Sobre as afinidades entre a filosofia de Francis Bacon e o ceticismo
Como diz Michel Malherbe, em sua edição da versão francesa do Novum organum,
essa obra de Bacon, ora celebrada, ora desprezada, foi sempre pouco lida.
Embora se refira à sua fortuna na França, sua observação é pertinente num
sentido bem mais geral, a despeito de alguns dos mais importantes filósofos
modernos terem recorrido a esse autor para definir o sentido de seus próprios
empreendimentos. Hume refere-se a Bacon como pai da física experimental e
apresenta sua Ciência da natureza humana como um esforço de dar continuidade à
obra por ele iniciada e continuada por outros moralistas britânicos, ao
converterem a experiência no único fundamento sólido para a reflexão.1 E Kant
escolheu como epígrafe da Crítica da razão pura uma passagem do prefácio da
Magna instauratio, em que Bacon se apresenta como aquele que, em lugar de
inaugurar uma nova seita, pretendeu lançar os fundamentos de uma obra coletiva,
capaz de dar cabo de um erro infinito.2
Porém ' e esperamos aqui não cometer uma injustiça ou um exagero ', nem mesmo a
relativa escassez de estudos sobre a filosofia baconiana nos parece justificar
a carência nas abordagens das suas relações com o ceticismo filosófico.
Conhecemos apenas um artigo, aliás bastante recente, inteiramente dedicado a
esse tema3; e os comentários clássicos ao longo do século XX a ele não fazem
mais do que menções passageiras ou genéricas, apesar de Bacon se referir ao
ceticismo e aos partidários da acatalepsia com freqüência ao longo de toda sua
obra, desde escritos mais antigos, como The praise of knowledge (1592), até as
obras de maturidade, como o Novum organum (1620).4 Levando-se em conta que os
comentadores muitas vezes se concentraram no exame das conexões do pensamento
de Bacon com tradições intelectuais do Renascimento ' como Lisa Jardine, que se
ocupou da dialética, ou Paolo Rossi, que focalizou, dentre outros pontos, sua
relação com a chamada "magia natural"5 ', a lacuna se torna ainda mais
relevante a partir dos trabalhos de Charles Schmitt e Richard Popkin, que nos
propiciaram uma visão mais clara de como as tradições céticas do Renascimento,
em suas vertentes acadêmica e pirrônica, contribuíram, numa dimensão até então
ignorada, para a constituição do pensamento moderno.6 É bem verdade que Popkin,
na sua obra clássica, menciona Bacon como propositor de uma espécie de
"ceticismo parcial ou temporário", embora entenda que não se trata aí de um
cético, e sim, a seu ver, do protagonista de uma estratégia "aristotélica" de
resposta ao ceticismo. Mas são igualmente alusões de passagem, que não se
desenvolvem no sentido de um exame mais detalhado de como teria ele
compreendido e equacionado a problemática cética em sua reflexão pessoal.7
Todavia, mesmo que o caso de Bacon ofereça dificuldades na determinação das
fontes de que ele teria se valido, parece-nos haver elementos disponíveis para
sustentar que o ceticismo desempenhou, na sua reflexão filosófica, um papel
mais relevante do que aquele que se tem usualmente reconhecido.
Não nos ocuparemos aqui de um exame detalhado sobre se os aspectos pertinentes
da filosofia baconiana correspondem ou não à maneira precisa como os céticos
formularam suas argumentações dubitativas, nem mesmo de um exame acerca do modo
como ele pretendeu responder à problemática cética. Antes disso, parece-nos
importante examinar em que medida se pode avaliar a relevância filosófica das
afinidades que Bacon reconhece entre sua maneira de ver e essa filosofia a
partir das próprias passagens em que ele se pronuncia a esse respeito. Como
veremos, elas parecem indicar que, mesmo que não se possa afirmar que Bacon
considere sua própria "doutrina dos ídolos" como "cética", é possível ir além
das considerações genéricas sobre as "influências" dessa filosofia em sua
reflexão e precisar o significado que ele mesmo teria conferido a tal relação.
A afinidade que ele reconhece entre o diagnóstico dos saberes oferecido por tal
doutrina e a posição cética parece ser de tal ordem que sua revogação
dependeria, segundo Bacon, não apenas da posse do novo método de investigação
da natureza que ele pretende anunciar, mas da plena efetivação do projeto de
estabelecer uma Ciência acerca das Formas das próprias coisas ' algo que ele
mesmo entende ser ainda impossível e relega ao trabalho das gerações futuras;
ademais, grande parte das discussões em torno do ceticismo filosófico é
freqüentemente comprometida pela vagueza do conceito de "ceticismo" com que
nelas se opera ', e o caso de Bacon não parece ser exceção à regra. Assim,
procuraremos igualmente considerar o modo como suas reflexões são atentas a
aspectos diversos com que a reflexão cética se apresenta no ambiente
intelectual do Renascimento (mesmo no que respeita à associação entre ceticismo
e paradoxo literário) e à diferença entre as correntes céticas tradicionais.
Todavia, no que tange a esse último ponto, pode-se constatar que a
interpretação baconiana ' à falta, aparentemente, de um contato mais direto com
os textos de Sexto Empírico ' amolda-se a suas próprias reflexões teóricas
sobre o tema, de modo a convergir para uma espécie de distinção entre
"ceticismo integral" e "ceticismo moderado" similar à que faria fortuna na
filosofia posterior.
Notemos, antes de mais, que as referências de Bacon ao ceticismo filosófico
comportam invariavelmente um elemento crítico, retomando freqüentemente os
mesmos motes: os céticos são, segundo ele, aqueles que profanaram o oráculo dos
sentidos e das faculdades humanas, em vez de lhes propiciar os auxílios de que
necessitariam para obter a verdade, e formularam seu diagnóstico sobre nossa
situação cognitiva de um modo tal que acabaram por substituir a via austera da
pesquisa por um simples "passeio pelas coisas", através de dissertações
agradáveis.8 Mas essas observações oferecem apenas uma imagem parcial, que nos
pode conduzir a uma avaliação indevida se não levamos em conta que, em mais de
uma ocasião, suas críticas se apresentam na forma de um contraponto entre a sua
própria maneira de ver e aquela que seria a dos céticos. No aforismo I, § 37 do
Novum organum, por exemplo, Bacon escreve ' acerca dos filósofos que
sustentaram a suspensão do assentimento:
A reflexão (ratio) daqueles que sustentaram a acatalepsia e a nossa
via, de início (initiis), em certa medida, convergem; ao final
(exitu), afastam-se bastante e se opõem. Pois eles afirmam que nada
se pode saber, sem mais (simpliciter); nós, que não se pode saber
muito da natureza pela via que está agora em uso. Ao final, eles
destroem a autoridade dos sentidos e do intelecto, e nós pesquisamos
e administramo-lhes auxílios (auxilia)...9 (grifo no original).
