Os Bálcãs novamente esquecidos
Introdução
Entrevistado pela Euronews na Espanha, em outubro de 2003, ao receber o Prêmio
Príncipe de Astúrias por seu trabalho de jornalismo, Ryszard Kapuscinski, ex-
correspondente da Agência Polonesa de Notícias em dezenas de conflitos situados
em terras periféricas (como a Etiópia no final do regime de Hailé Selassié ou
países da América Central em guerra por futebol), comentou que, levando em
conta apenas o que a grande imprensa divulga, têm-se hoje a impressão de que
acontecimentos são somente aqueles onde se encontram soldados norte-americanos.
"Encontrar-se" é, na verdade, muito pouco. É preciso que esses soldados estejam
envolvidos em algum tipo de ação para que o acontecimento mereça mais do que
menção episódica, isolada e insignificante. Afinal, contingentes militares dos
Estados Unidos (e de outros países) permanecem, por exemplo, no Afeganistão,
até há pouco tão central no dia-a-dia dos media e logo negligenciado - na
verdade "superado" pelo Iraque - a ponto de ter sido esquecido, já em 2002, da
lista de destinatários da assistência de Washington no orçamento da União.1 Sua
marginalidade atual - salvo quando alguma agressão a norte-americanos o traz de
volta às manchetes - leva a desconsiderar-se o aumento, confirmado pela ONU, de
sua produção de heroína dezenove vezes nos últimos dois anos, fato que o
transforma no maior supridor do mundo. Não se nota igualmente que, em algumas
regiões afegãs, o número de crianças nas escolas vem decaindo tanto, por falta
de segurança, que quase todos os estabelecimentos de ensino voltaram a ser
fechados. Ou que, de par com a permanência da repressão às mulheres, a
amputação de narizes de homens com barbas aparadas é ainda praticada por
guerrilheiros talibãs.2
Não é, porém, para falar da Ásia Central que me proponho aqui escrever. Dessa
área, antes ignorada, ouvimos e lemos agora todos os dias, seja como
desdobramento da questão iraquiana, seja em função de crises separatistas e
outras agitações em ex-repúblicas soviéticas. Tampouco pretendo falar de Israel
e Palestina, onde até mesmo o "roteiro de percurso" (roadmap) proposto pelo
Governo de George W. Bush, ao se redigirem estas linhas, parece ter colidido
com um muro de concreto e de teimosias. Esse conflito permanece e permanecerá
em evidência por todos os motivos possíveis (a menos que algum dia se resolva).
Quanto aos horrores da África, continente que a globalização utiliza como
objeto descartável, continuarão relatados nos mediade maneira chocante, com
freqüência corriqueira, profundidade epidérmica e desinteresse sensível. Da
violência complexa, simultaneamente provecta e pós-moderna, de nossa vizinha
Colômbia não falo para não ser leviano. Noto apenas, pelo que leio na imprensa
"internacional", que ela se enquadra à perfeição no comentário de Kapuscinski,
agregando-se como fatores de acontecimentos o seqüestro de algum cidadão
europeu.
Examino no presente texto apenas - e, assumo, muito por alto - alguns aspectos
de países balcânicos, em cuja região ora vivo. Ela já é por demais complicada
para eu pretender ir além. E mais rápido do que o Afeganistão, sumiu dos
noticiários, exceto quando referida pelo Secretário de Defesa dos Estados
Unidos, Donald Rumsfeld, como integrante da "nova Europa".3 Plenamente
consciente de que as impressões de um aprendiz dessas plagas não têm o dom de
influir na realidade, acredito que possam, talvez, contribuir para seu
entendimento de longe. Pois, a quem os procura observar do Brasil, os Bálcãs se
afiguram tão ignotos que tornam plausível a atitude do personagem do genial
Campos de Carvalho ao deparar-se com um púcaro búlgaro em museu de Filadélfia:
tentar montar no Rio de Janeiro uma excursão para conferir se a Bulgária
existe.4
Vistos por uns como limite sudeste da Europa; por outros, como caminho
acidentado entre Oriente e Ocidente; por todos, há muitos séculos, como quintal
de potências, os Bálcãs (palavra turca que no singular quer dizer "montanha")
não são apenas um acidente geográfico "mais carregado de história do que
consegue suportar" (a boutade é de Churchill)5. Conforme entendido a custo ao
longo dos anos 1990 - e malgrado a lição não-aprendida da Primeira Guerra
Mundial -, gostando-se ou não da península, unida ou fragmentada
("balcanizada", na expressão despiciente que o Ocidente inventou), sua sorte é
fundamental para a estabilidade da Europa e, pela Europa, do mundo. Não foi à
toa que países distantes como o Brasil, a Malásia e a Nigéria se dispuseram a
enviar soldados dos trópicos para o frio dessas montanhas nos corpos da
Unprofor e demais missões da ONU.6 E não foi por livre e espontânea vontade,
pelo menos na origem de sua sobrecarregada história, que os Bálcãs se
esfacelaram numa salada (macédoine!) de Estados, cada dia mais reduzidos.
Nacionalismo e limpezas étnicas sobre pano de fundo rápido
Poucas áreas foram objeto de tanto interesse e cobertura do jornalismo político
na década passada quanto a península balcânica. Ela não tinha, é verdade,
tropas americanas em ação durante a maior parte dos conflitos. Porém, isso
ocorria em época anterior à destruição das torres do World Trade Center, que
Jean Baudrillard desde o primeiro momento interpretou como "o acontecimento
absoluto", "a 'mãe' de todos os acontecimentos" (sem com isso justificar
qualquer ação decorrente)7. E, o que é, ou era até há pouco, igualmente
importante para conferir-lhe realidade "mediática", a península se situa no
continente europeu, por definição branco e civilizado, abrigando, ainda por
cima, ruínas e monumentos (não apenas no território da atual República
Helênica) a recordarem que ali o Ocidente nasceu.
Em função das guerras na ex-Iugoslávia, com atrocidades a destoarem do quadro
otimista da "vitória" ocidental na Guerra Fria, verificou-se, no final do
Século XX, verdadeira corrida de repórteres para cobrir as tragédias regionais,
que desde 1991 não pareciam ter fim. Correspondentes dos grandes veículos de
comunicação de massa e free-lancers de todo tipo, com base em testemunhos
tópicos e algumas noções históricas decoradas no caminho, depois produziam
obras de análise a mostrarem que os Bálcãs seriam deterministicamente fadados à
violência e ao horror das "limpezas étnicas"8. Como eles vieram também
intelectuais apaixonados, que se supunham capazes de mobilizar consciências
contra aquilo que parecia constituir repetição isolada do fenômeno nazista, com
campos de concentração pavorosos, em pleno território europeu (sem atentar para
o renascimento incipiente do nazi-fascismo agressivo, em grupelhos ou sob a
cobertura legal de partidos "populistas", em suas democracias de origem). Por
intermédio de todos ficamos cientes de brutalidades incríveis, praticadas na
mesma época em que a democracia liberal "de mercado" se afirmava no planeta
inteiro, dando razão aparente à visão de Fukuyama de um "fim da História"
triunfal, e os direitos humanos irrompiam no cenário internacional com vigor
estimulante. Vieram também, em seguida, políticos que procuravam compensar com
visitas sua inação diante de sevícias e massacres abundantemente conhecidos (ao
contrário do que se alegou sobre o genocídio de Ruanda), assim como agentes de
organizações humanitárias a oferecerem valiosos paliativos. Vieram ainda, com
mandatos mal-cosidos, as forças de paz da ONU, praticamente inermes e sem
função definida. Todos, ou praticamente todos, jornalistas e políticos,
intelectuais "salvadores" e testemunhas humanitárias, tinham e ainda têm na
cabeça a explicação "imperial" ou imperialista de que os ódios balcânicos são
sui generis, essenciais e primitivos, sobre os quais nada se pode fazer. Ou de
que as barbaridades perpetradas no contexto de "limpezas étnicas" seriam
herança ancestral da barbárie dos muçulmanos turcos, ou, mais recente, dos
comunistas.
Para quem possa ter esquecido, creio convir lembrar que os Bálcãs foram a sede
de Bizâncio, representando, como tal, senão a continuação do Império Romano
"universal" retalhado pelos bárbaros (que depois criaram o Sacro-Império
Romano-Germânico e, mais tarde, os Estados-nações, muitas vezes separados por
Estados-tampões), pelo menos metade da cristandade. Assim como é útil recordar
que, sob o Império Otomano, uno em sua diversidade desde a "queda de
Constantinopla" em 1453, a península balcânica acolheu, sobretudo em Salônica
(hoje Thessaloniki), em gesto de tolerância destoante do Ocidente, os judeus
expulsos da Espanha no mesmo ano em que Colombo descobria o Novo Mundo.
Menos conhecido, ou reconhecido, é o fato de que, por mais denegrido que seja
na historiografia ocidental, o Império Otomano, de dimensões gigantescas,
aplicou sobre suas populações a primeira política "multiculturalista" no
espírito das idéias propugnadas pelo pós-modernismo atual: o sistema do millet.
