Desafios de uma política externa assertiva
Desde o começo do corrente ano, o Brasil tem um Presidente de esquerda
moderada, cujas manifestações públicas, ainda como candidato, e primeiros
passos neste período inicial de governo o comprometem com uma política externa
mais nacionalista e afirmativa do que a dos governos que o antecederam desde
1990. Em artigo publicado em agosto de 20021, o então candidato Luiz Inácio
Lula da Silva já afirmava que, "para construir um novo modelo econômico, que
terá como base um vasto programa de inclusão social, será necessário aprofundar
a democracia em nosso país e garantir uma presença soberana do Brasil no mundo
(grifo meu)". Assim, meses antes da sua eleição, o atual Presidente proclamava
que uma política externa assertiva seria uma condição necessária para a
promoção do desenvolvimento econômico e social do país. Isso foi parte do
mandato que recebeu nas urnas.
Em dezembro do mesmo ano, o Embaixador Celso Amorim, já formalmente indicado
para a posição de Ministro das Relações Exteriores, reiterava a relação entre
os objetivos econômico-sociais do futuro governo Lula e sua política externa,
embora deixando claro que tal ligação de nenhuma forma diminuía a preocupação
com os assuntos político-estratégicos afetos à pasta que então se preparava
para assumir2.
No momento em que escrevo, seria claramente prematuro fazer uma análise da
política externa do atual governo a partir de suas realizações na área
internacional durante o curto espaço de tempo decorrido desde a sua posse. Este
artigo limita-se, pois, a apresentar uma breve reflexão sobre alguns dos
desafios que deverão ser enfrentados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
no cumprimento daquilo a que se comprometeu como candidato e que reafirmou em
suas primeiras declarações e atitudes como Presidente.
Um relance sobre o passado
A política externa de qualquer país é condicionada pelo contexto internacional
em que se desenvolve, pela posição que o país ocupa ou aspira a ocupar no mundo
e pelos meios de que disponha e que considere dever utilizar para preservar ou
alcançar tal posição. A maneira como cada um desses elementos influencia a
atuação internacional do país freqüentemente depende, porém, menos de dados
objetivos do que da percepção que os responsáveis por aquela atuação possam ter
de tais condicionantes. Assim, determinada por fatores objetivos e subjetivos,
é normal que a política externa de um país só excepcionalmente se mantenha
linear por períodos relativamente longos.
Isso não impede, porém, que a preocupação duradoura com determinados objetivos
ou interesses nacionais assegure à política externa de alguns países um
apreciável grau de consistência, mesmo sem alcançar aquela fugidia linearidade.
A política externa brasileira entre o fim da II Guerra Mundial e 1990 é
ilustrativa de tal situação. Durante esse período, ela foi marcada por duas
constantes: a preocupação com o desenvolvimento econômico nacional que na
verdade vinha desde a década de 1930 e, no contexto geral da Guerra Fria, a
lealdade à aliança político-militar liderada pelos Estados Unidos. Esta última
talvez pudesse ser caracterizada como uma fidelidade de última instância, já
que não impediu, em distintas ocasiões, divergências com a potência líder do
bloco ocidental quando estavam em jogo interesses diretos do Brasil.
Tais divergências eram inevitáveis, dadas não só as freqüentes dificuldades de
conciliação entre aquelas duas constantes, mas também a circunstância de que
diferentes formuladores da nossa política externa atribuíram, ao longo do
período considerado, distintas prioridades relativas a cada uma, ainda que sem
abandonar inteiramente qualquer das duas. Assim, por exemplo, a Operação Pan-
Americana, lançada em 1958, representou um típico esforço de conciliação entre
o objetivo de desenvolvimento econômico e a lealdade ao líder do bloco
ocidental, criticando o descaso de Washington pelo primeiro, mas sem pôr em
dúvida o ideal político do pan-americanismo. Já as décadas de 1960 e 1970
presenciaram claras variações de prioridade relativa entre aquelas duas
preocupações. O começo dos anos 60 viu o surgimento da chamada "política
externa independente" (PEI), dos governos Jânio Quadros e João Goulart, que
priorizava o interesse nacional e procurava marcar sua independência em relação
aos Estados Unidos, às vezes até com provocações desnecessárias, como o
episódio da condecoração de Che Guevara. A partir de 1964, porém, o governo
militar, embora sem razões objetivas que o justificassem, fez questão de
assinalar os novos rumos da nossa diplomacia e de proclamar as razões
percebidas de tal mudança. Em julho de 1964, por ocasião da entrega dos
diplomas a uma nova turma de diplomatas, o então Presidente Castello Branco
declarou: "No presente contexto de uma confrontação de poder bipolar, com
radical divórcio ideológico entre os dois centros, a preservação da
independência pressupõe a aceitação de um certo grau de interdependência (grifo
meu), quer no campo militar, quer no econômico, quer no político". Dez anos
mais tarde, o próprio regime militar, então sob a chefia do Presidente Ernesto
Geisel, adotaria, entretanto, o denominado "pragmatismo responsável", que em
muitos aspectos se aproximava da PEI, inicialmente condenada. A nova orientação
mantinha a fidelidade ao Ocidente naquilo que, na percepção de Brasília, era,
primordialmente, do interesse da aliança ocidental, mas se reservava o direito
de escolher rumos próprios onde o interesse nacional, econômico ou político,
fosse percebido como dominante. Episódios de tensão como os relativos ao acordo
nuclear com a então República Federal da Alemanha ou às relações com Angola
ilustram tal autonomia, que, entretanto, não punha em causa a fidelidade de
última instância ao bloco ocidental.
Observadas no contexto histórico mais amplo, tais flutuações nos rumos da nossa
política externa podem ser consideradas como oscilações em torno da tendência
geral no período considerado, centrada no objetivo de desenvolvimento econômico
e na identificação política com os Estados Unidos e a grande aliança ocidental.
Mudanças capazes de caracterizar uma efetiva inflexão naquela tendência só
ocorreriam a partir de 1990, em função de profundas alterações dos
condicionantes externos e internos num curto espaço de tempo.
Em 1989, cai o muro de Berlim. Era o fim do bloco soviético e, para todos os
efeitos práticos, do bipolarismo. Em 1990, toma posse o Presidente Fernando
Collor, defensor de uma política econômica liberal e de um menor papel do
Estado no processo de desenvolvimento econômico, com uma percepção também
distinta da posição do Brasil no mundo. Em 1991, desaparece a União Soviética o
chamado socialismo real deixa de ser oferecido aos países em desenvolvimento
como uma alternativa de organização político-econômica. No novo contexto
nacional e internacional, as já referidas constantes tradicionais da nossa
política externa na segunda metade do século passado teriam de ser
reexaminadas. Objetivamente, a fidelidade ao Ocidente, que com os reparos que
possam ser feitos à maneira como às vezes se manifestou poderia, no contexto da
Guerra Fria, ser explicada como a necessária opção política por um dos dois
centros de poder, perde sua justificativa. Em tese, a nova situação ensejava
maior autonomia na condução da nossa política externa, mas o pensamento
dominante no âmbito nacional tendia a levar o país ao alinhamento com a
potência hegemônica. Internamente, o papel até então exercido pelo Estado na
promoção do desenvolvimento econômico passa a ser questionado. Há uma ascensão
do pensamento econômico liberal, que fortalece a tendência ao referido
alinhamento político. Mas o pensamento dominante ainda convive com outras
correntes, criando uma situação que se traduz numa certa indefinição sobre o
papel internacional do Brasil. Como diz Amado Cervo, num artigo sobre a era
Cardoso, "o desenvolvimento não desapareceu no horizonte da política exterior
brasileira desde 1990 (...). Deixou apenas de ser o elemento de sua
racionalidade".3 Pode-se dizer que a política externa perdeu seus pontos de
referência tradicionais sem que surgisse algo que os substituísse.
