As criações do gênio: Ambivalências da "metafísica da arte" nietzschiana
O Nascimento da tragédia é ainda hoje uma obra de difícil compreensão, apesar
dos esforços críticos do próprio Nietzsche e das pesquisas filosóficas,
críticas e históricas das últimas décadas. É muito elucidativo o posfácio de G.
Colli ao Nascimento da tragédia, à medida que aponta para a incompatibilidade
presente na obra, a saber, de utilizar a linguagem do classicismo alemão para
tentar expressar temas "místicos", que exigem um tipo singular de consagração:
"Num certo sentido, o Nascimento da tragédia é a obra mais 'mística' de
Nietzsche, à medida que ela exige uma consagração. Há níveis que se deve
atingir e ultrapassar, para poder penetrar no mundo visionário do Nascimento da
tragédia: uma consagração literária, bem entendido, em que o ritual dos
mistérios é substituído pela palavra impressa. Desse modo, o Nascimento da
tragédia é também a obra mais difícil de Nietzsche, pois em tudo o mistagogo
assume a linguagem da razão e com isso ingressa, passo a passo, num mundo que
ele se esforça por esclarecer".1 Não se pode, desse modo, pretender eliminar o
caráter "místico" do Nascimento juntamente com os pressupostos metafísicos,
pessimistas e românticos, simplesmente por se tratar de um equívoco ou
precipitação de Nietzsche: o recurso aos "mistérios" está no centro das
reflexões da metafísica da arte.
Bastante esclarecedora também é a análise de Barbara von Reibnitz, para quem o
Nascimento da tragédia, no seu todo, "é apresentado como um texto de iniciação,
por meio de uma retórica abarcante do mistério. Por meio do uso freqüente do
pronome pessoal 'nós', Nietzsche busca criar para si uma 'comunidade' de
leitores, que ele introduz como 'mistagogo' nos 'contextos mais secretos', nos
'abismos do conhecimento', e também na esfera do 'consolo metafísico' a
leitura se torna iniciação".2 A dificuldade, admitida por Nietzsche, deve-se
sobretudo à ambiciosa tentativa de articular uma tese metafísica com a
filologia e a música: "Temo ainda que os filólogos, por causa da música, os
músicos por causa da filologia, e os filósofos por causa da música e da
filologia não queiram ler este livro (...)".3 O modo original e complexo de
abordar esses temas incide na dupla tarefa da obra, a saber, de provar que a
tragédia originou-se do gênio (dionisíaco) da música e de criar condições para
o renascimento da tragédia no século XIX, a partir do "gênio" da música de
Wagner. Para atingir essa meta, Nietzsche se agarrou firmemente à filosofia
metafísica e pessimista de Schopenhauer. Não é apenas o filósofo-filólogo-
músico que fala, mas um ser entusiasmado, que exige consagração e o ingresso na
esfera do mistério.
A "metafísica da arte"4 de Nietzsche vincula-se explicitamente à oposição
schopenhaueriana da coisa em si e do fenômeno. Outras fontes e influências
importantes do romantismo alemão não são mencionadas. Não há, contudo, uma
correspondência total do dionisíaco com a coisa em si (vontade), e do apolíneo
com o fenômeno. No Nascimento da tragédia,5 nos escritos preparatórios, nos
fragmentos póstumos e textos da época podemos perceber as oscilações e rupturas
em relação a Schopenhauer. Num primeiro momento, mostraremos a importância da
compreensão de gênio para a metafísica da arte. Além dos impulsos artísticos
apolíneo e dionisíaco (e da união de ambos na tragédia), Nietzsche procura
incorporar outros aspectos na constituição do gênio, como o conhecimento
trágico e a "santidade". Com isso, buscaremos mostrar que com a compreensão de
gênio está no centro das oposições e das ambiguidades da metafísica de artista.
