O sensível e o inteligível: Merleau-Ponty e o problema da racionalidade
I
Em 1959, ao passar em revista seu itinerário intelectual, Merleau-Ponty
descreve brevemente a cena filosófica francesa das primeiras décadas do século
XX1. E o que ele ali ressalta é a enorme influência que exercia então o
pensamento de Léon Brunschvicg e, através dele, a "filosofia
reflexiva". Por "filosofia reflexiva", Merleau-Ponty designa o
idealismo moderno que ele faz remontar a Descartes e Kant. Mais que
Brunschvicg, é esse idealismo que ele destaca como aquele que vai estar na
origem da "filosofia da existência", de que ele próprio é um dos
representantes. Em verdade, é "em reação" ao idealismo que a
filosofia da existência se afirma. E ele ali destaca um tema que deve suscitar
toda uma reforma da filosofia, tema que perpassa a totalidade de suas críticas
ao idealismo, desde A estrutura do comportamentoaté O visível e o invisível: a
reflexão. Na versão do idealismo vulgarizada por Brunschvicg, a tarefa da
filosofia consistiria em um esforço de reflexão, de retorno do espírito sobre
si mesmo, a partir do qual o espírito criador revela seus mecanismos:
que se trate de nossa percepção dos objetos que nos envolvem ou que
se trate da atividade dos sábios, em todos os casos, sua filosofia
buscava apreender seja a percepção exterior, seja a construção da
ciência, como o fato de uma atividade de espírito, uma atividade
criadora e construtora do espírito. Era o tema verdadeiramente
constante do pensamento de Brunschvicg, e para ele no fundo a
filosofia consistia exatamente nisso: que o olhar, que nos cientistas
é voltado para o objeto, se volte para o espírito que constrói seus
objetos de ciência2.
A filosofia se coloca em uma perspectiva distinta da perspectiva da percepção e
da do cientista, da perspectiva do senso comum e da perspectiva da ciência.
Estas duas últimas são colocadas em um mesmonível, na medida em que estão ambas
voltadas para o objeto, para o mundo,e não para aquilo que faz o objeto, o
mundo, vir a ser. Nesse sentido, a reflexão idealista não é uma reflexão
qualquer, mas aquela que se conjuga a um outro tema, cerne do idealismo: o tema
da constituição.Pois, se o objeto é constituído pelo espírito, a reflexão
idealista consiste em uma recuperação das pegadas da constituição, em um
esforço em coincidir com um naturante que é suposto desdobrar diante dele o
mundo, como se essa restauração, essa re-constituição fosse a imagem em espelho
da constituição efetiva, como o caminho de Étoile a Notre-Dame é o inverso do
caminho de Notre-Dame a Étoile. Tudo se passa, nessa perspectiva e Merleau-
Ponty não cessará de notar isso , como se a reflexão, para compreender nosso
laço natal com o mundo, procurasse de início desfazeresse laço para refazê-loem
seguida. É essencial à filosofia reflexiva, portanto, nos recolocar aquémde
nossa situação de fato, em um centro a partir do qual fazemos implicitamente
aquilo que ela reconquista explicitamente3. Para Merleau-Ponty, a filosofia
reflexiva tem razão em negar uma relação exterior entre um mundo em si e o
sujeito concebido como processo no interior do mundo. Daí porque é necessário
passarpor ela. Mas resta saber se a via da constituição é a melhor alternativa.
A constituição é, na versão definitiva de Merleau-Ponty, a tese idealista da
relação entre sujeito e mundo, e essa tese implica para ele uma dupla
transposição: a transposição do sujeito encarnado em sujeito transcendental e
da realidade do mundo em idealidade4. Essa dupla transposição delineia o
essencial do seu debate com o idealismo, para além da versão de Brunschvicg.
Daí porque, contra ela, é necessário voltar ao fundamental, à relação entre
sujeito e mundo, e mostrar uma dupla encarnação, a do sujeito e a do mundo. Diz
Merleau-Ponty: "em reação a uma filosofia de tipo idealista, kantiano ou
cartesiano, a filosofia da existência se traduziu para nós, de início, pela
preponderância de um tema inteiramente outro, o tema da encarnação"5.
II
Descartes, antes de Kant, já traz a originalidade que importa ao fenomenólogo
notar, pois já Descartes coloca-se no interiorda percepção: Descartes, nas
Meditações pelo menos, analisa não a visão e o tato como funções do corpo, mas
o pensamento de ver e de tocar. Por isso mesmo, ele pode revelar "o
domínio indubitável das significações"6. Para além dos fantasmas do
realismo (a coisa sensível que nos afeta, o corpo como intermediário da ação
causal dessa coisa), coisa e corpo passam a ser definidos como
"significação coisa" e "significação corpo". A perspectiva
que aí se inaugura é idealista no sentido em que a "indubitável"
significação não vai além do domínio das essências, ela não nos dá mais que a
"estrutura inteligível" dos objetos. Que na percepção o objeto se
apresente sem ter sido querido, que haja nele um "índice existencial"
que o distinga dos objetos do sonho, isso não conduz Descartes a abandonar o
terreno purificado das essências, dando à significação um domínio mais largo:
não, a experiência dessa "existência", dessa "presença
sensível", continua a ser explicada por uma excitação que leva a alma a
pensartal objeto "por um evento corporal ao qual ela 'se aplica' e que lhe
'representa' um evento da existência real"7. A reflexão cartesiana nos
conduz, portanto, a um "universo de consciência" que é, e "em
sentido restritivo, um universo de pensamento": esse universo dá conta do
pensamento de ver, mas "o fato da visão e o conjunto dos conhecimentos
existenciais permanecem fora dele". Descartes, apoiando-se na
matematização da natureza levada a cabo por Galileu, separa o sensível do
inteligível, transformando-o em mero signo da existênciadas coisas8 . O pedaço
de cera não é apreendido pela sensibilidade, nem pela imaginação, mas por uma
"inspeção do espírito": é o entendimento que o concebe, uma vez que
ele foi despojado de suas qualidades sensíveis9. O sensível torna-se então
apenas um signo, separado da significação, que é apreendida, por sua vez, pelo
entendimento: "Descartes não procurou integrar o conhecimento da verdade e
a experiência da realidade, a intelecção e a sensação. Não é na alma, é em Deus
que elas se ligam uma à outra"10. O que faltou a Descartes, segundo
Merleau-Ponty, foi integrar significação e existência não em Deus, como ele o
fez, mas na própria experiência. Pois é essa integração que pode dar à
percepção a autonomia diante do entendimento autonomia necessária, se a
percepção deve ser algo mais que uma simples função sensorial. Ou antes:
autonomia necessária, se a experiência deve recobrar seus direitos face a um
comentário intelectualista.
O comentário kantiano da percepção é diferente, já que não há ali a mediação do
infinito. Kant preserva o domínio das significações, certamente, e portanto a
percepção exige, também aqui, uma "análise interior". Mas, porque o
acordo entre sentido e existência não é mais remetido a Deus, é forçoso
concluir que "é a coisa mesma que eu atinjo na percepção, pois toda coisa
na qual podemos pensar é uma 'significação de coisa' e chamamos justamente
percepção o ato no qual essa significação se revela a mim"11. Ao contrário
do que ocorre em Descartes, a percepção em Kant atinge, ela própria, a coisa: é
com Kant, não com Bergson, assegura Merleau-Ponty, que se inaugura a idéia de
que "a percepção do ponto O está no ponto O". Vem daí que o que em
Descartes era pura aparência, dissociada da essência, em Kant torna-se
fenômeno: "para marcar ao mesmo tempo a intimidade dos objetos ao sujeito
e a presença neles de estruturas sólidas que os distinguem das aparências, nós
os chamaremos 'fenômenos'"12. Mas será um tal fenômeno pergunta-se o
fenomenólogo uma efetiva junção de essência e existência?
