclusão será a de que, no
Brasil, não se completou a institucionalização de um campo policial. As
polícias responderam a demandas vindas de outros campos, notadamente o da
Justiça (Polícia Civil) e o da Defesa (Polícia Militar). Dessa perspectiva, a
proposta de unificação pode ser encarada como uma tentativa de transformar a
natureza das demandas sobre as organizações policiais.
As referências empíricas deste artigo foram buscadas na literatura em geral
sobre as polícias brasileiras, especialmente sobre as organizações de São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. As experiências regionais são diversas, o
que gera elementos de identidade e tradição bastante distintos. Minhas
conclusões, portanto, têm validade restrita ao âmbito das corporações policiais
desses estados. Por outro lado, as organizações policiais brasileiras sempre
tiveram características comuns, em termos de regulação legal e de seus papéis
no controle social. Não pretendo detalhar diferenças e semelhanças, mas propor
uma abordagem da questão que ultrapasse o debate sobre a eficiência no controle
do crime.
A POLÍCIA COMO ORGANIZAÇÃO INSTITUCIONALIZADA
A teoria das organizações tem distinguido entre ambientes técnicos ' nos quais
as organizações são recompensadas pela sua eficiência na realização de uma
atividade ' e ambientes institucionais ' em que a premiação se dá pela
adequação de suas práticas a regras e crenças vistas como apropriadas e
legítimas (March e Olsen, 1984:21-26; Scott e Meyer, 1991)3. Uma organização
pode operar em um ambiente mais ou menos técnico, mais ou menos institucional.
Há organizações altamente institucionalizadas ' como escolas, escritórios de
advocacia, igrejas ' que têm maior preocupação com sua legitimidade que
propriamente com a eficiência4. As polícias integram este grupo (Crank e
Langworthy, 1992), uma vez que operam em ambientes que exercem grande pressão
institucional e menor pressão técnica. Nas palavras de Meyer e Rowan, essas
organizações
"[...] são impelidas a incorporar as práticas e procedimentos
definidos por conceitos ' racionalizados, prevalecentes e
institucionalizados na sociedade ' do que deve ser o trabalho
organizacional. As organizações que agem assim aumentam suas
perspectivas de sobrevivência, independentemente da eficácia imediata
das práticas e procedimentos adquiridos. Produtos, serviços,
técnicas, políticas e programas institucionalizados funcionam como
poderosos mitos, e muitas organizações os adotam cerimonialmente.
[...] Para manter a conformidade cerimonial, as organizações que
refletem regras institucionais tendem a isolar [buffer] suas
estruturas formais das incertezas das atividades técnicas" (1991:
41)5.
O principal instrumento de proteção das organizações altamente
institucionalizadas são os mitos institucionais. Os mitos são entendimentos
sociais da realidade: prescrições racionalizadas e impessoais ' cuja aceitação
está além da discricionariedade de atores individuais ' que emprestam natureza
técnica a objetivos sociais, especificando de forma normativa os meios para
atingir propósitos técnicos.
Três processos explicam o surgimento dos mitos (idem:47-49). Primeiro, a
elaboração de redes de relações entre as variadas organizações do ambiente
institucional. As transações e trocas entre elas definem estruturas,
procedimentos e políticas. Na medida em que essas conexões perduram, as
estruturas podem atingir status mítico (Crank e Langworthy, 1992:350). Por
exemplo, universidades criam títulos cujo valor institucional é reconhecido
pelo mercado de trabalho. Um exemplo para o caso das polícias é o atendimento a
chamadas telefônicas. Mesmo que os estudos demonstrem que essa técnica tem
pouco impacto sobre as taxas de criminalidade (Bayley, 1994:3), pessoas e
organizações associam o pronto atendimento à eficiência policial.
Um segundo processo consiste na regulação legal do ambiente institucional. A
criação de mandatos legais, a regulação de práticas por intermédio de leis ou
regulamentos administrativos, o estabelecimento de requisitos para a prática de
profissões (Meyer e Rowan, 1991:48). Quanto maior a ordem legal-racional, maior
a extensão em que regras e procedimentos racionalizados se transformam em
exigências institucionais. No caso dos policiais, cuja profissão é intensamente
regulada, surgem mitos relacionados à formação profissional, tais como a noção
de que a aplicação da lei penal é uma resposta adequada a problemas de ordem
pública (Silva, 2001:73).
Finalmente, o terceiro processo é a própria reação das organizações, por meio
de suas lideranças, ao ambiente institucional. As organizações não são
passivas; ao contrário, lideranças, associações profissionais estão ativamente
engajadas na construção e elaboração dos mitos institucionais. Aqui podemos
citar a intervenção de lideranças policiais para justificar socialmente a
violência como instrumento de combate ao crime (Paixão, 1985).
A IDÉIA DE CAMPO INSTITUCIONAL
O que chamamos de ambiente institucional pode ser concebido em termos de uma
relação entre organizações, mitos e atores relevantes denominada campo
institucional (Lin, 2001; Powell e Dimaggio, 1991). O campo institucional é
definido por um processo de isomorfismo entre determinadas organizações, que
compartilham mitos e fontes de legitimidade, e que tenderão a adotar as mesmas
"regras do jogo" devido à intensa troca de recursos (técnicos e institucionais)
que estabelecem entre si6.
Importante para o processo de troca entre organizações é o que Lin (2001:191)
denomina organizações institucionalizantes, que são credenciadas, dentro de um
campo, a socializar seus membros. Exemplo típico são as universidades, as
quais, além de ensinarem a capacidade técnica a seus estudantes, proporcionam a
socialização necessária ao aprendizado dos parâmetros institucionais. As redes
sociais ' compostas de pessoas e grupos que compartilham valores e normas '
também são um importante fator de geração e troca de recursos. Atores que estão
fora do campo, ou que se encontram em posição periférica, podem unir esforços
para adentrá-lo, incorporando mitos alternativos e/ou criando novas
organizações institucionalizantes.