Além disso, o projeto de criação do gênio marca um afastamento decisivo em
relação a Schopenhauer, e do mesmo modo em relação ao romantismo, apesar da
adesão inicial. É necessário também investigar as implicações do procedimento
nietzschiano, que assume explicitamente a filiação ao pessimismo de
Schopenhauer e à música de Wagner, e omite influências determinantes de
literatos e pensadores românticos, como F. Schlegel, F. Schelling,6 F.
Hölderlin e F. Creuzer.
Não há nenhuma menção direta ao Romantismo na primeira edição do Nascimento da
tragédia, seja ela afirmativa ou negativa. Nietzsche quer consumar o salto
prodigioso da época trágica dos gregos para a sua época, afirmando o
renascimento do gênio que outrora engendrou a tragédia grega. Desse modo, a
tragédia renasceria no espírito da música alemã (do gênio de Wagner).7 Que um
projeto estético semelhante tenha sido anteriormente proposto, no Romantismo
alemão, especialmente no Primeiro Romantismo (Frühromantik), não é tematizado
explicitamente. As poucas menções aos românticos e clássicos alemães, como os
irmãos Schlegel, Goethe, Schiller, Winckelmann, ocorrem em aspectos pontuais,
como a interpretação do poeta lírico e do coro trágico. Entretanto, na
tentativa de autocrítica (1886), Nietzsche se pergunta: " Mas, meu senhor, o
que é romântico no mundo, se seu livro não é romântico? É possível levar mais
longe o ódio profundo em relação a 'atualidade', 'realidade' e 'ideias
modernas' do que aconteceu na sua metafísica de artistas? Que prefere
acreditar no nada, no diabo, a acreditar no 'agora'?" (GT, Tentativa de
autocrítica, 7, p. 21). Ele critica em si mesmo o pendor pessimista por
consolos metafísicos, que se manifestou também nos jovens românticos e ainda no
"velho" Wagner. Nessa ótica, a obscura música romântica de Wagner,8 a que ele
devotou sua obra das primícias, seria o que há de mais pessimista, niilista em
suas últimas consequências.
A opção metodológica de Nietzsche de não citar fontes e influências na sua
"obra de primícias" é questionável, e ofusca a originalidade de suas teses, p.
ex., a descoberta do dionisíaco.9 Não é suficiente apontar uma ou duas
citações10 dos fragmentos póstumos de 1870-1871 para ratificar a separação
definitiva do Romantismo já na época do Nascimento da tragédia, como o póstumo:
"Os românticos carecem de instinto" (VII, 5(45)). Nietzsche não aceita
simplesmente a contraposição clássico - romântico (sadio - doentio) do Goethe
tardio: "O romantismo não se contrapõe a Goethe e a Schiller, mas a Nikolai e a
todo o Iluminismo. Schiller e Goethe estão muito além dessa contraposição"
(VII, 9(71)).
Por viver e escrever numa época em que o Romantismo já havia se esgotado há
muito como movimento,11 Nietzsche não aprofunda a investigação acerca da
valorização romântica da criação do gênio (por exemplo), mas se limita a
reformular clichês das discussões filosófico-literárias de seu tempo.12 Nesse
sentido, como bem mostrou E. Behler, é preciso mostrar a estreiteza da
compreensão nietzschiana de Romantismo: "A Inglaterra quase não é considerada,
porque ela não se encaixa na concepção musical e pessimista que Nietzsche tem
do Romantismo. Autores como Shelley, Stendhal, Leopardi, Heine, Emerson, que
nós consideramos como representantes eminentes do Romantismo, não foram vistos
por Nietzsche como românticos. Byron foi mencionado por ele até mesmo com
orgulho como principal testemunha contra o 'falso sistema' do Romantismo.