Não, certamente não. E aqui aparece uma objeção clássica de Merleau-Ponty,
tantas vezes retomada, que vai valer também contra o Husserl da segunda fase, o
Husserl de Idéias:o fenômeno kantiano, malgrado ultrapasse a pura aparência
cartesiana, não integra a significação à existência, porque essa significação é
produto de uma consciência constituinte. A análise do ato de conhecer em Kant,
diz Merleau-Ponty, conduz a um "pensamento constituinte ou naturante que
subtende interiormente a estrutura característica dos objetos"13. Noutras
palavras, Kant toma a consciência como "meio universal" e a percepção
torna-se, por isso mesmo, "uma variedade da intelecção". Tudo se
passa para Merleau-Ponty como se, diante de uma consciência naturante, esses
conteúdos empíricos, essas coisas inertes que seriam as sensações puras,
acabassem por se tornar uma "noção limite", o que anularia de vez a
"consciência sensível": uma análise que desejasse isolar o conteúdo
percebido nada encontraria,
porque toda consciência de alguma coisa, desde que esta coisa [...] é
identificável e reconhecível [...] pressupõe, através da impressão
vivida, a apreensão de um sentido que não está contido nela, não é
dela uma parte real. A matéria do conhecimento torna-se uma noção
limite posta pela consciência em sua reflexão sobre si mesma e não um
componente do ato de conhecer14.
Que se frise bem: na versão merleau-pontiana do idealismo kantiano, a
consciência se apresenta como naturante, não por relação ao ser do mundo, mas
por relação à significação:o seu correlato não é o ser, mas o fenômeno; e se
esse fenômeno se distingue da pura aparência, é justamente porque ele envolve a
significação, de que a aparência é desprovida. No entanto, nota Merleau-Ponty,
diante desse naturante o conteúdo tem necessariamente que se dissolver, pois a
significação, vinda da consciência, não é produto de uma atividade lógica, de
um simples juízo, e a percepção, portanto, não é uma simples
"interpretação"15 . Ela não pode mesmo ser uma interpretação, pois
não há, não pode haver nenhum dado prévio, nenhuma premissa sobre a qual o
juízo se aplique: a sensação, a impressão vivida, já pressupõe a apreensão de
um sentido e portanto o trabalho da consciência. Daí porque Merleau-Ponty
inverte a posição desse dado supostamente originário:
a pura sensação [a premissa do juízo] definida pela ação dos
estímulossobre nosso corpo é o "efeito último" do
conhecimento, em particular do conhecimento científico, e é por uma
ilusão, aliás natural, que a colocamos no começo e acreditamos que
seja anterior ao conhecimento [...] Pertence ao domínio do
constituído e não ao espírito constituinte [...] Para a própria
consciência, como ela seria um raciocínio se não existem sensações
que possam servir de premissas, como ela seria uma interpretação se
antes dela não há nada para ser interpretado?16.
A partir daqui, a matéria tem que passar ao "limite" e tornar-se
produto de uma ilusão retrospectiva, e o criticismo, finalmente, um idealismo
transcendental, pois tudo,no final das contas, deve passar ao domínio do
constituído. A perspectiva transcendental supera assim toda passividade, toda
finitude; por isso, o sujeito transcendental é uma versão, entre outras, do
"sujeito de sobrevôo". Na versão merleau-pontiana do idealismo, eu
não poderia me perceber "envolvido por meu corpo" se eu não pudesse
pensaressa relação e, por isso mesmo, escapara essa inerência; eu não poderia
me saber situado no mundo se estivesse realmentesituado nele: "eu me
limitaria a estaronde estou como uma coisa, e, se sei onde estou e me vejo no
meio das coisas, é porque sou uma consciência, um ser singular que não reside
em nenhum lugar e pode tornar-se presente a todas as partes em
intenção"17. A percepção não está em parte alguma, como uma coisa, senão
ela não poderia fazer as coisas existirem para ela, a percepção é apenas
pensamento de perceber. Assim, a encarnação não oferece nenhum "caráter
positivo", e pela simples razão de que a consciência transcendental força
a matéria, a afecção, a consciência sensível, a passar ao limite: "se uma
consciência constituinte universal fosse possível, a opacidade do fato
desapareceria"18. Tudo se passa enfim como se o acordo entre o sensível e
o inteligível não pudesse ser mantido, na medida em que ele se faz sob a égide
do entendimento, como se o equilíbrio entre o "dado" e o
"pensado" não pudesse ser sustentado. Em suma, a versão kantiana
desse acordo que outrora se fazia em Deus ainda não é suficiente. Dizer,
portanto, como Merleau-Ponty o faz, que a consciência transcendental kantiana é
naturante não significa dizer que Kant (nem, analogamente, o "segundo
Husserl") pretendesse afirmar uma consciência naturante do ser do mundo,
mas apenas, como lhe é próprio, de uma significação do mundo entretanto, é um
tal acordo que se revela impossível, o acordo entre o dado e o pensado, a
matéria e a forma, a passividade e a atividade, pois ele é pensado a partir de
uma consciência que se afirma como "meio universal", como fonte da
significação. Assim, o criticismo procuraria resolver "os problemas postos
pelas relações entre a forma e a matéria, entre o dado e o pensado, entre a
alma e o corpo, concluindo-se em uma teoria intelectualista da
percepção"19. Por aqui, pode-se medir as distâncias que separam Merleau-
Ponty daquela outra interpretação que vai apontar justamente em Kant o
aparecimento de um sentido positivoda finitude. A estratégia de Merleau-Ponty,
ao contrário, consiste em incluir Kant em um prejuízo geral sobre o qual
falaremos adiante que é tambémo do dogmatismo.
Verdade que Merleau-Ponty pretende ver essa filosofia de inspiração criticista
mais em Brunschvicg do que no próprio Kant. Aliás, já no debate acima, que
pretende mostrar uma teoria intelectualista da percepção, a conclusão é
remetida a Brunschvicg. É ele, não Kant, é o espiritualismo francês que,
voltando-se para a percepção, pretende fazer dela uma "ciência
iniciante", "uma primeira organização da experiência que só se
conclui pela coordenação científica"20. Pois, afinal, se, segundo Merleau-
Ponty, a segunda edição da Crítica da razão pura desequilibra o acordo entre o
idealismo transcendental e o realismo empírico em favor do idealismo
transcendental, é verdade também que essa leitura não esgota o interesse de
Merleau-Ponty por Kant. Bem mais que a primeira, interessa a Merleau-Ponty a
terceira Crítica, é ela que "contém indicações essenciais acerca dos
problemas" de que trata o fenomenólogo. E que problemas são esses?
III
Não é de estranhar que a referência à Crítica do juízo apareça justamente no
momento em que, contra o transcendental da filosofia de "inspiração
criticista", Merleau-Ponty opõe a estrutura que nos é revelada pela
Gestalttheorie.No prefácio à Fenomenologia da percepção,Merleau-Ponty retoma a
comparação entre a primeira e a terceira Críticas,procurando frisar ali que
justamente na terceira CríticaKant descobre um acordo entre o sensível e o
conceito, entre mim e outrem, que já não faz do sujeito "o pensador
universal de um sistema de objetos rigorosamente ligados, a potência que
sujeita o múltiplo à lei do entendimento"; antes, ao contrário, esse
sujeito se descobre como "uma natureza espontaneamente conforme à lei do
entendimento", de modo que a unidade, isto é, a significação não é
simplesmente posta, mas se faz em nível antepredicativo21. Ora, é justamente
esse modelo que Merleau-Ponty entende retomar através da estrutura, pois esta
se revela a "junção de uma idéia e de uma existência indiscerníveis, o
arranjo contingente pelo qual os materiais se põem diante de nós a ter um
sentido"22. Também aqui, o acordo entre o sensível e o conceito é
"livre e indeterminado", ainda que, por ser veiculado pela estrutura,
por já não se limitar ao juízo estético, ele se espalhe por toda a experiência,
de modo que é toda a atividade categorial que se vê condicionada por ele, e
portanto é todo o conhecimento que repousa nele. É no mundo percebido,
finalmente, que se realiza um tal acordo. Ora, era baseado nessa virtude da
forma que Merleau-Ponty fazia a defesa da Gestalttheorieface às críticas que
Husserl dirigia a ela, quando a colocava ao lado da psicologia atomista do
século XIX. Para Husserl, com efeito, não há diferença de princípio entre a
consciência tomada como soma de átomos psíquicos e a consciência vista como
totalidade na qual os elementos não têm existência separável. De um modo ou de
outro, a consciência é ainda uma coisa,e não uma consciência. Ora, essa crítica
vai conduzir Husserl a reelaborar o conceito de totalidade de tal modo que a
consciência apareça "como uma totalidade sem nenhum equivalente entre as
coisas"23. Ou, mais precisamente, essa crítica prepara justamente aquilo
que Merleau-Ponty quer evitar: a redução a uma consciência transcendental pura.
