A história como sacrifício em Blaise Pascal
Satisfação e sacrifício
A noção de sacrifício, bem como sua relação com a história, deve situar-se
entre as noções de redenção e pecado. Mas, antes de chegar diretamente ao
sacrifício a partir desses dois conceitos, é preciso examinar um outro elo
fundamental da cadeia: a noção de satisfação.
Deus teria podido, sem exigir nenhuma satisfação, restabelecer o
homem em todas as prerrogativas do estado de inocência, conferir-lhe
mesmo privilégios mais notáveis e de uma ordem superior: teria sido
mais que uma restauração ou uma nova elevação, mas não uma redenção.
O que caracteriza a redenção é o pagamento do preço pela dívida
contraída, do resgate pelo cativo.2
Deus, na sua infinita liberdade, poderia escolher outras vias para reparar a
natureza humana, mas então não se trataria de redenção e sim de uma liberação
da dívida. Por um lado, o preço a pagar seria anulado. Entretanto, por outro
lado, o Deus ofendido não teria o seu pagamento de justiça e a natureza humana
não seria elevada como de fato foi.
No seu sentido mais geral, a palavra "satisfazer" significa fazer o bastante
para alcançar um objetivo moral, para responder a um anseio, observar uma lei
ou poder dar por cumprida uma obrigação ou encargo. O direito romano usava o
termo para dívidas ou ofensas: " [...] satisfazer, nesta matéria, era fazer o
bastante para que o credor consentisse em solver uma parte ou o todo da dívida,
para que o ofendido renunciasse a vingar-se ou a prosseguir o castigo pela
injúria recebida." 3 Embora a noção teológica de satisfação só se tenha
constituído plenamente com Santo Anselmo (cf. Cur Deus homo,II, 11),4 já
aparece nas Escrituras e nos Padres da Igreja a idéia de que Cristo entregou-se
em "compensação" a nossos pecados, no nosso lugar, o que implica a satisfação.
Além disso, a noção é valiosa porque evidencia o vínculo de necessidade que une
a redenção ao sacrifício, e por isso julgamos importante expô-la, em que pese o
fato de Pascal afastar-se da Escolástica em nome da tradição agostiniana. Na
verdade, o próprio Pascal nos autoriza a dar tal passo: "Para salvar seus
eleitos, Deus enviou Jesus Cristo para satisfazer sua justiça, e para merecer
de sua misericórdia a graça da Redenção".5
De qualquer forma, é possível dizer que a noção de satisfação já está implícita
no próprio Agostinho. Quanto a isso, veja-se sua exposição da ordem divina que
exige manutenção irrestrita da justiça:
Como ninguém é capaz de abolir as leis do Criador todo poderoso, por
isso a alma não pode deixar de pagar o que deve. Ou paga sua dívida
usando bem o dom que recebeu, ou paga-a com a privação do dom de que
preferiu abusar. Portanto, se não paga fazendo justiça, paga sofrendo
sua desgraça, já que ambas as palavras, justiça e desgraça, encerram
a mesma idéia de dívida [...].6
A colocação do problema nesses termos explicita a necessidade da satisfação, ou
seja, um ato humano em honra a Deus, o qual seja proporcional à ofensa contra
Ele feita. A ordem divina assim o exige.
Vejamos a natureza do pecado de Adão. Como criatura, Adão era um ser finito,
ontologicamente inferior a Deus e por isso, do ponto de vista ontológico, capaz
apenas de atos finitos. Tal foi o pecado original, um ato ontologicamente
finito. Em princípio, poderíamos dizer que um outro ato humano, logo finito,
poderia compensar o pecado de Adão. Contudo não se pode julgar a ofensa apenas
do ponto de vista do agressor. O pecado foi contra o Ser puro, Deus,
infinitamente superior ao homem e criador de todo o universo. "A ofensa é
proporcionada ao valor da pessoa ultrajada, ou seja, a sua dignidade. Se a
dignidade é infinita, a ofensa também o é, como a injustiça seria infinita se o
objeto roubado ou destruído tivesse um preço infinito."7
Assim se compreende como o pecado original foi infinito. Não por uma infinitude
ontológica do ato em si, mas pelo infinito alcance moral que teve esse ato,
dando-lhe conseqüências ontológicas que arruinaram a condição humana como um
todo. A queda, além de tirar do homem a bem-aventurança, separa-o da esfera da
divindade, à qual aderia perfeitamente antes do pecado. A mediação com a
infinitude não se fazia necessária porque o homem, criado à imagem e semelhança
de Deus, estava unido à infinitude e por isso, de certa forma, a possuía como a
um bem. Com a queda e a conseqüente perda do bem infinito, o homem sentiu por
inteiro o abismo ontológico entre criador e criatura, radicalizado pela
corrupção da natureza humana, que se espalhou por toda a posteridade. Porém, é
pelo alcance moral infinito da ofensa, mais do que por suas conseqüências no
homem, que a satisfação se vê comprometida. O pecado original, bem como todos
os pecados posteriores, é infinitamente desproporcional a qualquer compensação
que o homem venha a dar. Afinal, se o homem consegue sair do plano meramente
humano e finito na ofensa, não o consegue mais na reparação. Esta nunca se
eleva ao plano divino, mantendo-se na ordem do ser criado.
Aqui vale o adágio: Honor est in honorante, injuria in injuriato;a
honra se mede pela pessoa que homenageia e a ofensa pela pessoa
ofendida. Um conde se apresenta diante do Soberano Pontífice para
render-lhe homenagem; um rei vem com o mesmo propósito. Os atos de
submissão e respeito são os mesmos, a pessoa honrada é a mesma; a
homenagem rendida é da mesma ordem nos dois casos? Certamente não. 8
No ideário romano, a noção de dignitassituava-se mais na esfera política do que
na moral. "Está ligada ao exercício de cargos importantes na res publica,como o
de cônsul ou de senador. No Da Invenção,Cícero define-a deste modo: a
dignitasconsiste numa autoridade honesta, que merece homenagens, honrarias e
respeito."
9
A integridade de caráter está excluída da noção, que toma assim um acento
totalmente exterior que a faz inacessível aos que não a receberam. Portanto,
quando o Cristianismo infinitiza esta noção ao aplicá-la a Deus, não só
radicaliza a inacessibilidade própria da dignitas,como coloca sérios problemas
para a realização da satisfação. Para que seja satisfação de condigno(usando
outra distinção escolástica que nos parece bastante pertinente para a
explicação do problema), ou seja, para que possa garantir a proporcionalidade
entre a gravidade da falta e a reparação exigida, a satisfação deve prover uma
homenagem tão infinita quanto o foi a ofensa a um Ser de dignidade infinita.10
Antes do exame dessas dificuldades, porém, é importante lembrar qual é o ato
que se destina, chegando ou não a bom termo, a realizar tal homenagem: o
sacrifício.