De acordo com esse sistema, que perdurou longos séculos, as comunidades eram
identificadas a partir da religião (muçulmana, ortodoxa ou judaica) e
administradas pelo líder religioso respectivo conforme os preceitos de cada.9
Isso ocorria, é verdade, juntamente com outras práticas, terríveis, como o
confisco agendado de crianças de famílias cristãs para serem futuros guerreiros
- janízaros - do sultão, ou integrantes de seu harém. Ocorria, também, em meio
às brutalidades que eram comuns - e universais - na época. Mas, conquanto sem
atentar para "nacionalidades" - conceito que não existia na maior parte do
período -, o milletpermitiu, com todas as dificuldades de povos subjugados, aos
búlgaros serem búlgaros, aos gregos serem gregos, aos sérvios se manterem
sérvios, sob o "jugo" da Sublime Porta, que não os islamizou à força, por mais
de quinhentos anos. Nessa mesma época, nas Américas do Norte e do Sul, as
populações autóctones eram física ou culturalmente exterminadas pelos
conquistadores cristãos da Europa renascentista. Quanto à "herança comunista"
como fonte de violência e arbítrio, em que se pode pensar com a mente posta em
Stálin e nos gulags da Europa Oriental, a resposta é bastante óbvia: apesar de
todos os defeitos que o regime de Tito terá tido - e sem dúvida teve muitos -,
em seu tempo as "nações", "nacionalidades" e "etnias" da ex-Iugoslávia
conviviam e até se miscigenavam, o que ainda é incomum na Europa, como em todo
o Velho Mundo.10
Com efeito, gostemos ou não de Josip Broz "Tito", a República Socialista
Federativa da Iugoslávia parece ter sido o Estado moderno que até hoje mais se
esforçou para respeitar as diferenças nacionais da cidadania, assim como os
direitos coletivos das minorias étnicas (cujos Estados-nações se localizavam
alhures). Não o fez no atual estilo pós-moderno, dos países anglo-saxões,
redutor do espaço estatal e da consciência classista em favor de outras formas
de auto-identificação individual. Fê-lo, ao contrário, com ênfase na idéia de
irmandade e união entre os "eslavos do Sul" (cujas nacionalidades específicas
formavam as seis repúblicas federadas), sem desconsiderar os direitos dos não-
eslavos de permeio (que, quando localmente majoritários, eram aquinhoados com
"províncias autônomas": a dos albaneses do Kossovo e a dos húngaros da
Vojvodina). Ainda que essa retórica soe agora anacrônica, tanto mais absurda
após os embates fratricidas dos anos 1990, o regime de Tito, com a Constituição
federal e suas leis ordinárias, tinha sentido convergente e integrador (além de
socialmente nivelador, em sistema "autogestionário"), mas não era assimilador
pela via de aculturações forçadas, condenadas pela antropologia e pelos
direitos humanos. Em paralelo às convicções internacionalistas (e prováveis
ambições pessoais) que o possam ter motivado, na qualidade de partisan anti-
nazista Tito sabia à saciedade como é fácil transformar o nacionalismo
romântico numa ideologia racista. Quem começou a alterar o quadro da Iugoslávia
nessa direção foram seus sucessores, na Sérvia e nas demais repúblicas, depois
de seu falecimento.11
Tentativas de esmagamento cultural de minorias houve muitas, certamente, nos
Bálcãs sob regimes comunistas. A que conheço melhor foi na Bulgária dos anos
1980, quando Todor Jivkov pretendeu "bulgarizar" à força a minoria turca,
proibindo-lhe a utilização da língua própria e impondo-lhe a adoção de nomes
eslavos. Iniciada em 1984, essa política se estenderia, com facetas diversas,
até a primeira "abertura de fronteira" (ainda não-democrática) de 1989,
dirigida especificamente aos turcos, que a ela não se adaptavam e contra ela
protestavam (levando ao deslocamento, a princípio forçado, depois voluntário,
de 350.000 habitantes de etnia turca da Bulgária para uma Turquia em crise
econômica que não tinha condições de os absorver). Mas o mesmo ocorrera antes
na Grécia não-comunista, apoiada e romantizada pelo Ocidente "ilustrado". Esta,
em nome de um nacionalismo helênico que inventava para a nova República, exigiu
que os macedônios de língua eslava renunciassem à idéia de que compunham nação
à parte ou então que fossem para a Bulgária. Mais ainda, a República Helênica,
sob governos fascistóides, exigia um "certificado de lealdade nacional" (não
confundir com os "atestados de idoneidade ideológica" do regime militar
brasileiro) entre os requisitos para a obtenção de emprego em serviço
público.12
Em contrapeso à intolerância anti-turca do Governo de Todor Jivkov, assinale-se
que a Bulgária, na Segunda Guerra Mundial, sob o reinado de Boris III (pai do
posteriormente exilado jovem Rei Simeon II, ou Simeon de Saxe-Coburg Gotha,
democraticamente eleito para o Parlamento da República em 2001 e hoje Primeiro
Ministo), foi a única aliada da Alemanha de Hitler que se recusou a obedecer a
ordem de deportação dos judeus para campos de extermínio. Salvou, assim, do
Holocausto os 50.000 israelitas do país, em demonstração de que não era
impossível descumprir ordens de crimes contra a humanidade quando para isso se
tinha dignidade e coragem - como tiveram, em espontânea revolta, a imprensa, a
Igreja Ortodoxa, o Parlamento e o Rei.13
Como é sabido e estudado, foi no Ocidente que emergiu a noção de Estado
nacional homogêneo, inspiradora de todos os nacionalismos e "limpezas étnicas"
do mundo. Foi essa ideologia ocidental "iluminista" que provocou as chamadas
"guerras balcânicas", inclusive, naturalmente, as duas que primeiro receberam
esse nome, de 1912 e 1913, tendo a Bulgária (de independência recente e
território sucessivamente estendido e encolhido à conveniência das potências
externas) como principal protagonista. Tais guerras do início do Século XX
envolveram, em alianças opostas e com inimigos variados, conforme a ocasião, a
Sérvia, o Montenegro, a Grécia e o Império Otomano, essencialmente em torno da
"questão da Macedônia". Foi essa questão que também levou a Bulgária a aliar-se
aos Impérios Centrais na Primeira Guerra Mundial, e às Potências do Eixo, na
Segunda. Quanto às "limpezas étnicas", que então não tinham esse nome, as
maiores da região ocorreram no fim do conflito greco-turco de 1921-22, com o
deslocamento compulsório de enormes contingentes de cristãos ortodoxos da
asiática Anatólia (muitos dos quais nem falavam grego) para a Grécia, "em
troca" de muçulmanos da Grécia (muitos dos quais não falavam turco) para a
Turquia, já sem sultão, sob a liderança de Mustafa Kemal, o Atatürk ("Pai dos
turcos").
A questão da Macedônia é ainda extremamente complexa, sendo difícil dizer sem
qualificativos quem são, afinal, os macedônios.14 Estes se encontram espalhados
por três Estados independentes e vizinhos: a Grécia, para a qual "Macedônia" é
sua província setentrional, habitada por indivíduos voluntária ou
compulsoriamente gregos, também conhecidos como "macedônios do Egeu",
supostamente descendentes do povo de Filipe e Alexandre, o Grande; a Bulgária,
com a qual eram identificados no passado todos os macedônios eslavos e hoje é
apenas detentora da extra-oficialmente chamada "Macedônia Pirin" (nome da
cadeia de montanhas de sua região sudoeste); e a atual República da Macedônia,
ex-integrante da Iugoslávia, proclamada independente em 1991, que se apresenta
como pátria legítima da nação macedônia e verdadeira continuadora da herança de
Filipe e Alexandre, com língua própria eslava (embora 30% de sua população, de
2 milhões, sejam de etnia albanesa e se tenham recusado a participar do
referendo sobre a independência, por não aprovarem seu estatuto de "minoria").
Não-reconhecido oficialmente pela Grécia, que lhe contesta o nome e a história
contada (e parecia disposta a ir à guerra por isso no período 1992-95), o
Estado macedônio independente somente pôde ser acolhido como membro das Nações
Unidas sob a sigla FYROM, iniciais de Former Yugoslav Republic of Macedonia
(ex-República Iugoslava da Macedônia).
À luz de todos esses pruridos e levando em conta a importância que a "questão
da Macedônia" sempre teve em sua política externa, o fato de a Bulgária
democrática ter sido o primeiro país de independência consolidada a reconhecer
formalmente a nova República, ainda em 199115 (embora sem reconhecer a língua,
considerada um dialeto do búlgaro, e, por essa via, a "nação" Macedônia, que se
estende com cidadania búlgara em seu próprio território), foi um ato de
desprendimento respeitável. Ele evitou a possibilidade de mais um conflito
balcânico, quando o da Eslovênia (de apenas nove dias) terminava, o da Croácia
explodia e o da Bósnia se prenunciava. Graças em parte a ele - e pelo fato de
nela não haver população sérvia ou croata -, a República da Macedônia, de
origem mais complicada e contestada entre os vizinhos do que todas as demais,
foi a única secedida da antiga Iugoslávia que logrou a separação sem guerra.