Daí porque ele chama a atenção para aquele outro aspecto da forma, para sua
"verdade fenomenológica", que Husserl teria deixado escapar. E este
aspecto consiste justamente na junção da idéia e da existência, do inteligível
e do sensível, o que se vê pela "organização intrínseca" da forma,
pela ausência, nela, de "eventos exteriores uns aos outros, sem laço
interno". Quer dizer, essa nova totalidade, que não se confunde com um
agregado, implica uma significaçãoque não lhe vem de fora, que lhe é imanente;
daí justamente porque não é mais necessário o recurso a uma subjetividade ou
a qualquer outro princípio que seria a fonte desta significação. A forma traz
um sentido que não éproduto de uma atividade do espírito sobre materiais
exteriores, ela implica uma "organização espontânea para além da distinção
entre a atividade e a passividade"; esse sentido é "autóctone",
ele advém da organização interna dos elementos24, o que significa dizer que, no
interior dela, tais elementos não têm existência separável, não são ligados de
fora. A forma vai implicar então uma intencionalidadedistinta daquela que
resulta de uma pura consciência, da intencionalidade de ato "que faz o
mundo repousar na atividade sintética do sujeito"25, que faz do Espírito a
fonte da significação26. A forma, porque envolve uma significação imanente, uma
organização espontânea, pode prescindir da passagem a um sujeito
transcendental, doador de sentido embora ela envolva um sujeito, mas que não
é fonte de significação. O que Merleau-Ponty vê na Gestalttheorieé portanto,
antes de mais nada, uma alternativa ao idealismo, inclusive ao idealismo
husserliano.
A significação imanente da forma a aproxima do modelo da terceira
Crítica,aquele que aponta um livre acordo entre o sensível e o conceito. De
modo que, se é verdade, de um lado, que Kant, na história traçada por Merleau-
Ponty, pertence à galeria dos intelectualistas, ao lado de Descartes, é verdade
também, de outro lado, que o próprio Kant aponta a superação do modelo
intelectualista na terceira Crítica(como Merleau-Ponty pretende fazê-lo por
relação ao Husserl intelectualista),na medida em que ele aí descobre um juízo
"que faz nascer no objeto individual seu sentido e não lhe traz
inteiramente feito"27. Merleau-Ponty cita a Crítica do juízo:"(a
faculdade de julgar) 'deve portanto ela mesma dar um conceito, que na realidade
não faz conhecer coisa alguma, e que serve de regra apenas para ela, mas não de
regra objetiva à qual adaptar seu juízo; pois agora seria preciso uma outra
faculdade de julgar para poder discernir se se trata ou não do caso em que a
regra se aplica"28. Kant abre um domínio em que a significação não é ainda
exterior ao sensível, não é ainda posta por uma consciência naturante, mas
"nasce no objeto individual" o que, no modelo merleau-pontiano, vai
conduzir à autonomia da percepção por relação a uma consciência determinante, a
uma consciência que teria, ela, "uma função universal de organização da
experiência"29. Kant, finalmente, abre a via de um projeto genético, de
busca da "gênese do sentido"30 projeto que será o de Merleau-Ponty.
Ora, mas justamente aí Merleau-Ponty não se afasta, ainda uma vez, de Kant, por
pretender flagrar, na percepção,"a inteligibilidade em estado
nascente"31? Justamente isso não aponta para um acordo diferente mesmo do
da terceiraCrítica? Não é afinal no mínimo questionável que a "Analítica
do belo" nos ofereça algo como a junção de uma idéia e de uma
existência,que o acordo aí em questão nos mostre um sentido nascendo em um
objetoindividual?
Parece que sim, pois, afinal, o sentimento de prazer e desprazer não designa
absolutamente nada no objeto, apenas a maneira pela qual o sujeito sente-se a
si próprio quando é afetado pela representação32. Essa redução ao elemento
subjetivo parece ausente da percepção merleau-pontiana, que pretende flagrar no
percebido a junção da idéia e da existência. E é essa posição de existência que
parece suspensa em Kant, na medida em que o prazer não é determinado pela
existência física do objeto: "se a questão é se algo é belo, não se quer
saber se, para nós ou para quem quer que seja, importa algo a existência da
coisa, ou sequer se pode importar; mas sim como a julgamos na mera
consideração"33. A redução ao subjetivo busca neutralizar o fato,que passa
a exprimir apenas "um direitoque a análise deve reencontrar"34, de
modo que o sujeito transcendental, seja ele sujeito reflexionante ou sujeito de
entendimento, permanece sempre "um protocolo de condições de possibilidade
(da beleza ou da objetividade), e é impossível, em última instância, encontrar
na terceira Críticaa doutrina do sujeito encarnado que aprofundaria a do
sujeito puro [...]"35. Se essa leitura é mais adequada ao texto kantiano,
então o acordo de que fala Merleau-Ponty não se passa, em Kant, lá no mundo
percebido, ou melhor, na relação sujeito-objeto; ele não envolve, em suma, a
existência da coisa; daí porque a desconfiança kantiana, frisa Lebrun, "em
relação a toda ontologia prévia"36; antes, ao contrário, o problema, em
Kant, da relação sujeito-objeto "tende a interiorizar-se", de modo
que ela "se converte no problema de uma relação entre faculdades
subjetivas que diferem em natureza" (sensibilidade, entendimento,
imaginação)37 o que é substancialmente diferente do acordo buscado por
Merleau-Ponty, em que o sentido se asssenta no fato, entrelaça-se ao sensível;
já em Kant "é sempre uma espontaneidade escondida que o inventa"38.
Tratar-se-ia então, para Kant, não apenas na primeira mas também na terceira
Crítica,de "recensear as condições sem as quais nossas pretensões de
fatoseriam injustificáveis"39, e não, como supõe Merleau-Ponty, de
"definir nossos poderes de conhecimento por nossa condição de fato"40
leitura que Merleau-Ponty supõe válida, evidentemente, apenas para a terceira
Crítica,na medida em que ele vê nesta última a superação do intelectualismo da
primeira.
Assim, o modelo de Merleau-Ponty parece mais próximo do da Gestalttheorie do
que modelo kantiano, o que é ressaltado na defesa que ele faz de Koffka face às
críticas de Husserl. Koffka tinha razão, aos olhos de Merleau-Ponty, em reagir
às acusações de Husserl de que a Gestalttheorieé "psicologista": se é
verdade que não se pode fundar a lógica, válida universalmente, em atos
psíquicos individuais, isto é, se é verdade que não se pode fundar o direito no
fato, e se o psicologismo é a tentativa de fazê-lo, então, reagia Koffka, a
Gestalttheorie não épsicologista. Pois a crítica de Husserl se assenta no
pressuposto de que as relações psicológicas são meramente fáticas ou externas.
No entanto, como se trata de uma forma, os processos que compõem tal forma
"são organizados segundo relações intrínsecas ou internas" e, por
isso mesmo, lembra Merleau-Ponty, "psicologia e lógica, existência e
subsistência, realidade e verdade, não pertencem a domínios ou universos
racionais totalmente distintos, entre os quais não haveria nenhuma relação
inteligível"41. A crítica de Husserl incidiria sobre a tentativa de fundar
a significação em fatos despidos de qualquer significação; daí a necessidade,
em Husserl, de despsicologizar o sujeito fundador42. A forma, entretanto, é já
impregnada de significação, ela é "junção de idéia e existência" e,
por isso, não há o problema da passagem do simples fato ao direito, pois já não
lidamos com dois universos radicalmente distintos, entre os quais não haveria
"relação inteligível".
Contra todo idealismo, Merleau-Ponty sustenta, portanto, as virtudes da forma.
No entanto, a Gestalttheorie,também ela, termina por incidir em psicologismo,
na medida em que ela realizaa forma, em que a toma como um "acontecimento
da natureza"43: a Gestalttheorie recai em postulados realistas e deixa
escapar a "verdade fenomenológica" da forma o que, para Merleau-
Ponty, não é nada surpreendente, já que se trata ali de uma psicologia, e não
de uma autêntica filosofia, isto é, de vez que se trata ali de objetivar certos
fatos empíricos, e não de mostrar a gênese do sentido e os fundamentos da
racionalidade. Tudo se passa como se a psicologia da forma não tivesse sabido
ver nesta todo o seu alcance "filosófico". Ela será ainda
"psicologista", o que significa dizer: ainda presa de
"postulados realistas". Apenas na filosofia, isto é, apenas para além
da psicologia,esse alcance se revela e a integração pode ser feita: "a
forma só pode ser plenamente compreendida e todas as implicações dessa noção só
podem ser tiradas por uma filosofia que se libertaria dos postulados
realistasque são aqueles de toda psicologia"44. Pois, afinal, o ponto de
vista da psicologia é aquele em que o comportamento aparece como "um
acontecimento do mundo, [...] realmente contido em um setor do espaço e em um
segmento do tempo", em que a forma aparece como "uma causa ou uma
coisa real"45. Ora, ao fazer isso, a Gestalttheoriecompromete o que para
Merleau-Ponty é o maior benefício da forma: o de que ela nos traz um tipo de
unidade, de totalidade, que não pode ser encontrada em um ser da natureza46.