Powell e Dimaggio (1991) identificaram três mecanismos de isomorfismo, aos
quais chamaram
forças isomórficas
7: a força mimética, que consiste na imitação organizacional, ou seja, na
adoção ' intencional ou não ' de uma organização preexistente como modelo para
a criação de uma nova; a força coercitiva, que é o exercício direto ' formal ou
informal ' de controle de uma organização sobre outra; e a força normativa, que
é aquela do padrão profissional ' membros de diferentes organizações, oriundos
da mesma "profissão", tendem a reivindicar os mesmos direitos e rotinas.
Pode-se falar na institucionalização de um campo quando determinados atores,
pertencentes a determinadas organizações e relacionados às mesmas organizações
institucionalizantes, adotam soluções organizacionais consideradas legítimas e
apropriadas. As organizações passam a sofrer pressões normativas, coercitivas e
miméticas, no sentido de se parecerem umas com as outras.
Certamente, a institucionalização é um processo histórico. Existem importantes
variações na forma de legitimidade assumida por cada organização. Organizações
diferentes nunca terão o mesmo fluxo de recursos. O fato de sofrerem pressões
de um campo não as condena a respostas isomórficas (Powell, 1991). Apesar dessa
complexidade, os processos de isomorfismo são empiricamente verificáveis. A
própria existência dos diferentes "setores" atesta que determinadas
organizações possuem a consciência de estarem envolvidas em um empreendimento
comum (Powell e Dimaggio, 1991:65). Ambientes complexos criam heterogeneidades
e permitem às organizações responderem às demandas estrategicamente.
"Constrangimentos abrem algumas possibilidades ao mesmo tempo que
restringem ou negam outras [...]. A institucionalização é sempre uma
questão de grau, em parte porque é um processo histórico. [...] Se
reconhecermos que os ambientes institucionais são complexos e
pudermos identificar as fontes de demandas conflitantes, então
poderemos explicar as circunstâncias em que a institucionalização é
contestada ou incompleta" (Powell, 1991:195).
Argumento neste artigo que, no Brasil, a institucionalização do campo policial
não se completou. Em termos de mitos, atores relevantes e organizações
institucionalizantes, as polícias tiveram de responder a demandas vindas de
outros campos, notadamente o da Justiça e o da Defesa, localizadas na periferia
destes, e não no centro de um campo institucional policial. A proposta de
unificação pode ser encarada como uma tentativa de transformar a natureza das
demandas institucionais sobre as polícias, vale dizer, de alterar seus mitos,
atores relevantes e organizações institucionalizantes, na formação de um campo
propriamente policial.
O CAMPO INSTITUCIONAL POLICIAL
O estudo comparado da organização policial revela que as polícias modernas
realizam três atividades básicas (Bayley, 1975): (a) a investigação criminal;
(b) o uso da força paramilitar, nos casos considerados necessários (distúrbios
civis, repressão a movimentos sociais etc.) contra membros da própria
comunidade política; e (c) o patrulhamento uniformizado dos espaços públicos,
com a prerrogativa de uso da força.
Um possível campo institucional policial contém as organizações que desempenham
ao menos uma dessas tarefas. Monjardet (2003) relacionou essas três maneiras de
utilizar a força a três tipos ideais de Polícia: a polícia de ordem, a polícia
criminal e a polícia urbana. A instituição policial é uma combinação dessas
três funções: "O cliente da polícia de ordem é o Estado, o da polícia criminal
é o criminoso incontestável, e o da polícia urbana é o cidadão comum, o homem
sem qualidades" (idem:284). A rigor, apenas a terceira atividade é marcadamente
"moderna"; as outras duas, em épocas passadas, foram realizadas por
organizações que se misturavam à justiça criminal e aos exércitos. Sua
substituição pelas polícias, nos Estados europeus ocidentais, ocupou um período
de duzentos anos, entre os séculos XVII e XIX (Bayley, 1975). Conquanto essas
transformações tenham diversos motivos econômicos, sociais e políticos, cabe
chamar a atenção para dois mitos institucionais surgidos nesse período,
relacionados à evolução do Estado de direito: (1) a noção de que o "exército" a
aplicar a força contra os próprios cidadãos de um Estado deve ser diferente
daquele a ser empenhado contra não-cidadãos; e (2) a idéia de que a Justiça
deve ser imparcial e não deve investigar os crimes que vai punir.
Muitos autores têm relacionado o surgimento das polícias modernas à sua
utilização no controle de atividades de massa e das "classes perigosas"
(Santos, 1997; Silver, 1967). Os exércitos haviam funcionado como mecanismos de
emergência, alternando entre a não-intervenção e os mais drásticos
procedimentos (Silver, 1967:12). Uma organização policial uniformizada, por sua
vez, teria a capacidade de penetrar na sociedade, garantindo a presença
permanente da autoridade estatal. Modelando-se nas Forças Armadas, a nova
organização aproveitaria as soluções militarizadas na repressão a distúrbios
coletivos. Ao mesmo tempo, seu caráter permanente possibilitava uma nova
estratégia: o patrulhamento em pequenos grupos, a fim de prevenir a violência e
identificar supostos criminosos.
Mas para que essas novas táticas tivessem sucesso, a polícia não poderia se
fiar apenas em sua capacidade de coerção. Sem algum assentimento de seu
público, que implicasse o desarmamento consentido deste, os custos da nova
organização em muito ultrapassariam sua efetividade. A nova agência teria de
buscar o reconhecimento como mecanismo legítimo de controle social. A
construção de consenso interno e o desenvolvimento da polícia como instrumento
de coerção são processos que caminham lado a lado. As Forças Armadas, ao
contrário, não precisam da aceitação de seus destinatários (o inimigo). Ambas
estão permanentemente organizadas para usar a força. A polícia, entretanto, tem
que usar a força limitada, necessária, ou até agir sem usá-la, mesmo que isto
signifique gastar mais tempo e recursos. Obviamente, a polícia pode ser
empregada como exército, e o exército como polícia, como no caso das forças de
paz das Nações Unidas. Mas por ser ideal é que a definição nos interessa: o
controle da força, em uma democracia, serve como mito diferenciador entre
Polícia e Forças Armadas (Costa e Medeiros, 2003).