Conforme citado pelo Professor Mark Mazower, da Universidade de Princeton, em
obra recente sobre os Bálcãs, em 1922, Arnold Toynbee, ao observar os conflitos
que levavam ao fim do Império Otomano, escreveu que:
A introdução da fórmula ocidental (o princípio das nacionalidades)
entre esses povos tem resultado em massacres ... Tais massacres não
passam da forma extrema de luta nacional entre vizinhos mutuamente
indispensáveis, instigados por essa idéia fatal do Ocidente.
E o próprio Mazower, sem inclinações titoístas detectáveis na obra,
complementa:
A limpeza étnica - seja nos Bálcãs em 1912-13, na Anatólia em 1921-22
ou na antiga Iugoslávia em 1991-95 - não foi, portanto, a erupção
espontânea de ódios primevos ... ela representou a força extrema
requerida pelos nacionalistas para esfacelarem uma sociedade que, sem
essa influência, tinha a capacidade de ignorar as fraturas mundanas
de classe e etnicidade.16
Nem o Professor Mazower pretende, nem eu, ignorar as animosidades reais ou a
responsabilidade que incumbe aos líderes políticos locais pelas abominações
praticadas nos Bálcãs na última década do Século XX. Apenas achamos, ele e eu,
que os habitantes da região não são piores, nem mais "bárbaros" do que os de
qualquer outra área. Se os "ódios balcânicos" se afiguram mais graves do que na
Europa Ocidental de hoje, razões especiais há de haver. Lembrar Vlad, o
Impalador, e outros personagens reais de índole e ações vampirescas para
explicar crueldades recentes equivale a explicar o terrorismo na Espanha de
hoje com Torquemada e a Inquisição. Corresponde também, em sentido contrário, a
esquecer que a tortura judicial, para não falar da bélica, foi prática milenar
no Ocidente, propulsor do império da lei e dos direitos humanos.
Nos Bálcãs, como na África, não houve uma unidade lingüístico-cultural em vasta
área geográfica para se fundar civicamente La Patrie, nem um movimento Sturm
und Drang consistente para unir tribos afins contíguas. Não houve sequer um
governo próprio de qualquer tipo que a todos abarcasse. A idéia de nação foi
importada por etnias dispersadas pela História em territórios variados, cheios
de enclaves surgidos em épocas pré-nacionais, sob domínio de fora. E como
costuma ocorrer em qualquer parte do mundo, no passado como agora, em situação
de escassez o vizinho é mais ameaçador do que o habitante distante.
Grande parte dos líderes ultranacionalistas balcânicos da década de 1990 era,
como a maioria dos heróis do Século XIX cultivados em todos os países (e a
idéia da "Grande Sérvia" vem dessa época), formado por poetas, jornalistas,
advogados, médicos e outros profissionais de nível superior. Se agiram de forma
tão brutal há pouco é porque, a exemplo de um certo Führer de bigodinho
ridículo, eles também tinham carisma e condições para manipular frustrações,
dirigindo-as a antagonismos que lhes eram convenientes. Todos se aproveitaram
de algum tipo de estímulo, interno e externo, para fomentar uma exaltação
nacionalista que antes não impedia o convívio. Enquanto nas décadas de 1920 e
1930 o esmagamento da Alemanha por Versalhes, além de ofender os brios de uma
nação orgulhosa, impunha a seus habitantes condições insustentáveis, nas
décadas de 1980 e 1990, o neoliberalismo crescentemente globalizado, associado
à escassez de consumo típica do comunismo e aos desastres econômicos que se
acentuavam em todos os países do "socialismo real" (expressão ideologicamente
cunhada pelos arautos do neoliberalismo "sem ideologia"), facilitava a
canalização de iras populares por líderes populistas ambiciosos contra os bodes
expiatórios disponíveis assim como ajudava a recriar alhures o fundamentalismo
islâmico, ainda não suicida, mas já tão violento na Argélia como os terroristas
atuais.
Do exterior, a afirmação constante de que a Iugoslávia sem Tito fatalmente se
dividiria era em si um incentivo a sua fragmentação. No início dos anos 1990, a
indiferença da Europa, mais preocupada com Maastricht e sua própria União, e a
dos Estados Unidos, com a primeira Guerra do Golfo, não eram de molde a
promover, com o empenho necessário, a alternativa falada de uma confederação.17
A rapidez com que a Alemanha reconheceu as independências da Eslovênia e da
Croácia, em sua zona de influência, seguida de pressões para que a União
Européia procedesse da mesma forma, ignorando o trabalho de investigação sobre
a situação das minorias pela Comissão Badinter,18 e, finalmente, a recomendação
de Bruxelas à Bósnia-Herzegovina, em janeiro de 1992, para organizar um
referendo sobre a autodeterminação foram o beijo da morte no Estado federal
iugoslavo. Foram-no, também, para as idéias previamente aventadas de se tentar
com arbitragem seu desmembramento incruento (embora, fique bem claro, não
constituíssem qualquer incentivo aos massacres). É difícil não concordar com a
afirmação do sérvio Kosta Christitch de que:
A história guardará esse paradoxo: a União Européia inaugurou sua
política externa comum presidindo ao aniquilamento de uma comunidade
pluriconfessional, multiétnica e transnacional que constituía um
conjunto mais unido, mais harmonioso e mais coerente do que a própria
Europa tal como imaginada por seus fundadores.19
Uma corte que perdeu o sentido
Nada disso justifica, é evidente, os atentados aos direitos humanos e ao
direito humanitário das guerras na ex-Iugoslávia, os responsáveis pelos quais
devem ser legalmente punidos. Mas essas violações, brutais, não podem ser
equiparadas às do sistema de extermínio nazi-fascista na Segunda Guerra
Mundial, planejado com todo rigor. Não obstante a denominação tenebrosa
(traduzida de expressão sérvia evocativa), as políticas de "limpeza étnica" nos
Bálcãs dos anos 1990, arbitrárias, violentas, cruéis e moralmente repulsivas,
não eram necessariamente genocidas, nem foram executadas por um único regime.20
Nas repúblicas da antiga Iugoslávia, a maior parte das sevícias e agressões era
praticada por milícias paramilitares, usadas por todas as partes, que incluíam
criminosos conhecidos21 - característica que não se aplicava aos disciplinados
alemães do Terceiro Reich. Um pouco em função desse fato, mas não apenas por
isso, tenho atualmente dúvidas a respeito do Tribunal das Nações Unidas
constituído para julgar responsáveis por crimes de guerra e crimes contra a
humanidade na ex-Iugoslávia, com sede e função na Haia.
Criado pelo Conselho de Segurança (Resolução 808, de 22 de fevereiro de 1993),
quando nem o Ocidente, nem a Rússia, nem a China se dispunha a intervir para
impedir os massacres, e o Terceiro Mundo tinha pavor do "direito ou dever de
ingerência", o Tribunal para a ex-Iugoslávia surgiu como um gesto político.
Inspirado no Tribunal de Nuremberg montado pelos Aliados em 1946 (do qual
emergiu a noção de "crime contra a humanidade"), esse primeiro tribunal penal
da ONU, com jurisdição específica, era o recurso disponível para aflições
impotentes (alguns o interpretam sobretudo como um expediente indolor para
aliviar consciências pesadas).22 Em 1993, ano da Conferência Mundial de
Direitos Humanos, não sendo possível ir além, a iniciativa soava necessária e
coerente. Por isso a Conferência lhe manifestou apoio em resolução separada da
Declaração de Viena. Em 1999, ao indiciar Milosevic enquanto a Otan bombardeava
a Iugoslávia, ele soou estranho. Em 2001-2003, quando a ingerência humanitária
é freqüente, a "ingerência militar preemptiva" virou base de doutrina, e o
"dever de ingerência" aparece incorporado por Estados do Terceiro Mundo, o
mesmo Tribunal se afigura anacrônico e contraproducente. Anacrônico porque, num
período em que o discurso dos direitos humanos se encontra universalizado, ele
só julga pessoas de uma região hoje calma, por crimes já ofuscados na massa de
violações a que se tem assistido, por todo tipo de atores, desde o Onze de
Setembro. Contraproducente porque, em lugar de dissuadir políticas agressivas,
ele alimenta nos Bálcãs posturas de revanchismo. Além disso, a não-extradição
de indiciados para julgamento nessa Corte tem servido de pretexto para barrar a
entrada de repúblicas agora tão democratizadas como o resto do Leste europeu na
União Européia, assim como à recusa de assistência pelos Estados Unidos, país
que mais boicota o Tribunal Penal Internacional (TPI), permanente e universal,
oriundo da Conferência de Roma de 1998.