Será esse o prejuízo da teoria da forma: "ao invés de se perguntar que
tipo de serpode pertencer à forma" tarefa crítica da filosofia , ela
simplesmente coloca a forma "no número dos acontecimentos da
natureza". Com isso, a Gestalttheorieé vítima, também ela, do prejuízo
objetivista, prejuízo compreensível, uma vez que ela é ciência.Caberá à
filosofia fazer aquela indagação e superar o prejuízo objetivista inerente a
toda ciência; apenas ela, não comprometida com postulados realistas, pode
recuar um passo e perguntar que tipo de ser é esse que subverte as categorias
clássicas de sujeito e objeto e se apresenta como uma mistura de ambos em vez
de simplesmente lançá-lo no mundo como ser real. Uma filosofia da forma
precisará, por isso, antes de mais nada, abandonar todo postulado realista
ainda que se postulem não átomos, mas estruturas complexas e perguntar pelo
tipo de ser da forma, em vez de tomá-la como ser real. Para Merleau-Ponty, é só
então que a verdadeira "significação filosófica" da forma vai se
revelar. Daí porque o problema de Merleau-Ponty está para além de qualquer
psicologia: "[...] se a unidade do mundo não está fundada na unidade da
consciência, se o mundo não é o resultado de um trabalho constitutivo, de onde
provém que as aparências sejam concordantes e reúnam-se em coisas, em idéias,
em verdades por que nossos pensamentos errantes, os acontecimentos de nossa
vida e os da história coletiva pelo menos em certos momentos adquirem um
sentido e uma direção comuns e se deixam apreender sob uma idéia? Por que minha
vida consegue retomar-se a si mesma e projetar-se em falas, em intenções, em
atos? Este é o problema da racionalidade"47.
IV
A teoria da forma põe em relevo a questão relativa a um ser que ultrapassa os
dualismos clássicos e, nessa medida, ela permite retomar o problema da
racionalidade de maneira mais radical do que o fizera o idealismo. A partir
daqui, Merleau-Ponty poderá apontar o prejuízo radical que se esconde por trás
deste último, aquilo que lhe passa inteiramente despercebido. O idealismo
permanece numa atitude "dogmática", diz ele48, justamente porque
aceita sem mais a idéia do verdadeiro e a idéia do ser, porque não viu que a
tarefa da filosofia é fazer a "genealogia do ser"49; daí porque parte
diretamente para a busca das condições que o tornam possível, sem questionar
sua origem. Não é de estranhar que a percepção passe a ser construída pela
junção dessas condições de possibilidade, quando, em verdade, é nela que
flagramos o momento originário e, por isso, é dela que deve se ocupar a
filosofia que retoma radicalmente o problema da racionalidade: "a
percepção como encontro com as coisas naturais está no primeiro plano de nossa
pesquisa, não como uma função sensorial simples que explicaria as outras, mas
como arquétipo do encontro originário"50.
Já na Estrutura do comportamento,Merleau-Ponty se impunha a tarefa de realizar
uma fenomenologia da percepção. E essa tarefa se impunha porque a percepção, ou
mais especificamente, o mundo percebido, fazia as vezes daquele originário, da
instância a partir da qual se pode ver "nascer o sentido", instância
"anterior ao número, à medida, ao espaço, à causalidade" e através da
qual deve ser "apreendido o mundo intersubjetivo de que as ciências, aos
poucos, precisam as determinações"51. Em O primado da percepção,Merleau-
Ponty precisa um pouco mais o que ele tanto espera da percepção essa que, na
feliz expressão de Frédéric Worms, é a "via real" de Merleau-Ponty. E
acrescentaríamos: é a "via real" que leva ao originário, ao
primitivo, razão pela qual ela "não é uma questão local, mas envolve todas
as dimensões da experiência"52. "Falando em um primado da
percepção", diz Merleau-Ponty,
jamais pretendemos dizer (o que seria voltar às teses do empirismo)
que a ciência, a reflexão, a filosofia fossem sensações transformadas
[...] Exprimíamos nesses termos que a experiência da percepção nos
repõe em presença do momento em que se constituem para nós as coisas,
as verdades, os bens, que ela nos entrega um logosem estado nascente,
que ela nos ensina, para além de todo dogmatismo, as condições
verdadeiras da objetividade [...] Não se trata de reduzir o saber
humano ao sentir, mas de assistir ao nascimento desse saber, de
torná-lo para nós tão sensível quanto o sensível, de reconquistar a
consciência da racionalidade, que se perde acreditando que ela vai
por si mesma, que, ao contrário, a reencontramos fazendo-a aparecer
sobre um fundo de natureza inumana53.
E tampouco o recuo ao fenômeno deve nos fazer crer que a percepção se mova em
um ambiente de indeterminação absoluta, que o mundo vivido seja sem qualquer
relação com o mundo exato da verdade ao contrário, o recuo ao pré-objetivo
deve justamente mostrar a gênese do mundo objetivo, ou, mais precisamente, deve
mostrar "a passagem do indeterminado ao determinado"54, a passagem
efetiva e não meras condições de possibilidade do ser determinado. De modo que
já na percepção flagramos essa passagem. Mais ainda: segundo Merleau-Ponty, a
própria ordem pré-objetiva não apenas se "fixa" realizando-se na
instauração da objetividade lógica, mas de fato é por essa instauração que ela
começa a existir. Quer dizer, do mesmo modo que a idéia de uma gênese da
verdade nos faz recuar a um mundo pré-objetivo, também o mundo pré-objetivo não
seria senão um fluxo ininterrupto sem a objetivação de modo que, no limite,
não haveria consciência de coisa alguma55. Assim, o método indireto partir
dos seres (ou das objetividades) para chegar ao ser assenta-se na natureza do
ser, que sempre se objetiva e, por isso mesmo, é uma lei da ontologia ser
indireta56. O prejuízo do mundo determinado não vem portanto da ciência; ao
contrário, ele se assenta na própria percepção, é a percepção que me leva à
"obsessão pelo ser"57, fazendo-me esquecer o perspectivismo de minha
experiência efetiva pois é a própria percepção que se orienta para um em
sicomo para seu fim, é ela que se dá como percepção de um ser, e não por outra
razão o objetivismo não acreditou necessário fazer uma genealogia do ser. De
modo que desvelar os fenômenos é ir "contra o movimento natural do
conhecimento, que atravessa cegamente as operações perceptivas para ir
diretamente ao seu resultado teleológico"58, é inverter esta inversão
natural inscrita na própria percepção59. Daí porque é fácil ao senso comum
dizer o que ele percebe: uma mesa, uma folha de papel, um livro etc. Mas desde
que se recua aos fenômenos, desde que se recua do objeto percebido à percepção
efetiva, "nada é mais difícil do que saber ao certo o que nós
vemos"60. Mas é verdade também que atravessar as operações perceptivas não
as anula, não as torna inexistentes, e que portanto a objetividade não deixa de
ter sua origem no pré-objetivo. É o esquecimento que nos faz crer que a
percepção é percepção de um ser, lançando no silêncio a história de sua
constituição61, é ele que nos leva a pôr a determinação plena, o objeto que,
uma vez constituído, aparece então "como a razão de todas as experiências
que dele tivemos ou que dele poderíamos ter"62. É o esquecimento da
história dessa constituição que permite, por sua vez, o desenvolvimento do
prejuízo do mundo e faz a percepção aparecer como uma "ciência
iniciante", no sentido em que também ela se pautaria por determinações
lógicas, como se a coisa, apresentando-se como o invariante da percepção,
correspondesse ao conceito na ciência enquanto "meio de fixar e objetivar
os fenômenos"63.