Queres aplacar Deus? Conhece o que hás de fazer para que Deus se
agrade de ti. [...] Continua lendo e escuta: O sacrifício para Deus é
um espírito contrito. Deus não despreza um coração contrito e
humilhado.Rejeitadas as coisas que oferecias, encontraste o que deves
oferecer. Oferecias, ao estilo dos patriarcas, vítimas animais, que
eram chamadas sacrifícios. Se tivesses querido um sacrifício, eu o
teria certamente dado (Salmo 50).Logo não buscas aqueles sacrifícios
e contudo buscas um sacrifício.11
Mas poder-se-ia então indagar qual é a amplitude deste sacrifício: "O
sacrifício mais glorioso, mais excelente que lhe possa ser oferecido é o de nós
mesmos, sua Cidade, e é este o mistério que celebramos em nossas oblações".12
Pascal, como veremos, trilhará o caminho aberto pelo mestre Agostinho, vendo no
sacrifício do cristão o preço da redenção, a ponte entre a miséria penal do
homem decaído e sua reparação:
Nós temos esta admirável vantagem de conhecer que verdadeira e
efetivamente a morte é uma pena do pecado, imposta ao homem para
expiar seu crime, necessária ao homem para purgá-lo do pecado; que é
a única que pode livrar a alma da concupiscência dos membros, sem a
qual os santos não podem viver neste mundo. Sabemos que a vida, e a
vida dos Cristãos, é um sacrifício perpétuo que só pode ser concluído
pela morte.13
O sacrifício no século XVII: Condren e Pascal
O oratoriano Padre Charles de Condren14 é considerado o grande doutor do
sacrifício da escola francesa de espiritualidade. Embora precedido por alguns
autores que contribuíram para o tema, como Bérulle, pode-se dizer que Condren
lançou as bases da doutrina do sacrifício no século XVII francês. Entre suas
contribuições originais destaca-se a doutrina das partes do sacrifício, que
retoma as descrições dos sacrifícios do Antigo Testamento renovando-as pelo
parâmetro crístico. Essa doutrina, com algumas variações, aparece na Carta
sobre a morte do Pai,de Pascal, na qual o autor apresenta suas idéias sobre o
sacrifício cristão. Por isso a comparação com a doutrina de Condren poderá
esclarecer pontos importantes do texto pascaliano.
Em Condren, a necessidade do sacrifício é uma verdade primeira. O sacrifício é
o dever religioso por excelência. A religião parece não visar senão à honra do
Criador e o sacrifício é sua expressão perfeita e total. "O próprio do
sacrifício é render honra a Deus, e a maior honra que lhe possa ser rendida por
uma criatura".15 Como também dirá Pascal, a vida do cristão é um sacrifício
contínuo, mas para o oratoriano a prioridade do sacrifício é mais radical,
colocando-se mesmo acima do amor:
O sacrifício é o primeiro dever que a criatura é obrigada a render a
Deus. Este dever parece mais antigo que o do amor e resulta do
próprio dom da existência. Pois a criatura, assim que é produzida,
deve a Deus um reconhecimento pelo qual protesta ter Dele o ser; ao
passo que se poderia dizer que lhe deve o amor só depois que Ele
estabeleceu entre eles um tipo de sociedade, que o amor supõe
necessariamente e à qual a condição de criatura não dá nenhum direito
.16
Os fins do sacrifício são basicamente três: "Nós temos três obrigações de
sacrificar ou o sacrifício é estabelecido para três coisas: a primeira para
reconhecer Deus e render-lhe homenagemsegundo todas as perfeições [...]. 0
sacrifício é para render-lhe ação de graçase o reconhecimento e homenagem de
seus dons; para render-lhe o que lhe devemos por nossos pecadose torná-lo
propício".17 Em termos teológicos,18 o primeiro fim pode ser chamado
latrêutico, ou seja, expressa a adoração a Deus, reconhecendo seus direitos e
seu soberano domínio; o segundo, eucarístico, visando ao agradecimento pelos
benefícios recebidos; o terceiro, impetratório, mais propriamente ligado aos
deveres decorrentes da queda, pode ser novamente dividido em três objetivos:
propiciatório (em relação a Deus, cujo favor nos restitui), expiatório (em
relação à culpa, da qual obtém a remissão) e satisfatório (em relação à pena e
à dívida, das quais é o resgate). Condren mostra que as três divisões gerais
podem ser descobertas no ritual mosaico:19 o holocausto significa a adoração, o
sacrifício pacífico exprime a ação de graças e o sacrifício pelo pecado visa à
expiação. Contudo, o acento de Condren recai sobre para a primeira finalidade,
a adoração. A infinitude das perfeições divinas e a adoração que merecem terão
um destaque tanto maior porque conduzem diretamente, na visão de Condren, à
aniquilação contida no sacrifício.
A primeira das perfeições divinas é a Santidade, que em nada aproxima Deus dos
homens, mas, ao contrário, é o que os afasta infinitamente. Essa perfeição
torna Deus tão grande, santo e retirado a si mesmo que, para reconhecer Sua
grandeza e declarar que não é digna de que Deus a olhe, a criatura é destruída
e consumida em Sua presença. Para Condren, não se deve estranhar que a
Santidade exija a destruição dos efeitos de Sua potência pois tal potência já
fora honrada pela criação, enquanto a Santidade o será pelo sacrifício. A
vítima tomará o lugar do universo, que deveria ser destruído em si mesmo, para
Deus, mas será destruído nela. Essa mesma Santidade levará Condren a uma
concepção muito particular de Corpo Místico, no qual os membros se aniquilam no
Todo sem se acrescentar propriamente a Ele:
[...] nessa posse que o Espírito Santo toma dos homens, que são
membros de Jesus Cristo, ele permanece tão santa e puramente ele
mesmo, sem nunca sair de si, sem adição ao que ele é, sem distração
do que ele é, porque aplicando-se aos homens aniquila-os em sua
própria aplicação, e assim sua aplicação de tal modo é santa e nada
pode sofrer de criado nem nada suportar senão sua própria pureza, que
consome a própria aplicação .20
Para Condren, este encontro do infinito com o finito que se dá quando o homem é
tomado pelo Espírito Santo serve de paradigma para o sacrifício cristão. O
autor toma o que seria para a tradição uma atitude moral de renúncia e
transforma-a em aniquilação radical, entendida não metafórica ou moralmente,
mas com todo rigor ontológico. Condren deixa de lado as complicações práticas
que podem advir dessa posição, em nome de uma compreensão sem concessões de
suas conseqüências ontológicas.
A segunda perfeição divina honrada pelo sacrifício é o Soberano Domínio que tem
Deus sobre a vida, a morte e o ser em geral. Embora parta da teoria tomista das
causas, Condren reduz ao máximo a ação das causas segundas, fazendo de Deus o
único autor do ser. Disso deduz mais uma vez a necessidade de destruição da
criatura para reconhecer, desta feita, o império divino. Ao negar-se como
agente e produtora de ser, a criatura reconhece seu nada e manifesta
maximamente a grandeza do Deus criador e seu poder absoluto sobre a criação.