A propósito da não-entrega dos indivíduos citados, é verdade que em alguns
casos ela advém, ou advinha, de posições ou conveniências políticas: convicções
assumidas (caso do ex-Presidente da Iugoslávia Vojislav Kostunica, do Partido
Democrata, que venceu Milosevic nas eleições de 2000, mas era contra sua
extradição)23, temor reverencial aos sentimentos das populações envolvidas
(muitos dos criminosos presuntivos são objeto de admiração no respectivo país,
como os Generais Ante Gotovina, croata, e Ratko Mladic, sérvio, atuante na
Bósnia), ou, até, instinto de preservação (nenhum dos líderes nacionalistas das
ex-repúblicas iugoslavas tinha ficha totalmente limpa, nem nos anos 1940, nem
nos anos 1990). Por outro lado, não se pode deixar de levar em conta que a
entrega de pessoas como Radovan Karadzic, na parte sérvia da Bósnia, pode
também ser, na prática, tão inexeqüível para os governantes de jovens e frágeis
repúblicas como a apreensão de um Bin Laden pela maior potência da Terra.
Conforme já disse antes e não hesito em repetir, os responsáveis pelas
atrocidades precisam, sim, ser punidos. Também entendo que a não-punição legal
de todos os criminosos, seja nos Bálcãs ou alhures, não avaliza a impunidade
daqueles cujo processo é possível. Mas, na medida em que o TPI não tem
competência para casos anteriores à vigência de seus estatutos (iniciada em
2002) e todos os países egressos da antiga Iugoslávia são hoje democracias
autênticas (sem forças de ocupação, como as presentes no Iraque), incumbe a
estes punir, por meios legais domésticos, os indivíduos que tenham tido sua
culpa comprovada. Essa é a opção seguida, com maior ou menor convicção, pelos
governos da Croácia, da Sérvia e de parte da Bósnia-Herzegovina (esse assunto é
explicitado mais adiante). À comunidade internacional incumbe agora, nos
Bálcãs, sob esse aspecto, zelar para que os tribunais domésticos funcionem e
sejam justos.24
Enquanto o Tribunal para a ex-Iugoslávia vem trabalhando normalmente, já
havendo condenado vários sérvios, croatas e bósnios (e criando uma
jurisprudência que certamente será útil, inclusive ao TPI), seu efeito político
originalmente desejado vê-se, na região, crescentemente contradito. Partidos
nacionalistas extremados, há algum tempo alijados do poder, vêm novamente
ganhando popularidade e eleições: na Croácia, em novembro de 2003, com o
regresso da União Democrática (que afirma haver abandonado a linha dura de
Franjo Tudjman, falecido em 1999); na Sérvia, no final de dezembro, com o
vitória do Partido Radical do ex-líder paramilitar de direita Vojislav Seselj
(ele próprio sob custódia judicial na Haia, onde se apresentou motu proprio).25
Slobodan Milosevic, por sua vez, em julgamento nessa Corte por crimes contra a
humanidade, havendo dispensado advogados, defende-se pessoalmente, com
arrogância e astúcia.
Nesse final de 2003, em que escrevo essas linhas, o Tribunal das Nações Unidas
para a ex-Iugoslávia não arrefece ebulições balcânicas. Ao contrário, serve de
estímulo ao patriotismo defensivo de políticos moderados e bandeira a ser
combatida nas patriotadas grotescas de nacionalistas fanáticos.
A inserção dos Bálcãs no mundo neoliberal
As guerras balcânicas do final do século XX culminaram com a guerra da Otan
contra o que restara da Iugoslávia sob administração de Milosevic após os
conflitos da Eslovênia, da Croácia e da Bósnia e a secessão pacífica da
Macedônia, ou, como se diz até hoje, terminaram pela "Guerra do Kossovo". Tal
guerra levou à cunhagem da expressão "novo humanismo militar" para a
materialização histórica do "direito (ou dever) de ingerência" - não exercido
na Bósnia (senão numa fase do conflito em que a situação das forças da ONU se
revelara absurda), pois nela se havia optado por sanções, que desarmaram os
desarmados. Tratava-se, no caso do Kossovo, da primeira intervenção bélica não-
autorizada pelo Conselho de Segurança, alegadamente movida por "valores", em
defesa dos direitos humanos. Assim pelo menos o diziam os líderes políticos dos
bombardeios aéreos e muitos internacionalistas acadêmicos.
É inegável que, à luz do papel da ONU como testemunha impassível de ações
covardes e carnificinas gratuitas na Croácia (como nos cercos de Dubrovnik e de
Vukovar) e na Bósnia-Herzegovina (como no cerco de Sarajevo, por três anos, e
no massacre de Srebenica, onde os integrantes das forças de paz chegaram a ser
utilizados como escudos), o show de força esmagadora aplicada no caso do
Kossovo pela aliança militar euro-atlântica teve efeitos positivos. Além da
derrota eleitoral de Milosevic nas eleições presidenciais de 2000, seguida da
revolta popular em Belgrado que o expulsou do poder, ela evitou que novos
massacres se repetissem com igual intensidade na República da Macedônia, nos
anos 2000-2001.
As implicações dessas intervenções nos Bálcãs são atualmente infinitas. Não
somente porque serviram de ensaio geral político e exercício de treino para
ações de policiamento da Otan, na linha adotada como sua nova rationale, ao
celebrar cinqüenta anos, no mundo pós-Guerra Fria, em abril de 1999 (durante,
portanto, os bombardeios maciços que empreendia diariamente contra a
Iugoslávia). Elas inspiraram o multilateralismo sui generis de coalizões
punitivas mais amplas do que a própria Otan, como as que depois intervieram no
Afeganistão e no Iraque. Possivelmente inspiraram a nova doutrina militar de
ataques unilaterais preemptivos contra "Estados vilões", sacramentada em
Washington no início de 2003. Mas pouco resolveram de fato, deixando em
suspenso o cerne dos problemas balcânicos.
É possível que o parágrafo acima soe injusto, levando-se em conta que, depois
do conflito do Kossovo e dos entrechoques na Macedônia, os Bálcãs parecem ter
entrado em fase de paz duradoura. Mas é possível também que os Bálcãs, pelos
motivos apontados por Kapuscinski na Euronews, tenham simplesmente desaparecido
dos noticiários.
De paz e segurança fala-se hoje, com efeito, como tema oficial constante por
toda a península, particularmente em função da necessidade de coordenação de
esforços para combater a corrupção e a criminalidade organizada. O cerne da
questão que leva os Bálcãs a permanecerem potencialmente explosivos não é mais
o terrorismo local "à la Gavrilo Princip", de 1914, nem as limpezas étnicas ao
estilo Milosevic, da década de 1990, nem as antigas e persistentes tensões
nacionalistas de per si. Essas, por serem "balcânicas", não são mais primitivas
e violentas do que no País Basco ou na Irlanda do Norte. A diferença que torna
o nacionalismo nos Bálcãs mais ameaçador do que na Europa Ocidental reside no
fato de ser alimentado pela escassez: as migalhas de suas economias "em
transição", desmanteladas por privatizações de afogadilho e políticas
neoliberais implacáveis, mostram-se insuficientes para a sobrevivência de
todos. De sociedades relativamente igualitárias, com os defeitos do chamado
"socialismo real", em especial no que diz respeito à falta de liberdade, os
Bálcãs passaram a abrigar sociedades politicamente livres, porém "duais", com
grandes massas de pobres e pequenos segmentos ricos, como aquelas dos "países
emergentes".
É verdade que, nos Bálcãs, o grau de miséria visível ainda é bastante menor do
que na América Latina ou na maior parte da Ásia (exceto entre os ciganos, agora
chamados roma, que, tendo perdido habitações gratuitas e escolas públicas, são
os favelados e pivetes da região, ou entre velhinhos pensionistas transformados
em catadores de lixo). A semelhança se vê mais claramente na ostentação
chocante dos novos milionários locais, nos desníveis sociais crescentes dados
como normais, no desemprego "estrutural" da competitividade sem ética, no
recurso inescapável à economia informal, quando não à mendicância e aos furtos
como expediente de vida. A tudo isso subjaz a diferença basilar de que, ao
contrário de seus homólogos alhures, todos os indivíduos balcânicos já tiveram,
até há pouco, os direitos fundamentais ao trabalho, à educação gratuita, à
saúde pública e à previdência social razoavelmente garantidos pelo Estado.
