Relações internacionais do Brasil: um balanço da era Cardoso
Introdução
O triunfo do capitalismo sobre o socialismo soviético em 1989 deu impulso à
globalização em sua dimensão horizontal e vertical. Três fatores influíram
sobre o reordenamento das relações internacionais: a ideologia neoliberal, a
supremacia do mercado e a superioridade militar dos Estados Unidos. A
globalização engendrou nova realidade econômica caracterizada pelo aumento do
volume e da velocidade dos fluxos financeiros internacionais, pelo nivelamento
comercial em termos de oferta e demanda, pela convergência de processos
produtivos e, enfim, pela convergência de regulações nos Estados.
Essa tendência histórica deparou-se, entretanto, com duas outras, uma que a
continha e outra que a embalava: a formação de blocos econômicos e a nova
assimetria entre o centro do capitalismo e sua periferia.
Diante desse cenário internacional, a política exterior do Brasil adaptou-se de
modo não simples. À primeira vista, parece haver-se perdido o rumo que por
sessenta anos havia impresso racionalidade e continuidade à política exterior
de um Estado que buscava obstinadamente a promoção do desenvolvimento nacional.
O Itamaraty teve dificuldades de reagir. Entre 1990 e 1995, cinco ministros
ocuparam a pasta das Relações Exteriores, dois de fora da casa, a denotar
instabilidade de pensamento e de estratégia externa. O processo que resultou na
cassação do mandato do Presidente Fernando Collor de Melo (1990-92) em 1992 e o
hiato do Governo de Itamar Franco até 1994 contribuíram para tal indefinição. A
partir de 1995, com os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e
a continuidade da gestão do Chanceler Luiz Felipe Lampreia (1995-2000),
pretendeu-se imprimir coerência à ação externa. Não sem reações e tropeços.
Havia no Itamaraty quem lançasse dúvidas sobre o rumo tomado. O pensamento
crítico que emergiu com força durante o Governo de Itamar Franco prosseguiu nas
manifestações de Rubens Ricupero, Celso Amorim, Luiz Felipe de Seixas Correa e
outros embaixadores, mas ninguém o formulou de modo tão incisivo quanto o
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais da própria casa,
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.
A dança dos paradigmas
O pensamento político brasileiro aplicado às relações internacionais do Brasil
desde 1990 não foi homogêneo, como ocorreu no seio da comunidade epistêmica
argentina que assessorou o Presidente Carlos Saúl Menem, durante seus dois
mandatos. Ante a instabilidade do Itamaraty na primeira metade da década,
acabou por prevalecer o pensamento de Fernando Henrique Cardoso, que fora
Ministro das Relações Exteriores entre outubro de 1992 e maio de 1993 e que
contou depois por seis anos com Lampreia, seu fiel intérprete. A passagem por
duas ocasiões pelo Itamaraty do Ministro Celso Lafer, de forte pensamento
próprio, reforçou a linha de pensamento e ação de Cardoso.
Além de haver-se enfraquecido em razão da discordância interna e da prevalência
de pensamento externo à casa, o processo decisório em política exterior do
Itamaraty perdeu força sob outro ângulo também, na medida em que as decisões
nas áreas da alfândega, das finanças externas e da abertura empresarial foram
deslocadas para as autoridades econômicas, que aplicavam diretrizes
monetaristas e liberais com desenvoltura e com conseqüências sobre a
organização nacional.
Em virtude de tais contingências, o Brasil imprimiu desde 1990 orientações
confusas, até mesmo contraditórias, à política exterior. Identificamos três
linhas de força da ação externa que definimos com auxílio do conceito de
paradigma: o Estado desenvolvimentista, o Estado normal e o Estado logístico. A
coexistência de paradigmas, inadmissível nas ciências exatas e naturais, embora
paradoxal, é possível nas ciências humanas e sociais, onde eles adquirem a
função metodológica de organizar a matéria e de dar-lhe inteligibilidade
orgânica mediante uma visão compreensiva dos fatos.
O Estado desenvolvimentista, de caraterísticas tradicionais, reforça o aspecto
nacional e autônomo da política exterior. Trata-se do Estado empresário que
arrasta a sociedade no caminho do desenvolvimento nacional mediante a superação
de dependências econômicas estruturais e a autonomia de segurança. O Estado
normal, invenção latino-americana dos anos noventa, foi assim denominado pelo
expoente da comunidade epistêmica argentina, Domingo Cavallo, em 1991, quando
era Ministro das Relações Exteriores do Governo de Menem. Aspiraram ser normais
os governos latino-americanos que se instalaram em 1989-90 na Argentina,
Brasil, Peru, Venezuela, México e outros países menores. A experiência de mais
de uma década revela que esse paradigma envolve três parâmetros de conduta:
como Estado subserviente, submete-se às coerções do centro hegemônico do
capitalismo; como Estado destrutivo, dissolve e aliena o núcleo central robusto
da economia nacional e transfere renda ao exterior; como Estado regressivo,
reserva para a nação as funções da infância social. O terceiro é o paradigma do
Estado logístico que fortalece o núcleo nacional, transferindo à sociedade
responsabilidades empreendedoras e ajudando-a a operar no exterior, por modo a
equilibrar os benefícios da interdependência mediante um tipo de inserção
madura no mundo globalizado.
O primeiro paradigma, cujo protótipo na América Latina foi o Brasil, entre 1930
e 1989, elevou este país ao mais alto nível de desenvolvimento regional; o
segundo, cujo protótipo foi a Argentina da era Menem, conduziu à crise de 2001-
2002, caracterizada pelo aprofundamento de dependências estruturais e pelo
empobrecimento da nação; o terceiro, cujo protótipo foi o Chile, garante uma
inserção internacional madura. Os países da América Latina avançaram mais ou
menos esses caminhos, com maior ou menor coerência, mas apenas o Brasil
percorreu os três, como um carro que houvesse desligado os faróis à noite e
adentrasse pelo escuro à procura de seu destino.
A indefinição oriunda da coexistência paradigmática da política exterior
brasileira desde 1990 levou à agonia do Estado desenvolvimentista, à emergência
do Estado normal e ao ensaio de Estado logístico.
O desenvolvimento não desapareceu no horizonte da política exterior brasileira
ao encerrar-se em 1989 o ciclo desenvolvimentista de sessenta anos. Deixou
apenas de ser o elemento de sua racionalidade. A estratégia tradicional foi
posta em dúvida porque se supunha que houvesse desembocado na crise do
endividamento, da instabilidade monetária e da estagnação econômica dos anos
oitenta, e que não resistiria diante das transformações da ordem global ao
término da Guerra Fria.
Segundo o Chanceler Celso Amorim, o objetivo síntese do desenvolvimento
manteve-se, contudo, presente nos esforços do Brasil durante as negociações da
Rodada Uruguai do GATT, na criação do Mercosul, na proposta de criação da ALCSA
(Área de Livre Comércio Sul-Americana), no fato de haver o Brasil relançado o
tema do desenvolvimento sobre os foros multilaterais quando andava ofuscado
pelo radicalismo neoliberal global. Itamar Franco deixou claro que o
desenvolvimento prosseguia sendo "o objetivo maior da política externa". Depois
dele, Cardoso também denunciou a retirada do tema do grande debate
internacional, em razão da extinção do diálogo norte-sul, bem como os
obstáculos erigidos posteriormente pela globalização aos esforços de
desenvolvimento. A realização da Conferência de Cúpula sobre o Desenvolvimento
Social (Copenhage, 1995) foi considerada uma vitória brasileira. A diplomacia
brasileira requisitou uma relação entre desenvolvimento e temas globais para o
desenho da ordem internacional. Não aceitou, durante a Conferência sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992) que as preocupações com a
ecologia sacrificassem o curso do desenvolvimento, vinculou-o à fruição dos
direitos humanos durante a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena,
em 1993, e, sobretudo, agiu no GATT, e depois na OMC, para alcançar uma
regulamentação do sistema multilateral de comércio que evitasse resultados
favoráveis apenas às nações avançadas.
A emergência do Estado normal ' subserviente, destrutivo e regressivo ' nas
estratégias de relações internacionais do Brasil teve como impulso conceitual a
idéia de mudança. Não se trata de uma leviandade mental, mas de uma convicção
profundamente arraigada na mentalidade de dirigentes brasileiros, capaz de
provocar: a) o revisionismo histórico e a condenação das estratégias
internacionais do passado; b) a adoção acrítica de uma ideologia imposta pelos
centros hegemônicos de poder; c) a eliminação das idéias de projeto e de
interesse nacionais; d) a correção do movimento da diplomacia. Sob este
paradigma, a política exterior do Brasil orientou-se por um equívoco de
substância, que Fernando Henrique Cardoso expressou em artigo para a Revista
Brasileira de Política Internacional em 2001: uma tríplice mudança interna '
democracia, estabilidade monetária e abertura econômica ' eram seus novos
comandos. Como não se conhecem experiências em que estes comandos tenham
servido a Estados maduros como vetores de política exterior, a idéia de mudança
introduziu naturalmente o paradigma do Estado normal, como invenção da
inteligência periférica.
Desistindo de fazer política internacional própria, o Brasil aplicou as duas
gerações de reformas sugeridas pelo chamado Consenso de Washington. Em uma
primeira fase, implementou políticas de rigidez fiscal, retirou o Estado dos
investimentos produtivos, contraiu salários e benefícios do Estado do bem-
estar, privatizou empresas públicas, vendeu-as às companhias estrangeiras para
arrecadar dólares e pagar a dívida externa. Pôs em marcha, depois, reformas de
segunda geração, buscando estrutura regulatória estável e transparência dos
gastos públicos, sobretudo criando facilidades para o empreendimento
estrangeiro penetrar a atividade econômica. As duas ondas de reformas exigidas
da América Latina pelos Estados Unidos e pelos órgãos financeiros
internacionais, Banco Mundial e FMI, denominadas de boa governabilidade,
deveriam resultar em regras e instituições favoráveis à expansão das empresas
privadas transnacionais na região. A subserviência do Estado normal, erigida
como ideologia da mudança, engendrou graves incoerências, ao confundir
democracia com imperialismo de mercado, competitividade com abertura econômica
e desenvolvimento com estabilidade monetária. Completou-se com o desmonte da
segurança nacional e a adesão a todos os atos de renúncia à construção de
potência dissuasória.
Na vigência dessas novas condições políticas, o Estado normal encaminhou no
Brasil a destruição do patrimônio e do poder nacionais. Utilizou
conscientemente os mecanismos das privatizações para transferir ativos
nacionais a empresas estrangeiras, abrindo desse modo nova via de transferência
de renda ao exterior por meio dos lucros e aprofundando a dependência
estrutural da nação. Sujeitou-se à especulação financeira internacional que
também absorveu renda interna. Mais de oitenta bilhões de dólares arrecadados
pelas privatizações brasileiras foram gastos em despesas de custeio, sem
benefício algum para o reforço de setores estratégicos da economia nacional.
Como as empresas traziam de fora equipamentos sofisticados e não se voltavam
para as exportações, apenas para o vasto mercado brasileiro, o país tornava
inócua sua política de comércio exterior. A ação destrutiva do Estado normal
priva, ademais, o governo de meios de poder sobre a arena internacional.