Ora, a história que o fenomenólogo entende retomar é justamente essa, a que nos
leva à objetividade, é a história de sua constituição, objetividade que vem ao
mundo quando a percepção "refaz os seus passos, os contrai e os fixa em um
objeto identificável, passa pouco a pouco do 'ver' ao 'saber', e obtém a
unidade de sua própria vida"64, quando ela retoma, "a cada instante,
sua própria história na unidade de um novo sentido"65 "novo"
porque essa unidade idêntica foi constituída, e não dada de início. Justamente
aí reside a "dimensão constitutiva" da percepção, constitutiva da
objetividade, o que exigirá certamente uma nova intuição do tempo capaz de
responder a essa retomada direta do passado que permite constituir uma unidade,
uma identidade retomada que, justamente por concluir aqui em uma
objetividade, termina por "contrair" a espessura da duração escoada,
por "reunir" o que foi repartido em "vários pontos do
tempo", reunião e contração que consistem justamente na passagem à
objetividade: "quando eu me ponho a perceber esta mesa, contraio
resolutamente a espessura da duração escoada desde que a olho, saio de minha
vida individual apreendendo o objeto como objeto para todos, reúno então de um
só golpe experiências concordantes mas separadas e repartidas em vários pontos
do tempo"66. A história da constituição é a história da passagem da
multiplicidade à identidade. Assim, em vez de dizer que a percepção é uma
"ciência iniciante", o que lança sobre ela objetividades que em
verdade ela constitui, será preciso dizer, ao contrário, que a ciência "é
uma percepção que esquece suas origens e se crê acabada"67, já que não
apenas a evidência da idéia tem mesma história que a da percepção, mas é uma
história que a ciência ignora68. O projeto de Merleau-Ponty é retomar esta
história, lançar luz sobre ela, sobre o que permanece em silêncio, tornando a
filosofia "não um certo saber, mas a vigilância que não nos deixa esquecer
a fonte de todo saber"69. Não se trata de competir com a ciência, mas de
situá-la só assim se vai até as raízes do problema da racionalidade. O
idealismo não viu que para ultrapassar o dogmatismo seria necessário voltar a
esse momento originário e "desvelar a operação que torna [a percepção]
atual ou pela qual ela se constitui"70; o seu erro, o seu prejuízo maior,
o que o leva a nos esconder o "núcleo vital da consciência
perceptiva" é justamente o fato de ele "buscar as condições de
possibilidade do ser absolutamente determinado"71, passando em silêncio
"o momento decisivo da percepção" (grifo nosso), que é o
"surgimento de um mundo verdadeiroe exato"72, a passagem do
indeterminado ao determinado.
V
Vimos que a tese idealista da relação entre sujeito e mundo implica para
Merleau-Ponty uma dupla transposição: a transposição do sujeito encarnado em
sujeito transcendental e da realidade do mundo em idealidade. Em 1938, a
encarnação passa por uma reformulação das noções de corpo e alma, reformulação
facultada pela noção de formada Gestalttheorie. E Merleau-Ponty já apontava ali
que esse problema, na perspectiva criticista, perspectiva que é a da
consciência absoluta, "parece desaparecer"73. Contra a filosofia
crítica, Merleau-Ponty já insistia em 1938 em passar ao largo de uma reflexão
que tem por fim suprimir minha inerência a meu corpo; essa reflexão é uma
espécie de "via curta", de atalho, que faz perder o essencial: a
minha encarnação e a do mundo. Daí porque ele conclui A estrutura do
comportamento lançando um projeto de trabalho segundo o qual "seria
necessário definir novamente a filosofia transcendental de maneira a integrar
nela o fenômeno do real"74.
A Fenomenologia da percepçãodá o primeiro passo na consecução desse projeto.
Será ainda uma reflexão que vai nos conduzir ao pré-objetivo, ao irrefletido,
mas uma reflexão que não suprima a opacidade e portanto não nos instale em um
ego cogito. A essa nova reflexão, Merleau-Ponty vai denominar
"radical", precisamente porque ela tem em vista a encarnação, porque
ela revela um sujeito originário que não é ainda consciência (mas tampouco é
mecanismo). Daí o interesse de Merleau-Ponty pela patologia: "nossa
inteligência de nós mesmos deve muito mais ao conhecimento exterior do passado
histórico, à etnografia, à patologia mental, por exemplo, do que à elucidação
direta de nossa própria vida"75. Quando o intelectualismo afirma que eu
não poderia me perceber "circundado por meu corpo" se eu não pudesse
pensar essa relação e assim escapar a ela no momento mesmo em que a
represento76, ele torna o corpo uma idéia e rompe com a opacidade. Para
Merleau-Ponty, ao contrário, a "reflexão radical" deve ser consciente
"de sua própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é sua
situação inicial, constante e final"77. É-lhe essencial reconhecer-se como
"reflexão-sobre-um-irrefletido"78 em vez de ultrapassá-lo e
dissolvê-lo. Daí porque a análise da doença: a doença é o recurso que nos
coloca diante do irrefletido,ou, se se quiser, diante do pré-objetivo no
caso, diante do sujeito encarnado, o verdadeiro sujeito de percepção.
Ora, malgrado uma diferença de método e de alcance entre A estrutura e a
Fenomenologia, elas estão de acordo no essencial, no que se refere à
encarnação. A novidade da Fenomenologiaé a introdução do tempo para pensar a
relação entre o inferior e o superior, o corpo e a alma, relação que A
estruturapensa apenas em termos de forma (formas física, vital e humana)79. É
então que Merleau-Ponty consegue ligar interiormente o "psíquico" e o
"fisiológico". O inferior, a forma física, aquilo sobre o qual a
existência pessoal vai se assentar tornar-se-á o passado,o sedimentado,
devidamente engrenado à existência pessoal, que é a forma superior, e formando
com ela um únicoser. O "corpo atual", instalado no "presente
vivo" e voltado para o mundo, para o porvir, arrasta atrás de si o
sedimentado, que é o "corpo habitual", ambos, corpo habitual e corpo
atual, passado e presente, engrenados e orientados, prospectivamente, para um
pólo intencional. Daí o esforço de Merleau-Ponty em mostrar que esse
sedimentado não é uma massa inerte no fundo de nossa consciência, que ele, ao
contrário, se "alimenta secretamente" de meu presente80, formando com
este uma unidade que não é mais a de substâncias ontologicamente distintas.
Agora, a união corpo e alma, em si e para si, é a união de um passado que não é
jamais completamente transcendido, que, por não ser ultrapassado completamente,
é "assumido" e responde a determinadas situações e permanece, de
algum modo, presente. O corpo habitual é essa "quase-presença" do
passado; não é uma imagem que podemos evocar, não são traços gravados no corpo,
não é, portanto, uma presença objetiva; essa existência habitual, anônima, pré-
pessoal, não é uma coisa inerte, como o em si, mas esboça, também ela,o
movimento de existência o que só uma descrição da percepção como forma
temporal permite mostrar. O meu presente assume o corpo habitual e o reintegra
à existência pessoal, de modo que mesmo os reflexos não estão delineados em um
fundo inerte, mas, também eles, "têm um sentido", também eles
manifestam "o estilo de cada indivíduo"81, na medida mesma em que
eles se inserem em uma situação presente, ou melhor, em que são retomados por
uma situação presente, que, por sua vez, é voltada para o porvir. O meu passado
só é passado porque é "retomado em um novo movimento"82, porque é
assumido pelo presente. E esta relação é de mão dupla. O sedimentado, embora
retomado pelo presente, é o solo sobre o qual se estabelece a consciência
presente: "a consciência conserva atrás de si as sínteses efetuadas, elas
ainda estão disponíveis, poderiam ser reativadas"83, de modo que "a
consciência só é consciência de algo arrastando atrás de si seu rasto, [...]
para pensar um objeto, é preciso apoiar-se em um 'mundo de pensamento'
precedentemente construído"84. É essa a ambigüidade acarretada pela
introdução do tempo como forma da experiência perceptiva: de um lado, o
sedimentado se alimenta de meu presente, exprime a energia de meu presente, já
que é retomado por ele; o ser no mundo, a partir de sua situação presente, dá
sentido aos reflexos e assim os "funda"; de outro lado, e
inversamente, é verdade também que meu presente se entrega aos reflexos, se
assenta nesse solo constituído, e assim, para terminar, se funda neles85. Não
se compreende o sedimentado sem o presente que o retoma, nem o presente, que é
voltado para o porvir, sem um solo sobre o qual ele se funda, isto é, sem o
sedimentado.