Nesse texto, Bacon expõe a distância "final" que haveria entre sua reflexão e a
dos partidários da acatalepsia (numa aparente referência aos céticos da Nova
Academia, como veremos melhor), mas apenas depois de reconhecer uma afinidade
"inicial". Um primeiro ponto importante, a nosso ver, reside em tentar
compreender melhor o sentido dessa oposição entre o início (initium) e o final
(exitus) dessas vias por ele comparadas. Tratar-se-ia apenas de apontar o
caráter enganoso da semelhança entre essas filosofias, de modo que o "inicial"
seria sinônimo de "à primeira vista"? Ou teria esse contraponto, a despeito das
divergências efetivamente anunciadas, algum sentido filosoficamente mais
substantivo no que tange às possíveis similaridades que Bacon veria entre a
ratio dos céticos e a sua própria? Parece-nos que há razões para nos
inclinarmos pela segunda opção.
Como noutras ocasiões, a distância que Bacon aí demarca relativamente aos
céticos é diretamente vinculada aos auxilia que, de sua parte, ele teria
pretendido administrar às nossas faculdades cognitivas. Com segurança podemos
admitir que isso corresponde a uma alusão genérica ao seu próprio método
indutivo,10 pelo qual ele pretendeu colaborar para o estabelecimento do que
descreveu como um "genuíno casamento entre o espírito e as coisas"; um método
capaz de propiciar uma efetiva interpretação da Natureza, por oposição às meras
"antecipações" produzidas pela filosofia tradicional, e de alcançar, assim, o
conhecimento das verdadeiras Formas, estendendo igualmente o saber e o poder do
homem em uma dimensão inteiramente nova. Mas é apenas a partir do segundo livro
do Novum organum (correspondente à denominada pars informans) que se inicia a
exposição da parte positiva do método (através de exemplos destinados a
ilustrar procedimentos práticos pelo qual a indução deveria se guiar entre as
coisas particulares, sobretudo no que tange à sua disposição nas "tábuas de
invenção"). E, por mais que tais ilustrações possam ser tidas como uma
exposição acabada, ao menos de caráter geral, da fórmula da indução, como
propõe Malherbe, a exposição plena desse método só poderia se completar na
realização da filosofia, isto é, na própria Interpretação da Natureza que teria
lugar posteriormente à exibição do Organum ' uma vez que, por suas próprias
exigências, o método se destinaria a ser capaz de uma adaptação maleável às
próprias coisas, na medida do próprio avanço da pesquisa.11 O Novum organum
constitui, com efeito, apenas a segunda parte da Instauratio magna e, conforme
ao que lemos na Distributio operis, é apenas na terceira (intitulada Phaenomena
universi) que se vai além da simples preparação do caminho e se começa por nele
avançar (antes de mais, através do empreendimento de uma História Natural
segundo bases conceituais novas e numa escala inusitada).12 Na quarta parte,
intitulada a Escada do entendimento (Scala intellectus), Bacon pretenderia
oferecer mais exemplos dos particulares dispostos segundo as Tábuas de Invenção
e, nessa medida, algo mais do que a simples esperança de progresso no
conhecimento, tal como provisoriamente justificada ao final da primeira parte
do Novum organum. Mas ele adverte igualmente que se trata ainda de oferecer
exemplos de uma pesquisa para fins de esclarecimento.13 Nessa quarta parte,
seriam apresentadas, diz ele, "por assim dizer" (tanquam), as coisas mesmas;14
apenas "por assim dizer", talvez, porque tampouco estaríamos ainda naquela que
ele previu ser a etapa culminante ' a Filosofia Segunda, ou Ciência Ativa,
única capaz de nos assegurar o conhecimento das Formas propriamente ditas.
Porém, projetada como a sexta etapa do percurso,15 essa filosofia,
anteriormente preparada pela pesquisa legítima, purificada e severa, é algo que
ultrapassa inteiramente suas esperanças pessoais, posto que sua realização é
inconcebível, diz ele, em vista do atual estado das coisas e dos espíritos.16
Retomamos rapidamente esse percurso apenas para oferecer uma escala das
dificuldades que o próprio Bacon, a despeito do seu otimismo, reconheceu se
interporem ao efetivo conhecimento das coisas. Como diz ele, no prefácio da
Instauratio magna, o seu próprio método é essencialmente o de uma verdadeira e
legítima humilhação do espírito humano, por oposição à estimativa precipitada
sobre as efetivas forças da mente:
(...) pois todos aqueles que, antes de nós, aplicaram-se à invenção
das artes, lançaram um breve olhar sobre as coisas, os exemplos e as
experiências, e se precipitaram a invocar seus próprios espíritos
para que eles lhes oferecessem seus oráculos, como se a descoberta
nada mais fosse que um jogo de pensamento...17
Chamar a atenção para esse ponto permite também observarmos melhor a
continuidade metódica existente entre a pars informans do Novum organum (onde
se evidencia, como dissemos, a dimensão positiva desse movimento em direção ao
conhecimento das Formas) e a lenta progressão que a prepara, no Livro Primeiro,
da qual fazem parte uma pars praeparans propriamente dita e uma pars destruens
que a antecede ' parte esta destinada à exposição crítica do estado atual dos
saberes e a contribuir para a destruição dos impedimentos que bloqueiam o
avanço da investigação sobre a natureza ' os famosos "ídolos". Embora tais
impedimentos sejam diversas vezes mencionados nas obras de Bacon, é no Novum
organum que a sua exposição é mais desenvolvida e sistematizada. Denunciá-los,
a seu ver, é algo indispensável para que se possam ter esperanças de evitar a
repetição infinita dos erros e, por meio de uma purificação do entendimento
humano, proceder a uma reconstrução radical dos saberes ab imis fundamentis.18
Ora, se o movimento inicial do próprio método baconiano exige uma recusa
crítica dos saberes vigentes e se o acordo que ele entende possuir com os
partidários da acatalepsia pode se exprimir em torno do lema "nada se sabe"
(por mais que Bacon possa matizá-lo ao alegar que "quase nada" se sabe, que tal
situação é provisória e relativa), não seria o caso de admitir que a afinidade
igualmente "inicial" que haveria a sua filosofia e a dos céticos inclui uma
referência ao seu próprio método (ainda que seja no que tange apenas à sua
parte destrutiva)? No mesmo passo em que o aforismo acima considerado demarca a
distância, não deveria ser, assim, igualmente lido como a corroboração de uma
afinidade filosófica, visível tanto no sentido mais geral dos propósitos; mas
também, como veremos, em alguns aspectos de maior detalhe conceitual? Isso nos
oferece um primeiro indício de que Bacon reconheceria haver uma similaridade,
ainda que restrita, entre o olhar cético diante do panorama dos saberes humanos
e o seu próprio, tal como situado no momento inicial da investigação, isto é,
no momento atual em que sua reflexão se volta na direção de um projeto futuro
ainda inconcluso e cercado de dificuldades, como não cansa ele de sublinhar.