A terceira dimensão do paradigma do Estado normal é o salto para trás que
imprime ao processo histórico. As atividades empresariais em mãos de nacionais
tendem a reduzir-se à montagem de produtos e à execução mecânica de serviços no
seio de empresas, cujas matrizes localizadas no exterior criam a tecnologia. A
alienação da Embratel, o coração do sistema brasileiro de comunicações, fechou
escola de aprendizagem e aplicação de conhecimentos na área. Nesse e em outros
domínios, a capacitação da inteligência brasileira, que havia alcançado níveis
de primeiro mundo e amplitude social em alguns setores, tende a tornar-se
inútil e ociosa. Tanto assim é que o Ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo
Sardenberg, propôs em 2001 ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) um plano de fixação de doutores brasileiros no Brasil. Como
aproveitá-los, se o Estado normal empurrava a economia de regresso aos domínios
das atividades primárias, onde se manteve desde a Independência até o advento
de Getúlio Vargas?
A racionalidade histórica demandava, pois, ao termo do ciclo desenvolvimentista
em 1989, não o paradigma do Estado normal, que impregnou as políticas públicas
de Fernando Henrique Cardoso, mas outro esquema de ação, que chamamos de Estado
logístico, também presente nas decisões desse homem de Estado, por feliz
incoerência. O Estado logístico teve como desafios absorver, no ponto de
transição, as forças nacionais geradas pelo Estado desenvolvimentista e
engendrar a inserção madura no mundo unificado pelo triunfo do capitalismo.
Onde se pode perceber a ação logística do Estado brasileiro desde 1990?
O caminho do Estado logístico levou o país a controlar o processo de
privatização para evitar o risco de consumar a destruição do patrimônio
nacional a cargo do Estado normal, como levou-o à criação de algumas grandes
empresas de matriz brasileira em setores em que a competitividade sistêmica era
possível, como a mineração, a siderurgia, a indústria aeronáutica e espacial.
Para tanto, a abertura haveria de ser dosada pela capacidade de adaptação do
empresariado local. A diplomacia empresarial chamou as associações de
empresários e de trabalhadores e as lideranças de outros segmentos da sociedade
organizada para auscultar seus interesses na fixação do grau de abertura e nas
opções diante da formação de blocos econômicos e das negociações entre o
Mercosul e outros blocos. Lançou-se, desse modo, o conceito de América do Sul
como área de fortalecimento prévio das economias regionais sob liderança
brasileira. Estribada na credibilidade que o país alcançou com a consolidação
da democracia, a estabilidade e a abertura econômicas, a diplomacia
presidencial foi acionada com vigor nos foros multilaterais e nas relações
bilaterais. Denunciou os ganhos unilaterais da interdependência que se
estabeleceu entre o centro hegemônico e o Estado normal da periferia. Assim, o
ensaio de Estado logístico, uma assimilação do comportamento dos grandes pelo
governo brasileiro, recuperou estratégias de desenvolvimento e conferiu à
política exterior funções assertivas: a) o reforço da capacidade empresarial do
país; b) a aplicação da ciência e da tecnologia assimiladas; c) a abertura dos
mercados do norte em contrapartida ao nacional; d) mecanismos de proteção
diante de capitais especulativos; e) uma política de defesa nacional.
O analista das relações internacionais do Brasil fica perplexo ante tal
indefinição oriunda da coexistência dos paradigmas, porque não dispõe de apenas
uma categoria conceitual ' uma teoria, dirá o politólogo ' para dar
inteligibilidade orgânica aos fatos, como ocorria anteriormente com o paradigma
desenvolvimentista. Enfrenta o desafio de medir o comprimento do caminho
percorrido pelos governos brasileiros desde 1990, rumo à consolidação do
desenvolvimento e à inserção madura no mundo da globalização ou de regresso à
infância social e à dependência estrutural. Os políticos também ficaram
perplexos. Em agosto de 2001, os chefes de Estado reunidos em Santiago na 15ª
Cúpula do Grupo do Rio reconheceram que a América Latina havia implementado as
reformas requeridas pelo centro sem que a globalização respondesse com
benefícios para o desenvolvimento da região1 .
O Brasil diante das regras e estruturas da globalização
Multilateralismo e temas globais
Como fazia há décadas, a diplomacia brasileira manteve forte presença nos
órgãos multilaterais, desde 1990. No passado, esta presença tinha por escopo
substituir a ordem, desde 1990 busca-se influir sobre a definição de seus
parâmetros. O multilateralismo foi eleito como meio de ação da nação desprovida
de poder para realizar sua vontade. A diplomacia brasileira voltou-se para os
novos temas que compunham a agenda da globalização ' aliás não eram novos mas
renascidos da distorção que lhes imprimia a ordem bipolar. Com o fim da Guerra
Fria, desapareceu a dicotomia entre alta e baixa política e a segurança
estratégica incorporou sem distância o reordenamento econômico. A ascensão do
livre comércio e do livre fluxo de capitais deprimiam a questão da segurança
entre 1990 e 2001, quando o tema da governabilidade global ameaçava as
soberanias nacionais. O Brasil ocupava-se então com liberalismo econômico,
ecologia, direitos humanos, segurança, multilateralismo comercial e fluxos de
capitais. Examinamos as três primeiras questões nesse parágrafo, as outras três
a seguir.
Liberalismo econômico. Durante as administrações de Collor de Melo e Cardoso, o
neoliberalismo inspirou as políticas públicas internas e externas, situando-as
no âmbito do Estado normal. Inspirou, ademais, as delegações do Brasil nas
negociações do GATT e da OMC acerca de propriedade intelectual, investimentos,
comércio de serviços, sistemas de preferências e sistema multilateral de
comércio. Ao abrir a Assembléia Geral da ONU em 1991, Melo expressou a nova
filosofia do Brasil: "O ideário liberal venceu... Essa é uma observação que
faço da perspectiva de um país que optou por uma plataforma liberal". Os dois
presidentes retiraram do Estado o papel de "coordenação da economia" e
reconheceram ' segundo Luiz Carlos Bresser Pereira, um Ministro de Estado '
"que essa coordenação cabe ao mercado". Indo além das exigências do chamado
Consenso de Washington, a equipe de governo de Cardoso optou pela venda
preferencial das empresas públicas às companhias estrangeiras. Obteve do
Congresso uma lei de privatização para permitir que se fizesse pelos mecanismos
de alienação. Os defensores mais arrojados dessa política foram os dois
Ministros das Comunicações, Sérgio Motta e Luiz Carlos Mendonça de Barros,
responsáveis pela maior transferência de patrimônio da periferia para o centro
na era da globalização. À frente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), Francisco Gros deu prioridade a financiamentos de empresas
estrangeiras sobre as nacionais nas privatizações.
Cardoso estava convencido de que dois benefícios resultariam da abertura tanto
do mercado de consumo como dos sistemas produtivo e de serviços: libertar o
Estado de encargos de dívidas contraídas pelas empresas públicas e melhorar a
competitividade daqueles dois sistemas. É bem verdade que a resposta da
economia brasileira foi positiva na medida em que o parque industrial
modernizou-se e o desempenho elevou-se. Contudo, a privatização com alienação
impediu a inserção internacional do país em condições de competitividade
sistêmica, que demandava a expansão para fora de empresas de matriz nacional.
Por efeito do Estado desenvolvimentista, o Brasil reunia as quatro condições
para tanto ' grandes empresas, capital, tecnologia e mercado ' em nível muito
superior às de pequenos Estados como Portugal e Espanha, que lograram uma
inserção madura no mundo interdependente por haverem implementado políticas de
padrão logístico.
Houve portanto, também no Brasil, adoção acrítica e ideológica do
neoliberalismo, que erigiu o Estado normal latino-americano, reproduzindo no
país, embora em menor escala, efeitos negativos que se generalizaram na região:
aumento da transferência de renda ao exterior, inadimplência, repetidas
corridas ao FMI, conversão do comércio exterior de instrumento estratégico de
desenvolvimento em variável da estabilidade monetária, regressão do processo de
desenvolvimento para dentro, aumento da desigualdade social, desemprego,
desnacionalização e desindustrialização. E perda de poder de negociação de uma
diplomacia atrofiada. As conseqüências do liberalismo sobre as economias
emergentes foram resumidas por Rubens Ricupero, Secretário-Geral da X UNCTAD
realizada em Bangkok em fevereiro de 2000: instabilidade estrutural,
vulnerabilidade econômica, crescimento da pobreza, marginalização e
insegurança. As políticas de vertente keynesiana introduzidas pelo governo de
George W. Bush no segundo semestre de 2001 para relançar a economia norte-
americana ameaçada por profunda recessão vinham lançar mais dúvidas sobre o
acerto da abertura das economias periféricas.
Meio ambiente. A ação da diplomacia brasileira nesse terreno não permitiu que
graves prejuízos ao país como aqueles advindos da gestão das relações
econômicas externas se repetissem. Com efeito, era perceptível junto aos países
avançados a intenção de utilizar o argumento ecológico como instrumento de
pressão sobre os países em desenvolvimento para tolher-lhes riqueza e meios de
ação. A estratégia brasileira envolveu iniciativas na esfera bilateral,
multilateral regional e multilateral global. Obteve êxito em três sentidos:
trouxe a chamada Cúpula da Terra para o Rio de Janeiro (junho de 1992), agregou
na ocasião o tema do desenvolvimento ao debate sobre meio ambiente (Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) e substituiu o
confronto norte-sul pela cooperação no trato da questão. A ECO 92 assistiu ao
triunfo da tese brasileira do desenvolvimento sustentável acoplado ao meio
ambiente. Dela resultaram a Agenda 21, um programa de cooperação multilateral,
uma Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, que evoluiu para o Protocolo de
Kyoto de 1997, e uma Convenção sobre Diversidade Biológica que resguarda
direitos brasileiros sobre a Amazônia. O Brasil ratificou as duas últimas e
envolveu-se oficialmente com a Agenda 21.
A competente ação da diplomacia brasileira reverteu na década de noventa as
ameaças internacionais que pesavam sobre a Amazônia, com base em estereótipos
tais como pulmão da humanidade, patrimônio da humanidade, reserva ecológica e
outros, difundidos por Organizações Não-Governamentais e ordens religiosas que
arrancavam pronunciamentos de chefes de Estado das grandes potências. Detentor
da maior biodiversidade do planeta, o Brasil já incluíra no Tratado de
Cooperação Amazônica de 1978 a necessidade da pesquisa. Como não a desenvolvia,
a Convenção sobre Diversidade Biológica era violada pelo patenteamento no
exterior de produtos amazônicos. Essa biopirataria provocou novas iniciativas
governamentais, tendo em vista preservar a soberania e os direitos reconhecidos
naquela convenção multilateral. Em 1995, o Congresso aprovou a Lei sobre
Biossegurança, em 1996 a Lei de Patentes, em 1997 uma Lei de Cultivares e
finalmente a Lei que regula o acesso aos recursos genéticos brasileiros. Todo
esse ordenamento jurídico complementou-se com o Programa Piloto para Proteção
das Florestas Tropicais do Brasil, envolvendo o Brasil, o G7 (grupo das sete
maiores potências capitalistas), a União Européia e o Banco Mundial no mais
vasto programa de cooperação ambiental do mundo.