Com relação à investigação criminal, a formação das polícias modernas coincide
com o fortalecimento das liberdades individuais: o direito à ampla defesa, ao
processo contraditório, entre outras, que passam a transformar a maneira como a
Justiça está autorizada a atuar na punição de criminosos. Aqui, cabe ressaltar
o caráter discricionário e circunstancial do uso da força pela polícia
(Bittner, 2003). No "governo das leis", e não "dos homens", a
discricionariedade policial realiza a mediação entre um mundo do dever ser (da
lei) e um mundo do ser (dos homens).
A Justiça, quando toma conhecimento da prática de um crime, pode condenar ou
absolver o réu, mas não pode deixar de processá-lo. Como seria impossível abrir
um processo para cada crime que acontece de fato, a Justiça age apenas mediante
provocação, delegando a tarefa de escolher quem será processado a outras
agências, principalmente à polícia. Na prática, é a polícia quem decide colocar
o processo penal em funcionamento. A discricionariedade policial serve para
isolar a Justiça da investigação criminal, para que os tribunais possam ser
"imparciais". Se o Estado de direito estiver consolidado, espera-se que os
abusos cometidos pela Polícia sejam corrigidos pela própria Justiça.
Em resumo, o campo institucional policial é formado pelas organizações que
exercem a "polícia de ordem", a "polícia criminal" e a "polícia urbana". As
duas primeiras foram anteriormente exercidas por organizações que se misturavam
à Justiça e aos exércitos. A última é marcadamente moderna e depende da
inserção consensual das polícias no controle social. O desenvolvimento da
democracia e a combinação dessas três funções nas mesmas organizações policiais
provocaram a necessidade de consenso também com relação às polícias "de ordem"
e "criminal".
Cabe atentar para o número de organizações em um dado campo policial. Na
Alemanha, até 1975, cada unidade federada organizava sua(s) polícia(s), além de
existirem organizações federais (Bayley, 1975:333-340). Na França e Itália, são
duas as organizações nacionais, além de forças paramilitares especiais e forças
das comunas ou cidades. Na Inglaterra, o número de polícias caiu de 125, em
1960, para 43, em 1974, mantendo-se esta quantidade até 1988 (McKenzie e
Gallagher, 1989:7-8). Nos Estados Unidos, em 1980, havia 19.691 forças
registradas no Departamento de Justiça (idem).
No Brasil, há duas polícias por estado, três polícias da União, mais uma série
de Guardas Municipais. Portanto, não somos exceção em termos numéricos.
Entretanto, há uma peculiaridade. Conquanto nos países citados haja unidades
paramilitares especiais, em regra cada organização realiza as três tarefas
policiais. Sua diferenciação ocorre pelo critério geográfico e não funcional. A
especialização se dá no interior das organizações, vale dizer, de maneira
intra-organizacional ' por exemplo, nos Estados Unidos há officers patrulhando
as ruas e detectives investigando crimes, mas ambos pertencem à mesma
organização. No Brasil, a especialização é extra-organizacional: no mesmo
espaço geográfico, uma polícia se ocupa da investigação e a outra executa as
tarefas paramilitar e de patrulhamento.
A especialização extra-organizacional gera conseqüências para o campo
institucional. Dificulta a troca de pessoal entre as organizações, visto que os
policiais têm "profissões" diferentes (força normativa). A estrutura militar
não é vista como adequada às tarefas civis, e vice-versa (força mimética)8.
Além disso, durante a maior parte de sua história, as polícias foram
completamente separadas em termos de comando (força coercitiva). Apesar do
contato diário entre as duas organizações policiais, há pouca troca de recursos
técnicos e institucionais. As relações isomórficas são mais fortes entre as
diversas Polícias Civis, entre as diversas Polícias Militares e ' o mais grave
em termos do campo policial ' entre Polícia Civil e Justiça, e entre Polícia
Militar e Exército. Está incompleta a conquista democrática da separação
institucional Polícia-Justiça e Polícia-Exército.
Na seção seguinte, traçarei uma análise histórica das organizações policiais
brasileiras, procurando identificar as forças isomórficas que atuaram em sua
estruturação.
SENTIDO DA DUPLA ESTRUTURA POLICIAL BRASILEIRA
Os primeiros vinte anos do Império são marcados pela constante disputa por
autoridade política entre uma elite política nacional e elites locais
(Carvalho, 1981; Cintra, 1974:62). O equilíbrio se deu no plano das províncias:
ali seriam organizadas as eleições, a tributação e as principais forças
policiais e competências judiciais (Ferreira, 1999:30). As decisões ficariam a
cargo dos presidentes de província (poder central), com influência dos
proprietários rurais (poderes locais), mas desde que organizados no plano
provincial, o que foi possível por meio da formação das clientelas (Graham,
1997).
Na estrutura clientelista, faz todo sentido a transferência de poderes oficiais
a chefes políticos privados. O controle das Polícias Civis pelos "coronéis"
locais serviria para a formação das clientelas. Entretanto, devido à situação
de disputa entre centro e periferia, a capacidade de usar de força não poderia
implicar a de insubordinação política. A força policial paramilitar subordinar-
se-ia estritamente ao presidente de província, colocando-se sob os auspícios do
poder central. Ao mesmo tempo, como se destinava ao combate militar
propriamente dito (a repressão a rebeliões políticas), e não apenas ao controle
de distúrbios civis, a polícia deveria parecer um exército9.
Tanto a Guarda Nacional quanto as organizações que originaram as Polícias
Militares ' em São Paulo, o Corpo de Guarda Municipal, mais tarde Corpo
Policial Permanente (Fernandes, 1974:21) ' serviram ao propósito do poder
central de combater rebeliões locais, sendo o papel da Guarda minimizado a
partir de 1850 (Castro, 1977). Note-se que não houve preocupação com o controle
da força como mito institucional, visto serem aqueles homens preparados para o
verdadeiro combate militar. Ocorreu uma "imitação" do Exército (força
mimética), vale dizer, a polícia adotou soluções organizacionais militares.
Muitos comandantes das Polícias Militares eram recrutados entre os oficiais do
Exército10.