"Matando a vítima e destruindo seu ser, protestava-se que Deus era a fonte de
todo o ser e que tinha poder absoluto sobre toda criatura, já que em
consideração a Ele destruímo-la". 21
A terceira perfeição divina honrada é a Plenitude, ou seja, a total suficiência
de Deus. Ainda que Condren defenda, em certas circunstâncias, a possibilidade
de sermos úteis para a Igreja e para a obra divina em geral, por outro lado é
incisivo ao destacar nossa inutilidade diante da perfeição de Deus. A
aniquilação agora tem o papel de reconhecer que Deus se basta e que nenhuma
criatura lhe é necessária: " [...] todas as coisas são inúteis e Ele não tem
necessidade senão de si mesmo já que quando lhe oferecemos alguma coisa
destruímo-la como inútil àquele que possui tudo em si mesmo". 22
Tal destaque para a função latrêutica permite a Condren insistir que o
sacrifício é um dever essencial à criatura, em qualquer estado em que se
encontre. No paraíso, por exemplo, houve religião, logo também houve
sacrifício, dada a indissociabilidade dos dois conceitos. Mesmo sem vítimas
consumadas pela morte, já que esta só entrou no mundo pelo pecado, havia
sacrifício e destruição, mas de outras maneiras. A necessidade do sacrifício,
portanto, funda-se no dogma da criação, não no da queda, e estava já presente
no estado de inocência: "Nós lhe devemos obrigações por sua dignidade suprema;
em uma palavra, porque é Deus". 23
Pascal, por sua vez, destaca antes de tudo o pecado original. Por isso o
aspecto expiatório do sacrifício vem primeiro, como seria de se esperar de um
jansenista. Os Pensamentosmostram a força destrutiva do pecado e a inutilidade
de especular abstratamente sobre o estado de inocência, com o qual não temos
mais nenhuma relação. Também por isso o sacrifício pascaliano, essencialmente
expiatório, destacará a ação misericordiosa de Deus ao tornar possível uma via
de resgate da dívida. Condren, por outro lado, nunca perde de vista a homenagem
à grandeza de Deus, para a qual a expiação se fez apenas acidentalmente
necessária. No entanto, ainda que inseparavelmente imiscuída à expiação do
pecado, a adoração está também presente no sacrifício pascaliano, em termos que
o próprio Condren validaria: " [...I mas a realização (do sacrifício) é a
morte, na qual, pela aniquilação da vida, a criatura rende a Deus toda
homenagem de que é capaz, aniquilando-se diante dos olhos de Sua Majestade e
adorando sua soberana existência, a única que existe realmente". 24
Em ambos os autores, a aniquilação sacrificial é a homenagem devida à Soberania
divina. Só Deus possui verdadeiramente o Ser e é o Criador da vida e do ser
criado, sobre os quais tem Soberano Domínio. Deus tem poder absoluto sobre suas
criaturas e este direito sem limite vai ao ponto de poder destruí-Ias. É por
isso que a aniquilação sacrificial manifesta os direitos do Deus Criador. No
entanto, e agora é Condren que deve concedê-lo, o pecado altera
substancialmente a economia do sacrifício:
[...] ele lhe dá (ao sacrifício) um novo objetivo, a satisfação, que
se encarnava na antiga lei sob um tipo próprio, o sacrifício pelo
pecado; fazendo entrar no mundo a morte, ele dá à destruição
necessária desde a origem uma nova forma (parece mesmo, por um
estranho paradoxo, que ele permitiu assim uma realização mais
perfeita, uma forma mais expressiva). A esta destruição, enfim, ele
dá uma significação mais complexa: ela simboliza doravante a religião
não só da criatura mas do pecador.25
Se o pecado, de um lado, impõe uma nova finalidade ao sacrifício da criatura
inocente, de outro, torna mais impossível a realização de qualquer das três
finalidades. A dificuldade já aparece, para Condren, quando este analisa a
natureza da criatura: se a adoração implica sacrifícios para cada uma das
perfeições divinas, jamais o homem, como criatura limitada, poderá satisfazer
tão infinitas obrigações. Tanto mais porque uma das perfeições divinas é a
Absoluta Suficiência, a qual já faz inútil, por princípio, qualquer objeto
oferecido em sacrifício. Se nenhuma criatura é necessária a Deus, nenhum ato ou
esforço do ser criado lhe pode ser agradável. Por conseguinte, o sacrifício
puramente humano é menos um culto agradável a Deus do que uma confissão do
homem reconhecendo que não pode honrá-lo dignamente, ou seja, testemunha menos
a grandeza divina do que a impotência do próprio homem. Além disso, sendo
absolutamente santo, Deus não pode suportar nada que não seja Ele mesmo. Sua
Santidade exige que um sacrifício digno dele tenha uma hóstia e um sacerdote
perfeitamente puros, o que é incompatível com a criatura. O pecado, por sua
vez, veio agravar tal impureza: "Ainda que todos os homens fossem obrigados a
se oferecer na qualidade de hóstia, não poderiam cumprir tal dever porque o
pecado os havia tornado irregulares e imundos, e como o pecado dos homens
contaminou as criaturas, não somente os homens não podiam ser oferecidos mas
também os animais, que eram considerados imundos". 26 Pascal é igualmente
violento ao apontar a impossibilidade do sacrifício do homem. Para ele, tudo
que está nos homens é "abominável" sem Jesus Cristo. Condren, entretanto, além
de se ater à incapacidade própria da criatura, é mais explícito que Pascal
quanto A. extensão da mancha do pecado a toda a criação e não só ao homem. De
qualquer modo, é certo para os dois autores que não pode haver, no rigor do
termo, sacrifício por parte da criatura sem que haja uma prévia santificação
sobrenatural da vítima, já que, por si, toda oferta é impura e indigna de Deus.
A misericórdia divina, porém, resolveu as dificuldades através da Encarnação do
Verbo: "A excelência desta hóstia suprime as impossibilidades aparentes do
sacrifício: nenhuma criatura conta diante da grandeza de Deus, mas o Filho é
igual ao Pai. Tudo é inútil a Deus, mas Jesus é o objeto de sua complacência.
Tudo é impuro diante Dele, mas Jesus é a Santidade mesma". 27 Em Pascal, da
mesma forma, o fundamento da religião, religação do abismo humano à grandeza
divina, dá-se também mediante o sacrifício de Jesus Cristo encarnado:
553 [...] Vejo o meu abismo de orgulho, de curiosidade, de
concupiscência. Não há nenhuma ligação entre mim e Deus, nem entre
mim e Jesus Cristo justo. Mas ele se fez pecado por mim e todos os
vossos flagelos recaíram nele. Ele é mais abominável do que eu e,
longe de desprezar-me, sente-se honrado de que eu vá a ele e o
socorra. Mas ele se curou a si mesmo e com maior razão há de curar-
me.
Voltando a Condren, Cristo é apresentado como a única hóstia digna de
oferecimento a Deus, tendo "uma capacidade infinita para render a Deus honras
infinitas dignas de sua pessoa infinita".28 Ao mero homem, Condren, renegando
seu antecessor Bérulle, recusa qualquer capacidade para se comunicar com Deus.