O conceito de desenvolvimento sustentável, uma produção da engenharia
diplomática brasileira, associado a esta diversificada estratégia de ação
externa, afastou aparentemente a ameaça internacional e garantiu à nação os
benefícios da riqueza biológica. Os críticos da legislação brasileira entendem,
contudo, que os direitos sobre a biodiversidade e os recursos genéticos não
foram protegidos ao ponto de evitar que a Amazônia venha também a ser alienada
por padrões de conduta do Estado normal. Por sua vez, o Governo parece seguro
sobre a arena internacional. Tanto é que enfrentou os Estados Unidos na
Organização Mundial da Saúde em 2001, fazendo aprovar por 191 votos (inclusive
o norte-americano) a quebra de patentes de indústrias farmacêuticas quando
exigem graves condições da saúde pública, como a epidemia da síndrome da
imunodeficiência adquirida (AIDS).
Direitos humanos. A política exterior do Brasil envolveu-se com os direitos
humanos de modo distinto, em três fases: ao ensejo e logo após a Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948 foi assertiva na promoção desses
direitos, adquirindo experiência no plano regional (Comissão Interamericana de
Direitos Humanos) e global (Comissão de Direitos Humanos da ONU); a partir dos
anos sessenta, em nome do constitucionalismo, mas em razão do regime
autoritário, abandonou tal esforço, tomando posições defensivas e
isolacionistas nos foros multilaterais; com o fim do ciclo autoritário,
remediou-se e recuperou desde 1985 aquela ação assertiva original. A última
fase foi preparada pelo professor da Universidade de Brasília, Antônio Augusto
Cançado Trindade, renomado jurista internacional, Conselheiro Jurídico do
Itamaraty e depois Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O
novo papel do Brasil na defesa e promoção universal dos direitos humanos
desdobrou-se em duas dimensões, a primeira de ordem interna e a segunda
externa.
Em 1992 consumou-se a adesão aos três tratados gerais de proteção, os dois da
ONU e a Convenção da OEA. Conjugou-se essa iniciativa com a adesão às
convenções internacionais específicas: contra a discriminação racial, da
mulher, contra a tortura, sobre os direitos da criança, do refugiado. Em 1997,
o Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. No mesmo ano, aprovou moderna lei sobre refugiados e entrou
na rota do abrigo, particularmente para africanos. O Congresso exerceu a
prerrogativa de adaptar sob todos os ângulos a lei brasileira, alinhada enfim
aos avanços normativos internacionais. O Executivo criou a Secretaria de Estado
de Direitos Humanos.
A conjugação dos esforços de juristas, diplomatas e legisladores produziu no
Brasil uma percepção e um conceito original de direitos humanos que serviu de
instrumento de ação positiva sobre o cenário internacional. Com efeito, o
governo brasileiro entende que os direitos humanos ' os liberais de primeira
geração e os novos direitos econômicos, sociais, civis e culturais de segunda
geração ' são indivisíveis, como o ser humano, e sobrepõem-se aos
particularismos religiosos ou culturais. A preocupação com os direitos humanos
condiciona a ação externa do Estado e envolve a defesa da democracia e do
desenvolvimento. Nesse último ponto, a criatividade política brasileira e sua
expressão diplomática tiveram papel inovador na vinculação entre fruição de
direitos humanos e condições de bem-estar social alcançadas com o
desenvolvimento econômico. Essa tese prevaleceu nas conclusões da Conferência
Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), onde a delegação brasileira presidiu
o comitê plenário encarregado da redação da Declaração Final. Uma lógica
ilustrada da globalização, nos termos de Celso Lafer, emerge dessa Conferência,
provocando a responsabilidade dos governos em outro nível. Evidenciou-se desse
modo o equívoco do Departamento de Estado americano e da União Européia que
acusam em seus relatórios o Terceiro Mundo e a América Latina em particular de
infringir os direitos humanos.
A diplomacia de Cardoso reforçou sua credibilidade com a nova face que exibiu.
No transcurso dos cinqüenta anos da ONU, em 1995, cobrou sua função reguladora
das relações internacionais mediante a criação de um corpus jurídico que não
seja uma hipocrisia para as grandes potências. Cabe apenas à ONU sacrificar com
legitimidade o princípio da soberania e da autodeterminação quando a defesa da
paz e dos direitos humanos o requeiram. Cabe-lhe, por outro lado, reordenar o
mundo para um ambiente de justiça e eqüidade social. No embalo da democracia e
da promoção dos direitos humanos, a visão kantiana da paz e da justiça global
contaminou portanto o discurso da diplomacia brasileira nos anos noventa, em
contraste com o realismo político do comportamento das grandes potências2 .
O sacrifício da segurança nacional
Embora não hesitasse em ceder as decisões na área das relações econômicas
internacionais do país às autoridades econômicas, de vertente hayekiana, o
Itamaraty apropriou-se nos anos noventa, com sua inspiração idealista de
vertente grotiana e kantiana, da doutrina de segurança e da política de defesa,
deprimindo o papel das Forças Armadas nessa área. Ao separar os dois campos
estratégicos, o que nunca fizeram as grandes potências, distanciou-se do
realismo e embarcou na utopia. Com efeito, segundo Robert Gilpin, a pax
americana sempre forneceu a primeira razão dos investimentos americanos no
exterior. Ao termo da Guerra Fria, fortes economicamente, os Estados Unidos e
seus aliados autooutorgaram-se o direito de ingerência, exercido sob a auréola
dos direitos humanos, porém sob a eficácia do realismo político que ausculta os
próprios interesses.
A política exterior do Brasil desqualificou a força como meio de ação em favor
da persuasão. O país abandonou a tendência iniciada nos anos 1970 em termos
políticos com a transição da segurança coletiva para a nacional e em termos
industriais com a produção de meios de defesa e dissuasão. Reforçou seu
pacifismo, firmando os pactos internacionais de desarmamento. Ou seja, aplicou
a mesma visão multilateralista no trato das questões econômico-comerciais e de
segurança. O mundo após a Guerra Fria passou, todavia, do sistema bipolar para
um sistema econômico multipolar e outro estratégico unipolar. O trato
multilateralista convinha somente ao primeiro. Por isso, com o tempo, foi
necessário temperar o idealismo kantiano da diplomacia brasileira, o que se fez
de duas formas: elaborou-se em 1996 um documento político para nortear as
decisões na área e buscou-se a união da América do Sul, tendo em vista
precaver-se ante possível nocividade da hegemonia dos Estados Unidos.
As medidas de confiança mútua estabelecidas entre Brasil e Argentina desde os
anos oitenta converteram-se em variável essencial da política brasileira de
segurança. No país vizinho, as decisões também se deslocaram da área militar
para a Chancelaria que afinou a princípio seu entendimento com a Chancelaria
brasileira. Mais tarde, porém, a visão argentina revolveu antigos antagonismos,
o que também contribuiu para a correção da política brasileira. Quando os
programas nacionais dos dois países dominaram o ciclo completo da tecnologia
nuclear, percebeu-se a necessidade de travar a corrida armamentista e de
superar o dilema de ter ou não ter a bomba. Ambiente propício foi criado pelo
Acordo Tripartite de 1979 que eliminou o contencioso acerca do aproveitamento
dos rios. Em 1980, firmou-se o primeiro acordo de cooperação nuclear. Em 1985,
já com os civis no poder, criou-se um grupo de trabalho conjunto, presidido
pelos chanceleres, que deu origem a vários instrumentos. O processo de
integração iniciado com a Ata de 1986 abrigou timidamente a cooperação nuclear.
Mas o Tratado de Assunção que criou o Mercosul em 1991 animou a cooperação na
área da segurança, particularmente a nuclear. Nesse mesmo ano, instituiu-se um
sistema de fiscalização mútua, previu-se a entrada em vigor do Tratado de
Tlatelolco e instituiu-se um sistema sui generis de salvaguardas com
participação da Agência Internacional de Energia Atômica. Em 1994, entrou em
vigência o Tratado de Tlatelolco para os principais países da região. Novos
atos consolidaram a confiança mútua, até a criação em 2001 de uma agência
bilateral para utilização pacífica da energia nuclear.
Na segunda metade dos anos noventa, esse ambiente propício à construção da zona
de paz no Cone Sul da América foi perturbado pela obstrução argentina à
pretensão brasileira de ocupar um posto como membro permanente no Conselho de
Segurança e por sua insistência em integrar a OTAN com explícita intenção de
secundar a ação dos Estados Unidos na América do Sul. Repugnava à diplomacia
brasileira aquela subserviência, como também as propostas norte-americanas de
criar instituições regionais de segurança e de confinar as Forças Armadas dos
países da América do Sul no combate ao narcotráfico. Desconfiou, por isso, do
Plano Colômbia de assistência militar norte-americano ao combate às drogas e
empenhou-se vivamente para chegar à solução diplomática do conflito de
fronteira entre Equador e Peru.
Por decisões de política exterior, o governo brasileiro movimentou-se na esfera
da segurança global. Imbuído do idealismo kantiano, agiu com determinação nos
foros de negociação no sentido de regular o sistema multilateral de segurança.
Renunciou à construção da potência e ao exercício da força como instrumento da
política ao aderir aos pactos de erradicação de armas químicas e biológicas de
destruição massiva, ao Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis e ao Tratado
de Não-Proliferação Nuclear. Participou de inúmeras operações de paz sob a
égide da ONU. Lançou em 1994 sua candidatura a membro permanente do Conselho de
Segurança, mas depois abriu mão dessa pretensão, em favor de uma reforma que
desse ao Conselho representatividade e legitimidade. Lamentou a perda gradativa
de poder desse Conselho em favor de decisões unilaterais dos Estados Unidos,
que a elas subordinavam a OTAN.
Com suas iniciativas pacifistas logrou, portanto, o governo brasileiro influir
sobre o desarme do Cone Sul e a construção de uma zona de paz e cooperação na
América do Sul. Animado com isso, desmontou o sistema nacional de segurança e
renunciou ao realismo da ação na arena internacional. Malogrou quanto às
expectativas de fixar um ordenamento regulatório multilateral para a segurança
do mundo. Essas ambivalências entre realismo e idealismo permeiam o documento
com que a Presidência da República fixou em 1996 a Política de Defesa Nacional.
Esta resultou ambígua quanto à competência de sua execução por diplomatas,
instituições civis e militares, quanto a seus meios de dissuasão e defesa e
quanto aos fins a que pode servir. Contudo, nessa longa transição do Estado
desenvolvimentista para outro paradigma, consumada a consolidação da democracia
e percebidos os limites da utopia kantiana, a questão da segurança foi retomada
como uma responsabilidade permanente e intrínseca da política exterior. A
guerra contra o terrorismo desfechada pelos Estados Unidos após os atentados de
11 de setembro em Nova York e Washington revelou a imprudência, também no
Brasil, de se relegar a segurança nacional a segundo plano3 .