Saudosismo comunista existe, sim, entre idosos, contrabalançado pelo
indiferentismo dos jovens, que já importaram do Ocidente, junto com roupas da
moda, a descrença pós-moderna e fatalista nos políticos e em eleições. Daí ao
recrudescimento do nacionalismo belicoso, que identifica no co-habitante
"diferente" a causa de todos os problemas, o passo a ser dado é curto. Enquanto
ele não é dado e esperemos que tal não ocorra de novo alguns dos maiores focos
autonomistas dos anos 1990 são hoje, reconhecidamente, reservas de emigrantes
baratos e bem-educados para o trabalho informal na Europa Ocidental afluente,
fontes de jovens "arianas", educadas e, até, multilíngües, para a prostituição
como escravas brancas no Ocidente sedutor,26 concentrações de "máfias" que
controlam o fluxo de drogas e armas em trânsito Leste-Oeste, entrepostos de
emigrantes clandestinos, vindos de diversos rincões, a serem, quando possível,
transferidos para os exploradores de escravos, existentes em todo o nosso
"admirável mundo pós-moderno".27
Não são minhas, mas de Presidentes e Primeiros Ministros, atuais ou muito
recentes, de países balcânicos democratizados e "privatizados" nos últimos
anos, as palavras que traduzo abaixo:
Precisamos focalizar nossas atenções em questões-chaves. Os governos
da região precisam continuar seus esforços na batalha contra o crime
organizado. Além disso, precisamos buscar com ainda mais empenho
meios efetivos para reduzir os níveis inaceitavelmente altos de
desemprego e baixos de investimento que empesteiam nossa região. Os
direitos humanos precisam permanecer em foco.
(...)
Mas quando se trata de estabilidade, o policiamento é apenas uma face
da moeda. Para nos livrarmos do flagelo do crime organizado, é
preciso desprover os criminosos de seu mais valioso recurso o capital
humano. Para isso necessitamos encontrar empregos para as pessoas
normais, que querem um salário ganho com trabalho honesto para viver
vidas decentes...
A estabilidade de longo termo no Sudeste da Europa depende da saúde
econômica da região, mas isso não significa o pedido costumeiro de
mais dinheiro. Em seu lugar, desejamos trabalhar com a União Européia
sobre as maneiras de utilizar eficazmente o dinheiro recebido.28
Mais do que construtivamente realistas, soam otimistas esses Chefes de Estado e
de Governo (todos de países oriundos da antiga Iugoslávia e da Albânia). Eles
repetem e ainda acreditam no discurso internacional dos direitos humanos.
As Repúblicas em seu presente
De todos os Estados balcânicos, apenas a Eslovênia, com população de menos de
dois milhões de habitantes, entrará para a União Européia em maio de 2004
(juntamente com outros nove países, quase todos da ex-Cortina de Ferro).
Relativamente próspera na área de influência germânica e etnicamente quase
homogênea (razão pela qual o exército iugoslavo, sob as ordens de Belgrado,
dela logo desistiu, em 1991, após nove dias de guerra), a República da
Eslovênia não representa nem ônus, nem ameaças para a Europa. A mais populosa
Romênia (22 milhões de habitantes) e a esvaziada Bulgária (de seu total
anterior de 8,5 milhões de habitantes, pelo menos um milhão emigrou com a
abertura das fronteiras), que resolveram sem conflitos a diversidade interna,
têm sido, por sua vez, bastante ajudadas pela Comissão Européia e devem ser
acolhidas pela União em 2007. Sua situação não se iguala à dos dez da primeira
leva porque, até mesmo no antigo Comecom, as duas eram as "democracias
populares" menos desenvolvidas.
Essas três Repúblicas são agora, com maior ou menor grau de sucesso,
democracias políticas pluripartidárias, com liberdade de expressão, eleições
consideradas legítimas e garantias legais para os direitos civis. Sujeitas a
críticas, é claro, mas capazes de fechar com disciplina os "capítulos" de
negociações para o enquadramento nas instituições comunitárias delineados em
Bruxelas, declaram-se, com orgulho, "economias de mercado de vocação euro-
atlântica". E vão integrar-se na Otan.
Já os novos Estados oriundos da esfacelada Iugoslávia, com exceção da
Eslovênia, são uma outra história. Desses o mais cultivado por Bruxelas para
associar-se à União Européia é, de longe, a relativamente afluente República da
Croácia, de 4,5 milhões de habitantes. Católica (ligada a Roma, não ao
Patriarcado ortodoxo), com longa história Habsburgo e influência italiana, ela
apenas não é logo aceita porque parou de extraditar para julgamento na Haia os
criminosos de guerra (embora em 2003 se fale na possibilidade de acolhê-la
junto com Romênia e Bulgária, em 2007, ou quiçá antes delas). Pois na Croácia,
protetorado "independente" inventado por Hitler, com campos de concentração e
extermínio (sobretudo de sérvios) durante a Segunda Guerra Mundial (são até
hoje famosos os ustashas, nazistas locais), o "nacionalismo" é profundo e
sempre foi cultivado com orgulho anti-sérvio (ou anti-ortodoxo) pelo croata
comum. "Ocidental" como a Eslovênia, mas abrigando grandes minorias sérvias em
partes localizadas, seu nacionalismo se exacerbou com a morte de Tito,
agravando-se nos conflitos dos anos 1990. Nessa época a "Grande Croácia"
(antítese da "Grande Sérvia" que se queria montar com os sérvios espalhados nas
repúblicas vizinhas), liderada por Franjo Tudjman, ex-nazista e ex-comunista,
logrou-se manter unida (sem os croatas da Bósnia) pela expulsão dos 350 mil
sérvios habitantes da Krajina e da Eslavônia oriental (a maioria dos quais foi
parar na Província do Kossovo, nos tempos de Milosevic, e agora, malgrado
pressões externas em seu favor, encontra sérios problemas para retornar a suas
antigas propriedades). Esse nacionalismo arraigado dificulta gestos de
"abertura", como a entrega de croatas ao Tribunal para a ex-Iugoslávia. Daí a
opção do governo por processos e julgamento nos tribunais domésticos, cuja
imparcialidade é contestada pela União Européia. Mas a Croácia é tão bela, com
a medieval Dubrovnik (a Ragusa que disputava com Veneza primazia no Adriático)
e outras pérolas de mármore ao longo de toda a Dalmácia, que conta com verbas
seguras de uma indústria turística bastante desenvolvida para continuar
prosperando razoavelmente até fora da União.
Da Bósnia-Herzegovina atual, nem homogênea nem una, com duas "entidades"
criadas para abrigar três etnias (numa população total estimada em quatro
milhões) dentro das fronteiras herdadas da antiga Iugoslávia, é difícil
imaginar solidez institucional. O Governo "nacional", multi-étnico e
democrático, trata das políticas externa, econômica e fiscal. A administração
interna é feita, de um lado, por "bosníacos" (termo recentemente cunhado para
diferenciar a "etnia", originalmente muçulmana, da nova "cidadania bósnia",
abrangente a todos) e croatas numa federação; de outro, pelos sérvios da
República Srpska. O Parlamento é um só, com assembléias diferentes nas tais
duas "entidades", como também é só um o Chefe de Estado da Bósnia-Herzegovina,
rotativo entre os eleitos por cada uma das três etnias. Há, além disso, dois
Presidentes "internos": um para a Federação Bosníaco-Croata (periodicamente
alternado) e um para a República Srpska. Nas eleições do país, supervisionadas
pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), têm sempre
saído vencedores candidatos que concorrem em partidos nacionalistas das
respectivas etnias. Os próprios negociadores dos Acordos de Dayton reconhecem
que o esdrúxulo arranjo para as três "nacionalidades" foi feito porque era
preciso pôr um fim de qualquer maneira à guerra cruel prolongada (de 1992 a
1995). Tendo em conta que, nessa guerra, os muçulmanos bósnios (hoje
"bosníacos"), moderados e seculares como os turcos, eram a parte mais
desarmada, os parcos arsenais conseguidos para a autodefesa não eram
evidentemente do exército iugoslavo, nem das milícias croatas (que até 1994
também os combatiam). Vinham de quem tinha formas de contornar as sanções da
ONU: associações islâmicas com bases no exterior - fala-se até na Al Qaeda! -,
países considerados rogue States por Washington, ou contrabandistas de armas
sem qualquer ideologia. É sintomático, por isso, nos mais variados sentidos, o
registro surpreendente da Human Rights Watch de que seis cidadãos argelinos
localmente detidos sob suspeita de ligações com o terrorismo, tenham sido
entregues, sob pressão, em 2002, quando cinco já haviam sido inocentados pelas
cortes da Bósnia, aos Estados Unidos e por esses transferidos para a base de
Guantánamo!29 Isso no único país emergente de conflito na ex-Iugoslávia que,
pelo menos dentro da "Federação", vinha fazendo o possível para cooperar com o
Tribunal na Haia. Na República Srpska, assumidamente contrária ao Tribunal para
a ex-Iugoslávia, nem mesmo as ações da Otan têm merecido crédito (a Procuradora
Carla del Ponte caracterizou as investigações da SFOR - Forças de Estabilização
da Otan -, em 2002, para desmantelar a rede de proteção a Karadzik nas aldeias
isoladas de montanhas como meras "operações de relações públicas").30 Tal como
ocorre na Croácia, o retorno dos deslocados tem sido extremamente difícil,
especialmente de bosníacos para a atual República Srpska. E o tráfico de
pessoas para o país, envolvendo até mesmo policiais da ONU, é reconhecido pela
Missão das Nações Unidas (UNMIBH), como "florescente".31
Sérvia e Montenegro são o nome oficial atual, não sei se singular ou plural,
daquilo que havia restado da República Federativa da Iugoslávia depois do fim
dos conflitos. Difícil de definir como um único Estado soberano (pela
legislação acordada de 2003 que aboliu o nome de Iugoslávia, ambas as
repúblicas formam agora uma "federação frouxa", a ser referendada ou não em
2006; o Montenegro, com 100.000 habitantes, tem partidos que insistem na
independência completa), a Sérvia ainda contém pelo Direito Internacional a
Província do Kossovo como parte de seu território (administrada pela UNMIK,
missão da ONU, e patrulhada pela KFOR, força da Otan). Instável por múltiplas
razões "de fora" (basta notar que a Sérvia e o Montenegro, com população total
de dez milhões, contam com mais de meio milhão de refugiados "externos" e
pessoas deslocadas), a instabilidade se acresce de fortes razões endógenas,
todas as quais se resumem na noção de "nacionalismo", matizado pelo grau de
moderação, inconformismo e agressividade das lideranças políticas. Tudo isso
contribui para aumentar a rejeição ao Tribunal para a ex-Iugoslávia, a
violência interna, os assassinatos políticos e as violações de direitos humanos
de variados tipos32. Em princípio, é possível afirmar que a maioria do país
também almeja integrar a União Européia (que mediou as negociações de 2002 e
2003 entre a Sérvia e o Montenegro, ainda unidas em parte graças a Javier
Solana, responsável pela política externa e de segurança no Conselho da
Europa), da qual recebe assistência, sem promessas de integração. De concreto e
positivo, vê-se que as autoridades que o têm representado agora, eleitas em
sufrágios democráticos ou legalmente designadas (Chefes de Estado, de Governo,
Ministros e Presidentes das duas Repúblicas), vêm (ou vinham) seguindo com
persistência políticas de paz na região, procurando fortalecer todos os
vínculos com os países vizinhos.33 Encarada como causadora dos conflitos dos
anos 1990, ou como agente reativa aos nacionalismos dos outros, a Sérvia é, com
certeza, a parte que mais perdeu com a desmontagem da Iugoslávia. De
protagonista importante de toda a história balcânica desde a Idade Média,
centro administrativo e monárquico do antigo Reino dos Sérvios, Croatas e
Eslovenos, emergente do Império Austro-Húngaro, república que sediava, na
imponente Belgrado (expressiva ainda hoje, com os prédios bombardeados pela
Otan em avenidas imponentes, mantidos como ficaram nos ataques de1999), o sonho
de união de todos os "eslavos do sul", a Sérvia é agora um país pequeno e
marginalizado, sofrido, mas orgulhoso, que pode ainda ficar menor
("balcanizado" pelo protetorado internacional do Kossovo, que hojede facto não
passa de uma província pro forma). Pode também incandescer com renovadas iras
em direções variadas, se o mundo não a ajudar.