O meu corpo manifesta portanto uma ambigüidade. O corpo habitual e o corpo
atual, a existência anônima e a existência pessoal aparecem como um único ser
na medida em que são ambos orientados para um pólo intencional ou para um mundo
o que significa dizer que eles só aparecem a uma descrição da experiência
efetiva de perceber. Eles se unificam nessa orientação. Pois, enfim, o corpo
habitual, a existência anônima e geral é "assumida" pela existência
pessoal e "reintegrada" a ela: o sedimentado é "retomado"
pela situação, de modo que ele se alimenta do presente. E, reciprocamente, a
existência pessoal nada seria se não dispusesse de nenhum meio de se efetuar,
se não tivesse um solo sobre o qual se assentar. Daí porque Merleau-Ponty vai
insistir que o corpo não é uma tradução, no exterior, de um estado interior,
daí porque o corpo não manifesta, fora, o que se passa na consciência o
"interior" e o "exterior" se ligam aqui intimamente. De
modo que, se o corpo exprime o espírito, "não é como os galões significam
a graduação ou como um número designa uma casa". Antes, ao contrário, o
signo deve ser "habitado" pela significação, como o corpo pela alma,
"ele é de certa maneira aquilo que significa"86. É o tempo, portanto,
a chave última da relação interna entre signo e significado, é o tempo a chave
da encarnação que a forma já anunciava e ele traz consigo essa ambigüidade
desconhecida pelo objetivismo. A unidade entre existência anônima e existência
pessoal, entre corpo e existência nos assegura aqui o modelo de uma estrutura
em que "o expresso não existe separado da expressão e em que os próprios
signos induzem seu sentido no exterior"87 pois o corpo exprime a
existência não como um número designa uma casa, mas na medida em que ela se
realizanele. E porque se trata aqui de unidade, torna-se impossível determinar
o que se deve ao eu natural e o que se deve ao eu pessoal, ao corpo e ao
espírito, à natureza e à liberdade antes, ao contrário, essa estrutura se
furta a toda determinação, a toda univocidade: "o equívoco", diz
Merleau-Ponty, "é essencial à existência humana"88.
VI
É ainda o tempo que vai permitir a Merleau-Ponty comentar a segunda encarnação
de que falamos, a do mundo percebido. Lembremo-nos do que dizíamos atrás,
quando notávamos a objeção de Merleau-Ponty à tese idealista da
constituição.Ali, o filósofo apontava não só a transposição do sujeito
encarnado em sujeito transcendental, mas também a transposição da realidade do
mundo em idealidade, em cogitatum.É essa segunda transposição que devemos
discutir agora, de modo que a encarnação que queremos apontar não diz respeito
apenas ao sujeito, mas também ao sensível, à coisa, de que o fenomenólogo
costuma dizer que é dada em carne e osso na percepção.
Uma teoria do corpo implica numa teoria do sensível. É que o corpo, não sendo
mais o corpo objetivo, arrasta "os fios intencionais que o ligam ao seu
ambiente" e nos revela não só o sujeito que percebe, mas também o
"mundo percebido"89. É o que permitirá a Merleau-Ponty pensar a
síntese perceptiva sem um ato efetivo de ligação, sem uma potência ligante: o
meu corpo, como sujeito de percepção, goza de um saber habitual do mundo, de
uma "ciência implícita ou sedimentada"90 que torna prescindível
aquela perene atividade de ligação. Se o corpo é o sujeito de percepção, então
minha percepção "se beneficia de um trabalho já feito", de um
passadoque o intelectualismo com sua teoria da atividade de ligação ignora.
Nosso olhar serve-se de um "saber latente", que "permanece
sempre aquém de nossa percepção", mas que é retomado por ela o que
impede, definitivamente, que aquele que percebe seja "desdobrado diante de
si como uma consciência deve estar"91: a "espessura histórica"
envolvida na percepção nos impede de tomar o sujeito de percepção como
transparência absoluta. Antes, ao contrário, toda percepção tem sempre
"algo de anônimo". Nós nos confundimos com esse corpo habitual, que
"sabe mais que nós sobre o mundo", somos com ele um único movimento:
"eu vivo a unidade do sujeito e a unidade intersensorial da coisa, eu não
os penso como o farão a análise reflexiva e a ciência"92. Mas, se não há
uma atividade de ligação, como descrever a síntese perceptiva síntese
temporal que se consuma na coisa percebida?
A percepção "não faz atualmentea síntese de seu objeto"93, não há uma
consciência que constitua "atualmente o mundo que ela percebe"94.
Para além dessa "atualidade" (que é, em verdade, uma atualidade não-
temporal), há uma "pré-história" da percepção, pois há um
sedimentado: a síntese não é feita atualmente, quer dizer, integralmente na
atualidade, ela aparece pelo tempo a síntese atual se faz necessária, na
perspectiva de Merleau-Ponty, apenas na medida em que o múltiplo aparece
dissociado, objetivado, e ela será então apenas a contrapartida dessa análise95
ou, se se quiser, apenas na medida em que ela já operou um corte entre o
sensível e o inteligível. A síntese a que se opõe Merleau-Ponty é aquela feita
integralmente na atualidade,necessária apenas como contrapartida de uma análise
que dissocia o múltiplo; a síntese perceptiva, por outro lado, assenta-se em um
solo, em um sedimentado e, por isso, ela se beneficia de um trabalho já feito,
de um saber latente, de um passado ou, se se quiser, ela se beneficia da
crítica prévia à separação entre o sensível e o inteligível. A primeira
síntese, como atividade efetiva de ligação, feita integralmente na atualidade,
ignora o passado, isto é, o corpo, o sensível, e por isso ela é feita pela
consciência, por um sujeito absoluto, em vez de aparecer pelo tempo. Sem esse
passado, sem esse sedimentado, o intelectualismo, segundo Merleau-Ponty,
precisa colocar uma subjetividade absoluta, de modo que, inversamente, a
"presença" do passado permite que a percepção se faça pelo tempo,
segundo "um encaixe e uma retomada das experiências anteriores nas
experiências ulteriores", sem que isso implique "uma posse absoluta
de mim por mim"96. A síntese perceptiva não é feita por um sujeito; ela
produz um novo presente, enquanto retém o passado e, por isso mesmo, ela é
"simultaneamente distendida e refeita pelo tempo". Vejamos como
Merleau-Ponty descreve os momentos dessa síntese.
Não se pode rejeitar a síntese e dizer que a percepção "revela os objetos
assim como uma luz os ilumina na noite" ou, como Malebranche, imaginar a
alma saindo pelos olhos e visitando os objetos no mundo. Por que não? Porque,
"para perceber uma superfície, por exemplo, não basta visitá-la, é preciso
reter os momentos do percurso e ligar um ao outro os pontos da
superfície"97. Para compreendermos o argumento de Merleau-Ponty, vejamos o
que ele diz a propósito da visão binocular: o olhar, diz ele, se orienta para o
objeto único como para a resolução de uma tensão,sente a diplopia como um
desequilíbrio. Ora, um tal desequilíbrio não existe em si mesmo, pois "nas
próprias retinas, consideradas como objetos, só existem dois conjuntos de
estímulos incomparáveis"98; em outras palavras, o desequilíbrio só faz
sentido para um sujeito, ou, mais precisamente, só faz sentido se o objeto
único é já antecipado o objeto único, portanto, não é mero efeito da
convergência dos olhos , pois é essa antecipação que torna a diplopia um
desequilíbrio, não a representação do objeto único. O desequilíbrio não existe
em si, mas para um sujeito que procura fundir os fenômenos monoculares e que
tende à sinergia. Quer dizer, a unidade está ali "desde o momento em que
as imagens monoculares se apresentam como 'disparates'"99 e justamente
por isso elas se dão como disparates. Na medida em que a visão do objeto único
não é efeito da fixação, mas é antecipada na fixação, podemos dizer que "a
fixação do olhar é uma 'atividade prospectiva'"100. Aqui, Merleau-Ponty
pode introduzir a idéia de gênio perceptivo, aquele que tende sempre ao mais
determinado.