A Justiça na Colônia havia sido responsabilidade primordial das Câmaras
Municipais, eleitas pelos proprietários locais (Prado Junior, 2000). Após uma
breve interrupção entre 1822 e 1831, os proprietários locais continuaram a
eleger os juízes de paz, que tinham atribuições policiais (investigar, prender)
e judiciais (formar culpa, escolher jurados). A partir de 1841, entretanto, uma
reforma processual penal transfere grande parte dessas atribuições à nova
figura dos delegados de Polícia. Ao contrário do juiz de paz, o delegado não
era eleito por chefes locais, mas nomeado pelo poder central. Tal medida não
visava, necessariamente, evitar que os senhores locais exercessem um controle
social privado. Obrigava-os, entretanto, a compactuar com o poder central.
Apesar de se subordinarem a um membro do Poder Judiciário (o "chefe de
Polícia"), não havia requisitos formais para a ocupação do cargo de delegado,
cujos ocupantes poderiam ser recrutados entre homens abastados das localidades
(Fernandes, 1974:67; Graham, 1997:87). A mistura de poderes judiciais e
policiais era fundamental porque permitia a formação das clientelas11. Aqui,
além da força mimética, percebe-se uma pressão coercitiva exercida pelo Poder
Judiciário: a atividade policial era regulada pelo processo penal. Obviamente,
a investigação criminal não surge como resultado do mito da imparcialidade da
Justiça.
O patrulhamento uniformizado foi a atividade policial que mais tempo demorou a
institucionalizar-se no Brasil. Isto porque a base do controle social esteve a
cargo das clientelas privadas. Patrulhas uniformizadas existiram nos reduzidos
ambientes urbanos. No ambiente rural, conquanto fossem permitidas, serviam
menos para o policiamento e mais para a fixação da força de trabalho ociosa
(Fernandes, 1974:97).
O patrulhamento cresceu no mesmo passo lento e, posteriormente, no mesmo passo
largo da urbanização12. Seu controle oscilou entre as organizações militares e
as civis, em uma disputa acirrada que reflete a dificuldade de
institucionalização de um campo policial. Justamente a atividade policial mais
singular foi historicamente a mais enfraquecida13.
A República aprofundou o processo de identificação das polícias com o campo da
Defesa, de um lado, e o campo da Justiça, de outro. Na política dos
governadores ' marcada pela disputa entre os partidos estaduais pelo domínio do
poder central (Cintra, 1974) ', as polícias atuavam como verdadeiros exércitos.
A Força Pública de São Paulo passa a contar com uma artilharia aérea, estando
empenhada em conflitos em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Ceará, Bahia,
Goiás e Mato Grosso (Moraes, 2001:77). Contrata a Missão Francesa para receber
instrução militar em 1905, doze anos antes do próprio Exército Nacional. Em
1932 (Revolução Constitucionalista), entra em guerra contra o próprio Exército.
Para vencê-la, Vargas precisou contar com a poderosa polícia de Minas Gerais
(Marco Filho, 1999).
Certamente, aí notamos a força isomórfica mimética, ou seja, a imitação da
estrutura do Exército. Com o processo de profissionalização ' definição de
carreiras, instrução pela Missão Francesa etc. ' vemos a força isomórfica
normativa, consagrada pela expressão "militares dos estados". A partir de 1934,
na tentativa de controlar o poderio bélico das forças públicas, a nova
Constituição declara-as "forças auxiliares e de reserva do Exército", impondo
algum controle coercitivo por parte do próprio Exército Nacional.
A reforma processual penal de 1871 retirou dos delegados as atribuições
judiciais, mas manteve a Polícia Civil ligada ao processo penal, por meio do
mecanismo do inquérito policial, regulado pelo Código de Processo Penal, que
estabelece mecanismos coercitivos do Judiciário em relação às polícias. Também
houve um processo de profissionalização: cada vez mais se exige o diploma em
direito para ocupação do cargo de delegado (força normativa).
Não é a política dos governadores que explica o aprofundamento das forças
isomórficas entre Polícia Civil e Justiça, mas a gradual liberalização da ordem
jurídica, sem alteração significativa da ordem social. A escravidão foi
abolida, o sufrágio foi ampliado, os direitos individuais legalmente
reconhecidos. Não obstante, a sociedade brasileira continuou extremamente
desigual. Assim, o Poder Judiciário (espaço da legalidade) passa a depender de
uma agência externa para mediar a aplicação da ordem jurídica igualitária. A
Polícia Civil transforma-se em um filtro cuja função é interpretar a situação
real (desigual) antes que esta chegue ao Judiciário, ou mesmo impedindo que
chegue (Kant de Lima, 1995). Eis a força mimética: o inquérito policial
funciona como "pré-processo" penal, em que se forma a culpa sem as garantias da
ordem jurídica igualitária (Oliveira, 1985).
O pertencimento das Polícias Militar e Civil aos campos da Defesa e da Justiça
não implica sua subordinação aos exércitos e tribunais. Minha assertiva é
apenas que ' em um ambiente em que as polícias trocam recursos institucionais
com outras organizações ' as trocas privilegiaram as organizações da Defesa e
da Justiça, e não as próprias polícias. As forças coercitivas que existem não
são únicas nem irresistíveis.
Apenas em 1934 as Polícias Militares foram declaradas "forças auxiliares" do
Exército14. Entretanto, isto não as impediu de atuar como se exércitos fossem,
mesmo antes de 1934. Se assumirmos, de acordo com Costa e Medeiros (2003), que
as polícias podem ser militarizadas em seis dimensões autônomas ' organização,
treinamento, emprego, controle, inteligência e justiça ', veremos que apenas
uma dessas dimensões (controle) envolve subordinação direta às Forças Armadas.
As demais dizem respeito a processos em que as polícias são indiretamente
influenciadas por organizações militares (como os tribunais militares ou
sistemas de inteligência), ou tomam as organizações militares como modelo,
adotando códigos disciplinares, estratégias de emprego ou hierarquias
militarizadas.
Em todo o mundo, as polícias tornaram-se militarizadas em algum grau. As
polícias estadunidenses têm estatuto civil, o que não as impede de adotar a
hierarquia militar como modelo (dimensão "organização"), nem de empregar
unidades paramilitares (dimensão "emprego")15. A tradição brasileira é de maior
militarização em todas as dimensões, mas é falsa a polarização entre aqueles
que, por um viés, identificam no vínculo formal Polícia-Exército as marcas da
ditadura militar (Zaverucha, 1992) e, por outro, reconhecem apenas uma estética
militar remanescente nas polícias (Sapori e Souza, 2001).