Mas não foi só a política brasileira; de alguma forma, também a ordem mundial.
O fim do bipolarismo colocou os próprios Estados Unidos, como superpotência
remanescente, diante de um dilema: promover, em colaboração com outros países,
a construção de uma ordem internacional mais justa e democrática ou, apoiados
na sua supremacia político-militar, tratar de estender ao mundo a hegemonia
que, durante a Guerra Fria, exercera entre seus próprios aliados. A primeira
reação dos formuladores da política internacional de Washington, ao verem seu
país guindado à posição de potência hegemônica mundial, foi retoricamente
idealista, senão utópica. Discursando nas Nações Unidas em 1990, o Presidente
Bush (pai) apresentou a sua visão de "uma nova parceria de nações que
transcenda a Guerra Fria. Uma parceria baseada na consulta, na cooperação e na
ação coletiva, especialmente por meio de organizações internacionais e
regionais. Uma parceria unida por princípios e pelo império da lei, e apoiada
pela distribuição eqüitativa de custos e compromissos. Uma parceria cujas metas
são ampliar a democracia, aumentar a prosperidade, aumentar a paz e reduzir
armamentos". Na verdade, o idealismo retórico continha um elemento implícito de
autocongratulação, senão de arrogância: a única razão por que a sua "visão"
utópica não se materializara antes teria sido a existência do império
soviético, cuja implosão permitiria agora que ela se realizasse. Como a
realidade era evidentemente bem mais complexa, a "nova ordem mundial", foi tão
entusiasticamente aclamada no primeiro momento quanto rapidamente abandonada no
baú das quimeras. Na prática, o que se seguiu foi a crescente afirmação da
autoridade do mais forte, inclusive com a efetiva assunção pela Otan de
prerrogativas do Conselho de Segurança em questões político-militares. Em suma,
o bipolarismo morrera, o multilateralismo não tinha condições de afirmar sua
autoridade sobre os efetivos detentores do poder e o unilateralismo não ousava
dizer seu nome num mundo que só na área militar podia ser considerado
rigorosamente unipolar.
Nesse quadro de relativa nebulosidade da política internacional, produziram-se
acontecimentos externos e internos que, do ponto de vista brasileiro, fazem
recordar, pela sua importância potencial neste começo do século XXI, os
desenvolvimentos que, no fim da década de 1980 e começo dos anos 90, levaram a
uma inflexão na nossa política externa. No exterior, os atentados de 11 de
setembro de 2001 fizeram da luta contra o terrorismo o ponto focal da política
externa americana e ofereceram o pretexto perfeito para que a administração de
George W. Bush assumisse abertamente o viés unilateralista de que já vinha
sendo acusada e que, bem antes da eleição do atual Presidente americano, já era
publicamente defendido por alguns dos seus atuais assessores4. No Brasil, em
2002, pela primeira vez, mais de 50% dos eleitores levaram ao poder um
presidente de esquerda, cuja política externa se anunciava substantivamente
divergente da linha de Washington, embora com a intenção declarada de manter
boas relações com os Estados Unidos e a aparente convicção de que o
conseguiria.
Política internacional e aspirações nacionais
Já no discurso de posse5, o Presidente da República colocou o seu governo sob o
signo da "mudança" "esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da
sociedade brasileira nas eleições de outubro". E deixou claro que isso se
aplicava tanto à política interna quanto à externa, que "refletirá também os
anseios de mudança que se expressaram nas ruas".
Na interpretação do Presidente, esses anseios devem conduzir a uma ação
diplomática que "estará orientada por uma perspectiva humanista e será, antes
de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional". Dentro desse enfoque, há
uma grande preocupação com o comércio exterior visto como peça-chave para a
redução da vulnerabilidade externa e, mais genericamente, com as questões
econômicas. Mas a ênfase no econômico deverá ser o instrumento para beneficiar
o cidadão, para elevar o padrão de vida da população: "Por meio do comércio
internacional, da capacitação de tecnologias avançadas e da busca de
investimentos produtivos, o relacionamento externo do Brasil deverá contribuir
para a melhoria das condições de vida da mulher e do homem brasileiros,
elevando os níveis de renda e gerando empregos dignos".
Com vistas à consecução deste objetivo último, o Presidente parece atribuir
igual importância às negociações da Alca, àquelas entre o Mercosul e a União
Européia e às que se devem realizar na Organização Mundial de Comércio, nas
quais o Brasil se propõe lutar contra o protecionismo e os "escandalosos
subsídios agrícolas" dos países ricos, bem como contra os obstáculos que se
opõem às nossas exportações de produtos industriais, tratando de obter "regras
mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento". Nesse
contexto, atribui também importância a que tais negociações não comprometam o
nosso futuro, para o que se faz necessário, em todos esses foros, "preservar os
espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos
social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico". Essa
preocupação com o potencial de asfixia que as normas acordadas em tais
negociações podem ter sobre o nosso processo de desenvolvimento parece
particularmente bem-vinda, já que ele tem estado surpreendentemente ausente,
por exemplo, do debate interno sobre a Alca, mais centrado no problema imediato
do equilíbrio da liberação comercial entre os Estados Unidos e o Brasil.
As colocações sobre a política externa estão sempre ligadas, porém, ao problema
social e à afirmação da soberania nacional, duas preocupações aparentemente
percebidas como complementares, num processo sinergético em que a solução de
uma questão tenderia a ajudar na da outra. Assim, o Presidente foi enfático na
afirmativa de que não perderá de vista que "o ser humano é o destinatário
último do resultado das negociações. De pouco valerá participarmos de esforço
tão amplo e em tantas frentes se daí não decorrerem benefícios diretos para o
nosso povo. Estaremos atentos também para que essas negociações, que hoje (...)
englobam um amplo espectro normativo, não criem restrições inaceitáveis ao
direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de
desenvolvimento".
Essa importância atribuída pelo Presidente recém-empossado às questões
econômicas e sociais nacionais projeta-se também na sua visão da ordem
internacional, especialmente em relação à América do Sul: "a grande prioridade
da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do
Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e
de justiça social". E o ponto de partida para a consecução de tal objetivo será
"uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de
cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do
significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do
Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político", embora apoiado em
"alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e
reforçados". E com visão ambiciosa do processo integracionista, propõe-se
cuidar também das suas "dimensões social, cultural e científico-tecnológica".
Na sua aparente determinação de liderar um movimento integracionista sul-
americano, o Presidente declarou desde logo sua disposição de promover a
criação de novas instituições capazes de fortalecer a unidade sub-regional e
regional, de uma forma a que o Brasil se tem até agora mostrado pouco
inclinado: "Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa
florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul".