Um segundo indício assemelhado a esse diz respeito à "doutrina dos ídolos",
núcleo da pars destruens, em que Bacon distingue quatro espécies de
impedimentos que atuam contra nossas pretensões de obter a verdade: os "ídolos
da raça" (idola tribus), decorrentes das imperfeições de nossas faculdades de
conhecer ' seja o intelecto, comparado a um espelho deformante que, exposto aos
raios das coisas, mistura sua própria natureza à delas, falseando e
embaralhando; uma faculdade refém de erros sistemáticos que ela própria é
incapaz de corrigir, seja pelas suas próprias forças, seja com o auxílio da
dialética;19 sejam as imperfeições dos sentidos, que, embora constituam a
instância à qual se deve tudo perguntar na pesquisa da natureza, diz ele, "a
menos que se queira delirar", são por si algo de fraco e enganador e não podem,
quanto a isso, ser auxiliados pelos instrumentos inventados para aguçá-los e
estender seu alcance.20 Em seguida, os "ídolos da caverna" (idola specus),
gerados, segundo Bacon, pela diversidade própria da natureza de cada indivíduo,
e dependentes das diferenças do corpo, da alma, da educação, do hábito, das
circunstâncias fortuitas e do modo como são afetados pelos objetos. Já os
"ídolos do foro" (idola fori) são aqueles particularmente residentes nas
imperfeições da linguagem humana, enquanto que os "ídolos do teatro" (idola
theatri) são aqueles pelos quais Bacon metaforicamente alude aos mundos
imaginários inventados pelos diversos sistemas filosóficos vigentes,
constituídos por noções fantasiosas e imperfeitas (dentre as quais ele enumera
as de "ser", "substância", "elemento", "matéria" etc.) e por demonstrações
defeituosas que são, nas suas palavras, os sistemas em potência.21
Como observou Granada, os aforismos do Novum organum que tratam explicitamente
de suas relações com o ceticismo ocupam posições estratégicas relativamente à
exposição dessa doutrina.22 Mais precisamente, o primeiro deles, na ordem da
exposição, é o aforismo I, § 37, ao qual já nos referimos, que poderia ser
compreendido como um aforismo de transição entre o movimento anterior do texto,
onde são abordados os comprometimentos da lógica vigente na pesquisa, bem como
a dificuldade em instaurar um método adequado para investigação, e a exposição
dos ídolos. Ele demarca, assim, o início da exposição dos ídolos, enquanto o
próximo aforismo a tratar do assunto (I, § 67) retoma o contraponto sob um viés
predominantemente crítico ' os céticos são ali acusados de uma intemperança na
abolição do assentimento similar à que os dogmáticos possuiriam ao aderirem às
suas doutrinas, bem como de adotar um posicionamento que, mesmo quando deixam
lugar para a investigação, acaba por conduzir ao seu abandono, em vista da
desesperança de alcançar a verdade ' dando lugar, no aforismo seguinte, a esta
afirmação: "Eis o suficiente sobre as diferentes espécies de ídolos e o seu
aparelho..."23. Assim, por mais que a lenta progressão do texto de Bacon
pareça, à primeira vista, possuir um encadeamento pouco linear, no qual são
freqüentes as antecipações e as retomadas de temas anteriormente abordados,24
esses aforismos indicam que Bacon cingiu sua exposição da doutrina dos ídolos
por duas referências explícitas ao ceticismo. Ainda que ele não o afirme
explicitamente, tais referências poderiam ser eventualmente lidas, segundo a
mesma hipótese, como correspondentes a um anúncio, em primeiro lugar, da
proximidade com os céticos, para posteriormente, numa abordagem mais minuciosa,
aprofundar o contraponto num viés crítico, mas apenas depois de haver exposto
sua própria versão da crítica do conhecimento humano, tal como formulada por
essa doutrina. Se assim for, esses aforismos permitiriam mesmo precisar que
Bacon focalizaria as suas afinidades com o ceticismo principalmente na
formulação dessa doutrina.25
Esses dois indícios de afinidades entre Bacon e o ceticismo, extraídos da obra
mais célebre de Bacon, são, por certo, um tanto conjeturais e indiretos.
Contudo, seu interesse é o de nos permitirem transpor à leitura do Novum
organum aquilo que ele afirma bem mais abertamente em outras passagens nas
quais retoma o mesmo paralelo. Em um curto texto initulado Scala intellectus
sive filum labyrinthi e composto, ao que parece, para prefaciar a parte
homônima da Magna instauratio, Bacon escreve:
(...) não podemos, no entanto, absolutamente negar que, se não
houvesse oposição a uma sociedade entre a nossa filosofia e as
antigas, é com este gênero filosófico [i.e., o daqueles "a quem apraz
o nada se sabe"] que estaríamos mais ligados; estaríamos de acordo
com muitos dizeres prudentes e observações acerca das variações dos
sentidos e da falta de firmeza do julgamento humano, e acerca da
contenção e da suspensão do assentimento. A estas poderíamos ainda
acrescentar ainda diversas outras [observações] semelhantes. A tal
ponto que entre nós e eles reste apenas essa diferença: eles afirmam
que nada se sabe categoricamente (prorsus) e nós afirmamos que nada
se pode saber pela via que até aqui percorreu a raça humana...26
(grifos nossos).