Deixo para o fim a República da Macedônia, pois foi em viagem a ela que me
decidi a escrever essas linhas.
A Macedônia independente, com área de 25.713 km2 e dois milhões de habitantes
(66,6% ortodoxos; 30,6% muçulmanos e 0,49% católicos)34 é apenas um terço do
total daquilo que até a Segunda Guerra Mundial se conhecia como "a Macedônia" e
que, conforme já visto, foi causa de tantos conflitos. Corresponde, assim,
geograficamente, apenas à chamada "Macedônia Vardar" (do nome do principal rio
que a banha). Considerada por muitos uma criação de Tito para incluir na
Iugoslávia sob seu poder os eslavos dessa etnia (que antes ou pretendiam unir-
se ao Estado búlgaro ou reunir-se com os macedônios da Bulgária em país
independente), o que interessa atualmente é o fato de ela ser hoje uma
República soberana, internacionalmente reconhecida e, justificadamente, muito
"nacionalista". Se o nacionalismo macedônio parece contraditório num Estado
democrático de população multiétnica, que inclui, além dos eslavos, uma grande
minoria albanesa, juntamente com turcos, valáquios (de língua romena) e ciganos
(roma e "egípcios", que nada têm a ver com o Egito), mais surpreendente é a
característica que o faz agora afirmar-se não mais contra otomanos, búlgaros,
ou gregos, e sim perante os co-habitantes albaneses, que, no passado, não se
haviam proposto seccionar o território. A asserção nacionalista atual não se
deve sequer ao fato de os albaneses em 1991, tal como os sérvios na Bósnia em
1992, não terem participado do referendo sobre a independência. O problema
contemporâneo é que essa numerosa minoria, antes em convivência pacífica (ainda
que a contragosto) com a maioria eslava, incentivada pelo ocorrido nas
vizinhanças, depois "infiltrada" e instigada por elementos do ex-Exército de
Libertação do Kossovo (KLA), também constituíu um Exército de Libertação
Nacional (NLA). Desde o fim da Guerra do Kossovo, iniciaram-se na Macedônia
escaramuças e bombardeios interétnicos que, em 2000 e 2001, tendiam a evoluir
para mais uma guerra sangrenta. Dessa feita, porém, a Otan, já instalada ao
lado, decidiu agir com rapidez: interveio sem ataques aéreos e forçou a
negociação dos chamados Acordos de Ohrid, de agosto de 2001. Os acordos
promoveram mudanças consideráveis, que abrangeram anistia para os insurgentes
(exceto aqueles indiciados pelo Tribunal para a ex-Iugoslávia) em troca da
entrega de armamentos, formação de novos partidos, eleições universais e
reformas constitucionais. Em setembro de 2002 novas eleições alijaram do poder
o principal partido nacionalista eslavo (o histórico VMRO, iniciais do nome que
se traduz por Organização Interna Revolucionária da Macedônia, existente também
na Bulgária) e sufragaram no poder a coalizão Unidos pela Macedônia. Essa
congrega a Aliança Social-Democrata (substituta da antiga Liga dos Comunistas,
em associação com o Partido Liberal Democrata) e a novíssima União Democrática
pela Integração, curiosa sucessora do "exército de libertação" albanês. Com
esse governo de união delicada, medidas importantes têm sido tomadas na área da
educação em língua albanesa e para a absorção de cidadãos dessa etnia em
funções públicas, inclusive na polícia e em cargos ministeriais. É agora sob
sua égide, com o apoio do Pnud, que prosseguem os esforços para o recolhimento
de armas, ainda abundantes nas mãos da população, com atos de violência
esparsa. Tais esforços não têm sido, contudo, suficientes para desarmar de todo
os espíritos de duas comunidades que, aparentemente, já não têm disposição para
conviver em interação permanente.
Foi com esse cenário que compareci a Skopje, em novembro de 2003, e pude
observar mais de perto alguns dos efeitos das guerras em países vizinhos e da
exacerbação "nacionalista" em maiorias e minorias. Digo, e repito, "mais de
perto" porque, na Bulgária, onde vivo, nenhuma tensão interétnica é sentida.
Skopje, capital da Macedônia, que à primeira vista lembra Plovdiv, segunda
cidade da Bulgária, é dela intrinsecamente diferente. Em Plovdiv, assim como em
Sófia, as mesquitas dividem com igrejas ortodoxas, sinagogas e hamãs(antigas
casas de banhos turcos, de cúpulas tão bonitas quanto os templos religiosos) a
mesma circunscrição urbana, que se procura restaurar. Em Skopje, ao contrário,
o rio Vardar separa duas "cidades" distintas. Uma é a "cidade eslava", moderna
porque foi toda reconstruída após terremoto terrível de 1963, com avenidas onde
ficam os prédios do Governo. A outra, antiga e mais pitoresca (aparentemente
porque resistiu melhor ao terremoto), é a "cidade albanesa". Nela se vêem, com
destaque, minaretes em ruelas com calçamento de pedra, fervilhantes de lojinhas
de tipo "asiático", contornando em semicírculo a colina dominante, com muralhas
medievais de fortaleza cristã, que depois foi otomana. Enquanto nesse lado
"muçulmano" também circulam mulheres vestidas à ocidental, na margem eslava,
moderna, não vi uma única mulher em hábito islâmico (do tipo turco, longo, com
os cabelos cobertos). O lado eslavo de Skopje não ostenta minaretes, apenas
campanários perdidos entre edifícios civis. Sua visão preeminente é de uma
enorme cruz no alto de uma montanha, como o Cristo do Corcovado, vultosa e
iluminada, a demarcar dia e noite a área de prevalência da "etnia" ortodoxa
(segundo fui informado, tal cruz é de construção recentíssima). Nos encontros
oficiais que mantive, todos na cidade moderna, fui recebido também, com total
naturalidade, por autoridade importante de etnia albanesa. Porém, na sede do
Pnud e outras representações visitadas, todos me falaram de fortes tensões
latentes, que podem explodir em agressões interétnicas sob qualquer pretexto
como, aliás, tem ocorrido em episódios controlados. Por isso me atraíram a
atenção os cartazes convocatórios, espalhados por todos os cantos, em que se
viam dois braços a quebrarem um fuzil, assim como as chamadas à população pelos
media para a entrega de armas em sua posse. As armas, de espécie e calibres
variados, existiriam aos milhões e não advêm somente das guerras em repúblicas
vizinhas; muitas foram saqueadas dos arsenais da Albânia quando do caos nela
havido, com colapso do Governo, em 1997.