De um lado, alguma vinculação formal entre Exército e Polícia existe desde
1934, não apenas como resultado de ditaduras militares, mas como uma
necessidade do poder central ' civil e militar ' de controlar corporações que
podem atuar, na prática, como exércitos16. O governo civil mais estável dos
últimos vinte anos ' o de Fernando Henrique Cardoso ', em exposição de motivos
de sua proposta de reforma das polícias (Proposta de Emenda Constitucional '
PEC 514/1997), defendeu um arranjo em que cada estado poderia "estabelecer
quais os órgãos de segurança pública a serem criados". Entretanto, a emenda
mantém a natureza de "força auxiliar" das polícias, caso os estados optem por
corporações militares. Mais ainda, a proposta cria uma nova guarda nacional,
composta por membros das polícias estaduais civis e militares17.
De outro lado, apesar de sua expressiva desmilitarização nas dimensões do
treinamento e do emprego (comparando a situação atual com o passado), as
polícias permanecem militarizadas quando se trata de código disciplinar,
justiça, poder de veto exercido pelo Exército, e mesmo de seu emprego, como
atestam as constantes "invasões" de favelas no Rio de Janeiro, o histórico das
Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar ' ROTA, em São Paulo, ou o recente episódio,
em 1999, em que o então governador Itamar Franco (MG) ameaçou usar a Polícia
Militar para "defender" Furnas contra a privatização.
Tampouco pretendo afirmar a subordinação das Polícias Civis ao Poder
Judiciário. As organizações policiais em todo o mundo integram sistemas de
justiça criminal, mais ou menos articulados, que envolvem atores independentes,
como juízes, policiais e promotores. As polícias atuam nesses sistemas por meio
de padrões de "cooperação antagonística", que revelam instâncias de conflito e
rivalidade interorganizacional (Paixão, 1982:64).
Se atuar como agência do sistema criminal é uma função comum a muitas polícias,
no caso das Polícias Civis brasileiras, é a própria razão de ser da
organização. Ao mesmo tempo, configura uma tarefa proibida às Polícias
Militares. Os policiais militares, ao patrulharem as ruas, atuam na definição
discricionária de quando se deve ou não acionar a lei penal. Mas encerram sua
participação ao entregarem supostos criminosos à autoridade policial civil.
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e
Políticos de São Paulo ' IDESP com delegados de Polícia de nove unidades da
federação, a principal característica de um bom delegado é a "capacidade de
preparar inquéritos bem circunstanciados", seguida pelo "saber jurídico"
(Sadek, 2003:18)18. Pesquisa coordenada por Minayo e Souza (2003:163-181) ' com
policiais civis fluminenses de todos os níveis hierárquicos e funcionais '
ressalta a imagem dos policiais como profissionais de investigação. Essa
investigação, entretanto, acontece no âmbito do inquérito, cujos procedimentos
são regulados pelo mesmo Código de Processo Penal que define o trabalho do juiz
e do promotor19.
Sem dúvida, não se deve confundir a atividade da polícia judiciária com a
rotina prática do distrito policial. O produto final do trabalho policial é a
classificação formal de indivíduos em artigos das leis criminais. A
investigação, entretanto, busca menos a apuração do crime e mais a
identificação, na "clientela marginal" da organização, de possíveis autores dos
crimes. Para tanto, a polícia utiliza estoques de conhecimento anteriores ao
inquérito, especialmente tipificações organizacionais que articulam ação
criminosa e atores típicos (Paixão, 1982:74-75).
Mas a disjunção entre atividades formais e práticas não torna sem importância o
fato de que a estrutura das Polícias Civis é análoga à do Poder Judiciário. "É
através da crença de que atividades práticas derivam e são controladas pelo
desenho racional da estrutura que as organizações adquirem legitimidade junto
ao ambiente externo" (idem:66). Dissemos acima que, no ambiente institucional,
a regulação de práticas por meio de leis, o estabelecimento de requisitos para
a prática de profissões, aumentam a extensão em que procedimentos
racionalizados se transformam em requisitos institucionais. Realizar o
inquérito, mesmo que de forma diferente daquela prescrita na lei, torna-se a
principal função de uma organização que precisa se legitimar, perante os atores
relevantes, para garantir sua sobrevivência. Por sua vez, o inquérito não é
orientado para a administração de conflitos, mas para a "inexorável punição dos
transgressores" (Kant de Lima, 2003:252). Segurança pública e aplicação da lei
penal confundem-se.
A Caminho da Unificação?
As palavras de Jorge da Silva, acadêmico e coronel da Polícia Militar do Rio de
Janeiro, são auto-explicativas na definição dos mitos institucionais das duas
corporações policiais:
"Conduzida a atividade policial por operadores do direito, prevalece
a visão segundo a qual os problemas do crime e da ordem pública se
resolvem com a lei penal. Conduzida a atividade por militares,
sobretudo do Exército, os problemas se resolveriam com a força. Na
ótica penal, falar de segurança pública consiste normalmente em falar
de crime e de criminoso [...]. Esta perspectiva tem dificuldade de
enxergar o crime no atacado, como um fenômeno sociopolítico e
histórico, e sequer olha para aquelas questões da ordem pública que
nada tenham a ver com crime. [...] Se a violência campeia, seria
porque faltam leis mais duras; seria porque 'a polícia prende e a
justiça solta'; seria por causa da burocracia dos inquéritos; da
falta de pessoal e recursos materiais nas delegacias [...]. A
avaliação da polícia em geral relaciona-se à quantidade de inquéritos
realizados e de infratores levados aos tribunais, pouco importando as
ações de prevenção, os crimes que não tenham caído nas malhas do
sistema, perdidos na imensidão das 'cifras obscuras'; e os crimes que
podem vir a ocorrer.
Na ótica militar, falar de 'ordem pública' é, curiosamente, falar de
desordem pública, de combate, de guerra, contra inimigos abstratos
que, no atacado, estariam à espreita em lugares suspeitos e
determinados [...]. Considerando o crime como uma patologia
intolerável e os conflitos de interesses [...] como 'desarrumação' da
'ordem' [...], o modelo militar tem a pretensão de 'vencer' os
criminosos [...], de erradicar o crime, de 'acabar' com a 'desordem'.