Nesse texto, inteiramente elaborado em torno da comparação entre sua filosofia
e a dos céticos, novamente surgem elementos que relativizam a aproximação. Na
passagem acima, em particular, eles são projetados na forma de uma oposição
mais geral entre a sua filosofia e as antigas. De fato, Bacon salienta, em
vários momentos, o modo como os saberes existentes são relativos, dentre outros
aspectos, ao seu local de origem, à sua época e à sociedade que os produziu e
tende a condenar, de modo geral, a sabedoria dos gregos, julgando-
a irremediavelmente comprometida por um viés professoral e retórico, que a
impediu de avançar na pesquisa pela verdade.27 Em uma passagem do Novum
organum, ele menciona o nome do cético acadêmico Carnéades entre aqueles que
seriam todos, a seu ver, com maior ou menor dignidade, sofistas.28 Ainda assim,
poderia ser ele mais explícito ao assinalar a existência de aspectos de sua
reflexão que, no seu próprio entender, revelem um acordo com os céticos ' os
filósofos aos quais estaria mais ligado, apesar de sua antigüidade? Mais ainda,
aqui ele nos oferece detalhes sobre os pontos em que estaria de acordo com
eles, a saber, quanto aos seus "dizeres prudentes" acerca da precariedade dos
sentidos e do intelecto humanos, bem como acerca da própria suspensão do
assentimento.29 Por mais que esses temas sejam abordados de modo peculiar por
Bacon, eles se incluem diretamente no escopo da doutrina dos ídolos: tanto dos
idola tribus ' referentes à precariedade das nossas faculdades cognitivas '
quanto dos idola theatri ' que, a seu modo, preconizam uma recusa das fantasias
até então elaboradas pelas teorias filosóficas e seus métodos.
Contudo, poder-se-ia pensar que, pelo fato de Bacon apresentar seus "ídolos"
com o propósito explícito de "purificar o entendimento" em vista da obtenção da
verdade, essa doutrina já conteria, nesse simples passo, uma superação da
perspectiva cética. Mas as coisas não são tão simples. Por mais diversos que,
no seu detalhe, possam ser os ídolos baconianos dos modos suspensivos céticos e
que a sua exposição tenha em vista o objetivo de contorná-los (e não o de
reiterá-los indefinidamente), Bacon não cansa de sublinhar, como dissemos, a
dificuldade e os limites dessa tarefa, frente ao poder de tais impedimentos.
Ele qualifica dois dos gêneros de ídolos como "inatos" (a saber, os idola
tribus, referentes às nossas faculdades cognitivas, e os idola specus,
referentes às nossas diferenças individuais), por oposição àqueles que, embora
"adventícios" (os idola fori e os idola theatri), possuem relações estreitas
com os anteriores. E se os ídolos adventícios, diz ele, são muito difíceis de
serem desenraizados, os inatos são descritos como impossíveis de erradicar:
(...) A única coisa que resta a fazer consiste em indicar, denunciar
e confundir essa violência insidiosa do espírito, de modo a evitar
que, em virtude da má compleição do espírito, a destruição dos
antigos erros não gere novos, de modo que eles não sejam extirpados,
mas apenas substituídos...30
Não se trata, assim, de pretender neutralizar os ídolos que bloqueiam o acesso
à verdade diretamente, à maneira de uma eventual refutação do ceticismo. Mesmo
que haja, segundo Bacon, procedimentos úteis para melhor enfrentá-los antes de
avançar na via própria da experiência ' como, por exemplo, a exibição dos
signos (signa) do triste estado da filosofia atual, bem como as causas desse
fenômeno31 ' o único remédio próprio residiria, a seu ver, nos axiomas e noções
que viriam a se produzir pela verdadeira indução.32 Como diz ele,
metaforicamente, na Redargutio philosophiarum: embora sobre as tabuletas de
fato nada se escreva novamente se não se apagaram as primeiras inscrições, no
espírito haverá grande dificuldade em apagar as primeiras inscrições sem ali
ter inscrito algo de novo.33 Ao invés de ser um simples resultado da superação
de tais impedimentos ao conhecimento, a posse do conhecimento sobre a natureza
é ela mesma, em alguma medida, condição de sua plena superação. Mas o acesso,
ainda que restrito, a tais conhecimentos não implica necessariamente a plena
revogação de tais impedimentos. Uma forma de compreender a situação
aparentemente circular que aqui parece se criar é a de admitir que, no mesmo
passo que o método opera ainda segundo uma formulação incompleta, um material
experimental insuficiente ou se apoiando em conclusões provisórias, vigem
ainda, em alguma medida, os mesmos impedimentos cognitivos.34 Mas, no mesmo
passo, se nossa leitura estiver correta, justifica-se ainda, na mesma medida, o
mesmo acordo, parcial ou provisório, com a perspectiva cética. Se à afinidade
inicial que Bacon reconhece entre sua filosofia e a dos céticos corresponde uma
forma de incorporação metódica do ceticismo, a despeito de haver ao final uma
completa oposição, tudo se passa como se a progressão rumo ao conhecimento das
coisas pudesse ser compreendida como a superação progressiva desse acordo
parcial.