Em nenhum momento, porém, o autor dissimula o paradoxo envolvido. Ao contrário,
radicaliza-o com uma visão essencialmente divina de Cristo. Estranho ao mundo e
infinitamente separado dele por seu ser divino, o Cristo condreniano é a
antítese da imperfeição essencial da criatura. Esta imperfeição arrasta o homem
para o nada, o contato com o divino aniquilando o que já era por si irreal. Por
isso onéantismede Condren é tão surpreendente quando aplicado a Cristo. O
depoimento de Amelote, fiel discípulo e biógrafo de Condren, revela a
magnitude do sacrifício crístico na visão do oratoriano:
Se a Encarnação é chamada por seu Espírito um aniquilamento da forma
de Deus, já que o Filho do Homem não fazia aparecer todas as suas
vantagens na época de sua carne, quão maior então é o nada a que se
reduziu quando morreu na cruz? [...] Nem as criaturas, nem a vida,
nem a morte lhe rendiam toda a reverência possível; e ele uniu o
criador à sua obra, o infinito ao finito, a morte à vida, a glória à
confusão, e pôs as iniqüidades sobre a inocência, para que da
composição da natureza humana e da divina, do ser e do não ser, do
tudo e do nada resultasse uma espécie de honra admiravelmente
inventada e que da associação de tantos extremos opostos se fizesse
um acúmulo todo particular de culto e de religião. O sacrifício de
Jesus Cristo é o último esforço que fez a divina Sabedoria para
formar o artifício de toda a glória que se pode dar ao ser
infinito.29
O sacrifício de Cristo é o único completo, cumprindo os três deveres de
adoração, ação de graças e expiação, os quais os ritos antigos tentavam cumprir
separadamente. Na realidade, estes ritos jamais o conseguiriam pois não eram
nada além de figuras do Sacrifício Crístico, o único verdadeiro. Diz Pascal:
"684 [...] Se tomarmos a lei, os sacrifícios e o reino pela realidade, não
podemos concordar todas as passagens. E preciso pois, por necessidade, que
sejam apenas figuras [...]". Assim, como já dizia Agostinho: "Mudaram os
signos, mas não a fé. Mudaram os signos com os quais se simbolizava algo
especial, mas não mudou o que era significado. O carneiro, o bezerro, tudo
significava Cristo".30 Foi o sacrifício de Cristo, e não os antigos, que salvou
todos os justos, aí incluídos os do Antigo Testamento: "Estes bons antigos
servidores de Deus, no Velho Testamento [...] tinham todos uma fé explícita no
Messias que devia vir livrá-los, e principalmente aqueles que faziam
sacrifícios. Pois sabiam que aqueles animais que eram mortos para purificá-los
não tinham a virtude de limpá-los dos pecados e que representavam uma vítima
pela morte da qual deveriam ser sacrificados".31 Como se vê, o fato de Condren
e Pascal utilizarem o vocabulário da figura para descrever a realidade não faz
da figura realidade. Ao contrário, a realidade do sacrifício crístico é que
serve de normapara as figuras antigas e futuras, judaicas ou pagãs, do
sacrifício. A realização em Cristo é a razão das promessas, e não vice-versa.
Condren e Port-Royal
A esta altura, cabe perguntar pela viabilidade histórica da aproximação entre
Condren e Pascal. Não há dúvida de que a Carta sobre a Morte do Pai tem
semelhanças surpreendentes com textos de Condren. No entanto, a aparente
fertilidade da aproximação não responde plenamente à pergunta pela influência
efetiva das idéias de Condren sobre Pascal, o qual só menciona o oratoriano uma
vez e de maneira critica: "Laf. 787: M. de Condren. Não há, diz ele, comparação
da união dos santos à da santíssima trindade. J. C. diz o contrário". 32
Jean Mesnard, na sua introdução à Cartade Pascal, destaca a semelhança das
concepções de sacrifício dos dois autores, embora considere pouco provável que
Pascal tenha conhecido pessoalmente o oratoriano, falecido em 1641. Pascal
também não deve ter tido contato direto com os escritos de Condren sobre o
sacrifício, que só foram publicados conjuntamente em 1677, numa compilação
devida a Quesnel, L'Idée du sacerdoce et du sacrifice de Jésus
Christ.Entretanto, continua Mesnard, Pascal certamente esteve em contato com
fervorosos discípulos de Condren e, mesmo que isso não tivesse ocorrido, a
influência condreniana o teria alcançado de dentro do próprio meio jansenista,
através das Lettres Chrétiennes et spirituellesde Saint-Cyran e da influência
deste na abadia.
O início do contato de Saint-Cyran com Port-Royal deveu-se, em parte, à
influência de Condren na abadia. A partir de 1625, o bispo de Langres,
Sebastien Zamet, tomou-se diretor espiritual de Port-Royal. Ligado ao Oratório,
Zamet aproximou as religiosas de pessoas como Bérulle e Condren, sendo que este
último substituiu Zamet na direção espiritual de Mère Agnès Arnauld durante o
outono de 1626. Fortemente influenciada pelo néantisme de Condren, ela
escreverá, a pedido deste, o Chapelet Secret du Saint Sacrement,opúsculo com
dezesseis atributos do Santíssimo Sacramento que revelavam as disposições de
rebaixamento e aniquilação em que Mère Agnès se encontrava diante do
Santíssimo. A irmã não cita a problemática do sacrifício, mas retoma outros
aspectos do condrenismo ao voltar-se quase unicamente à essência divina
presente na Eucaristia, e não à humanidade de Cristo. O primeiro atributo, a
seguir reproduzido, bastará para mostrar a proximidade de Condren:
Santidade: para que Jesus Cristo esteja no Santíssimo Sacramento de
modo a não sair de si mesmo, isto é, que a sociedade que quer ter com
os homens seja de uma maneira separada deles e residente Nele mesmo,
não sendo razoável que se aproxime de nós, que não somos senão
pecado, e mesmo em estado de graça não há nada em nós digno da
santidade de Deus, de modo que deveríamos dizer ao Santíssimo o que
Pedro dizia a Jesus Cristo: Retirai-vos de nós, Senhor, pois somos
pecadores.33
A pequena obra teria sido prontamente esquecida, não fosse o ataque dos
jesuítas, que a levaram à condenação por parte de oito doutores da Sorbonne em
1633. Criada a polêmica, a qual atingia tanto as religiosas como Condren, Zamet
achou alguém que poderia dar uma resposta à altura dos acusadores: Saint-Cyran.
Amigo e interlocutor de Jansenius (de quem conseguiu uma aprovação para o
Chapelet)e também influenciado por Bérulle e Condren, Saint-Cyran assumiu a
polêmica, que foi uma das mais importantes do período para Port-Royal. É a
partir daí que Saint-Cyran toma-se um verdadeiro "salvador" para as religiosas,
sendo a principal influência espiritual da abadia, acima de Zamet.
Ora, é praticamente impossível que os ecos da polêmica não tenham chegado a
Pascal, e com eles a idéias aniquilacionistas de Condren. Quanto ao sacrifício,
é provável que a via de acesso tenha sido as cartas de Saint-Cyran, mas de
qualquer modo é certo que o tema continuou no meio port-royalista por muito
tempo. Antoine Singlin, primeiro diretor espiritual de Pascal, tratará do tema
nas suas Instruções Cristãs(cuja aprovação é de 1671) e Nicole, por sua vez,
dirá em escrito de 1751: "A morte de Jesus Cristo faz o cristão ver a
necessidade que ele próprio tem de morrer e de sacrificar sua vida a Deus; a
indignidade que encontra em sua vida para ser sacrificada a Deus obriga-o a se
unir à morte de Jesus Cristo, única que pode fazer a sua ser recebida. Toda a
sua vida não deve ser senão uma oblação contínua desta dupla morte [...]".34
Apesar do silêncio dos comentadores a esse respeito, parece que a problemática
do sacrifício, inaugurada no séc. XVII por Condren, tomou-se um lugar comum
teológico em Port-Royal, como mostram textos de várias fases do jansenismo. É
aceitável, portanto, crer que Pascal, se não leu diretamente, ao menos meditou
os temas condrenianos (o que é confirmado pelo rápido comentário do fragmento
Laf. 787 já citado) e por isso a consulta ao pensamento do oratoriano é
legítima. Vejamos agora se a análise da teoria condreniana das partes do
sacrifício pode esclarecer alguns pontos importantes que ficaram à sombra na
Cartade Pascal.