O comércio exterior: a reversão da tendência histórica
A abertura do mercado brasileiro nos anos noventa criou um desafio novo para o
comércio exterior. A abertura destinava-se, pela lógica política, a forçar a
modernização do sistema produtivo e a elevar sua competitividade externa. Visto
que os fluxos do comércio não confirmavam tal fato, o governo passou a negociar
em múltiplas frentes, visando com seus esforços alcançar do GATT-OMC um sistema
multilateral com regras transparentes, fixas e justas e dos blocos regionais
idênticos dispositivos. Incumbido dessas negociações, o Itamaraty não estava
preparado para associar a sociedade e estimulá-la a fazer negócios externos,
como ocorreu com a diplomacia empresarial no México e no Chile. Uma timidez
sistêmica nacional, associada a fraquezas políticas e operacionais, reverteu a
tendência histórica do comércio exterior brasileiro de gerar superávits. Nas
mãos das autoridades econômicas, o comércio exterior deixou de ser instrumento
estratégico de desenvolvimento e converteu-se em variável dependente da
estabilidade monetária.
Certos equívocos dos economistas acompanham essa mudança a partir de 1990: o
primeiro corresponde à convicção de que o protecionismo do mercado interno
emperra o crescimento econômico; o segundo, à convicção de que o comércio
exterior perdera a função de gerar saldos, podendo desempenhar a inusitada
função de contenção da inflação; um terceiro dizia respeito à expectativa de
que as potências avançadas cederiam aos diplomatas pela negociação aquele
sistema multilateral, transitando do realismo que lhes permitia abusar ao
idealismo kantiano brasileiro. Esses erros de cálculo tiveram alto custo.
Entre 1988 e 1993, o governo brasileiro reduziu a tarifa média de 52% para 14%
e eliminou todas as medidas não tarifárias. O Plano Real de estabilidade
monetária de 1994 introduziu a sobrevalorização cambial. Em 1995, o comércio
exterior reverteu a tendência para saldos negativos. O apoio público à
liberalização arrefeceu, a tarifa média elevou-se desde 1996 e a moeda iniciou
a desvalorização em 1999. A balança de comércio exterior registrou o superávit
de 85,9 bilhões de dólares entre 1980-89. Entre 1990-94, o superávit atingiu
60,4 bilhões, mas entre 1995-2000, o déficit somou 24,3 bilhões. O saldo
negativo aparece em 1995 e se repete nos seis primeiros anos do governo de
Cardoso. Em termos absolutos, o comércio exterior avolumou-se nos noventa,
passando de 52,1 bilhões de dólares em 1990 para 110,9 no ano de 2000.
O déficit do comércio contribuiu para a deterioração das contas externas. A
conta de serviços, onde pesa sobretudo a renda do capital, registrou uma
elevação do déficit anual médio de 13,6 bilhões de dólares durante a década de
oitenta para 18,3 entre 1990-98. Além de transferir renda para o exterior
através da remessa de enormes lucros realizados internamente, as novas empresas
que operavam os serviços no Brasil em conseqüência de privatizações com
alienação importavam equipamentos e componentes de suas matrizes; introduziram,
pois, dupla variável de desequilíbrio das contas externas. A pauta das
exportações brasileiras, por outro lado, tampouco registrou qualquer melhoria
de qualidade com as inovações da abertura econômica. As séries históricas do
Banco Central do Brasil indicam que ela se compunha, em 1989, de 71,1% de
produtos industrializados (54,3% de manufaturados e 16,8% de semimanufaturados)
e 27,1% de primários; em 1997, os industrializados somavam 70,9% (com 54,9% de
manufaturados e 15,8% de semimanufaturados) e os primários 27,1%. Quando os
aviões da EMBRAER tornaram-se o primeiro item das exportações, a partir de
1999, essas estatísticas sofreram modificações. Quanto às importações, a pauta
modificou-se em razão da abertura, passando os bens de consumo de 5,7% em 1980
para 18,2% em 1997.
O comércio exterior enfrentou dificuldades conjunturais. No âmbito das
negociações globais, em primeiro lugar. O governo brasileiro cedeu no GATT à
pressão dos países avançados, reconhecendo o comércio dos serviços e da
propriedade intelectual, aderiu aos TRIPs (Aspectos de Propriedade Intelectual
Relacionados com o Comércio) em 1993 e aprovou a Lei de patentes em 1996.
Continuou sendo acusado pelos Estados Unidos de desrespeitar este direito. Em
razão de seu desemprego, os países centrais quiseram levar a cláusula social à
OMC. Vendo nela um instrumento protecionista, o Brasil firmou posições em foros
do Terceiro Mundo (Não-Alinhados, Grupo dos 77), aceitando discussões sobre
cláusulas trabalhistas unicamente no âmbito da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) ou da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Os países
industrializados adotam, por outro lado, medidas ecoprotecionistas e
fitossanitárias, contrariando normas multilaterais, o que não fazem os
subservientes países pobres. Quando os litígios de comércio, particularmente os
processos anti-dumping, eram levados aos mecanismos de solução de controvérsias
da OMC, os julgamentos padeciam de vício político e davam ganho de causa aos
ricos. Desde a criação da OMC, em 1995, até 2000, 90% dos julgamentos foram
favoráveis aos ricos. Em poucos deles, o Brasil levou vantagem, como no caso da
exportação de gasolina para os Estados Unidos, de coco para as Filipinas, de
café solúvel para a Europa e dos subsídios canadenses à indústria aeronáutica.
A essas dificuldades globais somavam-se as regionais. Os Estados Unidos
mantinham seu arsenal de barreiras às importações brasileiras de manufaturados
e primários, o que levou o Brasil a retardar as negociações para formação da
Associação de Livre Comércio das Américas (ALCA), como adiante se verá. Com a
disputa entre as empresas exportadoras de aviões, Bombardier e Embraer, o
Canadá mostrou à diplomacia brasileira o duro jogo que significa lidar com
contenciosos comerciais: escondeu seus subsídios, obteve sanções da OMC e, como
demonstração de desprezo, castigou as exportações de carnes do Brasil
alardeando pelo mundo uma contaminação de seu rebanho pelo mal da vaca louca,
que não existia. A União Européia não abria mão dos subsídios agrícolas. Após a
explosão do comércio zonal entre 1991 e 1998 ' um oportuno desvio de comércio
face aos obstáculos acima descritos ' o Mercosul assistia à corrosão das regras
aduaneiras e à multiplicação de contenciosos, em razão da incompatibilidade dos
regimes de câmbio, fixo na Argentina e flexível no Brasil.
Esse quadro desfavorável forçou o governo brasileiro a evoluir da subserviência
do Estado normal a uma política de comércio exterior mais realista e condizente
com o comportamento do Estado logístico, patenteado pelos ricos. A convicção de
que estes países chegariam ao sistema kantiano de comércio internacional, com
regras e mecanismos transparentes e democráticos e com distribuição eqüitativa
de benefícios entre países ricos e pobres, desvaneceu-se em 2000, ante o
malogro da chamada rodada do milênio da OMC em Seattle4 .
Fluxos de capital: a nova via da dependência
A globalização financeira comportou duas exigências dos países avançados sobre
as economias emergentes: o livre fluxo de capitais e a abertura dos sistemas
financeiro, empresarial e dos mercados de valores a sua penetração. Quando as
reformas do Estado satisfizeram tais exigências, dois também foram os efeitos
que se generalizaram: o aumento dos fluxos, em boa medida de capitais
especulativos, e as crises financeiras. Quando as crises financeiras abalavam
essas economias (México em 1994-95, Ásia em 1997-98, Rússia em 1998 e Argentina
em 2001), o G7 apenas de leve cogitou na possibilidade de introduzir controles
ou salvaguardas para os efeitos predatórios dos capitais especulativos. O grupo
dos ricos considerava pedagógicos tais prejuízos, exigindo reformas de segunda
geração do FMI, mas eram com certeza as grandes transferências que provocavam
em direção ao centro que o mantinha inflexível.
Nenhuma das grandes crises financeiras do período teve origem no Brasil.
Contudo, este país sofreu a cada crise efeitos negativos sobre suas finanças.
Por esta razão, a diplomacia de Fernando Henrique Cardoso cobrou dos dirigentes
do G7 aquelas medidas de controle, requerendo para a arquitetura das finanças
internacionais regras estáveis e justas, similares às do sistema multilateral
de comércio de matiz kantiana, cuja regulamentação se esforçava por induzir
junto à OMC. Não obstante, o G7 permanecia insensível e esta organização
concluía apenas a regulamentação da abertura dos serviços financeiros e dos
mercados de capitais que o governo brasileiro prontamente aplicava.
Dócil diante das reformas exigidas pelo centro, o governo brasileiro abriu
todos os domínios de sua economia aos capitais internacionais: os serviços
financeiros, a bolsa de valores, os bancos e as grandes empresas públicas no
momento da privatização.
A abertura das comunicações no Brasil correspondeu ao maior negócio do mundo
quanto à transferência de ativos de países emergentes para o centro do sistema
capitalista. As pressões internacionais foram precoces e bem conduzidas.
Durante a Rodada Uruguai, dizia-se que se tratava do setor com maior
probabilidade de lucros nos países em desenvolvimento. Durante a reunião de
Marrakesh de 1994 e no foro de Davos em 1997, os representantes norte-
americanos exigiam a abertura incondicional como parte das regras da liberdade
comercial. O projeto de lei de privatização da Telebras foi concebido por
agências do exterior e embutiu as pressões externas. Com efeito, o Congresso
Nacional contratou a União Internacional de Telecomunicações, uma firma de
assessoria da ONU sob controle norte-americano, que por sua vez subcontratou a
McKinsey & Company. A Lei Geral de Telecomunicações de 1997 veio a público
como queriam o governo dos Estados Unidos e os global players estrangeiros. Em
consonância com esta filosofia política subserviente e destrutiva do patrimônio
nacional, o Executivo autorizou no mesmo ano um aumento real de 350% nos
serviços básicos de telefonia com intuito de capitalizar as empresas
privatizadas e desencadeou intensa campanha para impedir que a opinião pública
percebesse o que se passava. Assim mesmo, a privatização da Telebras foi
reprovada por 51% em pesquisa de opinião. Consumada a alienação das
comunicações, a ANATEL, agência reguladora do setor, tornou-se refém das
multinacionais.
Os efeitos desse modelo de privatização com alienação sobre as estruturas
brasileiras foram três: esterilização da inteligência nacional, dispensada de
atuar no setor; nova via de transferência de renda mediante expatriação de
bilhões de dólares anuais oriundos dos lucros fáceis do setor de serviços;
dificuldades no comércio exterior, já que tais empresas se estabelecem para
explorar o mercado local, importam seus equipamentos das matrizes e não se
voltam para exportação a terceiros mercados. Esses efeitos negativos não se
verificam em países avançados, porque estes equilibram sua abertura com
internacionalização de suas economias. O comportamento logístico requeria,
portanto, no momento da abertura, para compensar a alienação, a
internacionalização da economia brasileira. Mas esta não contou com estímulo do
governo, como ocorreu em Portugal, na Espanha e no México. Era incipiente em
2001 em termos de expansão de filiais, associações e faturamento no exterior.