Mas o ato do olhar não é apenas prospectivo; ele também é retrospectivo. Assim,
por exemplo, um desenho perspectivo "não é percebido primeiramente como
desenho em um plano, depois organizado em profundidade", pois a percepção
em profundidade não é uma construção do entendimento, não é produto de uma
relação de significação. Aqui, é o próprio "conjunto do desenho" que
vai buscar "seu equilíbrio escavando-se segundo a profundidade", de
modo que "é o próprio desenho que tende para a profundidade assim como uma
pedra que cai vai para baixo"101. Nesse sentido, o ato do olhar aparece
como "retrospectivo", pois o sentido do percebido, não constituídopor
mim, aparece como "instituídonele"102, de modo que eu não sou a
origem solitária do sentido, mas apenas "reúno um sentido esparso por
todos os fenômenos", eu apenas digo "aquilo que os fenômenos querem
dizer de si mesmos": "toda fixação é sempre fixação de algo que se
oferece como a ser fixado"103. O gênio perceptivo, ao assumir uma
situação, dá a ela uma resposta que já está envolvida na questão. Por isso
mesmo, a atividade do olhar é "retrospectiva", pois o objeto fixado
se dá como anterior à fixação, como motivador dela104. Daí porque a resposta se
dá como "irresistível" ao menos quando se trata de um campo visual
normal, não ambíguo: "quando passeio em uma avenida, não chego a ver os
intervalos entre as árvores como coisas e as próprias árvores como
fundo"105, de modo que o gênio perceptivo aparece aqui finalmente como
aquele que "sabe dar às coisas a devida resposta que elas esperam para
existirem diante de nós". Assim, enquanto retrospectiva, a percepção fixa
um objeto que já estava ali, um objeto natural,enraizado em um mundo natural.
Mas justamente a fixação, a unidade da significação sensível que daí resulta
(trata-se de uma unidade aberta), não implica que tal unidade seja, se não
nocional, ao menos intencional, e assim correlato de um sujeito? Como então
falar de coisa natural?Como a coisa pode ser correlata de um sujeito, isto é,
para nós, e natural, sempre já ali, isto é, em si? Essa "contradição"
será reposta por Merleau-Ponty em termos temporais, não em termos
"objetivistas"; por isso mesmo, ela poderá ser assumida como
"definitiva", já que o próprio tempo implica uma semelhante
"contradição". Vejamos de perto essa análise; é ela que vai nos
mostrar como um comentário da experiência termina levando a um pensamento da
omnitudo realitatis,e retoma, assim, o modelo da metafísica clássica que se
começou, justamente, por abandonar.
VII
O sujeito de percepção é o corpo, não uma consciência; daí porque o sensível
pode "me convidar" a uma "focalização", a uma
"fixação"; daí porque ele pode "despertar uma certa intenção
motora", e ser "uma questão" à qual nossos sentidos
"respondem exatamente"106. Daí porque eu não sou a fonte do sentido,
mas apenas reúno um sentido já esparso pelos fenômenos. O sensível não é um
espetáculo objetivo nem o correlato de uma consciência, pois a unidade está no
termo de um movimento de fixação do corpo, e por isso mesmo tal unidade é
intersensorial, não nocional: tal como os dois olhos colaboram na visão
binocular, apreendendo um único objeto, do mesmo modo os sentidos se integram
em uma única ação, como potências de um mesmo corpo, apreendendo uma única
coisa, que é então uma coisa intersensorial. É verdade que não alcançamos
jamais a ipseidade da coisa, justamente porque a síntese é temporal, mas é
verdade também que os sentidos não representam aqui uma duplicação da
realidade, uma realidade secundária; antes, ao contrário, eles são nosso acesso
ao real, à coisa mesma: "eu atravesso as aparências"107 e chego à
coisa real, o que se evidencia pelo fato de que a síntese, a unificação,
motivada pela própria coisa, se faz lá nela mesma,não em um sujeito pensante, o
que justamente caracteriza a síntese perceptiva e a distingue da síntese
intelectual. E como termo de uma tal síntese, a coisa está aqui no horizonte
aberto de uma experiência sinestésica. Os fantasmas, o ilusório, o engano, já
não são uma realidade sensível comparada a uma realidade inteligível; a
"plenitude de ser", o "ser verdadeiro"108 será aqui a coisa
dada aos meus diferentes sentidos,quando ela chega ao seu "máximo de
riqueza", quando os dados dos diferentes sentidos "são orientados
para o pólo único"109, que polariza então nossa existência, e, por
contraste, o fantasma será um reflexo ou um sopro leve do vento que se oferece
apenas a um de meus sentidos (daí porque os fantasmas só se manifestam à noite,
diz Merleau-Ponty110), e, para que o fenômeno se aproxime da existência real,
ele precisará tornar-se capaz de "falar aos meus outros sentidos, como,
por exemplo, o vento quando é violento e se faz visível na agitação da
paisagem"; é assim que teremos a coisa "em pessoa", "em
carne e osso". Daí a célebre referência de Merleau-Ponty a Cézanne:
"um quadro contém em si até o odor da paisagem"111. Quer dizer: se a
obra de arte retoma totalmente a coisa, então o que lá está deve conter
respostas à interrogação de todos os meus sentidos, como acontece com a coisa
"em pessoa". Vem daí que o real se encontre "carregado de
predicados antropológicos", já que todas as relações que nele podemos
assinalar se acham "mediadas por nosso corpo". Entendamos: o que
antes parecia ser a coisa em si, a coisa mesma, não uma realidade duplicada,
revela-se agora, também, como para nós,pois, se ela se mostra carregada de
predicados antropológicos, é porque ela se põe "na extremidade de um olhar
ou ao termo de uma investigação sensorial que a investe de humanidade"112.
Entretanto, a coisa não é apenas o "termo de uma teleologia corporal"
pois a coisa nos ignora, ela repousa em si, ela se apresenta àquele que a
percebe como coisa em si: "não começamos por conhecer os aspectos
perspectivos da coisa; ela não é mediada por nossos sentidos, nossas sensações,
nossas perspectivas, nós vamos diretamente a ela e é secundariamente que
percebemos os limites de nosso conhecimento e de nós mesmos enquanto
cognoscentes"113. Daí porque a síntese parece se fazer na própria coisa: o
sentido da coisa se constrói "sob nossos olhos", autonomamente, e ele
se confunde "com a exibição da coisa"114 em vez de vir de fora ou
de se esconder por trás dela: "o sentido de uma coisa habita essa coisa
como a alma habita o corpo: ele não está atrás das aparências [...] ele se
encarna" nela115. Vem daí a definição merleau-pontiana do "núcleo de
realidade": "uma coisa é coisa porque, o que quer que nos diga, ela o
diz pela própria organização de seus aspectos sensíveis. O 'real' é este meio
em que cada momento é não apenas inseparável dos outros, mas de alguma maneira
sinônimo dos outros, em que os 'aspectos' se significam uns aos outros em uma
equivalência absoluta"116. Assim, embora a coisa, ao termo da exploração
sensorial, esteja carregada de predicados antropológicos,ela não se reduz a um
pólo de minha vida corporal, pois ela repousa em si mesma, ela nos ignora, ela
está enraizada "em um fundo de natureza inumana", ela é natural. Eis,
enfim, o problema a que nos referíamos, o do "em-si-para-nós":
"como compreender ao mesmo tempo que a coisa seja o correlativo de meu
corpo cognoscente e que ela o negue?"117.
Dizer que a coisa é correlato de meu corpo, dizer que eu percebo com o corpo
significa dizer que eu nãoconstituo a coisa, que eu não ponho "ativamente
e por uma inspeção do espírito as relações de todos os perfis sensoriais entre
si e com meus aparelhos sensoriais"118. Daí porque Merleau-Ponty insiste
em que é o próprio espetáculo que dá as "indicações" ao meu olhar:
este apenas reúne um sentido esparso no espetáculo, reúne apenas o que se
oferece para ser reunido. Ora, mas justamente mostrávamos que essa síntese, na
medida em que requer a mediação do corpo, investe a coisa de
"humanidade", carrega-a de predicados antropológicos. É certo contudo
que a percepção "existe sempre no modo do 'Se'"119, que ela
"atesta e renova em nós uma 'pré-história'". A percepção, dizíamos
acima, goza de um "saber habitual do mundo", de um sedimentado que
afasta a idéia de um sujeito que faça, ele mesmo, a síntese. Ora, é justamente
por conta desse saber, dessa "ciência sedimentada" que Merleau-Ponty
poderá dizer que "meu olhar 'sabe' aquilo que significa tal mancha de luz
em tal contexto"120: de fato, se na percepção eu não faço "atualmente
a síntese" do percebido, mas meu olhar "compreende a lógica da
iluminação", é porque tal síntese "aparece pelo tempo", quer
dizer, porque o corpo (ele, não eu como "sujeito autônomo")
compreende essa lógica e essa compreensão atesta justamente um saber
sedimentado: a percepção, de uma vez por todas, "não é um ato
pessoal". Ela retoma um saber adquirido, saber que nosso olhar utiliza e
que a mergulha no anonimato: dizer que se percebe com o corpo significa
justamente dizer que a percepção, "considerada em sua ingenuidade, não
efetua ela mesma essa síntese, ela se beneficia de um trabalho já feito, de uma
síntese geral constituída de uma vez por todas"121. Ora, que síntese
geralé essa?