As partes do sacrifício
Em Condren, é a idéia de partes do sacrifício que guia a explicação do
sacrifício do Cristo. O fundamento de tal teoria não é metafísico, mas
escriturístico. Embora o autor afirme, como continuarão a afirmar os teólogos
posteriores, que o sacrifício é uma obrigação natural e que a razão pode
descobrir sua forma necessária (a destruição), as alusões freqüentes deixam ver
que Condren tem sempre em vista o sacrifício de Jesus e suas figuras bíblicas:
"Condren parece, à primeira vista, só ver o sacrifício de Cristo através dos
ritos antigos; é apenas aparência; seu objetivo é exprimir, na linguagem do
Antigo Testamento, a realidade dada pelo Novo. A doutrina das partes do
sacrifício, aparentemente fundada apenas nos sacrifícios judaicos, ilustrada
por eles, não é construída para eles, mas para o sacrifício de Jesus".35 Como
Condren, Pascal também busca a verdade do sacrifício e da morte na revelação:
"A verdade neles (em Jesus Cristo e nos livros canônicos) está descoberta e a
consolação unida tão infalivelmente quanto está infalivelmente separada do
erro. Consideremos então a morte na verdade que o Espírito Santo nos ensinou".
36
Quanto às partes propriamente ditas, Condren assim as apresenta: a primeira é a
santificaçãoda vítima; a segunda, a oblaçãoda vítima; a terceira, a ocisão ou
imolação;;a quarta, a inflamação ou consumação;a quinta, a comunhãoda vítima.
Na Carta,Pascal apresenta uma relação praticamente idêntica: " [...] nos
sacrifícios, a principal parte é a morte da hóstia. A oblação e a santificação
que precedem são disposições; mas a realização é a morte [...]. É verdade que
há ainda uma outra parte, após a morte da hóstia, sem a qual sua morte é
inútil: é a aceitação que Deus faz do sacrifício".37 Mais à frente, Pascal
mencionará também a consumação, portanto só há pequenas diferenças de
nomenclatura, não de conteúdo. Ambos tomam tal terminologia explicitamente do
Antigo Testamento, mas a referência é sempre o Sacrifício Crístico. Por isso
Pascal tenderá, no decorrer da Carta,a assumir também o vocabulário do
Evangelho (ressurreição no lugar de consumação, ascensão no de aceitação etc.).
A primeira parte do sacrifício, ou santificação,demanda quatro coisas:
primeiramente, a perfeição naturalda vítima. No caso de Cristo, ela se dá pela
impecabilidade, embora esta vítima compartilhe da semelhança da carne de
pecado.38 Nos sacrifícios figurativos, a perfeição consistia na ausência de
manchas ou defeitos nos animais oferecidos. A exigência de perfeição impunha-se
sobretudo porque as imperfeições eram efeitos do pecado original, devido ao
qual Deus rejeitava os animais que as tinham. Além, é claro, do caráter
profético dessa exigência, que prometia a futura perfeição do Messias:
De sorte que, em todos os séculos que precederam Jesus Cristo, toda a
natureza teria permanecido na impotência de testemunhar seu
reconhecimento ao criador por este primeiro dever de religião, que é
o sacrifício, se Deus não tivesse escolhido alguns animais que quis
que fossem vistos como figuras de seu Filho e que fossem oferecidos a
Ele nesta qualidade. Pois, tendo algum sinal ou vestígio do Filho de
Deus e representando-o em algo, tinham uma santidade figurativa que
os fazia serem chamados animais puros. Eles eram, por este meio,
elevados da irregularidade e em seguida oferecidos no lugar dos
homens.39
A segunda exigência é a consagraçãoque dedica a vítima a Deus, isto é, separa-
a de todo uso profano e a faz entrar na ordem do sagrado. E claro que, para
tal, é preciso que a vítima abandone sua impureza natural, tornando-se digna de
Deus. É aí que surge a terceira exigência: "O sacrifício requer uma
santificação sobrenatural,que não se pode fazer por nenhuma virtude ou
autoridade humana, mas por autoridade e instituição (divina) que torne a hóstia
agradável a Deus acima de sua ordem natural e que lha entregue limpa, que a
livre do domínio do homem e da servidão da corrupção".40 (grifo nosso). Depois
desta etapa, a vítima já está obrigatoriamente destinada à imolação,
engajamentoesse que constitui a quarta exigência, pois a reutilização mundana
de algo santificado é sacrílega.
A despeito do engajamento à imolação implicado na santificação,a vítima deve
mesmo assim ser formalmente oferecida, o que se dará na segunda parte do
sacrifício, a oblação,que aparece nos sacrifícios figurativos através de certas
palavras prescritas por Deus para esse fim. Em Cristo, que dispensa tais
palavras por ser o próprio Verbo de Deus, a oblação se dá no início da
encarnação. Condren separa-a da santificação,ao passo que Pascal praticamente
as identifica. Ambos, porém, partem da apresentação paulina do sacrifício em
Hebreus, 9, 14 e 10, 5. A este respeito, diz Pascal: "Entrando no mundo, ele
disse: "Senhor, os sacrifícios não te são agradáveis, mas deste-me um corpo".
Então disse: "Eis-me, venho para fazer, ó Deus, tua vontade, e tua lei é no
interior de meu coração". Eis sua oblação. Sua santificação foi imediata de sua
oblação."41
Com a parte seguinte, a imolação ou, como prefere Pascal, a morte da hóstia,
inicia-se o essencial do sacrifício: a destruição. "A morte de Jesus rende
homenagem à soberania de Deus e satisfação a sua justiça, ao mesmo tempo que
salva os homens. Seu lugar no sacrifício é portanto essencial. Se este visa a
exprimir os deveres da religião e tornar Deus propício, sua significação e seu
efeito são inteiramente realizados pela morte". 42 Forma necessária do
sacrifício, a destruição não dispensa as etapas anteriores, mas estas só
existem em função dela e não vice-versa. A vítima é separada da mundanidade e
oferecida a Deus para ser imolada.Logo nem a santificaçãonem a oblaçãose
completam sem a imolação,que constitui o início da destruição da vítima.
Certos teólogos questionam a essencialidade da imolaçãono sacrifício,
destacando a existência de sacrifícios não sanguinolentos, como a missa, para
prová-lo. Na verdade, tais sacrifícios pressupõem a vítima já imolada do
Calvário e, por conseguinte, não constituem novo sacrifício. A Eucaristia
revive a eternidade da oferenda de Cristo e, embora o faça de maneira
diferente, não visível, é, contudo, o mesmo sacrifício. Quanto aos sacrifícios
antigos não sanguinolentos, tratava-se apenas da parcialidade das figuras, que
representavam imperfeitamente a totalidade do sacrifício crístico. Sendo assim,
a essencialidade da imolação permanece. Porém, o que nos interessa agora são as
opiniões de Pascal e Condren, os quais afirmam explicitamente que a imolação é
o principal do sacrifício: Condren diz que as partes precedentes são
"condições", Pascal diz que são "disposições"; ambos dão à morte o lugar
primordial.