Mas a proclamada disposição do atual governo de, sem veleidades de
intervencionismo, participar ativamente da política sul-americana não se limita
ao esforço integracionista: "Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações
difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas
possibilidades(grifo meu), para encontrar soluções pacíficas para tais crises,
com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de
cada país". E como que para evitar possíveis interpretações de que sua
preocupação com a América do Sul seja excludente de outros países latino-
americanos, explicitou que "o mesmo empenho de cooperação concreta e de
diálogos substantivos teremos com todos os países da América Latina". A
impressão geral da fala presidencial é, porém, de que, compreensivelmente, as
prioridades da sua política regional seriam, nesta ordem, o Mercosul, a América
do Sul e, finalmente, outros países da América Latina. Seria, em última
análise, a percepção de quem se propõe um papel protagônico entre os países em
desenvolvimento do continente, área na qual se considera em condições de
exercer uma liderança natural, a qual, entretanto, se tornaria menos nítida na
medida em que se aproximasse da área de influência mais direta dos Estados
Unidos. Seria uma visão realista, não perceptivelmente distinta daquela
manifestada pelo próprio governo de Fernando Henrique Cardoso ao convocar a
primeira reunião de cúpula dos países da América do Sul6.
Em contraste, às relações com os Estados Unidos não parece ser atribuída outra
prioridade que não aquela decorrente da importância daquele país como potência
hegemônica regional e mundial: "Procuraremos ter com os Estados Unidos da
América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito
mútuo". A noção do que se espera seja essa "parceria madura" já tinha sido algo
mais elaborada pelo Embaixador Celso Amorim, então já designado Ministro das
Relações Exteriores, em entrevista à Gazeta Mercantil7. Tratar-se-ia de sair
"de queixas recorrentes para uma visão mais estratégica, na qual os Estados
Unidos reconhecem no Brasil um parceiro indispensável para a estabilidade da
América do Sul e mesmo da África. (...) Na realidade global de hoje, todo mundo
acentua o grande predomínio americano, e ele é verdadeiro. Mas há vários outros
pólos de poder. O Brasil pode contribuir para a multipolaridade, que é saudável
para todos e até para a grande potência". Este último aspecto foi também
mencionado especificamente pelo Presidente em seu discurso de posse: "Visamos a
(...) estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida
internacional contemporânea".
Dentro desse enfoque geral, que procura rejeitar o unipolarismo e promover o
multipolarismo e o universalismo, o discurso de posse do Presidente Lula
proclama sua intenção de "fortalecer o entendimento e a cooperação com a União
Européia e os seus Estados-membros, bem como com outros importantes países
desenvolvidos, a exemplo do Japão". Da mesma forma, ressalta a disposição do
seu governo de aprofundar as relações com importantes países em
desenvolvimento, como a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, e ressalta
"os laços profundos que nos unem ao continente africano".
Em coerência com tal visão das relações internacionais, comprometeu-se o
Presidente a "valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações
Unidas, a quem cabe a primazia na preservação da paz e da segurança
internacionais", ressaltando a necessidade do respeito às resoluções do
Conselho de Segurança e da solução pacífica de crises internacionais como a do
Oriente Médio.
E é ainda no mesmo espírito de respeito à ordem mundial formalmente
estabelecida que se propõe enfrentar os desafios "da hora atual, como o
terrorismo e o crime organizado, valendo-se da cooperação internacional e com
base nos princípios do multilateralismo e do Direito Internacional(grifo meu)".
Pode-se dizer que as preocupações centrais da política externa que o Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva se propõe seguir, quando vistas numa perspectiva
histórica, são apenas parcialmente inovadoras. Em certo sentido, representam
uma volta, num quadro nacional e internacional distinto, a objetivos
perseguidos pela nossa diplomacia em outros bons momentos de nossa atuação
internacional num passado não muito remoto. Assim, é difícil, por exemplo, não
ver, em trechos do discurso de posse do nosso Presidente, considerável analogia
entre os objetivos de política externa do governo atual e aqueles indicados na
fala do então Presidente Ernesto Geisel, por ocasião da primeira reunião
ministerial do seu governo, em março de 1974. Nela, o general-presidente
estabelecia como tarefa prioritária da diplomacia brasileira promover "nosso
relacionamento com as nações irmãs da circunvizinhança, de aquém e de além-
mar". E prosseguia afirmando que ela estaria "a serviço, em particular, do
nosso comércio exterior, da garantia do suprimento adequado de matérias-primas
e produtos essenciais e do acesso à tecnologia mais atualizada de que não
dispomos ainda"8.
Dois pontos essenciais marcam, porém, uma enorme distância entre as
circunstâncias de execução da política externa do atual governo e a de qualquer
daqueles que o precederam, mesmo antes de 1990. O primeiro, positivo, é o
mandato popular em que ela se apóia. Embora a política externa não tenha tido
maior destaque durante a campanha eleitoral, o pensamento do candidato Luiz
Inácio Lula da Silva sobre importantes problemas internacionais era de
conhecimento público, sendo, pois, sua orientação parte do mandato que lhe foi
conferido pelos 53 milhões de brasileiros que o elegeram. É um grau de
legitimidade que poucos de seus antecessores poderiam reivindicar na matéria,
independentemente dos méritos intrínsecos do respectivo programa de política
exterior. O segundo ponto é antes um complicador: o Brasil tornou-se muito mais
complexo e o mundo no qual ele pretende afirmar sua "presença soberana"
encontra-se, desde o fim do bipolarismo, numa fase de indefinição, em que
coexistem as veleidades unilateralistas de um e as esperanças multilateralistas
de muitos. E o governo Lula propõe-se contribuir, na medida de suas
possibilidades, para o fim de tal indefinição e a construção de uma ordem
mundial mais justa e democrática, fundada no multilateralismo e no Direito
Internacional.
Afirmação nacional e unipolarismo
Tal como se depreende do programa de governo do candidato Luiz Inácio Lula da
Silva, do discurso de posse do Presidente, de declarações públicas do seu
Ministro das Relações Exteriores e das iniciativas e atitudes até agora
tomadas, a política externa do atual governo optou por uma linha de defesa
ativa dos interesses e da soberania nacionais, o que implica trabalhar também
por uma ordem internacional mais justa e eqüitativa. Por mais acertada e mesmo
necessária que seja tal orientação, é inevitável que ela desperte, porém,
consideráveis resistências externas e, provavelmente, também algumas internas.
No plano mais geral aquele que tem a ver com a própria ordem mundial o Ministro
Celso Amorim, em sua já citada entrevista à Gazeta Mercantil, deixou claro que
o governo pretende "ser muito afirmativo na busca de maior democratização das
relações internacionais", precisando que "isso passa pela reforma do Conselho
de Segurança das Nações Unidas". Como declaração de objetivo, tal posição é
inatacável, mas cabe não desconhecer que ela fere o cerne de uma ordem mundial
baseada no predomínio dos mais fortes. O caso do Conselho de Segurança, citado
pelo Ministro Celso Amorim, é emblemático. Aquele órgão é o centro de uma
estrutura mundial de poder formalmente oligárquica. Em essência, a Carta das
Nações Unidas atribuiu ao Conselho o monopólio do uso da força, exceto em casos
de auto-defesa, mas conferiu a cada um dos seus cinco membros permanentes o
direito de veto. Portanto, respeitada a Carta, o emprego da força só seria
possível contra países que não os Cinco Grandes.
É claro que, na prática, o perfeito funcionamento do sistema teria dependido de
haver, entre os próprios oligarcas, um grau de entendimento e de respeito das
normas internacionais que nunca existiu. Durante a Guerra Fria, o uso
conflitante do poder de veto ou a mera possibilidade do seu uso entre os
adversários declarados da época frustrou o bom(?) funcionamento da estrutura
normativa vigente. Depois, com o desaparecimento do fator de coesão antes
representado pela ameaça soviética, tornaram-se mais evidentes as divergências
entre os próprios aliados, para não falar daquelas com a Rússia e a China. Em
todo caso, uma ordem internacional oligárquica tem hoje poucos atrativos para
Washington, que não deixa dúvidas quanto à sua preferência por um mundo
unipolar sob a sua hegemonia. Por outro lado, os outros membros permanentes do
Conselho, que muito teriam a perder com o unipolarismo, tampouco têm motivos
para favorecer a diluição do próprio poder, que resultaria da democratização de
uma ordem mundial que pelo menos formalmente, mas em alguma medida também na
prática lhes assegura um status especial.