Ela implica que o saber sedimentado do corpo compreende não apenas uma certa
lógica, estalógica destesegmento do mundo, mas, antes disso, é
todaa"lógica do mundo que meu corpo inteiro esposa"; daí porque
"síntese geral",e daí a conclusão de Merleau-Ponty:
Ter sentidos, ter a visão, por exemplo, é possuir essa montagem
geral, essa típica das relações visuais possíveis com o auxílio da
qual somos capazes de assumir qualquer constelação visual dada. Ter
um corpo é possuir uma montagem universal, uma típica de todos os
desenvolvimentos perceptivos e de todas as correspondências
intersensoriais para além do segmento do mundo que efetivamente
percebemos122.
Ter um corpo é ter uma ciência implícita, sedimentada, do mundo em geral,e de
que uma coisa é apenas "uma das concreções possíveis". Essa montagem
universal não se confunde com um conjunto de condições de possibilidade, à
maneira kantiana, pela simples razão de que aqui "o mundo tem sua unidade
sem que o espírito tenha chegado a ligar suas facetas entre si e integrá-las na
concepção de um geometral"123.
Mas, então, se eu tenho uma típica de quaisquerrelações intersensoriais, de
qualquerconcreção possível, é porque o mundo conserva o mesmo estilo em todas
elas, é porque ele se conserva o mesmo independentemente do desenvolvimento da
percepção, pois já não há aqui uma subjetividade que legisle. E o mundo
conserva o mesmo estilo para mim porque ele permanece,porque ele está aí desde
sempre, desde a primeira percepção; essa permanência do mundo é a permanência
da generalidade, do horizonte de toda percepção, do fundo de que todo percebido
não é senão a figura. O mundo é uma generalidade permanente, um "imenso
indivíduo do qual minhas experiências são antecipadamente extraídas"124.
Se, momentaneamente, eu me absorvo em pensamentos e deixo de ouvir um
burburinho, "no momento em que retomo contato com os sons, eles me
aparecem como já estando ali, eu reencontro um fio que tinha deixado cair e que
não está rompido"; se, aproximando-me de uma cidade de automóvel, eu a
olho intermitentemente, meu campo visual de agora já não é o mesmo de antes, de
modo que, se "eu uno as duas aparências", é porque "ambas são
extraídas de uma única percepção do mundo, que conseqüentemente não pode
admitir a mesma descontinuidade"125.
Essa generalidade permanente no horizonte de minha vida, essa omnitudo
realitatis sempre em face de mim, não é uma significação comum a minhas
experiências; antes, ao contrário, a unidade do mundo é comparável à unidade da
coisa na visão binocular: "minhas experiências do mundo integram-se a um
só mundo, assim como a imagem dupla desaparece na coisa única". Assim, não
posso dizer que minha visão atual seja limitada ao meu campo visual efetivo, e
que, por exemplo, o lado oculto dessa lâmpada ou a paisagem por trás dessa
colina sejam representados por mim, pois isso implicaria dizer que eles são
apenas possíveis o que é representado não está aqui diante de nós, eu não o
percebo atualmente126. Tampouco posso dizer que eles são evocados ou
antecipados por mim como percepções que necessariamentese produziriam se eu
girasse a lâmpada ou atravessasse a colina eles seriam conhecidos, nesse
caso, como conseqüência de uma lei, tal como a solução de um problema
matemático. Entretanto, os lados ocultos da lâmpada, a colina por trás da
paisagem, são apreendidos por mim como presentes, como já aí, ou, mais
precisamente, como horizontes da lâmpada e da paisagem. Não é apenas o objeto,
esteobjeto, que me é dado, mas o mundo inteiro, toda a omnitudo realitatispara
a qual remete o objeto e da qual, afinal, ele é extraído. Quando fixo uma mesa,
oriento-me em direção ao objeto determinado, mas remetendo-a ao seu lugar no
mundo, de onde ela é extraída: a percepção é prospectiva, porque o objeto está
no termo da fixação, e retrospectiva, porque ele se apresenta como já estando
ali, como um objeto natural enraizado em um mundo natural o que significa
dizer que a percepção envolve o mundo natural. Meu corpo compreende toda a
lógica do mundo para além dessesegmento percebido aqui e agora, já que ele
possui um saber sedimentado, uma típica, uma ciência implícita do mundo em
geral. Correlativamente, a generalidade que é o mundo se estende para além
deste campo efetivo de percepção, nos horizontes dele, como horizonte mundial
da coisa percebida, como o "fundo de natureza inumana" de onde a
coisa é tirada, extraída. Não há campo presente sem um vasto horizonte mundial
para o qual ele remete. Não há uma presença em ato,pois os horizontes são
abertos e a síntese perceptiva não pode ser jamais concluída.
Eis aqui, enfim, as condições para se afirmar aquela dupla encarnação, a do
sujeito e a do sensível, tão insistentemente buscada por Merleau-Ponty. Só o
tempo permite realizá-la, só o tempo tomado como "medida do ser"127.
No modelo merleau-pontiano, só ultrapassamos o objetivismo se pensarmos a coisa
e o mundo não no plano do ser, mas no plano do tempo. Daí as conclusões a que
chega o filósofo e que lhe permitem objetar não só ao idealismo, mas também ao
seu partido rival, o realismo: o presente,dirá ele,não equivale ao
apresentado,não o esgota,pois a coisa não é presente sem horizontes,isto é, sem
passado e sem futuro. E, inversamente, assim como não há presente sem passado,
sem esse fundo sobre o qual ele se assenta, também o passado depende de uma
retomada presente, ou, considerando-se o caso em tela: do mesmo modo que o
presente não esgota o apresentado, também, inversamente, o apresentado só se
apresenta por meio do presente. Assim, meu presente não esgota o apresentado,
porque ele remete à transcendência dos horizontes (o que impede,
definitivamente, de fazer da percepção, como o realismo, uma coincidência com a
coisa)128; o apresentado, por sua vez, carece de um presente, de um ponto de
vista, pois
se a coisa e o mundo pudessem ser definidos de uma vez por todas, se
os horizontes espaço-temporais pudessem, mesmo idealmente, ser
explicitados e o mundo pudesse ser pensado sem ponto de vista, agora
nada existiria, eu sobrevoaria o mundo e, longe de que todos os
lugares e todos os tempos se tornassem reais ao mesmo tempo, todos
eles deixariam de sê-lo porque eu não habitaria nenhum deles
(o que afasta, definitivamente, a síntese do idealismo, que supõe uma
ubiqüidade efetiva e não apenas intencional)129. Ao contrário do objetivismo,
que impõe noções alternativas, Merleau-Ponty desvela uma ambigüidade que não
impõe a escolha entre, de um lado, o inacabamento do mundo, o mundo em aberto,
horizonte mundial, e, de outro, sua existência, sua presença pois essa
ambigüidade se resume àquela do tempo, que é um meio só acessível se nele
ocuparmos uma situação e o apreendermos através dos horizontes dessa situação.
Daí, finalmente, a chave para a compreensão da contradição do em-si-para-nós,
mesma chave que nos permitiu, a propósito do sujeito, falar em atividade e
passividade, corpo atual e corpo habitual, existência pessoal e existência
anônima contradição que, ao invés de cessar, deve se generalizar e que a
análise da temporalidade nos mostra como "definitiva"130.
Mas, então, não é apenas a essa ambigüidade que o comentário merleau-pontiano
da percepção nos leva; é ainda, e sobretudo, à idéia de omnitudo
realitatis,implicada pelo princípio de que o tempo é a medida do ser. Se esse
modelo permite pensar uma relação interna entre o sensível e o inteligível, ele
implica também nos reconduzir ao modelo da metafísica clássica. E não há nisso
nada de surpreendente, pois, desde o começo, Merleau-Ponty já nos lembrava, na
objeção ao intelectualismo cartesiano, que ele se colocava a tarefa de pensar a
relação cujo fonte última Descartes remetia a Deus. E, de fato, essa é a tarefa
da filosofia, segundo Merleau-Ponty: "para mim" diz ele, "a
filosofia consiste em dar um outro nome ao que por muito tempo foi cristalizado
sob o nome de Deus"131.