A interpretação contrária é liderada, entre os teólogos cristãos
contemporâneos, por Marius Lepin, que renuncia explicitamente à concepção
tomista (que também destaca a imolação)para colocar a aniquilação como um dado
secundário no sacrifício, subordinado ao caráter, este sim essencial, de
doação. Com esse intuito, Lepin busca, como autoridade, justamente Condren, e
"cita-o": "o que agradou a Deus no sacrifício de seu Filho não foram tanto seus
jejuns, suores, trabalhos, preces, o dilaceramento de sua carne [...], nem
enfim sua própria morte, mas sim a caridade imensa pela qual Ele a ofereceu a
Deus perdendo a vida, derramando seu sangue pelos pecadores".43 O problema das
referências textuais usadas por Lepin é que se baseiam sobretudo em L'Idée du
sacerdoce,compilação de cujas quatro partes apenas a segunda, como se sabe
hoje, foi escrita por Condren, e mesmo esta sofreu alterações do editor.44
Ademais, o que supostamente apóia a tese da não essencialidade da imolaçãoé o
caráter natural que Condren dá ao sacrifício, o que o estende até o estado de
inocência, quando a morte não havia entrado no mundo. Contudo Condren não
exclui a necessidade da destruição no sacrifício adâmico, ainda que se desse de
outra maneira. Após o pecado, porém, a morte passou a ser condição necessária
da destruição, ao mesmo tempo que a função expiatória incorporou-se ao
sacrifício. Em resumo, a análise de uma mais ampla gama de textos e a exclusão
daqueles falsamente atribuídos a Condren repõem a imolação no centro do
sacrifício.
A morte, entretanto, não termina o sacrifício-destruição. A ela deve
acrescentar-se a consumação,que corresponde ao fogo que consumia a vítima nos
sacrifícios antigos. Isso ocorre porque as perfeições divinas exigem, para além
da morte, a destruição inteira do ser. E com esta que se realizam
verdadeiramente as funções antes descritas do sacrifício, que apontavam todas
para a aniquilação integral. Nos sacrifícios antigos, a inflamação destruía as
imperfeições ligadas ao estado terrestre da vítima, completando a aniquilação
sacrificial. A ressurreição, ou inflamação da Nova Lei, é sem comparação mais
perfeita, pois a verdade e a glória de Deus realizam o que era figurado pelo
fogo, isto é, consomem tudo que era indigno de Deus no corpo de Cristo a
organização do corpo de Adão que restou depois da morte na cruz:
A consumação se completa na ressurreição, pois, assim como nos
antigos sacrifícios figurativos daquele de Jesus Cristo as
superfluidades e imperfeições da vítima eram consumidas pelo fogo,
figura de Deus, do mesmo modo tudo que havia de mortal e passivo em
Jesus Cristo, em resumo, tudo que havia nele de Adão, ou seja, a
semelhança de nossa carne de pecado, foi consumado pela verdade de
Deus [...]. 45
A comunhão,última parte do sacrifício, é representada pela aceitação divina da
fumaça nos sacrifícios antigos (Gênesis8, 21: "Iahweh respirou o agradável odor
[...]".46) Enquanto a consumaçãotermina propriamente o sacrifício, destruindo o
estado mundano da vítima, a comunhãoé o fruto do sacrifício. A distinção é
facilitada no caso de Cristo, pois a ressurreição separa-se temporalmente da
ascensão, a qual corresponde à comunhão(Cristo, como Verbo de Deus, é "comido"
pelo Pai, nas palavras de Condren). A ressurreição leva Cristo à perda da vida
terrestre e à entrada naquela que lhe é devida como Filho de Deus, ao passo que
a ascensão será a fruição dessa mesma vida no seio do Pai, agora com a
possibilidade de dar aos homens a graça que não podiam receber antes do
sacrifício concluído. Tal quadro, pintado por Condren, tem um correspondente
bastante similar na Cartade Pascal:
Assim, estando este sacrifício perfeito pela morte de Jesus Cristo e
consumado mesmo em seu corpo por sua ressurreição, em que a imagem da
carne do pecado foi absorvida pela glória, Jesus Cristo tinha
completado tudo que lhe cabia; restava apenas que o sacrifício fosse
aceito por Deus, que como a fumaça se elevava e portava o odor ao
trono de Deus, assim Jesus Cristo fosse aceito por Deus, e que, como
a fumaça se elevava e portava o odor ao trono do próprio Deus, assim
Jesus Cristo fosse, neste estado de imolação perfeita, oferecido,
levado e recebido no trono de Deus: e é o que ocorreu na ascensão, na
qual ele subiu por sua própria força e pela força de seu Espírito
Santo que o envolvia por toda parte: ele foi levado como a fumaça das
vítimas, figuras de Jesus Cristo, era levada ao alto pelo ar que a
sustentava, figura do Espírito Santo.47
O cristão e o Cristo
Em sua Carta,Pascal vai ao sacrifício de Cristo para entender o sacrifício
humano. Não é de admirar, já que no homem, para Pascal, tudo que não é Jesus
Cristo é abominável. Por isso é como membro de Cristo que o homem será
abordado: " [...] e como Deus só considera os homens pelo mediador Jesus
Cristo, os homens também só deveriam olhar-se e aos outros mediatamente por
Jesus Cristo, pois se nós passarmos pelo meio, só acharemos em nós verdadeiras
desgraças ou prazeres abomináveis; mas se considerarmos todas as coisas em
Cristo, acharemos toda consolação, toda satisfação, toda edificação".48 Na
Carta,Pascal tem como princípio que o que ocorreu a Cristo também deve ocorrer
a seus membros, logo a necessidade de reunir-se ao Sacrifício Crístico é
evidente.
Condren, por sua vez, tem uma visão semelhante do cristão como membro: "Nossa
vida deve ser em Jesus Cristo e nós devemos viver nele como sendo seus membros,
pois a graça emanada do mistério da encarnação acarreta nossa incorporação a
ele, quer dizer, nos faz ser algo dele, nos faz ser uma porção de sua
substância e nos torna subsistentes nele de modo que os cristãos e Jesus não
são senão Jesus Cristo, unus Christus,como fala S. Agostinho seguindo S. Paulo,
como uma mesma pessoa com Jesus Cristo".49 A aparente "generosidade metafísica"
desse trecho, que parece dar ao homem o ser de Cristo, não deve, porém, nos
enganar: a unificação em Cristo se dá para o cristão como perda e dissolução de
seu ser. Se Condren usa a imagem dos membros de Jesus Cristo é para destacar
que as disposições das quais o cristão participa são sobretudo disposições de
religião, isto é, de honrar a Deus de todas as maneiras, principalmente pelo
sacrifício, a maior delas. Em conseqüência, a participação no Corpo Místico50
será, antes de tudo, participação como vítimano sacrifício do Corpo Místico, e
este será o paradigma de compreensão daquilo que deve ser a vida cristã. A
morte de Cristo continua através de seus membros e as partes do sacrifício
constituirão as etapas da vida do cristão.