Por outro lado, é claro que a reforma do Conselho de Segurança, por importante
que seja, não esgota nem por si só permite alcançar o objetivo explicitado pelo
então candidato Luiz Inácio Lula da Silva de "constituição de uma ordem
política e econômica mundial mais justa"9. Ele mesmo cita, nesse contexto,
questões como o respeito aos direitos humanos, a proteção ambiental do planeta
e o combate a todas as formas de criminalidade internacional, para não falar de
toda a problemática econômica. Nessas como em outras questões relevantes para o
estabelecimento de uma ordem internacional mais adequada aos interesses da
maioria da comunidade internacional, o quadro normativo vigente reflete, porém,
dominantemente, a posição dos mais fortes, que prevaleceu na sua formulação.
Uma política externa tendente a modificar tal situação encontra dois tipos de
obstáculos. De um lado, a resistência dos beneficiários da ordem vigente a toda
proposta de mudança que percebam como suscetível de afetar negativamente seus
interesses. A posição dos Estados Unidos em relação ao Protocolo de Quioto ou
ao Tribunal Penal Internacional é ilustrativa de tal atitude. De outro, a
relativa indiferença da grande maioria dos países menores, preocupados
sobretudo com problemas tópicos de seu interesse direto e só remotamente com
reivindicações mais abrangentes que, embora importantes em tese, pouco os
beneficiariam a curto ou médio prazos.
Na prática, é aos países de porte médio, como o Brasil, que mais interessam as
mudanças normativas da ordem internacional. Eles formam, porém, um grupo
numericamente pouco significativo e seu peso econômico, embora já expressivo
quando tomado em conjunto, sofre de evidente assimetria frente às grandes
potências. Em que pesem tais limitações, são eles nossos aliados naturais em
qualquer esforço tendente a mudar o sistema normativo que hoje serve na medida
em que é respeitado de alicerce jurídico à ordem internacional. É, pois,
plenamente válida a intenção já declarada pelo então candidato Luiz Inácio Lula
da Silva de buscar "desenvolver um bilateralismo forte com a China, a Índia, a
Rússia e outros países que têm importância geopolítica e econômica e com os
quais podemos não só desenvolver relações complementares como estabelecer
linhas comuns de intervenção nos grandes organismos internacionais".10 Mas
seria tão fútil subestimar a importância dessa cooperação quanto desconhecer as
dificuldades para a formulação de posições operacionais comuns. No tocante ao
Conselho de Segurança e, mais genericamente, a uma eventual reforma da Carta da
ONU, por exemplo, a China e a Rússia, como membros permanentes daquele órgão,
provavelmente terão percepções diferentes da nossa. Por outro lado, não é
impossível que vejam alguma vantagem numa redistribuição do poder dentro
daquele Conselho, especialmente na medida em que ela pudesse contribuir para
diluir o peso relativo dos Estados Unidos. Isso cria uma área de entendimento
possível ainda que de difícil operacionalização que não pode deixar de ser
explorada. O ponto central é que, além das possibilidades de cooperação
concreta no plano bilateral, esses países têm, em comum com o Brasil, interesse
em "estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional
contemporânea", para repetir as já citadas palavras do Presidente em seu
discurso de posse. E é justamente essa a questão em torno da qual se decidirá a
ordem mundial neste começo de século.
Em síntese, temos hoje um mundo onde, como já assinalou Joseph Nye11, a
distribuição de poder é complexa, adaptando-se mal a caracterizações
abrangentes de unipolarismo ou multipolarismo. Ele é unipolar no terreno
militar, onde os Estados Unidos são incontestavelmente hegemônicos; multipolar
na área econômica, onde a economia americana, embora ocupando um espaço muito
maior do que a de qualquer outro país isoladamente, já não tem a avassaladora
superioridade de meados do século passado; paralelamente, um número de
atividades transnacionais, legais e ilegais, fora do controle direto dos
governos nacionais, assume importância crescente, criando uma área de poder
difuso, onde não se poderia falar de unipolarismo, multipolarismo ou hegemonia.
Tal situação põe em causa o caráter abrangente da dominação americana, que deve
basear-se, sobretudo, na superioridade militar. Assim, pelo menos em tese, ela
abre possibilidades àqueles que desejam promover o surgimento de uma ordem
mundial mais democrática ou, pelo menos, multipolar, onde a rivalidade entre
vários centros de poder deixe aos demais países algum espaço de manobra para
exercerem uma relativa autonomia. Há, pois, um claro choque de objetivos entre,
de um lado, a atual potência político-militar hegemônica, apoiada por aqueles
países que preferem aceitar-lhe a liderança, reforçando-lhe assim o poder; e de
outro, aqueles que aspiram a criar o seu próprio espaço de manobra ou mesmo
estabelecer-se eventualmente como pólos alternativos num mundo multipolar. O
primeiro grupo favorece o statu quo, caracterizado pelo unipolarismo militar e
pelo relativo unilateralismo político da potência hegemônica; o segundo busca
transformações que levem, pelo menos, ao multipolarismo do poder e ao
multilateralismo das decisões. Embora sem possibilidade de constituir-se num
centro mundial de poder no futuro previsível, o Brasil, com a política
declarada do governo atual, posiciona-se claramente no segundo grupo.
Tal posicionamento nos coloca em situação de divergência objetiva com o
primeiro grupo e não apenas no tocante a eventuais mudanças dos grandes
instrumentos jurídicos que supostamente governam a conduta da comunidade
internacional, como a Carta da ONU ou as normas da Organização Mundial de
Comércio. Elas podem nem ser a questão mais premente. Uma reforma da Carta, por
exemplo, poderá não ser objeto de decisão por vários anos ainda. Na verdade, em
muitos casos, obter o respeito às normas vigentes pode ser mais importante do
que conseguir modificá-las. A intervenção da Otan na questão do Kosovo sem
autorização prévia do Conselho de Segurança, por exemplo, foi um flagrante
desrespeito à Carta da ONU e ao multilateralismo que defendemos,
independentemente da repulsa que nos possa ter causado a atuação da Sérvia de
Slobodan Milosevic. Como ainda mais chocantemente o foi o ataque dos Estados
Unidos e da Grã-Bretanha ao Iraque. Assim, independentemente do que faça a
comunidade internacional no sentido de estabelecer normas jurídicas mais justas
e democráticas, a linha geral de política externa proclamada pelo Presidente no
tocante à ordem mundial tenderá a condicionar nossa atitude em relação a uma
ampla gama de problemas internacionais, colocando-nos freqüentemente em
divergência com as grandes potências, particularmente com os Estados Unidos.