Se assim for, passa a ser um problema interpretativo relevante o de determinar
como e em que momento dessa progressão se operaria tal superação. Por certo, as
ressalvas que Bacon introduz já nas manifestações de sua afinidade com os
céticos oferecem um indício claro de que cabe buscar, na formulação mesma da
doutrina dos ídolos, elementos de natureza "preparatória" a tal superação. Mas
não é possível dar uma resposta precisa a esse problema sem se deter num exame
detalhado do conteúdo dessa doutrina, para saber em que medida ela reproduz a
problemática presente nos textos pertencentes à tradição cética ou, em vez
disso, pretende nos oferecer, em suas eventuais inovações, elementos destinados
a demarcar, desde o início, uma via diversa. Não adentraremos nesse terreno
aqui, mas importa ressaltar que o reconhecimento do poder dos ídolos por parte
de Bacon cria uma identificação com o diagnóstico cético que é normalmente
subestimada, apesar do modo como ele assinala a cogência que vislumbra na
posição desses filósofos. Afora o texto do Filum labyrinthi acima citado, no De
augmentis scientiarum (1623), examinando as dificuldades decorrentes da
ausência de princípios e métodos demonstrativos seguros para a investigação da
Física, ele afirma:
(...) não foi sem grande e evidente razão que tantos filósofos,
alguns deles da maior eminência, tornaram-se Céticos e Acadêmicos
(Sceptici et Academici) e negaram qualquer certeza de conhecimento ou
apreensão (scientiae humanae et syllepsium), afirmando que o
conhecimento do homem se estende apenas a aparências e
probabilidades...35
Poder-se-ia alegar, contra a hipótese de leitura aqui formulada, que são
inconclusivos os indícios de que a doutrina dos ídolos teria se constituído a
partir de fontes céticas. Mas que alternativas nos restam quando se pretende
reconhecer aquelas que seriam aqui filosoficamente relevantes? Por vezes,
tentou-se aproximar essa doutrina dos quatro "impedimentos à verdade"
(offendicula veritatis) enumerados por Roger Bacon no início do seu Opus majus
' o uso de uma "autoridade insuficiente", o costume, a opinião popular e o
disfarce da ignorância acompanhado pela presunção de conhecimento ', mas
Spedding argumenta persuasivamente para mostrar que tal parentesco é artificial
e improvável.36 Mais recentemente, Deleule objetou às tentativas de aproximar a
doutrina baconiana ao ceticismo, preferindo remeter a noção de idolum ao
platonismo e ao epicurismo, fontes a que Bacon teria explicitamente feito
menção ' ao se referir, por exemplo, à crítica de Cotta ao antropomorfismo
epicurista no De natura deorum, de Cícero.37 Mas importa lembrar que, nesse
diálogo, Cotta é o personagem designado para representar a Nova Academia, pela
qual o próprio autor exprime sua simpatia pessoal.38 Tampouco a hipótese de
Deleule se fortalece pelo fato de a noção de idolum, como alega ele, ser
recorrentemente associada por Bacon ao vocabulário da imaginação e da fantasia
' tal como ocorre, por exemplo, na sua abordagem dos "ídolos do teatro",
resultantes do modo como o entendimento humano se deixa naturalmente conduzir
pela imaginação.39 Tal tema, mesmo que Bacon o aborde de forma peculiar, é
recorrente na literatura cética. Já Sexto Empírico se refere à teoria da alma
proposta por Platão como "imaginária", valendo-se de um termo ' eidolopoiesis '
etimologicamente afinado ao que Bacon escolheu em sua crítica.40 O mesmo tema
se amplifica e ganha um desenvolvimento próprio em obras contemporâneas de
Bacon que evidenciam elementos céticos, como o Quod nihil scitur, de Sanchez e
os Ensaios de Montaigne. Na Apologia de Raimond Sebond, além de qualificar os
conceitos fabricados pela filosofia natural como "sonhos e fantásticas
loucuras",41 Montaigne caracteriza a própria razão e o entendimento humano como
fontes de ficções.42
Pela mesma razão, parece-nos que Platão não poderia ser assumido como fonte
dessa doutrina ' a não ser pelo viés da ironia ou de uma leitura ceticizante. É
bem verdade que Bacon se refere explicitamente, no The advancement of learning
(1605), à Alegoria da Caverna para ilustrar como as compleições e costumes
individuais geram infinitos erros e falsas opiniões, oferecendo, assim, um
esboço daquilo que corresponderia futuramente aos idola specus. Mas já ali ele
mesmo cuida de assinalar, em uma nota marginal, que não teve a intenção de
imprimir a essas considerações o sentido que o próprio Platão teria conferido à
metáfora.43 Por outro lado, embora reconheça, no Novum organum, que a escola
desse filósofo tenha sido a responsável pela introdução da acatalepsia, ele o
considera como paradigmático do gênero "supersticioso" de filosofia.44
Finalmente, na mesma linha de considerações, mesmo que Bacon oponha os ídolos
produzidos pela mente humana às idéias que se encontram exclusivamente no
conhecimento divino,45 cabe lembrar que ele nunca emprega o termo idolum no
sentido corriqueiro de "falsos deuses",46 para não mencionar sua insistência em
separar os terrenos da ciência natural e o da teologia.47 Se convém, afinal,
nos atermos às indicações dadas pelo próprio autor, não seriam os elementos
acima mencionados mais seguros e filosoficamente mais relevantes ao apontar
afinidades entre a doutrina dos ídolos e o ceticismo?
Todavia, há outros problemas em aberto dos quais essas especulações parecem
depender, talvez decisivos para o prosseguimento deste exame: Quais são as
fontes céticas de que efetivamente se serviu Bacon? Como ele as interpretou?
Sem pretender esgotar esse tema, esboçaremos aqui algumas considerações que
talvez sejam úteis para uma abordagem posterior mais aprofundada.
Primeiramente, embora o problema de determinar as fontes precisas do texto de
Bacon seja particularmente delicado (dentre outros motivos porque, em
conformidade aos códigos literários do período, ele raramente as menciona), um
texto que já citamos revela que Bacon é atento, em alguma medida, à diversidade
das fontes céticas, diferenciando sceptici de academici. Ademais, ainda que ele
tenda, de modo geral, a tratar essas duas vertentes em bloco, segundo o viés
conceitual de sua própria crítica, há textos em que ele leva em conta
diferenças que discerne entre essas escolas. No aforismo 67 do Novum organum,
depois de brevemente historiar a posição dos que professaram a acatalepsia,
introduzida por Platão contra os sofistas e transformada num dogma pela Nova
Academia, ele escreve:
Esse procedimento é certamente mais honesto do que aquele dos
pronunciamentos arbitrários, posto que tais filósofos declaram, em
sua defesa, que não obstam de modo algum a investigação, como fizeram
Pirro e os Céticos (Ephetici), mas que sustentam como dignas de
aprovação (probabile) as opiniões que adotam, sem contudo aceitá-las
como verdadeiras...48
Bacon criticará igualmente, em seguida, esses filósofos que não teriam
pretendido abandonar a investigação, pois, diz ele, uma vez que o espírito
humano perde a esperança de encontrar a verdade, o interesse pela investigação
se enfraquece e ela degenera em meras disputas e dissertações agradáveis.49 Mas
quem seriam esses filósofos (que não obstam a investigação), segundo Bacon?