O lugar do sacrifício é portanto central na espiritualidade de
Condren: Jesus no seu sacrifício compreendeu todos os seus membros; o
batismo que os faz entrar na Suasantidade obriga-os a entrar em Seu
sacrifício; sua oblação ratifica Sua vontade e os compromete por um
novo título à imolação; todos os atos virtuosos da vida cristã são
sacrifícios, desde que incluam uma perda ou sofrimento em honra a
Deus; a vida inteira o é no sentido de que deve ser uma morte a si
mesmo e uma parte na cruz de Jesus; a morte enfim é o sacrifício da
vida; as provas e a morte consumam o cristão, ou seja, destroem seu
ser primeiro em honra a Deus e dão-lhe parte no ser do Cristo
ressuscitado. Reconhece-se neste quadro a visão do sacrifício tal
como se depreende dos escritos sobre o sacrifício de Jesus; é a mesma
concepção de um sacrifício estendido do nascimento à vida eterna, a
mesma distribuição das partes, a mesma importância relativa e a mesma
significação que Ihes é dada: as duas primeiras preparam o
sacrifício, as duas outras o constituem; elas apresentam,
inseparáveis, um aspecto rigoroso de destruição total em honra a Deus
e um aspecto feliz de participação na vida divina.51
Em Pascal, igualmente, a vida do cristão será compreendida a partir do modelo
do sacrifício de Cristo:
Assim que entramos na Igreja, que é o mundo dos fiéis e
particularmente dos eleitos, em que Jesus Cristo entrou no momento de
sua encarnação por um privilégio particular ao filho único de Deus,
somos oferecidos e santificados. Este sacrifício continua pela vida e
se completa na morte, na qual a alma, deixando verdadeiramente todos
os vícios e o amor da terra, cujo contágio a infecta sempre durante
esta vida, acaba sua imolação e é recebida no seio de Deus.52
Sacrifício e História
Como nos propusemos a discutir a questão da História, a pergunta que surge é se
este quadro sacrificial da vida cristã pode ser ampliado para toda a história
da humanidade, da qual o sacrifício de cada cristão seria uma parte ou, ao
menos, uma figura. No caso de uma resposta afirmativa teríamos o Corpo Místico,
do início dos tempos até a eternidade, como a grande e única vítima de um
sacrifício universal. O ponto de partida seria, mais uma vez, Agostinho: "Toda
a comunidade resgatada, ou seja, a assembléia dos fiéis e a sociedade dos
santos, é o sacrifício universal oferecido a Deus pelo grande Sacerdote que se
ofereceu por nós em sua Paixão, na forma do Servo, para fazer de nós o corpo de
uma cabeça tão nobre [...]. Tal é o sacrifício dos Cristãos, que são 'muitos,
formando um só corpo em Cristo''.53
A vantagem dessa hipótese, caso se confirme para Pascal, seria dar à história
uma organização própria através das etapas do sacrifício, sem com isso assumir
uma visão progressiva da história, coisa que Pascal recusa prontamente.54
Diferentemente da temática das sete idades da história, que sugere prontamente
uma pedagogia divina, as etapas do sacrifício não implicam uma progressão, mas
os pré-requisitos, a efetivação e os efeitos de um único ato indissociável, o
sacrifício do Corpo Místico. Além disso, a hipótese destacaria o caráter
expiatório da História e faria de suas etapas não as partes de uma metáfora,
mas os constituintes efetivos de um ato real: o sacrifício satisfatório em
honra a Deus. Desse modo, a dívida que desencadeia a História constituiria,
através da estrutura sacrificial de seu resgate, a própria forma da História.
Então vejamos o que diz Pascal:
[...] que sua graça reine e domine a natureza;
eque nossas aflições sejam como a matéria de um sacrifício que sua
graça consuma e aniquila para a glória de Deus; e que estes
sacrifício particulares honrem e previnam o sacrifício universal em
que a natureza inteira deve ser consumada pela potência de Jesus
Cristo.
Assim nós tiraremos proveito de nossas próprias imperfeições, já que
elas servirão de matéria a este holocausto.55 (grifo nosso).
Ao que parece, a hipótese é verdadeira, mas a doutrina das partes do
sacrifício, que explicitamos com ajuda de Condren, talvez possa acrescentar
algo de novo para a concepção de História em Pascal.
É um dos grandes princípios do cristianismo que tudo que ocorreu a
Jesus Cristo deve também ocorrer na alma e no corpo de cada cristão:
que como Jesus Cristo sofreu durante sua vida mortal, morreu para
esta vida mortal, ressuscitou com uma nova vida, subiu ao céu, e
senta à direita do Pai; assim o corpo e a alma devem sofrer, morrer,
ressuscitar, subir ao céu e sentar à direita.
Todas estas coisas se realizam na alma durante esta vida, mas não no
corpo.
A alma sofre e morre para o pecado na penitência e no batismo; a alma
ressuscita para uma nova vida no próprio batismo; a alma deixa a
terra e sobe ao céu na hora da morte e senta à direita no tempo em
que Deus o ordena.
Nenhuma destas coisas ocorre no corpo durante esta vida; mas as
mesmas coisas se passam em seguida.
Pois na morte, o corpo morre para sua vida mortal; no Julgamento
Geral ele ressuscitará para uma nova vida; após o julgamento, subirá
ao céu e sentar-se-á à direita. Assim as mesmas coisas ocorrem para o
corpo e para a alma, mas em tempos diferentes; e as mudanças do corpo
só chegam quando as da alma estão completas, quer dizer, na hora da
morte, de modo que a morte é a coroamento da beatitude da alma e o
começo da beatitude do corpo.56
O que salta aos olhos nessa descrição da vivência humana do sacrifício é a
defasagem temporal entre o corpo e a alma. Tal fato já aparecia em Condren, que
o explicava pela impossibilidade ontológica de o corpo aniquilar-se totalmente
neste mundo, visto que não apenas a morte, mas também a ressurreição é
necessária para consumar a destruição do corpo. Pascal, por outro lado,
apresenta uma explicação de caráter ético: " [...] e S. Agostinho nos ensina
sobre este assunto que Deus dispôs as coisas desta maneira de modo57 que se o
corpo do homem morresse e ressuscitasse para sempre no batismo, não se entrasse
na obediência do Evangelho senão pelo amor da vida, ao passo que a grandeza da
fé brilha mais quando se tende à imortalidade pelas sombras da morte".58 O
caminho para a morte, portanto, é o que constitui a vida do cristão, que do
contrário recairia no pecado do orgulho.
Isso pode ser melhor compreendido no interior da teologia jansenista. Ao
explicar o pecado original de Adão, que no estado inocente era cheio de glória,
imortalidade e inteligência para ver a Majestade Divina, Pascal apela
diretamente para o orgulho: "430 [...] Mas não pôde manter tanta glória sem
cair na presunção. Quis tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu
socorro". Contudo, se consultarmos o Discurso sobre a reforma do homem interior
(1640), de Jansenius, certamente lido por Pascal, veremos que o orgulho, como
desejo de independência, é o próprio pecado original na interioridade do homem,
enquanto o ato de ceder à tentação foi apenas a manifestação exterior do pecado
já cometido. Mas Jansenius coloca, entre o pecado de orgulho e o estado de
inocência, uma outra mediação:
[...] mas Adão ainda não estava firme neste estado por esta última
firmeza que lhe teria feito amar esta sabedoria divina a ponto de
esquecer-se de si mesmo, e de esquecer também sua própria grandeza,
comparando-a com a grandeza infinita. De modo que, tendo começado a
perceber sua felicidadee reconhecer o que ela era, encantou-se de sua
beleza, começou a ver-se com prazer,e por este olhar que tornou-
o como o objeto de seus próprios olhos desviou sua visão de Deus para
voltá-la sobre si mesmo, caiu na desobediência.59 (grifo nosso)
A felicidade, portanto, está na origem do orgulho. Mesmo no estado atual, se o
homem, ao vencer as outras concupiscências, se deixar levar pela felicidade da
vitória, recairá no orgulho. Por isso Deus o pune com a dificuldade em
submeter-se à vontade divina: a visão de seus próprios pecados faz o homem ver
de quem deve esperar a correção. Devido ao perigo maior do orgulho, os pecados
tornam-se remédio. O apelo a Jansenius, mesmo através de uma mediação não
reconhecida explicitamente por Pascal, permite-nos ver qual é a necessidade
moral e teológica da defasagem temporal das etapas da alma e do corpo no
sacrifício. A simultaneidade poderia trazer felicidade e orgulho, enquanto a
defasagem dá espaço às "sombras da morte" por onde o homem se sacrifica sem se
regozijar.