Multipolarismo e política externa nacional
Tais divergências tenderão a ser mais freqüentes e delicadas na medida em que
nossa política inclua, como declaradamente inclui, o estabelecimento de fortes
vínculos bilaterais com países como a China, a Índia, a Rússia, entre outros,
que não raro se afastam da orientação preconizada por Washington. Um episódio
ocorrido ainda durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso
ilustra o problema. Em maio de 1998, a Índia (e pouco depois o Paquistão)
realizou testes nucleares veementemente condenados pelas grandes potências
ocidentais. Não cabe aqui discutir o acerto ou desacerto da decisão de Nova
Délhi. O inegável é que para ela contribuíram fortes considerações
estratégicas, entre as quais a ameaça representada, na percepção indiana, pela
China e pela aproximação sino-americana12. Na época, o Brasil preferiu ignorar
tais circunstâncias e colocar-se firmemente ao lado dos que condenavam, sem
qualificações, a atitude indiana, numa manifestação de fidelidade simplista à
idéia de não-proliferação. Com isso, desgastamo-nos gratuitamente com a Índia,
quando teria sido mais adequada uma atitude matizada, que procurasse conciliar
nossa posição contrária às armas atômicas com a crítica à política falaciosa
das grandes potências. Hoje, tal alinhamento acrítico ao bloco ocidental seria
improvável, já que é incoerente com a linha política proclamada pelo atual
governo.
Nos poucos meses de sua gestão, o Presidente Lula tem-se mostrado favorável a
uma diplomacia de perfil alto, levando suas teses a foros de projeção mundial e
a outros líderes nacionais. Tal atitude foi ilustrada por sua decisão de
comparecer ao Foro Social Mundial, em Porto Alegre, onde encontrou excelente
caixa de ressonância para as suas teses sociais e afirmou a oposição do Brasil
ao clima de beligerância internacional que culminaria, semanas depois, na
guerra contra o Iraque. Ela se confirmaria, logo a seguir, pela sua presença no
Foro Econômico Mundial, em Davos, onde defendeu a criação de um fundo
internacional para o combate à fome e a miséria nos países pobres, associando
sua proposta a uma mensagem de política internacional: "A paz não é só um
objetivo moral. É também um objetivo de racionalidade. É necessário admitir
que, muitas vezes, a pobreza, a fome e a miséria são o caldo de cultura onde se
desenvolvem o fanatismo e a intolerância". E esses conceitos foram emitidos
pouco depois de o Secretário de Estado americano, Colin Powell, ter afirmado,
diante da mesma platéia, que os Estados Unidos estavam prontos a atacar o
Iraque a qualquer momento.
Entre a reunião de Davos e o início das operações militares contra Bagdá, numa
atmosfera de crescente beligerância da parte de Washington e de seus aliados, o
Presidente manteve sua linha de oposição à guerra, em contactos telefônicos com
outros chefes de Estado ou de governo e com o Secretário Geral da ONU. Iniciado
o conflito, sua avaliação da iniciativa dos Estados Unidos e de seus aliados
foi cáustica, qualificando-a de desrespeito às Nações Unidas e criticando
diretamente o Presidente Bush, a quem negava o direito de decidir o que era bom
ou mau para o mundo. Já dois dias depois, o discurso presidencial foi
sensivelmente atenuado no tom, mas não na firmeza da crítica substantiva.
Na verdade, os prováveis desdobramentos políticos de médio e longo prazos do
ataque ao Iraque tendem a apresentar um enorme desafio à política internacional
do governo brasileiro. Ao desprestigiar a ONU, provocar a cisão da Otan e
causar, no mínimo, considerável retrocesso à construção política da Europa, a
iniciativa americano-britânica pôs em cheque a noção de multilateralismo e
abalou o sistema político internacional. De alguma forma, torna-se preciso
redesenhá-lo, mas isso é extremamente difícil num mundo dividido entre uns
poucos que apóiam um poder que abdicou da própria legitimidade e uma maioria
que ainda não sabe como dar poder a uma legitimidade tornada impotente. E
tampouco se sabe em que medida a cisão entre antigos aliados e o descrédito do
multilateralismo, hoje centrados na área política, poderá contagiar organismos
econômicos, como a Organização Mundial de Comércio (OMC). Tudo isso torna
particularmente difícil o trabalho da diplomacia de um país que, com uma
capacidade de projeção mundial ainda limitada, propõe-se contribuir para a
reforma das instituições internacionais e a construção de uma ordem mais justa
e democrática.
Um continente, duas percepções
É, porém, no nosso próprio continente que tendem a produzir-se os desencontros
mais sensíveis e imediatos, como as primeiras iniciativas de Lula na área
internacional parecem evidenciar. Antes mesmo de empossado, ele enviou a
Caracas seu principal assessor para assuntos internacionais, o Professor Marco
Aurélio Garcia, com o objetivo de ajudar governo e oposição a encontrarem uma
saída para a crise política que então os defrontava. Os entendimentos do
enviado brasileiro praticamente se limitaram à área governamental, já que a
oposição viu com maus olhos uma iniciativa que lhe parecia favorecer o
Presidente Hugo Chavez, a quem o então Presidente eleito do Brasil se dispunha
inclusive a prestar ajuda material. Da mesma forma, os Estados Unidos não viram
com simpatia a proposta brasileira de constituição de um grupo de "países
amigos da Venezuela" para ajudar na busca de uma solução para a crise política
daquele país. Para os americanos que em abril tinham favorecido um golpe de
Estado, finalmente fracassado, para depor o atual presidente venezuelano
parecia preferível manter todo esforço de conciliação centralizado nas mãos do
Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), supostamente mais
afinado com Washington do que o grupo de "países amigos" sugerido pelo Brasil.
No final, chegou-se a uma fórmula conciliatória, criando-se um "Grupo de Amigos
para a Venezuela", que deveria auxiliar o Secretário Geral da OEA (não o
substituindo, portanto), contaria com a participação dos Estados Unidos e, por
proposta desse, seria coordenado pelo Brasil. Embora de conteúdo formalmente
processual, o episódio deixou claras as diferenças de posições. De um lado, o
desejo de Washington de assegurar que o país que fornece cerca de 14% das suas
importações de petróleo tenha um governo que lhe seja favorável. De outro, o
primeiro passo concreto do novo Presidente brasileiro no sentido de assumir na
América do Sul um papel politicamente ativo e independente dos Estados Unidos.
O objetivo brasileiro não era opor-se aos Estados Unidos, mas, ao tentar ajudar
os venezuelanos a encontrarem eles mesmos uma saída constitucional para a
crise, tampouco dava prioridade aos interesses de Washington, que, como ficara
demonstrado em abril, pouco têm a ver com a democracia ou a autonomia
venezuelanas.
Apesar do desfecho formalmente satisfatório do episódio, ficou evidente o
conflito de percepções estratégicas entre Washington e Brasília. A política
americana em relação à América Latina tem variado de acordo com a relevância
atribuída à região em diferentes momentos, mas, como assinala Federico Gil,
"tem perseguido dois objetivos de maneira constante. O primeiro tem sido
excluir do Hemisfério Ocidental potências extracontinentais rivais ou hostis. O
segundo tem sido assegurar a presença político-econômica dominante dos Estados
Unidos na região. Implícita nesses objetivos está a manutenção na América
Latina de regimes estáveis, capazes de salvaguardar os interesses dos Estados
Unidos ".13 Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, o Hemisfério
Ocidental parece ocupar posição de pouco relevo na agenda política de
Washington, mas isso não significa que os objetivos assinalados por Federico
Gil tenham sido abandonados. Eles apenas não têm sofrido ameaças de âmbito
continental e, portanto, sua defesa não tem requerido dos Estados Unidos
iniciativas mais abrangentes. Onde foi percebida alguma ameaça significativa a
interesses americanos relevantes, a ação de Washington não se fez esperar.