[...] Com preocupação com os criminosos em abstrato, portanto,
imagina-se que se a violência campeia é porque os efetivos são
insuficientes; porque a polícia judiciária fica nas delegacias [...];
porque a polícia está menos armada que os bandidos; porque faltam
motivação e 'garra' aos policiais. Curiosamente, a avaliação do
desempenho da polícia é feita como se alguém quisesse demonstrar a
sua incompetência. [Q]uanto maior o número (e o tamanho) de 'cercos',
'incursões', 'operações', 'ocupações' e blitze, tanto melhor. Nem
pensar em séries históricas das taxas de criminalidade e de
vitimização.
[N]a prática, esta visão penalista-militarista da segurança pública
consolidou-se entre nós. É com este modelo duplamente enviesado na
cabeça que os policiais (e o poder político também) operam" (2001:73-
75).
Duas características desse texto chamam a atenção: a certeza da ineficiência
dos mitos institucionais preponderantes e a impotência do ator individual,
membro de uma das organizações, diante da realidade institucional. Não basta a
demonstração da ineficiência das práticas, pois os mitos estão
institucionalizados na cabeça dos policiais (organização) e do poder político
(ator relevante).
Mas, então, de onde viria a idéia de unificação? Afirmei acima que a formação
das polícias modernas respondeu a necessidades de controle social. A nova
organização era, ao mesmo tempo, repressora ' na medida em que exercia o
monopólio da violência física legítima ' e protetora ' uma vez que existia para
garantir um consenso social. Santos (1997) chamou essa ambivalência entre o
exercício da coação física e a promoção do consenso de "dilema entre a arma e a
flor". Na democracia, as três funções policiais experimentam esse dilema.
A história brasileira foi marcada pelo predomínio das Polícias "de ordem" e "de
criminalidade", sem que se aplicasse a essas funções os mitos institucionais
característicos da democracia e do Estado de direito. A segunda metade do
século XX marcou o desenvolvimento de uma polícia "urbana" de patrulhamento,
especialmente a partir da década de 60, quando os currículos das polícias
uniformizadas passam a incluir menos disciplinas "militares" e mais disciplinas
"civis" (Sapori e Souza, 2001). As polícias passam a sofrer pressões no sentido
de redesenhar o seu papel. Suas funções eleitorais já estavam mais ou menos
enterradas desde a Revolução de 1930. Ao mesmo tempo, se a federação brasileira
não atingiu propriamente um equilíbrio, tornou-se suficientemente estável a
ponto de dispensar (ou diminuir) os exércitos estaduais. Desapareceram os
movimentos armados característicos da formação política brasileira.
Entretanto, o contexto não democrático tornava difícil traduzir essa expressiva
"desmilitarização" em termos da construção de um consenso sobre o papel das
polícias, cuja resposta continuava privilegiando a "arma" em vez da "flor". A
Constituição "cidadã" de 1988 marca o momento a partir do qual a sociedade
brasileira passa a reivindicar também a "flor". A "arma" possui menos
destinatários específicos ("classes perigosas", grupos políticos). Seu
"cliente" é a população como um todo. A polícia é vista como serviço público
essencial20.
Além dos controles da Justiça (comum e militar) e do Exército, as polícias
passam a ser controladas pelo Ministério Público, instituição que representa
toda a sociedade na supervisão de serviços públicos. Alguns estados criam
outras agências de controle externo, como as ouvidorias de Polícia. No rastro
do crescimento da criminalidade, acadêmicos, movimentos sociais, políticos e as
próprias lideranças policiais discutem a questão da segurança pública como
nunca haviam feito antes (Soares, 2000; Kant de Lima et alii, 2000). A
discussão se dá tendo como pano de fundo o paradigma do Estado democrático de
direito (Cerqueira, 1996).
A crescente base de legitimidade das polícias exige uma atuação cada vez mais
embasada no princípio da igualdade perante a lei. As polícias passam a
responder não apenas à burocracia central e a poderes privados locais, mas ao
conjunto da comunidade política. Ao mesmo tempo, precisam reagir ao aumento da
criminalidade. A grande distância organizacional entre as duas polícias passa a
ser vista como fator de ineficiência na realização dessa tarefa (Dallari, 1993;
Silva Filho, 2001).
Em termos da idéia de campo institucional, portanto, estamos falando do
surgimento de mitos institucionais alternativos e de mudança na natureza dos
atores relevantes. Entretanto, mesmo que esses novos atores sejam bem-sucedidos
na alteração dos mitos institucionais, isso não garante uma futura unificação.
Primeiro, a unificação é apenas um dos vários caminhos. Beato Filho (s/d), por
exemplo, argumenta em favor de soluções "minimalistas" no âmbito do
gerenciamento das relações da polícia com o público. Evita, assim, a falsa
premissa de que haja uma estrutura ideal de polícia democrática. O público deve
perceber a polícia como instituição confiável, capaz de responder aos
"problemas de polícia". Dessa perspectiva, o fundamental não é que as polícias
sejam unificadas, mas que as organizações aprendam a trocar recursos entre si.
Segundo, organizações altamente institucionalizadas tendem a sair de crises de
legitimidade mediante ritos cerimoniais, em vez da efetiva reestruturação
organizacional. Crank e Langworthy (1992) descreveram a tendência, nas polícias
estadunidenses, de degradação pública do chefe de Polícia e sua substituição
por outro com "mandato legitimante". No Brasil, podemos traçar um paralelo com
a inclinação das polícias para resolver crises por meio de grandes operações de
demonstração da eficiência policial, como as recentes operações para prender o
traficante Elias Maluco, pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Terceiro, como já salientei, as experiências regionais são muito diversas. A
unificação exige a aprovação de uma emenda constitucional, ou seja, de três
quintos dos estados da federação, representados por seus senadores. Cada estado
sofre de maneira diferente os fenômenos da criminalidade, da extensão da
cidadania, da institucionalização das polícias. A organização das forças
policiais no âmbito constitucional ' vista como uma padronização excessiva,
como uma "indiferença pelas diferenças" ' tem sido bastante criticada por
estudiosos e reformadores (Coelho, 1989). Mesmo que se alcance um grande
consenso em torno da unificação, digamos, em São Paulo, este não será
suficiente21. Um eventual consenso com relação à unificação terá de ser um
consenso federativo22.