Mesmo que talvez o texto admita alguma ambigüidade, o contexto aponta, não para
os céticos pirrônicos, mas para os partidários da Nova Academia, isto é,
aqueles que, além de não obstarem a investigação, aceitam as opiniões como
probabile ' o critério prático segundo a tradicional formulação desses
filósofos, tal como a encontramos, por exemplo, em Cícero. Esse detalhe
interpretativo pode ser útil para avaliarmos o contato de Bacon com as fontes
céticas tradicionais. De fato, nos Academica, Cícero advoga a posição desses
filósofos sustentando que a certeza não é indispensável para a ação segundo a
vida comum e para o engajamento nas artes, referindo-se mesmo ao prazer que os
céticos acadêmicos encontrariam na investigação de temas de suprema magnitude e
grande obscuridade, bem como no encontro de uma noção que apenas pareça ter uma
semelhança com a verdade.50 Mas teria Bacon proposto esse contraponto, no que
tange à relação entre suspensão do juízo e interesse pela investigação, levando
em conta o modo como Sexto se refere, no início das Hipotiposes, aos céticos
pirrônicos como aqueles que "permanecem investigando", por oposição,
precisamente, aos partidários da Nova Academia, que teriam sustentado a
impossibilidade de conhecimento como uma espécie de dogmatismo negativo?51 E
ainda que as críticas de Bacon tenham em vista a concepção particular de
investigação dos pirrônicos tal como proposta por Sexto (concebida como uma
atividade de neutralização da precipitação dogmática, essencialmente negativa),
os termos com que ele usualmente alude ao modo como o ceticismo acabaria por
comprometer a investigação (transformando-a em dissertações agradáveis ou
"passeios pelas coisas") parecem evocar, não os textos de Sexto, mas antes o
próprio Cícero ou, eventualmente, Montaigne.52 Ademais, se levamos em conta as
considerações de Sexto sobre as afinidades entre o pirronismo e a Medicina
Metódica dos gregos, sobre o assentimento prático ao phainómenon e, muito
particularmente, sobre o modo como este seria compatível com a prática das
tékhnai, voltadas à busca do que é útil ao bem estar humano, como estudos
recentes têm enfatizado,53 seria plausível admitir que Bacon reconhecesse uma
afinidade ainda maior entre sua própria perspectiva e a dos céticos. Isso
parece indicar, ao menos, que é pouco provável que Bacon tenha lido Sexto
Empírico (ou, pelo menos, as Hipotiposes) ' ainda que Spedding tenha apontado o
Adversus logicus, do mesmo autor, como fonte de uma alusão de Bacon a Heráclito
na apresentação dos idola specus.54
Já no De augmentis scientiarum, depois de alegar que muitos dos grandes
filósofos tiveram razão em se tornar céticos e acadêmicos, seguindo apenas as
aparências e probabilidades, Bacon opina que tanto Sócrates quanto Cícero não
teriam "sinceramente" (sincere) sustentado a incapacidade da mente em obter a
verdade (mas apenas em vista propósitos irônicos e retóricos) e afirma: "É
certo, contudo, que houve alguns, aqui e ali, tanto na Nova quanto na Antiga
Academia, e muito mais entre os Céticos, que sustentaram essa opinião em sua
simplicidade e integridade (simpliciter et integre)."55. Assim, além de
diferenciar essas correntes filosóficas, Bacon parece levar em consideração
duas modalidades distintas de adoção de uma postura cética: uma modalidade mais
radical, que teria admitido a impossibilidade de reconhecer a verdade de forma
integral e simples (principalmente associada ao pirronismo, mas talvez com
aderentes também entre os acadêmicos), e uma modalidade mais branda,
exemplificada por Sócrates e Cícero, segundo a qual se poderia admitir uma
adesão à suspensão subordinada a fins diversos, ou uma recusa não-integral da
possibilidade de reconhecer a verdade. Se cotejamos essa passagem com o texto
do aforismo I, § 67, do Novum organum anteriormente citado, ela parece sugerir,
afinal, que Bacon tenderia a ver uma maior proximidade entre sua própria
maneira de ver e a posição de alguns desses filósofos majoritariamente
associados à Nova Academia, na medida em que neles projeta, mesmo sem se valer
dessa expressão, uma espécie de ceticismo mitigado (e mais próximo, nessa
medida, de facultar o desenvolvimento de uma investigação acerca da verdade).
Esse texto, ademais, parece fortalecer a sugestão de que Bacon tenha tido algum
contato com as obras céticas de Cícero (autor que, segundo ele, faz parte
daqueles que abraçaram a Nova Academia, mas sobretudo em vista do propósito de
dissertar eloqüentemente in utramque partem, de ambos os lados da mesma
questão).56 E mesmo, em vista do conteúdo de sua interpretação, com a
apresentação do ceticismo oferecida por Diógenes Laércio em Vidas dos filósofos
ilustres, como igualmente sugeriu Emil Wolff.57
Ainda assim, é notável a maneira como alguns aspectos da exposição da doutrina
dos ídolos parecem evocar o ceticismo exposto por Sexto ' especialmente, ao que
nos parece, no que tange aos idola specus que, como vimos, são referentes às
diferenças dos indivíduos quanto ao corpo, à alma, à educação, ao hábito e às
circunstâncias como são afetados pelos objetos. O Segundo Tropo de Enesidemo
alega, precisamente, que as diferenças entre os homens, seja no que tange à sua
constituição corporal (em que se incluem também a diversidade de preferências e
da maneira como são afetados pelos órgãos dos sentidos), ou no que tange à
presumível diferença no que respeita à alma (a julgar pela diversidade
irredutível das suas opiniões), devem nos conduzir à suspensão do juízo ante a
ausência de critérios pelos quais possamos elidir tal controvérsia.58
Ressalvadas as diferenças que se poderiam apontar entre tais textos ' por
exemplo, no que tange à modalidade das oposições estabelecidas ou, como
assinalou Moody Prior, à ausência dos argumentos próprios presentes no tropo
pirrônico59 ', há diversos outros temas, nesse e em outros momentos da doutrina
dos ídolos, que se prestariam a uma aproximação conceitual com o que observamos
nos textos de Sexto: por exemplo, a recusa baconiana das antecipações do
espírito que marcam a filosofia tradicional (assemelhada à crítica pirrônica da
propéteia, a precipitação dogmática),60 o modo como a "novidade" ou o costume
podem ser fatores de distorção cognitiva (como Sexto assinala no Nono Tropo de
Enesidemo, baseado na raridade e na freqüência com que as coisas se
apresentam),61 ou mesmo a crítica às imprecisões e erros dos sentidos (que
parecem remeter aos temas dos Tropos Terceiro, baseado nas percepções
conflitantes segundo os diversos sentidos humanos, ou Quinto, baseado na
oposição segundo a diversidade das posições e situações de percepção).62
Uma possibilidade a ser considerada é a de que Bacon tenha tido acesso a esses
materiais através de outras fontes. Segundo Granada, na crítica dos ídolos,
tanto no que tange aos sentidos quanto ao intelecto em seu funcionamento
espontâneo, seria possível reconhecer uma "coincidência" com a crítica cética,
tanto em sua versão grega quanto em sua versão renascentista.63 E o fato de os
tropos de Enesidemo serem também expostos em Diógenes Laércio, ainda que de
modo pouco detalhado, sugere que sua presença não remeta necessariamente a
Sexto. Mas mesmo que as menções explícitas de Bacon aos céticos e acadêmicos
pareçam apontar principalmente aos antigos, como vimos, talvez devamos conferir
um peso maior às eventuais fontes contemporâneas que ele reconheceu como
afeitas ao ceticismo. É importante, ademais, levarmos aqui em consideração o
modo como Bacon reconhece a presença de elementos céticos mesmo em autores que,
a seu ver, não teriam sustentado a suspensão do assentimento "sinceramente",
pois isso nos adverte que ele os pode ter admitido na elaboração da sua
doutrina dos ídolos mesmo sem estar disposto, eventualmente, a reconhecer tais
fontes como "integralmente" céticas.