Tal explicação adquire nova luz quando lembramos que o sacrifício do cristão é
apenas figura do verdadeiro sacrifício, e que por isso deve obedecer à norma
imposta por esta realidade superior: se há uma defasagem temporal entre as
etapas da alma e do corpo, isso deve explicar-se de algum modo no sacrifício de
Deus encarnado.
A alma inicia seu sacrifício no batismo, no qual é santificada, oferecida,
imolada, e inicia também sua ressurreição, processo que se completará no
instante da morte do corpo, quando a alma ascenderá e será aceita por Deus. Em
outras palavras, a vida do cristão, após o batismo, é a consumação da
destruição da alma, cujas etapas têm início e fim determinados no tempo. O
corpo, contudo, é santificado, oferecido e morto no momento da ascensão da alma
e só terá suas etapas concluídas na eternidade. Se observarmos agora o
sacrifício de Deus encarnado, veremos que ele tem uma duração determinada que
vai do nascimento à ascensão. Onde estaria então a defasagem temporal
correspondente àquela existente entre o corpo e a alma do cristão?
Para responder a isso, é importante lembrarmos que Pascal fala de uma defasagem
das etapas da alma e do corpo, mas não fala de sacrifícios diferentes. Sendo um
só sacrifício,ele deve ter uma só vítima,o cristão, e em conseqüência a
defasagem temporal, revelar-se-á apenas uma medida exterior ao ato, não
constituindo uma verdadeira cisão. Ora, o que ocorre quando se conclui na
ascensão o sacrifício de Deus encarnado? Inicia-se a ação da graça, que
percorre toda a duração dos tempos, antes, durante e depois da encarnação,
constituindo o Corpo Místico dos eleitos. Uma massa de homens, então, é
separada da vida mundana e passa a participar do Corpo Místico, vitalizado pela
graça é a santificação.Veja-se como a concebe Condren:
A Igreja que ele quer salvar por este sacrifício é composta de
diversos membros espalhados em todos os séculos desde Adão até o fim
do mundo. E por sua vida que ele mereceu esta Igreja, isto é, que
para ela mereceu todas as graças que os homens que a compõem já
tiveram, têm presentemente e terão até o dia do juízo final. Por sua
morte tirou o obstáculo que impedia os homens de receber suas graças
porque satisfez à justiça de Deus pelos pecados deles; justiça que,
vendo-os antes como criminosos e devedores insolventes, devia puni-
los e não lhes dar sua graça. Enfim, por sua ressurreição, ou seja,
no estado de sua ressurreição, dá e aplica aos homens a graça que
lhes mereceu por sua vida e que os tornou capazes de receber por sua
morte.60
Ao mesmo tempo, a graça faz com que este Corpo, unificado, ofereça-se ao
Criador é a oblação."É preciso que nossa oblação seja, constante e
irrevogável, como a do Filho de Deus. Não nos devemos dar por um tempo a Deus,
como fazem tantos, mas nos abandonar a Ele para sempre61 Inicia-se agora também
a mortificação deste Corpo para honrar o Criador, mas essa etapa só se
concluirá no juízo final é a imolação." [...] para não mais nos assujeitarmos
ao pecado [...] é preciso ainda trabalhar continuamente para destruir o corpo
do pecado, destruindo todos os seus membros, e continuando e completando em nós
mesmos a morte e o sacrifício que Jesus Cristo ofereceu na cruz, mortificando-
nos sem cessar, arruinando pouco a pouco todas as inclinações do pecado".62
A ascensão de Cristo, portanto, inaugura o sacrifício histórico do Corpo
Místico, sem contudo que Cristo se distinga dele. Jesus Cristo é seu Corpo
Místico, pois é sua cabeça inseparável e também a vida que o alimenta pela
graça. Esta graça só pode agir devido ao sacrifício já concluído do Calvário,
mas, como a vítima é a mesma, os sacrifícios são um só. A defasagem temporal
reaparece entre Jesus Cristo e seu Corpo Místico, que prossegue para além da
Encarnação; porém, como já dissemos, o tempo é apenas um paralelo exterior que
não afeta a unicidade do sacrifício.
A bem da verdade, toda história exterior corresponde a essa medida externa do
sacrifício, ao passo que este é reconduzido para a interioridade. Entenda-se: o
percurso de imolação do Corpo Místico não é construído pelo corpo exterior de
cada cristão (que só se santifica e oferece na morte), mas pela alma, que
conclui sua destruição (imolação e consumação) ainda neste mundo. Aniquilando-
se, afastando-se do corpo e de si mesma, a alma reintegra o cristão ao
Sacrifício Crístico e rende a homenagem devida à soberania divina.
Esse auto-abandono produz a dor que dá à alma a participação efetiva no Corpo
Místico. Pascal não é um formalista, logo não pode ver na salvação uma mera
"atribuição" de inocência. A satisfação exigida pela Redenção deve ser vivida
(ou morrida) por todos em Jesus Cristo, e isso só é possível graças àquela
defasagem temporal entre o Cristo encarnado e seu Corpo Místico. Não que a
exteriorioridade decorrente da defasagem constitua de alguma maneira o Corpo
Místico, mas é em relação a esse exterior que a alma se mutila. Embora a
mortificação seja interna, ela vem de uma negação da exterioridade, seja do
corpo, seja da própria alma, que passa a ver-se como um outro para si mesma e
nega-se. Logo, a história exterior da humanidade será, além de medida exterior
do sacrifício, o próprio objeto renegado por ele. A história interior, como
mortificação expiatória dos cristãos no Corpo Místico, constituir-se-á,
portanto, pela negação da história exterior. O cristão integra o Corpo negando-
se; a História torna-se o percurso interior do Corpo ao ser negada em sua
exterioridade mundana; para o membro ou para o todo, a negação será dolorosa.
498 É verdade que é preciso penar para participar da piedade. Mas
essa dificuldade não vem da piedade que começa a existir em nós, e
sim da impiedade que em nós ainda existe. Se os nossos sentidos não
se opusessem à penitência e se a nossa corrupção não se opusesse à
pureza de Deus, não haveria nisso nada de penoso para nós. Só
sofremos à proporção que o vício, que nos é natural, resiste à graça
sobrenatural. O nosso coração sente-se dilacerado entre esses
esforços contrários. Mas seria bem injusto imputar essa violência a
Deus, que nos atrai, em lugar de atribuí-la ao mundo, que nos retém.
E como uma criança cuja mãe a arranca dos braços dos ladrões e que
deve amar, na dor que sofre, a violência amorosa e legítima de quem
procura a sua liberdade, e só detestar a violência e a tirania dos
que a retêm injustamente [...].
Essa fratura, sentida como uma mutilação, é na verdade uma "desmutilação" pois,
abandonando-se, o homem reencontra sua verdadeira integralidade em Cristo,
desfazendo a mutilação do pecado original que o separou de sua própria
substância.63
Por fim, vale destacar novamente o caráter interior e sacrificial da História
em Pascal. O Corpo Místico, conteúdo da verdadeira História, não é estático e
nem se move apenas para recrutar os eleitos, mas insere-se num movimento
universal de sacrifício que os salvará. Esse movimento é o da destruição
sacrificial, etapa essencial do sacrifício. Daí a importância da História no
processo de expiação do pecado: negar a existência da História seria negar a
possibilidade da real satisfação da dívida, já que a História é o espaço da dor
e do sofrimento por meio dos quais o homem constitui efetivamente o Corpo
Místico de Cristo e por ele conquista a Redenção.