Se perspectivas de unificação existem, são bastante incertas. Mais útil que
fazer exercícios de futurologia será identificar as forças de aproximação das
duas polícias. No plano das forças coercitivas, destaca-se a já citada
subordinação das polícias à mesma Secretaria de Segurança Pública adotada por
vários estados nos últimos anos23. Ainda, vários estados criaram conselhos de
"defesa social" ou de "segurança pública", com maior ou menor poder
deliberativo, nos quais têm assento ambas as polícias. Finalmente, vislumbra-se
que o Poder Executivo federal venha a ter maior participação na política de
segurança, o que forçaria uma maior padronização, pois o governo tenderia a
exigir a mesma contrapartida em troca da liberação de recursos financeiros.
Em termos das forças normativas, destacam-se as recentes reelaborações dos
códigos de ética e dos currículos das academias de Polícia Militar nos estados
onde a Polícia tem maior tradição profissional, como Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul. Essa revisão se dá em meio a uma crise de
identidade devido à percepção, pelos próprios policiais, da inadequação da
instrução militar para o trabalho policial (Muniz, 2001:10-12).
Em termos de novos atores e redes sociais, pode crescer nos próximos anos a
atuação de associações civis cujos membros são policiais "progressistas" de
ambas as corporações24. Também é fundamental destacar o papel da universidade,
com seus recém-criados centros de pesquisa em criminalidade, segurança pública
e violência, que oferecem cursos de especialização freqüentados, inclusive, por
policiais civis e militares (Kant de Lima, 2003). A universidade funciona como
organização institucionalizante alternativa.
Finalmente, o principal indicativo de força mimética são as "operações
conjuntas" de ambas as polícias, sendo que algumas dessas experiências utilizam
expressamente a idéia de "integração" das polícias (Brasil e Abreu, 2002).
Destaca-se a proposta de unificação metodológica em termos de coleta e
armazenamento de dados, por intermédio do Sistema Único de Segurança Pública25.
É de se notar, ainda, o surgimento, no plano internacional, de um "setor"
especializado em polícia, com linhas de financiamento, think tanks,
tecnologias, conferências etc. Como grande parte das polícias do mundo
ocidental é unificada (em termos das atividades do campo policial), pode-se
supor que as forças miméticas atuarão sobre as polícias brasileiras no sentido
de aproximá-las.
CONCLUSÃO
Procurei perceber a unificação das polícias de um ponto de vista institucional.
Tal perspectiva foi útil porque nos permitiu afastar a armadilha da defesa da
unificação como solução eficiente para o problema do crime. Em ambientes
altamente institucionalizados, o fator eficiência tem menor importância.
Não obstante, a proposta de unificação é reiterada e, portanto, tem significado
para o futuro da organização policial como uma idéia capaz de influenciar as
mudanças institucionais (Weir, 1992). A partir das noções de mito
institucional, atores relevantes e de campo institucional, foi possível
identificar uma tendência à maior institucionalização do campo propriamente
policial, em detrimento dos campos judicial e militar. Nesse sentido, a
proposta de unificação pode ser vista como democrática, independentemente de
critérios técnicos e relaciona-se à noção de que Polícia, Justiça e Forças
Armadas são organizações distintas. A tendência de institucionalização do campo
policial pôde ser identificada. Até onde ela irá, entretanto, é uma questão a
se resolver na história e na política.
NOTAS
1. A divisão remonta à vinda da Corte portuguesa. D. João criou, em 10 de maio
de 1808, a Intendência Geral de Polícia da Corte, considerada o embrião da
polícia civil fluminense. Um ano mais tarde, estabeleceu-se a Guarda Real de
Polícia da Corte, para o patrulhamento da capital (Santos, 1985:17). Como as
polícias estão ligadas ao processo de formação do Estado (Bayley, 1975),
preferi tomar o Império como referência.
2. A unificação foi proposta, por exemplo, pelo deputado federal Hélio Bicudo
(PEC 46/91), pela deputada federal Zulaiê Cobra (PEC 613/98), pela Comissão
Mista Especial de Segurança Pública do Congresso Nacional (2002) e pelo Fórum
Nacional de Ouvidores de Polícia (2000).
3. "[...] ambientes técnicos são aqueles em que um produto ou serviço é trocado
num mercado que remunera as organizações pelo controle eficiente e efetivo de
seus sistemas de produção. [...] ambientes institucionais são [...] aqueles
caracterizados pela elaboração de regras e requisitos aos quais as organizações
individuais devem conformar-se para receber apoio e legitimidade. [...] As
organizações são recompensadas por conformar-se a regras e crenças, qualquer
que seja a fonte destas" (Scott e Meyer, 1991:123, ênfases no original).
4. Firmas manufatureiras são exemplos de organizações em que predomina o
ambiente técnico, enquanto bancos e hospitais sofrem pressões técnicas e
institucionais.
5. As traduções das citações em inglês são minhas.
6. "Pode-se dizer que determinadas organizações integram um campo institucional
quando respeitam e reconhecem um conjunto específico de instituições. Ao
ajustarem suas estruturas internas e padrões de comportamento, as organizações
reduzem os custos de transação na interação com outras organizações ditadas
pelas mesmas instituições" (Lin, 2001:188).
7. Os autores usam a expressão campo organizacional, em vez de campo
institucional. Os dois termos não são contraditórios, mas complementares. Lin
(2001) e Powell e Dimaggio (1991) falam de um mesmo processo de isomorfismo,
visto por dois diferentes ângulos. Enquanto o isomorfismo institucional
enfatiza o viés normativo ' a idéia de regras ', o isomorfismo organizacional
remete à idéia de atividade ou função.
8. Muitos policiais civis prestam concurso para as carreiras do Ministério
Público e da Justiça, mas raramente se interessam pela carreira policial
militar. Nos estados de profissionalização tardia das polícias civis, era comum
encontrar policiais militares "fazendo as vezes" de delegados (Brasil e Abreu,
2002:328). Isso sempre foi visto pelos delegados "de carreira" como uma
anomalia. Depois da Constituição de 1988, muitos promotores e juízes deixaram
de aceitar inquéritos feitos por policiais militares. Por fim, nos estados de
profissionalização tardia das polícias militares, até a década de 90, era comum
a incorporação automática, sem concurso público ou curso de formação
específico, de oficiais do Exército nos quadros das polícias militares.