De todo modo, Bacon também alude a autores contemporâneos que relaciona ao
ceticismo. Tais alusões, mesmo quando possuem um viés crítico, revelam sua
atenção para as peculiaridades com que tal filosofia então se apresentava. No
opúsculo Temporis partus masculus, ele se refere a Agrippa de Nettesheim, autor
do De incertitudine et vanitate scientiarum et artium (1531), como uma espécie
de "bufão de rua" (trivialis scurra) que tudo distorce e leva ao riso,
descrevendo, na mesma obra, o ceticismo como uma filosofia que "o anima e o
conduz a rir", pelo modo como leva os filósofos a "girarem em círculos".64
Talvez seja possível, como propôs Granada, que essa avaliação se justifique por
uma rejeição de Bacon ao fideísmo antiintelectualista desse autor.
Alternativamente, talvez devamos levar em conta que o ceticismo, ao longo do
século XVI, é freqüentemente objeto de uma associação literária com a retórica
do paradoxo e da ironia, tal como ocorre no Elogio da loucura, de Erasmo, na
obra de Rabelais e na própria Vanitate scientiarum de Agrippa.65 Bacon, como
vimos, reconhece que tal associação é possível em autores que sustentam
posições dubitativas, como no caso de Sócrates, e, na mesma passagem do
Temporis partus masculus, afirma que ali ele próprio se põe a escrever sob o
véu da invectiva (maledictus), o que lhe permite expor sua crítica de forma
concisa, escolhendo as expressões com que alveja particularmente cada um dos
autores criticados.66 Não poderia a própria crítica de Bacon a Agrippa ser, em
alguma medida, um produto do mesmo expediente retórico irônico? Isso se
acomodaria bem com a hipótese proposta por Deleule, segundo a qual esse
opúsculo, tal como outros que são produzidos anteriormente ao Novum organum,
constituiriam experiências retóricas destinadas à persuasão dos diversos
leitores a quem se dirige em busca de viabilizar a tarefa coletiva da
Instauratio.67 Nesse caso, a crítica de Bacon ao ceticismo aí presente seria
apenas o resultado paradoxal de uma estratégia literária cética associada à
tradição do paradoxo. E a primeira impressão de crítica aos céticos (pelo modo
como sua própria investigação os conduziria a uma pesquisa errante) poderia dar
lugar a outra leitura, aparentemente mais fiel à literalidade do texto, segundo
a qual o ceticismo, em vez disso, diverte-o ao exibir a precariedade das
filosofias que pretenderam afirmar à verdade (assinalando, talvez, o modo como
se enredariam em "círculos" demonstrativos). Não seria essa leitura mais
conforme aos elogios que Bacon dirige aos céticos nos textos aqui considerados?
Num caso ou noutro, a passagem testemunharia que Bacon foi atento a diferentes
facetas do ceticismo contemporâneo.
Mas Agrippa não constituiria a referência mais relevante para as afinidades
céticas admitidas por Bacon. Formigari e, posteriormente, Granada apontaram, de
modo bastante persuasivo, diversos aspectos em que as críticas do Quod nihil
scitur (1581), de Francisco Sanchez, se aproximam de aspectos da doutrina dos
ídolos ' seja no que se refere às críticas à noção aristotélica de ciência
compreendida como conhecimento perfeito a partir das causas, a crítica à
linguagem ou ao reconhecimento dos obstáculos ao conhecimento derivados da
organização social dos saberes e da brevidade da vida.68 Além disso, Sanchez,
como Bacon, nos idola tribus, se detém em expor os erros e imperfeições do
intelecto e dos sentidos humanos, incapazes de nos oferecerem acesso ao que
seriam as coisas em si mesmas.69 Bacon, igualmente, a despeito de propor um
método que nos capacitaria a ter acesso às formas próprias das coisas,
reconhece haver uma dimensão "interna" das operações da própria natureza que,
para além do que se oferece a nós pela conjunção ou disjunção dos corpos
naturais, por força das limitações de nossas faculdades, nos escapa
necessariamente.70 Ademais, embora Sanchez não admita ser possível dispormos de
"conhecimento perfeito", admite que a experiência pode nos oferecer uma forma
imperfeita de conhecimento das coisas, capaz de diferir em escopo, clareza e
graus, e anuncia uma obra destinada a elaboração de um método voltado a esse
fim.71 Desse modo, por mais que tenham perspectivas diversas relativamente ao
potencial alcance de nosso conhecimento, ambos os filósofos valorizaram a
experiência sensível como fonte privilegiada de conhecimento, sem com isso
pretender que nossas percepções ofereçam imediatamente alguma espécie de
certeza. Se Sanchez elabora suas reflexões sobretudo a partir de fontes
acadêmicas, e aparentemente não conheceu os textos de Sexto, ele aparece como
um forte candidato a representar a versão do ceticismo que teria sido mais
simpática a Bacon em vista de suas próprias posições.72 Por essa mesma razão,
contudo, o Quod nihil scitur parece ser uma fonte insuficiente para a
explicação da presença dos elementos pirrônicos que, como dissemos, difusamente
apareceriam na doutrina baconiana, caso esteja correta a hipótese de que ele
não teve acesso direto às Hipotiposes de Sexto. Esta seria uma razão a mais
para levarmos igualmente em consideração os Ensaios (1580-1588) de Montaigne '
nos quais, como bem assinalou Popkin, fazem-se presentes praticamente todos os
itens do arsenal argumentativo do pirronismo segundo a apresentação de Sexto.73
Num estudo notável, embora pouco mencionado pelos especialistas, Pierre Villey
nos mostra que Bacon efetivamente leu e se reportou aos Ensaios ' traduzidos ao
inglês e publicados, em 1603, por John Florio ' em momentos diversos de sua
trajetória intelectual.74 Segundo Villey, buscou-se equivocadamente a principal
influência de Montaigne sobre Bacon nos Ensaios deste autor, cujo parentesco
com a obra de Montaigne é remoto, ainda que o título da obra baconiana
seguramente tenha sido, segundo esse comentador, nela inspirado. As afinidades
filosóficas, diz Villey, se manifestariam de modo mais claro na obra madura,