Quando os guerrilheiros das Farc e do ELN, em conluio com o narcotráfico,
passaram a representar, ainda antes daqueles atentados, uma ameaça à ordem
estabelecida, foi lançado o Plano Colômbia, formalmente um programa de
cooperação destinado a ajudar o governo daquele país em sua luta contra os
traficantes. Em tal contexto, o combate à guerrilha não aparecia como um
objetivo prioritário. Na esteira dos atentados de Nova Iorque e Washington,
entretanto, os rebeldes, como eram até então considerados, passaram a ser
classificados de terroristas e a luta declarada contra eles ganhou nova ênfase.
Para a política dos Estados Unidos, tornara-se ainda mais importante esmagar a
guerrilha e assegurar uma presença americana mais firme numa área da América do
Sul ameaçada de mudança política desfavorável aos seus interesses. Da mesma
forma, na Venezuela, importante fornecedor de petróleo aos Estados Unidos, a
subida ao poder de um presidente populista e nacionalista, embora
democraticamente eleito, ligado por laços de amizade a líderes de países
particularmente mal vistos em Washington, foi considerada inconveniente. O
desagrado americano traduziu-se inclusive, como já mencionado, no favorecimento
a um golpe de Estado que afastou do poder, por quarenta e oito horas, o líder
constitucional indesejado.
Do ponto de vista da política brasileira no continente, uma pergunta
fundamental é como os Estados Unidos reagirão a um continuado ativismo do
Brasil na América do Sul. Em sua já citada entrevista à Gazeta Mercantil, o
Ministro Celso Amorim, então ainda não empossado, manifestou-se otimista,
achando possível os dois países chegarem a uma "visão mais estratégica", na
qual Washington reconheceria no Brasil um parceiro "indispensável para a
estabilidade da América do Sul e mesmo da África". Ao analista independente é
lícito, porém, um certo ceticismo. O otimismo pelo menos ostensivo do nosso
chanceler só seria plenamente fundado se, dentro da visão estratégica que
supostamente marcaria as relações bilaterais, os dois países perseguissem
objetivos coincidentes ou complementares. Ora, na prática, a estabilidade da
América do Sul, supostamente desejada por ambos, só é relevante para os Estados
Unidos na medida em que sirva aos interesses americanos. Em outras palavras, só
devem ser estáveis aqueles governos que sejam favoráveis a Washington, como
ficou demonstrado pela atitude americana em relação ao já referido golpe de
Estado de abril de 2002, na própria Venezuela, para não falar de episódios
menos recentes e ainda menos edificantes em diversos países. Essa não é,
entretanto, a percepção de Brasília. A já mencionada iniciativa de Lula em
relação à crise política em Caracas deixou isso bem claro e o desagrado da
grande potência setentrional o confirmou. Por outro lado, as escaramuças
processuais que se seguiram talvez sejam indicativas do tipo de atitude que se
pode esperar de Washington em eventuais situações futuras semelhantes. Em vez
de declarar oposição frontal, o Departamento de Estado tratou de imprimir à
proposta brasileira um formato mais palatável: o grupo sugerido pelo enviado do
então Presidente eleito brasileiro deveria assistir o Secretário Geral da OEA,
que continuaria como o principal responsável por ajudar na busca de uma
solução; sua composição, que incluiria o Brasil e os Estados Unidos, foi
negociada de forma a assegurar que, com a possível exceção do governo Lula, ele
fosse integrado por países tradicionalmente receptivos aos argumentos da
potência hegemônica; os próprios americanos puderam então, numa barretada a
Brasília, sugerir que nos coubesse a coordenação do grupo, que, no formato
finalmente acordado, deixara de oferecer os principais inconvenientes
inicialmente percebidos por Washington. Esboçavam-se dessa forma, ainda
tentativamente, os limites de uma eventual cooperação "estratégica" entre a
grande potência continental e mundial e o maior país da América Latina,
subitamente disposto a assumir uma inusitada liderança regional: os Estados
Unidos poderiam aceitar o novo ativismo brasileiro na América do Sul, desde que
ele se exercesse de forma a não causar maiores tropeços efetivos à política da
potência maior. E, no caso específico, o Brasil aparentemente deu-se por
satisfeito.
O episódio venezuelano não se situa, porém, no centro da área de divergência
estratégica potencial entre os dois maiores países do continente. Assim, o
ocorrido em relação à crise política de Caracas, embora importante, pode,
afinal, não ser indicativo das atitudes de Brasília e de Washington quando se
trate de situações que afetem a essência das visões que cada uma das duas
capitais, respectivamente, alimenta em relação ao continente. E esse é o maior
e mais imediato desafio com que se defronta o governo Lula.
Formalmente, o grande projeto dos Estados Unidos para o continente é o
estabelecimento de uma área hemisférica de livre comércio, a Alca, que, tal
como proposta, representaria a "anexação" das economias latino-americanas pela
dos Estados Unidos, várias vezes maior do que a soma de todas as demais. Parece
claro, porém, que a Alca em si, embora útil, não é essencial à política
regional de Washington. Ela teria a grande vantagem de enquadrar o essencial da
política econômica dos países da região num sistema normativo uniforme,
inspirado e dominado por Washington, mas seus benefícios econômicos e políticos
poderiam ser igualmente alcançadas por acordos bilaterais com distintos países
latino-americanos. Seria mais trabalhoso e estruturalmente menos elegante, mas
igualmente eficaz. E teria a vantagem de restringir a possibilidade de um país
como o Brasil dificultar a implantação de todo o projeto. Na prática,
Washington, ao dirigir suas ofertas na Alca a países latino-americanos
individuais, em vez de fazê-las a todos, com uma cláusula de nação mais
favorecida aplicável regionalmente, parece já ter optado por uma forma de
bilateralismo divisivo.
A política do atual governo brasileiro, disposto a forjar, a partir do
Mercosul, um bloco sul-americano econômica, política e socialmente integrado,
mais apto a resistir a pressões externas, é a antítese daquela visão americana,
de países individualmente satelitizados pelo poderio econômico e político do
norte. Em tese, o objetivo político de Brasília é coerente não apenas com o
nosso interesse nacional, mas com o da América do Sul, que, em seu conjunto,
muito teria a perder com uma integração assimétrica (global ou por meio de
acordos bilaterais), que frustraria suas aspirações de desenvolvimento
econômico e autonomia política. Mas o problema é ainda mais complexo, já que os
obstáculos ao objetivo brasileiro não se limitam à oposição de Washington
situam-se também na América Latina e no próprio Brasil.
Nosso país representa cerca de 72% do PIB e uns 80% da população do Mercosul,
enquanto a Argentina responde por cerca de 24% e 17% de cada um desses dois
agregados, respectivamente. Juntos, os dois países, com mais de 95% dos
habitantes e do produto interno do agrupamento sub-regional, praticamente são o
Mercosul ou poderão sê-lo na medida em que suas percepções dos objetivos da
integração coincidam ou, pelo menos, sejam mutuamente compatíveis algo que até
agora não se verificou. Sem tal coincidência ou compatibilidade de objetivos,
não haverá condições para realizar a ampla integração do Cone Sul preconizada
pelo Presidente Lula. Ela seria a base necessária para as concessões que os
dois parceiros maiores terão de fazer-se mutuamente para a construção da
estrutura institucional necessária ao êxito do empreendimento comum defendido
pelo atual governo brasileiro. E seria igualmente indispensável para a
introdução dos mecanismos compensatórios em favor dos sócios menores, sem os
quais estes últimos não se sentirão partícipes plenos da obra conjunta. Até
agora, nada disso ocorreu.