A República da Albânia, depois do isolamento auto-imposto por um regime
comunista paranóico, da confusão que se seguiu, com arbitrariedades
governamentais e esquemas de "pirâmides" ou correntes financeiras arrasadoras,
das rebeliões tumultuadas, repressões e anarquia que marcaram a década de 1990,
hoje se encontra pacificada e democratizada. Com pouco mais de três milhões de
habitantes, ela tem e reconhece em seu seio as "minorias nacionais" grega,
macedônia e montenegrina, e "minorias culturais e lingüísticas", de indivíduos
roma e valáquios. Malgrado a pobreza imensa (que parece ser de todos, mas afeta
em especial os roma, principais "vendedores de crianças", isto é, dos próprios
filhos, para adoção, mendicância ou prostituição no exterior, por falta de
alternativas para garantir seu sustento35), não me consta qualquer registro de
que tais minorias tenham veleidades "nacionalistas" capazes de ameaçar a
unidade do país.
Os quistos não-extirpados
Em Skopje mantive também contacto com o Chefe do Escritório de Ligação da UNMIK
(United Nations Mission Interim Administration in Kosovo), Senhor Ataul Karim,
originário de Bangladesh, que me traçou em rápidas pinceladas quadro mais
esclarecedor da situação balcânica do que os livros e relatórios de ONGs o
poderiam fazer. Segundo suas explicações, a UNMIK conta com escritórios em
poucos países vizinhos do Kossovo, mas, como a capital, Pristina, encontra-se a
apenas oitenta quilômetros de Skopje, a maior parte de suas necessidades de
abastecimento logístico passa pela Macedônia. Dessa o protetorado internacional
ainda nominalmente sérvio importa quase toda a produção agrícola. Graças em
parte à assistência estrangeira e muito também "em virtude" (salvo seja!) do
crime organizado (meu interlocutor confirmou-me notícia de que o Kossovo é
hoje, de toda a região balcânica, o maior destino e entreposto de prostitutas,
armas para contrabando, drogas e emigrantes clandestinos candidatos a serem
trabalhadores ilegais onde consigam chegar), esse protetorado internacional
aparenta afluência, com verdadeiro boom na área da construção civil. A
afluência é de fachada, pois desde a guerra em 1999 a província não produz
quase nada e o desemprego formal é da ordem de 50%. Do ponto de vista da
estabilidade/instabilidade da Macedônia em decorrência do enorme influxo de
refugiados (um total de 380 mil - num país de dois milhões de habitantes) nos
anos 1990, esses já não seriam um problema. Todos teriam regressado, com
exceção dos roma, logo que a fronteira reabriu (numa determinada altura do
conflito no Kossovo o Governo de Skopje fechou-a, pois o país já não tinha
condições de acolher mais ninguém). Os roma optaram por permanecer, por serem
encarados pelos kossovares albaneses como colaboradores da Sérvia e temerem
represálias. Aumentam hoje, portanto, a massa de desempregados e pedintes que
perambulam pelas ruas da capital macedônica em números infreqüentes em Sófia ou
em Belgrado (as duas outras capitais que recentemente revi). Os ex-refugiados
bósnios, em números bem menores, ou teriam regressado à sua terra de origem, ou
se teriam integrado à sociedade local.
Na opinião do Senhor Karim, o maior problema para a estabilidade não apenas da
Macedônia, mas de toda a região balcânica, seria a indefinição quanto ao futuro
do Kossovo, hoje praticamente esquecido em função da guerra e ocupação do
Iraque. Esse "esquecimento" por parte da União Européia corresponderia ao não-
tratamento de um quisto que se pode transformar em tumor maligno. Para isso
basta pensar na facilidade com que dele saem para a Europa os "produtos"
manipulados pelo crime organizado. Ele não chegou a falar-me de terrorismo,
embora o serviço militar de informações da Bulgária declare que mais de
duzentas organizações terroristas, do tipo que hoje se teme, ora estejam
atuando nos Bálcãs.36
É difícil contestar a opinião do Senhor Karim. Ao se ler em informes
especializados o que tem ocorrido na "Província sérvia" do Kossovo, vê-se um
quadro apavorante. É verdade que em novembro de 2001 a ONU organizou as
primeiras eleições gerais, de que saiu vencedora a Liga Democrática de Kosova37
(LDK), liderada pelo separatista moderado Ibrahim Rugova. Mas a situação é tão
violenta, no que diz respeito ao regresso de sérvios a suas propriedades, às
violações de direitos humanos em geral e até ao comportamento de tropas
estrangeiras mantenedoras da ordem (com registro de casos gravíssimos de
corrupção e tortura), que é difícil imaginar até que ponto esse Governo eleito,
ou as representações da ONU e da Otan têm controle.38 Em outubro de 2003,
realizou-se em Viena um primeiro encontro, largamente ignorado pela imprensa,
entre os líderes kossovares e o governo de Belgrado, sobre o futuro do Kossovo.
Mas, como observa Jean-Arnault Dérens, o encontro de Viena, apresentado como um
marco importante para a definição da questão, pareceria muito mais uma
"operação de comunicação da comunidade internacional". Era preciso obter "a
imagem forte de um aperto de mão entre representantes sérvios e albaneses, que
não podiam subtrair-se ao princípio da abertura de um diálogo sem se exporem a
represálias internacionais, ainda que suas posições permaneçam
inconciliáveis".39 Afinal, se para os kossovares albaneses a finalidade do
protetorado das Nações Unidas é de preparar o país para a independência, para
os sérvios a separação é inconcebível. Até mesmo nas palavras do dissidente
iugoslavo Milovan Djilas, falecido há alguns anos, "apaguem o Kossovo da mente
e da alma sérvias e não existiremos mais".40 Foi, alias, a propósito dessa
província, em junho de 1989, por ocasião da passagem dos seiscentos anos da
histórica "batalha do Kossovo" e da derrota então sofrida pelos sérvios e pelos
albaneses para as tropas otomanas, que Slobodan Milosevic pronunciou seu mais
célebre discurso, exumando o tema da "Grande Sérvia" e anunciando indiretamente
seu programa político:
O mito do Kossovo unificou todo o povo sérvio disperso pela
Iugoslávia. (...) Ele ainda exerce um papel considerável no que
concerne a posição do povo sérvio do Kossovo e de toda a Iugoslávia.
(...) Hoje nos encontramos novamente em batalhas ou diante de
batalhas. Estas não são com armas, se bem que tal modalidade ainda
não deva ser excluída.41
Um ano depois dos bombardeios contra a Iugoslávia, o jornalista David Rohde já
observava que "a maior intervenção militar realizada pela Otan parece vir
criando um Kossovo antípoda dos objetivos declarados pela aliança", alertando
que a chave para sua estabilização "não está em gestos políticos, eleições
precipitadas ou medidas de curto prazo que mantenham a província fora das
grandes manchetes". Opinava ele então, com argumento aplicável com ligeiras
adaptações a toda a região dos Bálcãs, que a solução para os problemas do
Kossovo requer "um compromisso sólido e de longo prazo, politicamente incisivo,
adequadamente financiado, que utilize as leis e reformas econômicas" para
alterar positivamente as condições de vida e, "na medida do possível, as
convicções do homem comum albanês e sérvio".42 O Kossovo é, sem dúvida, um
grande quisto. Como também o é a Bósnia em sua conformação atual. Sete anos
depois dos acordos de Dayton, o relator especial para a Bósnia-Herzegovina, da
Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, José Cutileiro, concluía não
ter havido reconciliação interétnica genuína no país, nem poder haver aceitação
recíproca enquanto a coesão das etnias depender de executivos civis e militares
estrangeiros.43
Antes da segunda "Guerra do Golfo" e da asserção da "nova doutrina" de
Washington, poder-se-ia esperar que a extirpação desses quistos fosse
seriamente considerada pelas estruturas euro-atlânticas tendo nos Estados
Unidos a principal força-motriz. Depois do Onze de Setembro e da presente
ocupação do Iraque, a força-motriz, se existir, encontra-se necessariamente na
própria Europa. Que a solução contemplável é hoje a "europeização"44 desses
países, províncias e minorias não parece haver qualquer dúvida. Resta saber se
a União Européia os quer efetivamente "europeizar".
Na cúpula de Tessalônica de junho de 2003, quando a Grécia passou à Itália a
presidência comunitária, os líderes da Europa presentes estabeleceram a
doutrina de que, no contexto dos "Bálcãs Ocidentais", que incluem a Albânia e
todas as ex-repúblicas iugoslavas (com exceção da Eslovênia, já praticamente
membro), o Kossovo teria uma "vocação natural" para reunir-se à União Européia.