particularmente na relação entre as críticas ao conhecimento humano, tal como
expostas na doutrina dos ídolos, e as argumentações de cunho cético da
Apologia, como atestam as numerosas e detalhadas aproximações textuais que ele
mesmo se detém em enumerar (nas quais se incluem textos sugerindo que Bacon
teria de fato interpretado Montaigne como um filósofo cético, tal como
usualmente se fez no período).75 Villey tem o cuidado de manter suas
aproximações num regime hipotético, frente à ausência de evidências
conclusivas. Todavia, os indícios disponíveis o levam a concluir, não apenas
que seguramente Bacon leu Montaigne, mas que tal leitura teria despertado e
aguçado seu espírito crítico para a apreciação da fraqueza dos métodos
filosóficos disponíveis e da razão humana abandonada a suas forças. A tal ponto
que se justificaria melhor uma aproximação entre esses dois autores do que
aquela que mais comumente se faz entre Montaigne, Descartes e Pascal.76
Em suma, é possível que Bacon tenha constituído um elo importante na própria
constituição da noção de um ceticismo "mitigado",77 bem como na construção
moderna da imagem historicamente discutível do ceticismo pirrônico como uma
filosofia cuja radicalidade dubitativa a oporia inapelavelmente aos ideais
modernos de investigação da natureza. Ainda que pouco estudado,
proporcionalmente à relevância de sua obra, Bacon foi lido com interesse por
filósofos que serão fundamentais na maneira como tal imagem se divulgará pela
posteridade, como é o caso de Hume. Por outro lado, vimos que isso não
significa que ele não tenha absorvido em suas reflexões próprias, ainda que os
adaptando e transformando, elementos provenientes do ceticismo, mesmo em sua
versão pirrônica, numa dimensão filosoficamente mais expressiva do que se pode
verificar em outros autores modernos mais comumente associados à repercussão
dessa filosofia. Por mais distintas que sejam as filosofias de Descartes e
Bacon, é lícito dizer que, tanto na Primeira Meditação cartesiana, quanto na
doutrina dos ídolos baconiana, estamos diante de reconstruções metódicas que
não apenas se inspiram da dúvida cética, mas pretendem refletir, em alguma
medida, o reconhecimento da cogência e da atualidade do diagnóstico cético da
falta de fundamentos do conhecimento. Sem se pretenderem elas próprias céticas,
almejariam ser capazes de abarcar a profundidade dessa mesma problemática, tal
como exposta por tais filósofos, que pretendem superar. Igualmente, a
particularidade das estratégias próprias com que cada um deles visa tal fim
deixar-se-ia entrever já no nível da reformulação de tais problemas, nas partes
"destrutiva" ou "dubitativa" de suas reflexões, que, cada qual a seu modo,
preparariam o terreno para o advento de uma nova filosofia.
Mas aqui cabe salientar a distância que separa Descartes e Bacon. No caso de
Descartes, ainda que a dúvida metódica perdure até o final da Sexta Meditação,
o processo de sua superação inicia-se no início da Segunda, na qual já se pode
admitir a certeza arquimediana do cogito, que conduzirá a reconhecer nas idéias
claras e distintas um critério de verdade. A rigor, por mais que a dúvida
importe na estruturação da Metafísica, sua plena vigência restringe-se apenas à
Primeira Meditação, e na Sexta, findo o percurso, ela poderá aparecer, segundo
o próprio autor, como "hiperbólica e ridícula".78 Enquanto Descartes se
apresenta ele mesmo como o filósofo capaz de conquistar uma certeza para além
da dúvida mais radical que os céticos pudessem propor, Bacon não pretende
avançar, de sua parte, nenhuma teoria completa ou universal, nem mesmo entende
que isso seja possível, como vimos, em vista do atual estado das coisas e dos
espíritos.79 Ele se limita a apontar àquela que seria a via adequada para a
superação desse estado de indigência dos saberes humanos, oferecendo indícios
relevantes de uma nova indução, capaz de conduzir os homens progressivamente à
completa reinvenção de princípios e axiomas.80 A empresa que ele pretende
anunciar não é tarefa de um homem só, e nela pouco espaço há para os talentos
individuais, cujo poder de persuasão não deve se confundir, diz ele, com a
verdadeira pesquisa da natureza.81 Tal empresa coletiva, porém, permanece
inútil se não for possível contornar os erros radicais que intervêm, segundo
ele, já na primeira digestão do material da experiência ' se não for possível,
noutros termos, contornar progressivamente os ídolos cuja vigência permanece
dando razão aos céticos quando suspendem o juízo diante dos saberes que se
pretendem disponíveis.82
Assim, mesmo que as causas de nossa incapacidade de conhecer, por Bacon
identificadas em sua doutrina dos ídolos, possam divergir das apontadas pelos
céticos, ele pretendeu acolher, em sua própria filosofia, a relevância
filosófica própria do ceticismo mais generosamente do que ocorreu no caso de
Descartes. O "ceticismo temporário" que cumpriria adotar por meio dessa
doutrina, embora corresponda, na formulação precisa que adquire em Bacon, a uma
parte do método, não se resume, para ele, ao fruto de uma decisão metodológica
que poderia ser revogado juntamente com essa própria decisão, mas é o reflexo
da avaliação de nossos limites cognitivos efetivamente vigentes. Assim, por
mais que a posteridade tenha normalmente se voltado para a dúvida metódica
cartesiana quando buscou uma versão moderna do ceticismo, não se fariam os seus
ecos mais adequadamente presentes na doutrina dos ídolos ' que, mesmo sem ser
cética, seria, aos olhos de seu proponente, portadora de um interesse autônomo
e de uma potencial atualidade filosófica nos problemas que oferece, para além
de sua própria tentativa de solucioná-los? Ao menos, a filosofia baconiana se
oferece, em vista desses elementos, como um capítulo à parte, importante e
ainda insuficientemente pesquisado, da transmissão e da transformação do legado
crítico do ceticismo antigo na modernidade.83