Entre 1980-89, o movimento líquido de capitais estrangeiros no Brasil foi de
9,7 bilhões de dólares e de 91,1 bilhões entre 1990-98. Os investimentos
diretos apresentaram um crescimento exponencial na década dos noventa, passando
de 1,1 bilhões em 91 para 33,5 em 2000. Durante o período de maior fluxo, entre
1996 e 2000, 24,8% eram capitais americanos, 17,4% espanhóis, 9,3% holandeses,
8,1% franceses e 7,9% portugueses. O desequilíbrio nas contas correntes do país
advém das remessas de lucros, já que é baixo o índice de internacionalização da
economia brasileira.
Durante o governo de Cardoso, entre 1995 e 2000, a dívida pública interna
passou de 33% para 53% do PIB. Entre 1994 e 1999, a dívida externa elevou-se de
148 para 237 bilhões de dólares. Juros e amortizações da dívida externa
consumiram 50 bilhões de dólares em 2000, ou seja, toda a exportação
brasileira. O Brasil ostentava então nesse ponto um dos piores indicadores
externos do mundo. Esse desequilíbrio induzia medidas malabaristas na taxa de
juros para atrair constantes fluxos de capitais e provocou uma inflexão da
política de comércio exterior, que evoluiu de sua função de estabilizar os
preços para a nova função de prover recursos para os compromissos da dívida. O
grave perfil das contas públicas, em sintonia com instruções vinculadas aos
socorros concedidos pelo FMI desde 1990, retirava investimentos produtivos,
provocando outras crises, como a escassez de energia elétrica, e bloqueava o
crescimento econômico. O fluxo de capitais, marcado por movimentos
especulativos, desapropriação dos ativos nacionais, remessa de lucros e
serviços da dívida externa, aprofundou nos anos noventa a dependência
estrutural do país, financeira e econômica. Correspondeu a uma ilusão de
divisas cultivada sob o signo do neoliberalismo pelas autoridades do centro e
da periferia. O Brasil transitou, pois, da década perdida à década perversa5 .
O bilateralismo em declínio nas relações internacionais do Brasil
A política exterior assertiva do ciclo desenvolvimentista manipulava a relação
bilateral e a parceria estratégica como uma linha de força da ação externa. O
paradigma da globalização das relações internacionais e a disposição do governo
brasileiro de influir sobre a regulamentação do sistema multilateral de
comércio e sobre a arquitetura das finanças internacionais subtraíram energia
ao bilateralismo. Entregue ao descaso brasileiro, o bilateralismo sofreu uma
acomodação quanto ao papel dos grandes e pequenos determinada por causas
exclusivamente exógenas. Os Estados Unidos mantiveram a exuberância de sua
posição histórica como aliado especial do Brasil e a França retornou, enquanto
a Alemanha se afastava e o Japão hibernava. Do lado dos pequenos, assistiu-se à
chegada inesperada e dinâmica de Espanha e Portugal.
A política exterior dos Estados Unidos modificou-se em 1989, quando a contenção
do comunismo deixou de ser o vetor. Desde então, outras tradições imprimiram
coerência à ação externa, como a determinação de ditar as regras do sistema
internacional em função de seus interesses e valores, particularmente a
hegemonia econômica global. Desde 2001, embrenhou-se em campanha global de
combate ao terrorismo. O país voltou-se para a liberalização comercial e
financeira e para a racionalização da ação estratégica na presunção de
existência de um inimigo externo, sucessivamente o Irã, o Iraque, a Iugoslávia,
o Afeganistão. Como o Brasil era subserviente, mas não tanto, foi possível
administrar as relações bilaterais em clima de cordialidade desconfiada.
Durante os dois mandatos do democrata Bill Clinton, a partir de 1993, manteve-
se clima de entendimento, mesmo porque tinha ele com Cardoso uma relação
pessoal afetiva. A diplomacia brasileira não perdia oportunidade de colocar em
evidência a histórica parceria bilateral, alicerçada na comunhão de visões
políticas da época do Barão do Rio Branco e na estratégia de cooperação
bilateral com benefícios recíprocos posta em marcha desde Vargas. A ascensão do
republicano George W. Bush em 2001 colocou Cardoso com um pé atrás e motivou o
Senado brasileiro a estabelecer diretrizes para a negociação da ALCA.
Os interesses em jogo nas relações bilaterais eram os do investimento norte-
americano no Brasil, que se manteve firme no período (44,6% do total entre
1990-94, 26,1% entre 95-97), e o comércio bilateral, que cresceu 100% entre
1990-98, porém com déficits para o Brasil, da ordem de 13,5 bilhões de dólares
entre 1995-99. A percepção de que o governo norte-americano requeria o
multilateralismo e a liberalização do comércio, porém mantinha medidas de
proteção das mais arcaicas contra produtos brasileiros, influiu sobre a
política brasileira. Desconfiada, esta passou a obstruir o projeto norte-
americano de hegemonia continental a ser implantado por meio das regras da
ALCA.
Com efeito, enquanto a média tarifária dos 15 principais produtos brasileiros
que entravam no mercado norte-americano ao termo dos anos noventa era de 45,6%,
a média para os produtos americanos no Brasil situava-se em 14,3%. O arsenal
protecionista dos Estados Unidos castigava as importações provenientes do
Brasil. Compreendia as seguintes medidas: a) o suco de laranja era sobretaxado,
atingindo o pique de 492 dólares por tonelada em 1995, além de 2,5%
remanescentes de um processo anti-dumping de 1986; b) os calçados enfrentavam
tarifas médias de 8% a 10%, aplicadas também contra outros fornecedores; c) as
carnes bovinas ou de aves cruas ou congeladas eram proibidas por medidas
fitossanitárias, as enlatadas sofriam restrições e as exportações subsidiadas
de aves dos Estados Unidos prejudicavam o Brasil em terceiros mercados; d) as
restrições fitossanitárias eliminavam na prática frutas e legumes brasileiros
do mercado norte-americano; e) quanto aos produtos siderúrgicos, as restrições
voluntárias impostas nos anos setenta e oitenta foram substituídas por
processos anti-dumping e anti-subsídios nos noventa, como se os capitais
estatais aportados à siderurgia antes da privatização produzissem efeitos
perpétuos; f) a partir de 1985, o etanol brasileiro foi barrado por pressão dos
produtores locais, tornando-se 72% mais caro em razão do imposto de importação;
g) desde 1982, o governo concede subsídios ao produtor interno e controla a
importação do açúcar por um sistema de quota.
Esses entraves, agravados pela concorrência e pelo grau de exigências do
mercado norte-americano, condicionam o comércio de exportação do Brasil,
direcionando-o para outros mercados, particularmente dos países vizinhos. As
reclamações brasileiras junto ao GATT-OMC foram vãs, em geral, porém a criação
da ALCA, condicionada à solução prévia dos contenciosos comerciais, pôde, sim,
ser retardada. Embora o mercado norte-americano permaneça o alvo principal das
exportações, são os investimentos diretos no Brasil o elemento de cálculo
determinante das relações bilaterais.
As relações entre o Brasil e seu segundo parceiro histórico, a Alemanha,
evidenciaram enorme perda de substância desde 1990. O investimento alemão no
Brasil que ocupava a segunda posição praticamente desaparece ( 2,9% entre 1990-
94, 1,9% entre 1995-97). O comércio bilateral, também o segundo em volume,
perde para a Argentina, aliás registra um enorme déficit para o Brasil, da
ordem de 12 bilhões de dólares entre 1993-98. A Alemanha abandonou a competição
histórica com os Estados Unidos no sistema produtivo brasileiro, não participou
das privatizações, e o Brasil não encontrou o caminho do mercado alemão. Quando
se aprofundou a integração lá e aqui, as lideranças dos dois países
sacrificaram a parceria estratégica em favor de ações nas adjacências.
O Japão fornece outro exemplo de declínio do bilateralismo. Desde 1980, a
parceria com o Brasil arrefeceu. Novas técnicas de produção diminuíram a
demanda de matérias-primas e a valorização do iene orientou os investimentos
para países asiáticos de mão-de-obra barata.
Por sua vez, a França veio atrás do espaço deixado pelos parceiros de outrora.
Relações históricas inertes foram substituídas por recente dinamismo.
Concertou-se a imagem desfavorável do Brasil na França, firmou-se novo Acordo-
Quadro de Cooperação, planejaram-se ações de médio prazo e estabeleceu-se
inédita cooperação fronteiriça na Guiana Francesa. Receoso ante o processo de
formação da ALCA e vendo no Brasil a porta de acesso à América Latina, o
governo francês propôs a cúpula entre chefes de Estado e de governo das duas
regiões e pressionou Mercosul e UE à negociação de acordo bilateral de
comércio. Os investimentos franceses no Brasil que eram concentrados nos velhos
estoques de Rhône-Poulenc, Saint Gobain, Sudameris e Crédit Lyonnais trouxeram
novos grupos como Carrefour, Electricité de France, Michelin, Alcatel Alstom,
Thomson, Aérospatiale, Air Liquide, Renault e Peugeot. O comércio bilateral não
acompanhou esta expansão dos investimentos, permaneceu abaixo dos 3% do
comércio total do Brasil entre 1990-99 e teve no protecionismo agrícola francês
o pomo de discórdia.
Quando ocorreu a reconversão da Rússia ao capitalismo, as relações com o Brasil
despertaram grande interesse, por serem dois Estados-pivô, com potenciais
tecnológicos e comerciais de países continentais modernos. A diplomacia foi
rápida em firmar acordos de cooperação nos mais diversos domínios,
particularmente o espacial em que ambos são detentores de todo o ciclo. Os
acordos refletem uma nova filosofia ao utilizarem explicitamente o termo
parceria estratégica a ser implementada por meio de múltiplas ações previstas.
O comércio não refletiu esse dinamismo diplomático. Aliás, o alto grau de
prioridade conferido às relações bilaterais por intenções fundadas em adequada
avaliação de potencialidades não havia aberto, até 2001, vias substantivas de
realizações concretas.
A China, porém, teve maior senso prático. As relações entre China e Brasil
também foram qualificadas de parceria estratégica nos anos noventa, denotando a
alta prioridade que se lhes conferia. À diferença da Rússia, a China contribuiu
para colocar o Brasil na era espacial. A cooperação tecnológica resultou no
lançamento conjunto de satélites de sensoriamento e no domínio da construção de
veículos lançadores. Privilegiou, portanto, a questão ambiental. As grandes
possibilidades de cooperação entre os dois maiores países em desenvolvimento do
mundo foram percebidas pelos dirigentes também no setor de energia, da política
internacional, da indústria pesada e dos serviços de engenharia.
O mercado dos grandes países não contou com estratégia eficiente de promoção
comercial por parte do governo brasileiro desde 1990. Absorto em imaginar
benefícios da abertura unilateral do mercado brasileiro, concentrou esforços
inúteis na regulamentação do sistema multilateral de comércio por um lado e,
por outro, do Mercosul, com algum proveito. A chegada dos pequenos países em
conseqüência da abertura do sistema produtivo e de serviços, se resultou em
nova fonte de investimentos, tampouco trouxe solução para o déficit do comércio
exterior.