Tal como firmado em 1991, o Tratado de Assunção, no qual os quatro signatários
se comprometeram a estabelecer, em menos de quatro anos, um mercado comum, com
todas as implicações explicitadas ou implícitas naquele instrumento e uma
estrutura institucional correspondente, não era realista, como os
desenvolvimentos subseqüentes vieram demonstrar. Na prática, embora o Mercosul
tenha sido um êxito no sentido de levar a uma rápida e acentuada expansão do
intercâmbio intrazonal, nenhum dos dois principais parceiros mostrou-se
disposto a fazer o necessário para tornar realidade aquilo a que ambos se
tinham comprometido. Tampouco se tentou, alternativamente, promover a revisão
dos compromissos assumidos, de modo que o solidariamente prometido fosse
compatível com as efetivas intenções políticas de cada um. O Brasil, movido
pelo seu interesse político no esquema de integração sub-regional, mostrou-se
disposto a fazer concessões comerciais, mas não a estabelecer instituições mais
fortes, que tenderiam a restringir-lhe a liberdade de manobra. Por sua vez, a
Argentina, durante todo o governo Menem, pareceu ver no Mercosul uma forma de
conseguir vantagens econômicas de seu vizinho maior, enquanto tratava de
fortalecer sua posição geopolítica no continente por meio de um alinhamento
incondicional com os Estados Unidos.
É claro que as coisas não têm de continuar como foram até aqui, mas pode não
ser fácil mudar atitudes e percepções arraigadas. Do lado brasileiro, o governo
Lula vem adotando um discurso político de potência regional, que se afasta de
algumas atitudes tradicionais da nossa diplomacia na América Latina. Em vez de
negar a intenção de exercer qualquer forma de liderança na região, o atual
governo parece considerá-la algo natural. Em sua já citada entrevista de meados
de dezembro de 2002 à Gazeta Mercantil, nosso Chanceler, então ainda não
empossado, considerou que "liderança não é objetivo em si, mas decorrência de
certas posições. Ela se exerce mais por inspiração do que por comando". Pouco
mais de um mês depois, falando ao mesmo jornal, porém já como Ministro, ele
novamente mencionou o tema, assinalando que a imprensa freqüentemente se refere
a que "o Brasil sempre tomou cuidado de evitar a questão de liderança.
Liderança não se impõe. Mas que há um anseio por liderança no mundo, isso há. E
o Presidente Lula corresponde um pouco a uma imagem de algo que está
faltando".14 Era a assunção ostensiva de um papel de líder que a nossa
diplomacia tradicionalmente procurara manter ausente de seu discurso para não
ferir suscetibilidades de nossos vizinhos. Agora, o que transparece em
manifestações públicas de nossas autoridades é que o Brasil se considera um
líder natural na região, embora tal liderança não tenha qualquer sentido
autoritário, exercendo-se "mais por inspiração do que por comando", para manter
a formulação do Ministro Celso Amorim. Na verdade, em coerência com essa noção
de uma liderança não autoritária, o candidato Lula já se manifestara disposto a
trabalhar por uma institucionalização mais firme do Mercosul, que "tem de
avançar na definição de mecanismos de solução de controvérsias, preparar a
formação de um parlamento regional e, obviamente, dotar-se de uma política
externa comum(grifo meu)".15Em certo sentido, o novo discurso pode ser
interpretado como uma manifestação de auto-confiança e de coerência com a
defesa de uma ordem internacional democrática. O Brasil não estaria preocupado
com a possibilidade de que, ao proclamar-se líder regional, pudesse ferir
suscetibilidades e, conseqüentemente, pôr em risco a própria liderança. Essa
seria tão evidente que ninguém teria por que se melindrar ao vê-la publicamente
declarada. Ao mesmo tempo, entretanto, Lula preconiza o fortalecimento
institucional do Mercosul, o que presumivelmente melhorará o seu funcionamento,
mas também restringirá a liberdade de ação dos seus membros, particularmente a
do maior deles. É algo que governos anteriores, que evitavam assumir a posição
ostensiva de líder regional, jamais fizeram. O atual governo brasileiro chega a
ponto de defender como algo óbvio o estabelecimento de uma política externa
comum, que tenderá a aumentar o peso internacional do país, porém à custa de
alguma limitação do seu espaço de manobra.
Em outro ponto essencial para a consolidação do bloco a mais longo prazo, o
Brasil manifesta uma preocupação até agora não muito evidente com a eqüidade do
empreendimento e a extensão dos benefícios potenciais aos sócios menores. Em
suma, o Brasil se propõe liderar o Mercosul e a mais longo prazo, a América do
Sul de acordo com normas acordadas entre os países da região e com vistas a uma
distribuição eqüitativa de ganhos. É como se se propusesse a ser uma espécie de
líder constitucional e democrático da região.
O que claramente não está assegurado, porém, é que nossos vizinhos vejam as
coisas da mesma maneira ou sequer confiem nas intenções declaradas do governo
brasileiro. No Mercosul, núcleo necessário do desejado bloco sul-americano, a
posição da Argentina é crucial e a conduta do governo Menem deixou claro que
parte considerável da opinião daquele país ainda não exorcizou o fantasma de
velhas rivalidades e aspirações de liderança regional. Parece, pois, duvidoso
que os argentinos vejam como "natural" uma liderança brasileira na América do
Sul. Por outro lado, as atuais autoridades de Buenos Aires parecem ter, em
relação ao Mercosul e ao Brasil, uma atitude bem mais construtiva do que a da
dupla Menem-Cavallo, mas só depois da posse do futuro Presidente será possível
avaliar com maior segurança a extensão e durabilidade de supostas mudanças de
orientação. Em qualquer hipótese, as assimetrias entre os quatro são de tal
ordem que as negociações para estabelecer uma estrutura institucional que
permita conciliar as compreensíveis aspirações de eqüidade da parte dos
menores, as suscetibilidades de Buenos Aires e o natural desejo do Brasil de
preservar um grau de influência compatível com o seu peso econômico e
demográfico serão árduas e demoradas. Tais dificuldades só poderão ser vencidas
se houver entre os parceiros uma compatibilidade de objetivos e percepções que
possibilite a cada qual fazer as concessões necessárias ao êxito da empreitada.
E não se pode afirmar que já exista tal compatibilidade, especialmente entre os
dois principais parceiros, que terão de fazer os maiores ajustes, tanto entre
si como em relação aos sócios menores.
Se tal análise é válida no tocante ao Mercosul-4, onde parte do caminho já foi
percorrida e já existem interesses constituídos que militam no sentido da
continuação do processo de integração, muito maiores serão as dificuldades
quando se tratar da efetiva associação de outros países ao ambicioso projeto do
governo Lula de constituição de um grande bloco econômico e político sul-
americano. Até agora, as iniciativas do governo Lula no sentido de estreitar as
relações bilaterais com a Venezuela, a Colômbia e o Peru, países-chave na
Comunidade Andina, mostram a disposição de criar as condições políticas
necessárias à realização daquele objetivo.
Sumário e conclusões
A plataforma de política externa do candidato Luiz Inácio Lula da Silva,
confirmada por declarações e iniciativas posteriores à sua vitória eleitoral,
indica a disposição do atual governo de manter uma orientação internacional
significativamente distinta daquela seguida pelo país desde 1990. Em suas
grandes linhas, ela apresenta pontos de contacto com alguns bons momentos da
nossa diplomacia anterior àquela data, o que não lhe tira, porém, elementos de
inovação nem lhe evitará consideráveis desafios, dadas as circunstâncias do
mundo e do próprio país neste começo de século:
O objetivo geral declarado é assegurar a presença soberana do
Brasil na cena internacional, com vistas a promover o desenvolvimento
econômico e social do país e a contribuir para o estabelecimento de
uma ordem internacional mais justa e democrática, para o que caberia
estimular os incipientes elementos de multipolaridade já presentes na
ordem atual.