9. Não poderia ser o Exército devido à grande desconfiança que a elite civil
imperial nutria com relação ao militares, tendo submetido o Exército ao que
Coelho (1976:34-58) chamou de "política de erradicação".
10. "O tom que dita o processo [de criação da Polícia Militar de São Paulo] é
de um militarismo 'civilista', entendido como um militarismo perfeitamente
controlado pela 'sociedade civil', ou seja, um militarismo apolítico ' no
sentido de não ser, ao contrário do que ocorreu com algumas alas do Exército,
ameaçador, mas reforçador do status quo" (Fernandes, 1974:71).
11. "[O]s delegados não apenas acusavam, mas também reuniam provas, ouviam
testemunhas e apresentavam ao juiz municipal um relatório escrito da
investigação, sobre o qual baseava seu veredicto. Além de expedir mandados de
prisão e estabelecer fianças, eles mesmos julgavam delitos menores, como a
infração de normas municipais." (Graham, 1997:88)
12. O efetivo da Força Pública (Polícia Militar) de São Paulo cresceu de 12.218
homens, em 1951, para 31.000 homens, em 1963, e para 50.000, em 1970 (Moraes,
2001:73-75).
13. A província de São Paulo criou, em 1875, a Guarda de Urbanos, sob o comando
da Polícia Civil. De 1891 a 1892 ela passa ao comando da Polícia Militar, como
uma especialização intra-organizacional. Depois, entre 1897 e 1901, volta ao
controle da Polícia Civil, com o nome de Guardas Cívicos da Capital. Em 1901, é
novamente incorporada à Força Pública, como uma especialização intra-
organizacional. Em 1926, volta à Polícia Civil, sob o nome de Guarda Civil.
Finalmente, em 1969, é fundida com a Força Pública na criação da Polícia
Militar do Estado de São Paulo (Fernandes, 1974).
14. A Constituição de 1946 manteve a vinculação das polícias ao Exército.
Entretanto, os estados ficavam livres para criar outras corporações de
policiamento ostensivo, como as Guardas Civis, além de contarem com ampla
discricionariedade no tocante à organização, formas de emprego das polícias e
garantias de seus membros. O Decreto-Lei nº 317/67 inaugurou um controle mais
rígido por parte do Exército. A Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão
do Exército criado em 1969, controlava os currículos, a distribuição geográfica
dos batalhões e até as listas de promoção das polícias. O controle pelas Forças
Armadas passa a ser cada vez mais reduzido a partir da abertura política, mas a
legislação ainda confere poderes de veto ao Exército (Decreto-Lei nº 2.010/83).
15. Kraska e Cubelis (1997) observaram uma grande proliferação de unidades
paramilitares nos Estados Unidos desde o final da Guerra Fria. Sua utilização
ocorre cada vez mais em "batidas" pró-ativas, em "zonas quentes" de
criminalidade. Anteriormente, essas unidades eram empregadas apenas em
situações de extrema gravidade. Na dimensão emprego, os autores afirmam uma
grande militarização do policiamento estadunidense.
16. Em muitos momentos do período 1946-1964, governadores usaram ou ameaçaram
usar as polícias militares como exércitos. Por exemplo, a ameaça de Juscelino
Kubitschek de garantir sua candidatura à Presidência pelas armas (1955) e a
defesa da posse de João Goulart, pelo governador Leonel Brizola (1961). No
golpe de 1964, segundo a polícia mineira, 18 mil de seus homens marcharam para
a Guanabara (Marco Filho, 1999:82-87).
17. A exposição de motivos da PEC 514/97 esclarece que "tal dispositivo, que
fortalece a idéia de cooperação entre os entes federativos, reduz a
possibilidade de uso excepcional das Forças Armadas em conflitos internos".
18. Ressalte-se que os currículos dos cursos de direito não possuem nenhuma
disciplina relacionada à prática policial, além do Processo Penal.
19. A polícia civil não existe "para realizar a segurança pública", ou "para
manter a ordem", mas para "registrar e investigar as ações e omissões definidas
por lei como infrações penais, identificando as autorias e recolhendo provas
que servirão de base aos membros do Ministério Público para o oferecimento da
denúncia, peça inicial do procedimento criminal realizado pelo Poder
Judiciário" (Minayo e Souza, 2003:67).
20. Nas palavras do coronel-PM Carlos Magno Cerqueira (1996:195), deve-se
substituir a noção de "força pública que serve e protege" para a noção de
"serviço público que pode usar a força".
21. Em fevereiro de 2002, treze deputados paulistas compareceram a Brasília
para pedir a unificação das polícias ao então presidente da Câmara, Aécio
Neves. Na comitiva, deputados do PT ao PPB, passando pelo PFL e pelo PSDB
("Câmara Acerta Cooperação com Assembléia Paulista", Agência Câmara, 21/2/
2002).
22. 73% dos delegados entrevistados pelo IDESP concordam "totalmente" ou "em
termos" com a unificação das polícias. Entretanto, teste estatístico revelou
que os estados do Nordeste e do Centro-Oeste têm peso maior nas frações de
discordância (Arantes e Cunha, 2003:129-130). Ressalte-se que a pesquisa foi
realizada com base em uma pergunta genérica, sem especificar regras de
transição ou alterações no inquérito policial.
23. Discute-se se essa subordinação é jurídica ou apenas operacional. Segundo
as polícias, a Constituição Federal as vincula única e exclusivamente ao
governador. Apesar da reunião formal das duas organizações na mesma Secretaria
de Estado, ambas gozam de autonomia financeira e orçamentária.
24. Vide a recente criação do Instituto Brasileiro de Operadores de Segurança
Pública ' IOSP, presidido pelo delegado mineiro Jésus Trindade Barreto Júnior.
25. O ponto fulcral da proposta é a implantação de "gabinetes integrados de
segurança pública", operados em parceria por membros das organizações
policiais, do Judiciário e dos Poderes Executivos federal e estadual.