As relações entre Espanha e Brasil põem terno nos anos noventa ao
distanciamento tradicional. Politicamente, a Espanha assimilou o mundo luso e
se apresentou como nexo entre Europa e América Latina. Percebeu cada país a
importância do outro nos processos regionais de integração. No Brasil o governo
e na Espanha os empresários assumiram o papel protagônico dessa nova fase das
relações bilaterais. Aproveitando com esperteza as oportunidades abertas pela
privatização, os capitais espanhóis fizeram a festa no Brasil, situando-se em
primeiro lugar no ano 2000, com investimentos de 9,6 bilhões de dólares. Os
mais importantes grupos de recém-chegados penetraram os serviços de
rentabilidade elevada e imediata: Sol Meliá, na área hoteleira, Telefônica (com
lucro de 379,9 milhões de dólares apenas no primeiro trimestre de 2001), Endesa
e Iberdrola que operam na área de eletricidade, Santander na área bancária e
Pisa na área editorial.
Com seu porte reduzido, Portugal seguiu os passos de Espanha, investindo mais
de 5 bilhões de dólares no Brasil nos anos noventa. Apesar de vínculos
afetivos, estimulados sobretudo durante os governos de Itamar Franco e Mário
Soares, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) de pouca valia foi
para o reforço da estratégia bilateral. Aliás, nem o governo brasileiro nem
seus agentes econômicos privados compensaram a penetração ibérica no Brasil com
iniciativas de internacionalização da economia brasileira e de penetração no
mercado europeu. Enquanto Portugal e Espanha ostentavam comportamento de Estado
logístico e promoviam a inserção madura de suas economias, permanecia o Brasil
refugiado na subserviência do Estado normal, inerte e regressivo.
As reformas neoliberais que se espalharam pela África nos anos noventa
aproximaram o continente da América Latina em termos de mau desempenho interno
e de inserção dependente. Pouco proveito tiraram nesse contexto as empresas
brasileiras que se haviam instalado na África sub-saárica, como a Petrobras e a
Odebrecht. As exportações brasileiras entraram em declínio a partir de 1986 e
só recobraram alento no ano de 1999. As expectativas da África do Sul após o
fim do apartheid , bem como da Nigéria e de Angola, quanto à cooperação do
Brasil para o desenvolvimento, frustraram-se6 .
O Brasil e a formação dos blocos
O Mercosul nas relações internacionais do Brasil
Os acordos Sarney-Alfonsín dos anos oitenta correspondiam a um projeto
neoestruturalista de integração, estratégico do ponto de vista econômico e
político. Já o Tratado de Assunção de 1991 que criou o Mercosul imbuiu-se da
filosofia política do Estado normal que impregnou os governos de Fernando
Collor de Melo e Carlos Saúl Menem. A integração industrial e o desenvolvimento
cederam em favor da desgravação linear do intercâmbio e do regionalismo aberto.
Desde então, interna e externamente, nenhuma estratégia foi concebida para além
do comércio. A entrada em vigor da Tarifa Externa Comum em 1995, se criou o
segundo mercado comum do mundo, aprofundou as contradições do processo,
agravadas pela desvalorização do real em 1999 e pela crise de insolvência da
Argentina em 2001. Nesse ano, recuava-se em sua implantação e estabeleciam-se
mecanismos que comprometiam a própria zona de livre comércio. Apesar disso, o
Mercosul recolheu a adesão como membros associados de Chile e Bolívia e o
pedido da Venezuela. Encetou negociações bilaterais sob a fórmula quatro mais
um com parceiros externos como os Estados Unidos em 1991 e coletivas como os
acordos com a União Européia e a Comunidade Andina. Quando completou dez anos,
em 2001, suscitou avaliações contraditórias, que se podem resumir em seis
êxitos e seis fragilidades.
Os resultados positivos do processo de integração do Cone Sul foram concretos e
de profundo alcance histórico para a vida dos povos:
1) Impressionante empatia entre a inteligência brasileira e argentina embalou o
movimento desde o berço e aproximou o sentimento nacional. Essa dimensão
humanista do processo, a dar inveja a franceses e alemães, expressou-se na
multiplicação de encontros promovidos por lideranças sociais ' acadêmicos,
diplomatas, empresários, sindicalistas, artistas, autoridades ' de que resultou
grande número de livros e artigos acerca de afinidades e diferenças, gostos,
virtudes e fraquezas, por sobre o acompanhamento que se fazia do processo.
Considerando-se a promoção do conhecimento, a demolição de preconceitos e tabus
e a adaptação da imagem do outro, o balanço foi positivo em termos de
convivência que se aceitou como inevitável.
2) As novas condições psicossociais conduziram naturalmente à criação da zona
de paz no Cone Sul, com impacto positivo sobre a América do Sul. Após haverem
cultivado a rivalidade histórica durante séculos e atingido a capacitação plena
para produção de armas nucleares, Brasil e Argentina abandonaram a corrida
armamentista, jogaram a bomba no lixo e implantaram um sistema único no mundo
de confiança mútua por meio de instrumentos jurídicos e operacionais. A
cláusula democrática contribuiu para este fim, como também para dissuadir
assaltos ao poder tão freqüentes na história regional.
3) O comércio intrazonal elevou-se de 4,1 bilhões de dólares em 1990 para 20,5
em 1997, 18,2 em 2000. No período, as exportações do bloco cresceram 50% e as
importações 180%. O regionalismo aberto provocou, portanto, um desvio de
comércio, extremamente oportuno para economias incapazes de elevar-se à
competitividade sistêmica global. O Paraguai converteu-se em oitavo comprador
do Brasil, à frente da Grã-Bretanha.
4) O Mercosul tornou-se sujeito de direito internacional pelo protocolo de Ouro
Preto de 1994, podendo negociar sobre a arena internacional. Durante a XX
Cúpula (Assunção 2001), instituiu-se um mecanismo coletivo de negociação. Por
outro lado, o arcabouço jurídico do bloco exibe 500 páginas de documentos
normativos relativos às seguintes esferas: antecedentes, integração, consulta e
solução de controvérsias, certificação de origem, comércio e aduana,
regimentos, relacionamento externo, justiça, educação e cultura, regulamentos
técnicos.
5) Sendo o segundo mercado comum do mundo e havendo queimado etapas em sua
construção, o Mercosul produziu externamente uma imagem positiva acima da
própria realidade e fortaleceu seu poder de barganha como bloco e o de seus
membros isoladamente.
6) O processo alavancou a idéia de América do Sul, que tomou forma na proposta
de criação de uma zona de livre comércio, na Cúpula de Brasília de 2000, nas
negociações entre Mercosul e Comunidade Andina e, enfim, no controle, sob
liderança brasileira, do ritmo e da natureza do processo de criação da ALCA,
como se observou na Cúpula hemisférica de Quebec de 2001 sobre o tema.
O ceticismo das avaliações ao cabo de dez anos de Mercosul evidenciavam as
fraquezas do processo de integração, também em número de seis:
1) Distintas visões de mundo e políticas exteriores não convergentes minaram a
negociação coletiva e as relações entre os membros. Concepções de globalização
benéfica ou assimétrica, de desenvolvimento autônomo ou dependente, atitudes de
subserviência ou divergência diante dos Estados Unidos e idéias sobre segurança
global colocaram em linha de choque as diplomacias de Brasil e Argentina.
2) A recusa de sacrificar a soberania nas políticas públicas internas e
externas impediu a coordenação de políticas macroeconômicas e a negociação
coletiva em foros como OMC, FMI, BM, UNCTAD e OCDE.
3) Havendo sacrificado o propósito de robustecer o núcleo econômico nacional, o
processo de integração elegeu o comércio exterior como núcleo forte. Os membros
do grupo adotaram, contudo, medidas unilaterais, desmoralizando o mecanismo da
tarifa externa comum que haviam implantado.
4) O Mercosul engendrou um processo de integração assimétrico que não criou
mecanismos de superação de desigualdades entre os membros e, no interior
destes, entre zonas hegemônicas e periféricas, como sucedeu com o processo
europeu. Frustrou, portanto, a expectativa de elevar o nível social do
conjunto.
5) A incompatibilidade das políticas cambiais entre os dois grandes parceiros
do bloco ' a Argentina com a paridade entre o peso e o dólar e o Brasil com seu
câmbio flexível ' provocou desconfianças e inúmeros contenciosos comerciais.
6) Ao elevar-se da condição de zona de livre comércio para a de união aduaneira
sem instituições comunitárias, o Mercosul criou a contradição de essência.
Enfraqueceu a negociação internacional, feita pelos Estados, e manteve o
processo negociador interno extremamente complexo, visto ser necessário acionar
a cada decisão quatro processos decisórios autônomos7 .
A integração da América do Sul e a ALCA
As relações entre o Brasil e seus vizinhos responderam a apelos históricos
contraditórios: isolamento, boa vizinhança, liderança. Imagens e percepções dos
dois lados condicionaram a estratégia regional. Também as afinidades e
diferenças. A Argentina, rival diminuída, disputou com o Brasil a influência
sobre Uruguai, Paraguai e Bolívia. O Brasil contou historicamente com o Chile
e, desde o Tratado de Cooperação Amazônica de 1978, com os países amazônicos. A
confiança mútua engendrada nas relações com a Argentina recuperou a idéia de
Rio Branco de liderar a América do Sul em sintonia com esse vizinho maior, se
possível.
Desde o início da década de 1990, o Brasil traçou uma estratégia regional que
permaneceria invariável: reforço do Mercosul com convergência política entre
Brasil e Argentina e organização do espaço sul-americano com autonomia perante
os Estados Unidos.
Em 1993, com apoio do Mercosul, da Colômbia e da Venezuela, o presidente
brasileiro Itamar Franco lançou a iniciativa de formação em dez anos da Área de
Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA). Era a idéia de unidade da América do Sul
em marcha, e não mais da América Latina, visto haver-se o México orientado para
o norte. Desde então, o Brasil contrapôs essa proposta de chegar à ALCA pelo
Mercosul à proposta alternativa norte-americana de alcançá-la desde o NAFTA
(Associação de Livre Comércio da América do Norte). A construção hemisférica de
blocos já contava, aliás, com as vertentes continental (OEA) e latina (SELA). O
Brasil foi o único país americano a dizer não aos moldes com que George Bush
propôs em 1991 a Iniciativa para as Américas, reafirmada pela Cúpula dos 34
países americanos em Miami em 1994, na de Santiago em 1998 e de Quebec em 2001.
Desse modo, os ministros dos 34 países que se reúnem anualmente para negociar o
processo de formação da ALCA não chegam a conclusões convergentes para provocar
decisões concretas durante as cúpulas.