Um pré-requisito de tal política, terá de ser um esforço tendente a
reduzir a inquietante vulnerabilidade externa do país, que solapa as
condições necessárias para pô-la em prática. Isso, por sua vez,
requer não apenas atenção especial aos problemas diretamente
relacionados com o nosso comércio internacional, mas também uma
estratégia geral de política externa coerente com os objetivos a que
se visa.
Caberá assim, a partir de um Mercosul dinamizado e
institucionalmente reforçado, promover a integração política,
econômica e social da América do Sul. Caberá também desenvolver
fortes vínculos de cooperação tanto em nível bilateral como
multilateral com países em desenvolvimento de importante expressão
geopolítica e econômica, tais como Índia, China, Rússia e África do
Sul, entre outros. Essa seria a base necessária à orientação mais
dinâmica e assertiva que o atual governo pretende imprimir à nossa
atuação diplomática, sem, entretanto, promover a formação de blocos
de confrontação entre países em desenvolvimento e desenvolvidos.
A ênfase na cooperação com países vizinhos e afins não limita,
porém, o caráter universalista que se pretende continuar a dar à
nossa política externa, também atenta ao relacionamento com países
desenvolvidos e à relevância dos organismos de âmbito mundial, como a
ONU e a OMC. Assim, no plano econômico, são colocadas em pé de
igualdade as negociações relativas à Alca, aquelas entre o Mercosul e
a União Européia e a grande rodada comercial na OMC. E no político,
atribui-se especial importância à reforma da Carta das Nações Unidas
e, especificamente, à do Conselho de Segurança, parte essencial do
esforço tendente à criação de uma ordem mundial mais justa e
democrática.
Segundo a percepção oficial declarada, tudo isso se fará dentro de
uma linha pragmática, negociando duro na defesa dos interesses
nacionais, mas sem antagonismos apriorísticos ou posicionamentos
ideológicos. Dentro desse enfoque, as relações com os Estados Unidos
deverão enquadrar-se numa visão mais estratégica, na qual, segundo o
nosso chanceler, a potência hegemônica veria o Brasil como "parceiro
indispensável para a estabilidade da América do Sul e mesmo da
África".
Em tese, tudo isso embora num contexto nacional e mundial distinto
parece coerente com as grandes linhas da política externa brasileira
durante quase meio século antes do colapso do império soviético,
quando as preocupações constantes foram o desenvolvimento econômico
nacional e a fidelidade de última instância à liderança de
Washington. O que, entretanto, não impediu, nos bons momentos desse
período, a firme defesa dos nossos interesses e divergências tópicas,
às vezes momentaneamente ásperas, com os Estados Unidos.
Várias circunstâncias, tanto internas como externas, criam, porém,
consideráveis diferenças com o passado: a) a maior complexidade da
economia brasileira e sua maior inserção internacional; b) o fim da
ordem mundial bipolar e o objetivo declarado de Brasília de
contribuir para o estabelecimento do multipolarismo, desenvolvimentos
que tornam anacrônica a idéia de fidelidade grupal nos moldes da
Guerra Fria; c) o forte mandato popular em que se apóia a orientação
de política externa do atual governo; d) a aparente determinação do
governo Bush de promover o estabelecimento de um mundo unipolar e,
portanto, sua tendência para o unilateralismo; e) conseqüentemente, o
fim da ordem mundial que hoje conhecemos, com a fragilização da ONU
e, possivelmente, de outros organismos internacionais, a cisão da
Otan e o retrocesso na construção política da Europa.
Tudo isso cria um quadro cheio de desafios para a política externa
defendida por Brasília: a) a "presença soberana" que o Brasil deseja
assegurar internacionalmente e a multipolaridade para a qual
declaradamente pretende contribuir chocam-se com o objetivo de
hegemonia perseguido pelo governo Bush; b) a reforma da ONU e do seu
Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais representativo e
democrático, tornou-se um tema ainda mais complexo e delicado depois
do insucesso da diplomacia americana na questão do Iraque; c) de modo
geral, todos os temas mais diretamente relacionados com a ordem
mundial, tanto política como econômica, tornaram-se particularmente
espinhosos desde que ela, tal como existia, foi abruptamente posta em
causa pelo unilateralismo da política externa americana; d) no âmbito
regional, a assunção ostensiva pelo Brasil de um papel de liderança
na América do Sul e a promoção ativa de uma integração regional
abrangente suscita desafios de duas naturezas: aqueles relacionados
com a conciliação das percepções divergentes de países vizinhos e
aqueles decorrentes da política hegemônica de Washington no
continente; e) as premissas básicas da política externa do governo
Lula e a busca de entendimento e cooperação com países afins podem
levar-nos freqüentemente a assumir, no tocante a distintos problemas
internacionais, posições divergentes da potência hegemônica e dos
países que com ela se alinham.
Em suma, optamos por uma política externa de potência emergente em
contraste com a de mero país emergente e temos pela frente o sério
desafio diplomático de conciliarmos o idealismo saudável dos nossos
objetivos com o pragmatismo inevitável da forma de persegui-los.
Notas
1 Carta Internacional. N. 114, ano X, ago. 2002, p. 9.
2 Gazeta Mercantil, 16 dez. 2002, p. A-5.
3 CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais do Brasil: um balanço da era
Cardoso. Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília, ano 45, n. 1,
2002, p. 7.
4 V. SOUTO MAIOR, Luiz Augusto. A irrelevância da ONU e a hegemonia americana.
Carta Internacional. N. 117, nov. 2002, p. 7. Também LINS DA
SILVA, Carlos Eduardo. Doutrina Bush foi gerada há dez anos. Política Externa.
V. II, n. 3, dez./fev. 2002/2003.
5 As citações foram tiradas do texto do discurso presidencial, tal como
publicado na Gazeta Mercantil, 02 jan. 2003, p. A-7.
6 SOUTO MAIOR, Luiz A. P. Cúpula da América do Sul: rumo a um novo
regionalismo?. Carta Internacional, n. 91, set. 2000.
7 Gazeta Mercantil, 16 dez. 2002, p. A-5.
8 Citado em SOUTO MAIOR, Luiz Augusto P. O 'Pragmatismo Responsável'. In:
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon (org.). Sessenta Anos de Política Externa
Brasileira (1930-1990). Crescimento, Modernização e Política Externa. P. 337-8.
9 SILVA, Luiz Inácio Lula da, op. cit.
10 SILVA, Luiz Inácio Lula da, op. cit.
11 NYE, Joseph. The new Rome meets the new barbarians. The Economist, 23 de
mar. 2002, p. 24. Para uma análise mais aprofundada do tema
pelo mesmo autor, v. The Paradox of American Power:Why the World's Only
Superpower Can't Go It Alone. Oxford University Press, 2002.
12 SOUTO MAIOR, Luiz Augusto. A bomba e o pecado original. Carta Internacional,
n. 65, jul. 1998, p. 3.
13 GIL, Federico G. The Kennedy-Johnson Years. In: MARTZ, John D. (org.).
United States Policy in Latin America A Quarter Century of Crisis and
Challenge, 1961-1986. Lincoln, Londres: University of Nebraskca Press, 1988, p.
3 (tradução minha).
14 Gazeta Mercantil, 7 fev. 2003, p. A-6.
15 SILVA, Luiz Inácio Lula da, op. cit.
Abril de 2003