Mas o estabelecimento de um calendário nessa direção se encontra fora de
cogitação.45 A Europa está hoje voltada para o futuro da própria União, abalada
pela guerra do Iraque, ameaçada pelos déficits públicos dos dois maiores
países, sem acordo sobre o projeto de Constituição, prestes a acolher dez novos
membros (um dos quais ex-iugoslavo) e com data marcada para a acessão de mais
dois Estados balcânicos em 2007. Não obstante esses fatos prioritários, é
evidente que, para os Bálcãs, o ingresso de uns, com exclusão (ou adiamento
infinito) dos demais, pode criar novos problemas - o primeiro especificado será
a necessidade de imposição de um regime de vistos entre os cidadãos de dentro e
os de fora da União, isolando ainda mais povos que hoje já se sentem
discriminados46 - e um conseqüente novo agravamento de tensões.
Conclusão
Em artigo que li recentemente sobre a Macedônia em sentido lato, encontrei um
subtítulo que se encaixa como luva em uma de minhas preocupações: "Too much
talk about multiculturalism" ("conversa excessiva sobre multiculturalismo").
Ele é extraído de observação de um agente de ONG atuante na esfera do
desenvolvimento social, preocupado com os complicadores impostos por macedônios
emigrados (eslavos, albaneses e gregos) que financiam projetos na terra de
origem, exigindo que eles sejam executados em benefício exclusivo de
comunidades específicas. O antropólogo autor do texto analisa a construção das
identidades macedônias e observa que, enquanto em Toronto ou Copenhague o
multiculturalismo promove o "proverbial mosaico", que permite a cada comunidade
praticar seus ritos particulares sem colidirem entre si, o mesmo
multiculturalismo distancia desnecessariamente os habitantes da região.47
Afinal, como visto acima, o que se deseja em Skopje é o êxito de políticas que
promovam a união, senão a unidade, dentro da República. Elas é que podem,
talvez, evitar novos conflitos que no exterior denominam "balcânicos". Acredito
que, com algumas adaptações (difíceis de conseguir), o mesmo se aplique à
Bósnia-Herzegovina e a todos os demais países retalhados por etnias estimuladas
a hipervalorizar diferenças.
É claro que os Bálcãs, como qualquer outra região do Velho Mundo (expressão que
aqui utilizo para contrastar com as Américas, nada tendo que ver com a idéia de
"nova e velha Europa"), têm animosidades arraigadas decorrentes de hostilidades
tribais. Sendo toda a Europa atual originária de grupos que se digladiavam, não
é de espantar que o sérvio não deseje ser croata e que os croatas rejeitem
assimilações por outrem, que um albanês não se enquadre com facilidade numa
moldura de minoria em Estado eslavo, que o patriota francês não deseje ser
alemão, que o escocês se ofenda quando chamado de inglês, que o inglês soberbo
não queira ser confundido com o "europeu continental" etc. Da mesma forma o
indiano não quer ser paquistanês e vice-versa, por mais que a origem de ambos
seja praticamente a mesma. Ainda que, antropologicamente, todas essas nações
tenham sido construídas com base em "comunidades imaginadas", na expressão
acurada de Benedict Anderson, elas são um fato histórico que não se pretende
contestar. O problema que preocupa é a excessiva compartimentalização embutida
na ótica social pós-moderna que acompanha o neoliberalismo dominante. Essa
ensina que o indivíduo somente se realiza na respectiva "comunidade de
identificação". E um dos ingredientes identitários mais fortes sempre foi a
religião.
Num período em que se procurava ser moderno e se acreditava na possibilidade de
progresso das sociedades, a força identitária da religião foi atenuada por sua
"privatização". O Estado secular era, sobretudo, uma instituição civil, que
regulava a convivência por leis humanas. Isso lhe permitia ser multicultural e
autenticamente multinacional (o caso emblemático é o da Suíça). Não era
absurdo, pois, imaginar uma comunidade de eslavos de diferentes nacionalidades
e religiões num Estado que respeitasse as diferentes etnias. Mal ou bem a
tentativa resistiu por mais de quarenta anos. Na pós-modernidade vigente a
religiosidade voltou com força avassaladora. Isso não ocorre apenas entre
"fundamentalistas" assumidos de qualquer crença, retrógrados obstinados que
nada têm de pós-modernos. Ocorre por toda parte, tendo como impulso vital a
idéia da "identidade" tal como postulada pelo multiculturalismo obsessivo.
O caso dos albaneses da Macedônia é, nesse ponto, expressivo. Assim como os
atuais "bosníacos", os albaneses da ex-Iugoslávia passaram a ser o que não
eram: sinônimo de muçulmanos. Madre Tereza de Calcutá, católica beatificada,
era albanesa da Macedônia. Dentro da própria Albânia, os albaneses medievais
eram cristãos, que enfrentaram com valentia os invasores otomanos.48 Muitos se
converteram ao Islã da Turquia ao longo de cinco séculos de dominação otomana,
assim como os pomaksda Bulgária se tornaram muçulmanos sem deixarem de ser
búlgaros. Nem os islamitas da Bósnia, nem os albaneses do Kossovo, haviam antes
exigido uma "nação muçulmana" para se auto-identificarem. Isso para não falar
da Albânia de Enver Hoxha, onde toda religião era proibida pela Constituição,
com efeitos duradouros.49 E os bosníacos, ainda são, como os turcos, muçulmanos
seculares que nada têm a ver com a sharia - embora correntes políticas avancem
com a proposta de "retorno aos fundamentos do Islã".
Vivemos um período de contradições clamorosas. Em nome da liberdade e do
direito à diferença, promove-se um essencialismo que tende a ser excludente.
Quando o elemento identitário é a religião, ela é valorizada num nível de
intransigência que leva ao fundamentalismo. Quando o fundamentalismo se impõe
com seus dogmas de conduta, ele passa a ser combatido como uma força do Mal.
Quando o elemento identitário reputado mais importante é a "nação" imaginada,
usa-se da religião para fortalecer o nacionalismo e torná-lo mais mobilizador.
Ao contrário do que ocorrera em sua história passada, quando as religiões
formaram - com outros elementos - as nacionalidades (sérvia, croata, búlgara,
albanesa, etc.), os nacionalismos dos Bálcãs dos anos 1990 usaram a religião
que já não tinham (quase todos os não-muçulmanos eram e são até hoje
basicamente ateus) para fortalecer o nacionalismo patriótico. Esse quadro ainda
perdura e só pode ser superado quando a Europa assumir que acima de tudo é
Europa, criadora do iluminismo universalista, podendo e devendo abrigar todas
as tribos e fés que dentro dela convivam.
Mas o que significam os Bálcãs nessa era globalizada senão um pedacinho do
mundo com o que vai dentro dele? O que são os Bálcãs, atualmente sem guerras,
senão uma região confusa e pobre, novamente esquecida no turbilhão de
acontecimentosque vemos todos os dias?
Em dezembro de 2003 o General Wesley Clark, ex-Comandante da Otan e pré-
candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, compareceu ao Tribunal
para a ex-Iugoslávia, para dar seu testemunho no processo contra Milosevic. Com
cobertura constante pela televisão, seu depoimento centrou-se nas longas
conversações que mantivera com o réu quando Presidente iugoslavo, nas
negociações que conduziram aos Acordos de Dayton. A parte mais importante foi o
diálogo descrito a respeito do massacre de Srebenica, na Bósnia, em julho de
1995. Segundo ele, Milosevic teria dito, na época, que podia controlar as
forças sérvias do território vizinho. Indagado então pelo General norte-
americano por que motivo, tendo tido conhecimento da intenção do massacre, não
usara de sua influência para impedir a matança de sete mil muçulmanos,
Milosevic respondera que a havia desaconselhado, mas não tinha sido ouvido.
Essa parte do depoimento foi amplamente difundida, até pela Euronews. Nem esse,
nem qualquer outro canal de televisão daqueles a que tenho acesso, explicitou a
resposta do acusado: "Isso, General Clark, é deslavada mentira. Em primeiro
lugar porque nós dois jamais conversamos sobre Srebenica ...". Dela só tive
notícia em breve parágrafo do Herald Tribune, numa matéria isolada.50
Longe de mim dar razão a Slobodan Milosevic e imaginar que Wesley Clark mentiu.
Tampouco pretendo dizer que o comandante norte-americano vencedor dessas
guerras tivesse sido incorreto por prestar seu testemunho contra o principal
adversário. Críticas a sua ida à Haia foram veiculadas nos media como um
instrumento indevido de campanha eleitoral. As críticas, porém, não são minhas.
O que quero dizer é mais simples, sem intenções escondidas: a resposta do ex-
Presidente da República da Sérvia e, depois, da Iugoslávia, ainda que seja
falsa (e acredito que o era), devia ser difundida com o depoimento acusatório.
Esse episódio é pequeno ante o que vai pelo mundo. Mas ele também comprova a
observação de Kapuscinsky ao descrever o que define um acontecimento na fase
contemporânea. Os Bálcãs, assim como a Ásia, a África e a América Latina
evidentemente existem, com suas tragédias e esperanças. Mas eles só geram fatos
que acontecem quando neles estão presentes e agem soldados norte-americanos.
Dezembro de 2003