A integração da América do Sul foi alçada ao nível de condição prévia para a
integração hemisférica pela diplomacia brasileira. Os argumentos a favor dessa
estratégia eram três: a expansão dos interesses comerciais e empresariais
brasileiros sobre a região, a conseqüente elevação de seu desempenho e
competitividade e a percepção de que a proposta norte-americana destinava-se a
alijar a hegemonia brasileira em benefício próprio. Em 2001, deixou-se claro
que o comércio bilateral erigia-se como outra condição para negociar a ALCA,
exigindo-se a remoção prévia do arsenal protecionista norte-americano, acima
descrito. A diplomacia brasileira foi muito ativa para evitar a defecção da
Argentina e do Chile, cujos governos inclinavam-se para o NAFTA e estavam
propensos a antecipar a implantação da ALCA de 2005 para 2003. Cardoso relançou
a idéia da ALCSA a construir por acordos de comércio entre Mercosul e
Comunidade Andina, com adesão do Chile. Convocou para Brasília os doze
presidentes e realizou em 2000 a primeira Cúpula da América do Sul, com o
objetivo de aprofundar os vínculos políticos e de acelerar a criação da zona de
livre comércio pela fusão do Mercosul com a Comunidade Andina e a adesão plena
do Chile ao primeiro. Por ocasião da mediação bem sucedida do conflito
fronteiriço entre Peru e Equador, Cardoso afirmou em 1998 que a América do Sul
resolve seus problemas, mesmo os militares, por si e sem intervenção externa de
qualquer natureza. Influiu depois na contenção da ação militar norte-americana
que se presumia intensa por meio do Plano Colômbia de combate às drogas.
O modelo de integração do Mercosul como união aduaneira imperfeita favoreceu,
portanto, o Brasil, em termos de ganhos e perdas. O Brasil conservou sua
autonomia decisória e soube usar o bloco em outros quadrantes. Não avançou
quanto desejava na construção do bloco sul-americano em seu benefício, porém
retardou o prejudicial bloco hemisférico. Contou nos anos noventa com a
convergência quase perfeita da visão regional e mundial por parte da diplomacia
venezuelana, que aliás desprezou com evidente descaso. Entregues aos parâmetros
de conduta do Estado normal, os outros governos da América do Sul estavam
inclinados pela lógica à subserviência diante dos Estados Unidos e à ilusão de
que a abertura ilimitada de suas economias, com alienação destrutiva, trar-
lhes-ia a desejada inserção competitiva no mundo da globalização. Esse
obstáculo aos desígnios de liderança brasileira no ordenamento regional foi
paradoxalmente suspenso pela recusa do Congresso norte-americano em conceder
autorização ao Executivo para negociar livremente a ALCA. Ademais, o movimento
de introspecção da economia norte-americana, em razão de recessão prevista após
os atentados terroristas de setembro de 2001, aliviou o temor de uma imposição
da ALCA sob pressão8 .
As relações do Brasil com outros blocos
Ao mesmo tempo em que negociava a ALCA, o governo brasileiro utilizava o
Mercosul para negociações coletivas com a UE. Um Acordo-Quadro de Cooperação
Interinstitucional foi firmado em 1992 e outro Inter-Regional de Cooperação em
1995. O primeiro tinha caráter pedagógico, de influência política dos europeus
sobre a integração do Cone Sul. O segundo visava a zona de livre comércio. Para
tanto, criou diversos mecanismos de negociações, encetadas em quinze esferas de
ação. Entre 1992 e 1997, o comércio entre os blocos cresceu 266% e os
investimentos diretos da UE no Mercosul 700%, atingindo 7,9 bilhões de dólares.
Durante a Primeira Cúpula Euro-Latino-Americana de junho de 1999, a Cúpula
Mercosul-União Européia decidiu abrir as negociações para construção de uma
zona de livre comércio que também envolvesse fórmulas de união política. Três
rodadas de negociação ocorreram até 2000, com magnitude superior às negociações
que se levavam a efeito para a instalação da ALCA. A zona de livre comércio
entre Mercosul e UE apresentava-se, portanto, como alternativa viável à zona
hemisférica sob hegemonia dos Estados Unidos, e com a qualidade de contemplar a
dimensão da cidadania, da democracia e da convivência política. Cardoso
condicionou sua criação, prevista para 2005, à eliminação dos subsídios o do
protecionismo agrícola em vigor na Política Agrícola Comum. O ativo estratégico
erguido na Europa fortalecia a liderança do Brasil na América do Sul e sua
disposição de não sacrificar interesses essenciais nas negociações com os
Estados Unidos, como estava disposto a fazê-lo seu sócio principal, a
Argentina.
Do lado da África, a diplomacia coletiva do Mercosul concluiu em 2000 um acordo
com a África do Sul para formação da zona de livre comércio. A Zona de Paz e
Cooperação do Atlântico Sul, criada em 1986 por resolução da ONU, constatou em
sua terceira reunião, em 1994, que sua ação se diluía nos órgãos regionais,
particularmente nas negociações entre Mercosul e Comunidade para o
Desenvolvimento da África Austral, entre o Mercosul e a Comissão Econômica dos
Estados da África Ocidental ou ainda entre o Brasil e a Comunidade de Países de
Língua Portuguesa. Esta última, instituída em 1996 como foro de concertação
política, cooperação econômica e promoção da língua portuguesa foi tímida
diante das soluções que poderia alcançar para a guerra civil na Angola e nenhum
poder de pressão internacional exerceu diante da tragédia do Timor Leste.
Em 1998 criou-se como mecanismo informal o Fórum de Cooperação América Latina-
Ásia do Leste com a finalidade de fomentar o diálogo político e a cooperação.
Reunia 15 países da América Latina, inclusive o Brasil, e 15 outros da Ásia do
leste e da Oceania, incluindo China, Japão e Austrália. A primeira reunião de
chanceleres ocorreu em 2001. O CARICOM (Caribbean Community), bloco de 15
países efetivado em 1973 não atraiu a atenção bilateral do Brasil ou coletiva
do Mercosul9 .
Conclusões
Durante seus dois mandatos, Fernando Henrique Cardoso obteve êxito no propósito
de manter a estabilidade econômica interna e elevar a produtividade. Ao acoplar
o setor externo e esses objetivos internos, corrompeu a funcionalidade da
política exterior. Seu governo confundiu abertura com estratégia10 e
sacrificou a política exterior, que deixou de servir ao desenvolvimento e à
superação de dependências estruturais. Em outros termos, não formulou uma
estratégia de inserção internacional, para além da simples abertura.
O balanço das relações internacionais do Brasil durante a era Cardoso tornou-
se, destarte, medíocre, senão desastroso, considerando a realização de
interesses nacionais.
Cardoso falhou em três pontos: expôs as finanças à especulação, converteu a
política de comércio exterior em variável da estabilidade de preços e alienou
boa parte do núcleo central robusto da economia, mediante o mecanismo da
privatização com transferência de ativos ao exterior. Aprofundou, desse modo, a
vulnerabilidade externa, tornando-a uma das mais graves entre os países
emergentes.
Esses erros conduziram a resultados negativos da ação externa: em primeiro
lugar, à tradicional via dos serviços da dívida, Cardoso acrescentou duas novas
vias de transferência de renda ao exterior, a dos dividendos e a dos altos
juros reais; em razão disso, elevou o passivo externo do país a um patamar de
alto risco segundo a boa regra econômica; enfim, um comércio exterior quase
estagnado deixou de servir ao desenvolvimento e ao alívio do balanço de
pagamentos. Nenhuma criatividade revelou o Presidente em acionar mecanismos de
equilíbrio dessas condutas ' que por isso são erros de cálculo político ' como
fazem os países maduros.
O governo de Cardoso viveu de três ilusões: acreditou no ordenamento
multilateral que haveria de resultar de negociações, as quais produziriam
regras justas, fixas, transparentes e respeitadas por todos para o comércio
internacional, as finanças, o meio ambiente e a segurança; a ilusão de divisas,
como se os capitais externos que entraram no país em razão de uma abertura
indiscriminada não agravassem o desequilíbrio do balanço de pagamentos; enfim,
investiu no prestígio do presidente intelectual, como se tal áurea fosse
suficiente para dar cobertura aos interesses brasileiros.
O movimento da diplomacia e o desempenho das autoridades econômicas submeteram-
se a tais ilusões, que alimentavam por intensa atividade, a primeira, e por
decisões coerentes, as segundas.
A dispersão da política exterior, que não traçou rumo firme, a não ser os
parâmetros do que chamamos de Estado normal ' subserviente, destrutivo e
regressivo ' foi a marca do governo de Cardoso. Lidou com a integração do Cone
Sul e da América do Sul, com negociações simultâneas do lado da ALCA e da União
Européia, privilegiou o multilateralismo sem abandonar o bilateralismo
tradicional. A essas diversas frentes de ação faltou o cimento de uma
estratégia de inserção madura no mundo da interdependência global, a dar
significado a cada dimensão do envolvimento externo. Duas linhas de força da
ação externa erigiram como prioridades a contribuição ao ordenamento
multilateral, o lado idealista, e o interesse pela integração no Cone Sul, o
lado realista. Ambas colheram frutos medíocres tendo em vista a realização de
interesses.
Apesar dessa dispersão, talvez em razão dela, o Brasil de Cardoso manteve
controle circunstancial de males que se abateram com conseqüências mais graves
sobre países vizinhos. Avançou menos pelo caminho do paradigma latino-americano
do Estado normal. Manteve algo da conduta do Estado desenvolvimentista, o
paradigma histórico que agonizou, mas não morreu. Enfim, pôs em marcha uma
tímida experiência de Estado logístico.11
Em suma, o Brasil de Cardoso deixou-se seduzir pela miragem da mudança,
perseguida com fúria ideológica, tomou o país em um nível de desenvolvimento
histórico que reunia todos os elementos para uma inserção moderna no mundo da
globalização e manipulou o setor externo por modo a provocar um salto para
trás, a considerar o lastro de potencial acumulado a duras penas por esforços
do Estado e da nação, durante os sessenta anos anteriores.
Notas
1 Os textos publicados por órgãos do Ministério das Relações Exteriores, como a
Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais (IPRI), ou disponibilizados pelos sites http://www.relnet.com.br
e http://www.mre.gov.br foram utilizados em todo o capítulo tanto para a
fundamentação conceitual da política exterior brasileira quanto para a coleta
de informações empíricas sobre sua implementação. Dentre as publicações da
Chancelaria brasileira, referimos a seguir as mais importantes: Reflexões sobre
a política externa brasileira, 1993; A inserção internacional do Brasil: a
gestão do Ministro Celso Lafer no Itamaraty, 1993; A política externa do
Governo Itamar Franco, 1994; Política Externa. Democracia.
Desenvolvimento.Gestão do Ministro Celso Amorim no Itamaraty 1995; Política
externa em tempos de mudança: a gestão do Ministro Fernando Henrique Cardoso no
Itamaraty, 1994; Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso.Política
Externa:pronunciamentos, 1995; Política externa em tempo real; a gestão do
Embaixador Sebastião do Rego Barros no Itamaraty, 1999; A palavra do Brasil nas
Nações Unidas, 1946-1995, 1995. Luiz Felipe LAMPREIA, Diplomacia brasileira:
palavras, contextos e razões. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999. DaResenha de
política exterior do Brasil, outrora uma publicação periódica regular, foram
publicados alguns números sem regularidade, porém os demais estão
disponibilizados no relnet.
Carta Internacional, o boletim da Universidade de São Paulo, acompanha em seus
artigos o movimento da diplomacia brasileira e as questões internacionais. Os
principais autores utilizados foram os seguintes: Luis RUBIO, nº 73, 1999;
Amado Luiz CERVO, 71, 1999; Luís Augusto SOUTO MAIOR, 71, 1999; Ana Flávia
BARROS-PLATIAU e Marcelo Dias Varela, 96, 2001; Denilde Oliveira HOLZHACKER,
58, 1997; Roberto Teixeira da COSTA, 59, 1998; Amâncio J. OLIVEIRA, 85, 2000;
José Augusto Guilhon ALBUQUERQUE, 59, 1998; Janina ONUKI, 83, 2000; José
GENUÍNO, 71, 1999.
A Revista Brasileira de Política Internacional, com publicação regular,
descreve as relações internacionais do Brasil e aprofunda sua análise. Os
principais autores utilizados foram os seguintes: Fernando Henrique CARDOSO, A
política externa do Brasil no início de um novo século, 44 (1), p. 5-12, 2001);
J. A. Lindgren ALVES, A Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social e os
paradoxos de Copenhague, 40 (1), p. 142-166, 1997; Luiz Felipe de Seixas
CORRÊA, O Brasil e o mundo no limiar do novo século: diplomacia e
desenvolvimento, 42 (1), p. 5-29, 1999; Luiz Felipe LAMPREIA, A política
externa do governo FHC: continuidade e renovação, 42 (2), p. 5-17, 1998; Lúcio
ALCÂNTARA, Os parlamentos e as relações internacionais, 44 (1), p. 13-21, 2001.
Ver Celso LAFER, Brazilian International Identity and Foreign Policy: Past,
Presente, and Future. Daedalus, Spring 2000, p. 226 e o número temático da
revista Parcerias Estratégicas, 7, 1999. As referências dos livros utilizados
neste parágrafo constam na bibliografia ao final da obra: Lafer (1999); Saraiva
(2001); Guimarães (1999); Danese (1999); Bernal-Meza (2000); Cervo (2001). Ver
ainda Fernando Henrique CARDOSO e Mário SOARES,O mundo em português. Um
diálogo. São Paulo: Paz e Terra, 1998; Ricardo BIELSCHOWSKY (org.),Cinqüenta
anos de pensamento na CEPAL, Record, 2000.
2 Livros: Alves (1994); Trindade (1998); Lafer (1999). Ver João P. M. PEIXOTO
(org.), Reforma e modernização do Estado; aspectos da experiência brasileira
recente, Sobral: UVA, 2000; Luiz Toledo MACHADO, O preço do futuro: um modelo
de reconstrução nacional. Petrópolis: Vozes, 2000. Artigos dos seguintes
autores em Carta Internacional: Patrícia Leite MIRANDA, 97, 2001; Michel Henry
BOUCHET, 88, 2000; Ricardo U. SENNES, 86, 2000; Marília COUTINHO, 91, 2000;
Eduardo VIOLA, 97, 2001; Fernando Henrique CARDOSO, 94-95, 2001; Rita CASARO,
96, 2001; Paulo Roberto ALMEIDA, 90, 2000. Ver os seguintes artigos da Revista
Brasileira de Política Internacional: Benoni BELLI, O fim da Guerra Fria:
algumas implicações para a política externa brasileira, 39 (1), p. 120-131,
1996; Shiguenoli MIYAMOTO, O Brasil e as negociações multilaterais, 43 (1), p.
119-137, 2000; Eiiti SATO, A agenda internacional depois da Guerra Fria: novos
temas e novas percepções, 43 (1), p. 138-169, 2000; A. F. GRANJA e outros,
Acesso aos recursos genéticos, transferência de tecnologia e bioprospecção, 42
(2) p. 81-98, 1999; Marcelo Dias VARELA, Biodiversidade: o Brasil e o quadro
internacional, 40 (1), p. 123-141, 1997; José Augusto Lindgren ALVES, O
significado político da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, 36 (2), p.
128-135, 1993; Antônio Augusto Cançado TRINDADE, Balanço dos resultados da
Conferência Mundial de Direitos Humanos, 36 (2), p. 9-27, 1993; A. VERWEY e
outros, A percepção brasileira dos refugiados, 43 (1), p. 183-185, 2000. Luiz
Carlos Bresser PEREIRA, A nova centro-esquerda, Instituto Teotônio Vilela,
Idéias & Debates, nº 24, 1999.
3 Livro: Proença e Diniz (1998). Artigos dos seguintes autores em Carta
Internacional: Geraldo Lesbat CAVAGNARI FILHO, 96, 2001; S. QUINTAMAR e M.
Romegialli, 93, 2000; Shiguenoli MIYAMOTO, 89, 2000; Luiz A. P. SOUTO MAIOR,
86, 2000; Rut DIAMINT, 65, 1998. Ver os seguintes artigos da Revista Brasileira
de Política Internacional: Odete Maria de OLIVEIRA, A integração bilateral
Brasil-Argentina: a tecnololgia nuclear e o Mercosul, 41 (1), p. 5-23, 1998;
Amâncio Jorge OLIVEIRA e Janina Onuki, Brasil, Mercosul e a segurança regional,
43 (2), p. 108-129, 2000; Antônio José FERNANDES, O Brasil e o sistema mundial
de poderes, 44 (1) p. 94-111, 2001.
4 Livros: Almeida (1999); Lafer (1999). Artigos dos seguintes autores em Carta
Internacional: Fernando KINOSHITA, 93, 2000; Roberto Teixeira da COSTA, 86,
2000; G HUFBAUER e J. J. Schott, 78, 1999; Ricardo Wahrendorff CALDAS, 49,
1997. Ver os seguintes artigos da Revista Brasileira de Política Internacional:
Amado Luiz CERVO, Política de comércio exterior e desenvolvimento: a
experiência brasileira, 40 (2) p. 5-26, 1997. Maurício Eduardo Cortes COSTA,
Estratégias comerciais brasileiras em nível internacional, Debates (Konrad
Adenauer-Stiftung) 13, p. 63-69, 1997. Vera THORSTENSEN, As relações econômicas
internacionais do Brasil, Debates (Konrad Adenauer-Stiftung), 13, p. 71-98,
1997. Para os dados estatísticos, ver a Série Histórica do Banco Central do
Brasil.
5 Artigo em Carta Internacional: Uziel NOGUEIRA, 61, 1998. Ver os seguintes
artigos da Revista Brasileira de Política Internacional: Reinaldo GONÇALVES,
Globalização financeira e inserção internacional do Brasil, 39 (1), p. 72-88,
1996; Marcos Antônio Macedo CINTRA, A participação brasileira em negociações
multilaterais e regionais sobre serviços financeiros, 42 (1), p. 62-76, 1999;
Venício A. de LIMA., Globalização e políticas públicas no Brasil: a
privatização das comunicações entre 1995 e 1998, 41 (2), 118-138, 1998. Glória
MORAES, Telecomunicações: o jogo ainda não acabou! Network. 9 (2), p. 6, 2000.
6 Artigos dos seguintes autores em Carta Internacional: Roberto Teixeira COSTA,
98, 2001; Ronaldo Motta SARDENBERG, 68, 1998;, Marcelo JARDIN, 54, 1997;
Alexandre Ratsuo UEHARA, 52, 199; Bruno AYLLON, 94-95, 2001. Ver os seguintes
artigos da Revista Brasileira de Política Internacional: Frederico Lamego de
SOARES, Análise econômica da parceria Brasil-Alemanha no contexto das relações
entre o Mercosul e a União Européia, 43 (2), p. 87-107, 2000; Luiz A. P. SOUTO
MAIOR, Brasil-Estados Unidos: desafios de um relacionamento assimétrico, 44
(1), p. 55-68, 2001; Graciela Zubelzu de BACIGALUPO, As relações russo-
brasileiras no pós-Guerra Fria, 43 (2), p. 59-86, 2000); Antônio Carlos LESSA,
Os vértices marginais de vocações universais: as relações entre a França e o
Brasil de 1945 a nossos dias, 43(2) p. 28-58, 2000; Severino CABRAL, Encontro
entre Brasil e China: cooperação para o século XXI, 43 (1), p. 24-42, 2000; Pio
PENNA FILHO, África do Sul e Brasil: diplomacia e comércio (1918-2000), 44 (1),
p. 69-93, 2001; José Vicente de Sá PIMENTEL, Relações entre o Brasil e a África
subsaárica,43 (1), p. 5-23, 2000. Jacques D'ADESKY, O paradoxo das relações
comerciais Brasil-África, Network, 7 (3), p. 1-2, 1998. Cristina Sorenu
PECEQUILO, A política externa dos Estados Unidos: fundamentos e perspectivas,
Cena Internacional, 2(1), p. 146-170, 2000.
7 Livros: Rapoport (org.) (1995); Cervo e Rapoport (orgs., 1998); Lladós e
Guimarães (orgs., (1999); Guimarães (org., 2000); Bernal-Meza (2000); Marcos A.
G. de OLIVEIRA, Mercosul e política; São Paulo: LTr, 2001; Mercosul: legislação
e textos básicos, Brasília: Senado Federal, 2000. Artigos dos seguintes autores
em Carta Internacional: Luiz A. P. SOUTO MAIOR, 93, 2000; A. GREMAUD e M.
Bobik, 92, 2000; Fernando MASI, 72, 1999; Rosendo FRAGA, 61, 1998. Ver os
seguintes artigos da Revista Brasileira de Política Internacional: Alcides
Costa VAZ, Mercosul aos dez anos: crise de crescimento ou perda de indentidade?
44 (1), p. 43-54, 2001; Vera THORSTENSEN, A OMC ' Organização Mundial do
Comércio e as negociações sobre investimentos e concorrência, 41 (1), p. 56-88,
1998. Raúl BERNAL-MEZA, Argentina: la crisis del desarrollo y de su inserción
internacional. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
8 Livros: SOARES, (1994); GUIMARÃES (1999). Artigos dos seguintes autores em
Carta Internacional: João Clemente Baena SOARES, 51, 1997; G. HUFBAUER e D.
Orejas, 99, 2001; Fernando Henrique CARDOSO, 100, 2001; Antônio J. F. SIMÕES,
90, 2000; Flávia de Campos MELLO, 96, 2001; Alberto PFEIFER, 63, 1998; Felipe
DE LA BALZE, 91, 2000; Luiz A. P. SOUTO MAIOR, 91, 2000. Reinaldo GONÇALVES,
Brasil, integração regional e cooperação internacional, Konrad Adenaur
Stiftung, Cadernos Adenauer, nº 2, p. 57-80, 2000.
9 Livro: Saraiva (org., 2001). Artigo em Carta Internacional: Fernando
KINOSHITA, 92, 2000; Edmundo FUJITA, 98, 2001. Artigo da Revista Brasileira de
Política Internacional: Déborah Barros Leal FARIAS, O Brasil e o CARICOM, 43
(1), p. 43-68, 2000.
10 Dupas (2002).