Estranha nessa imagem é também a posição especial que Nietzsche como antes
dele Heine e depois dele Georg Brandes atribui ao romantismo francês, como a
'sede da cultura mais espiritual e refinada da Europa, (...) como um fervor à
'forma', para o qual se inventou a expressão l'art pour l'art, entre outras
mil'".13 A fixação monótona na oposição clássico - romântico, ascendência -
decadência, que marca a crítica nietzschiana posterior ao romantismo, não
contribui para o esclarecimento da afirmação trágico-dionisíaca.
Procuraremos responder à pergunta acerca do que é romântico no Nascimento da
tragédia a partir de dois movimentos: a valorização do gênio dionisíaco e da
tentativa de criar uma nova mitologia. Esses elementos românticos estão no
centro da metafísica da arte e são desenvolvidos na perspectiva de um novo
simbolismo (Symbolik) e da primazia do gênio no processo de criação artística.
Não é nossa intenção enumerar as semelhanças dos projetos estéticos desses
pensadores com os de Nietzsche, para depois contrabalançá-las com as profundas
divergências que sobressaem no Nascimento da tragédia. Nossa perspectiva é a de
analisar as novas configurações do gênio criador artístico do Romantismo na
metafísica da arte de Nietzsche.
1 Metafísica da arte - Metafísica de artistas
São muitas as influências e pensamentos que levaram à colocação da tese da
"metafísica da arte" (Metaphysik der Kunst). É inevitável, no entanto, recorrer
à duplicidade apolíneo-dionisíaco, como o centro para onde convergem os
projetos estéticos do jovem Nietzsche. Para esclarecer a relação entre os dois
impulsos ou gênios artísticos, partiremos da compreensão do dionisíaco (de seu
primado metafísico em relação ao apolíneo) não enquanto arte, mas como
sabedoria, conhecimento, verdade. Em que consiste a "sabedoria" dionisíaca?
Inicialmente, Nietzsche refere-se à sabedoria popular, a mitos do mundo antigo,
especialmente dos gregos, para elucidar o abismo de onde brotam as belas
aparências. Essa sabedoria se revela no mito do "sábio" Sileno, na resposta
dada por este à insistente interrogação do rei Midas acerca do que é mais
desejável ao homem (cf. GT 3, p. 35).14 Logo em seguida, ele expõe como o grego
se relacionava com essa sabedoria pessimista: "O grego conheceu e sentiu os
horrores e terrores da existência: para poder de algum modo viver, teve de
colocar diante de si a reluzente criação dos deuses olímpicos" (GT, p. 35). São
muitas as ilustrações (simbolizações) da sabedoria dionisíaca ao longo da obra:
os poderes titânicos da natureza, a Moira, o destino cruel dosheróis, titãs
antigos, como Prometeu, Édipo, e de figuras modernas, como Hamlet. A "verdade",
portanto, é o desmedido (das Übermaass) (GT 4, p. 41), no sentido de que o
indivíduo é efêmero, fugaz e ilusório perante o "misterioso Uno-Primordial". A
individuação não é a causa de todos os sofrimentos, mas é o reflexo de uma dor
primordial (Urschmerz). Em que pese a divergência em relação a Schopenhauer,15
a tese de Nietzsche aponta para um obscuro princípio metafísico, do qual ele
não fornece provas.
O Uno-Primordial (das Ur-Eine)16 é a chave para compreender o vínculo íntimo
entre prazer e dor, entre a arte apolínea e a dionisíaca, entre o gênio
apolíneo e o dionisíaco. Para o jovem Nietzsche, o Uno-Primordial é "o eterno
padecente e pleno de contradição" (das ewig Leidende und Widerspruchsvolle)17
(GT, p. 38). Não há ainda um avanço na elucidação do tema, pois o Uno-
Primordial é "misterioso", inacessível ao homem (cf. VII, 7(170)). Além disso,
não é dada nenhuma explicação de como uma "unidade originária" pode ser, ao
mesmo tempo, dor e contradição originárias. De onde provém a dor? De que
contradição se trata? O termo, a nosso ver, é inapropriado para expressar
aquilo que Nietzsche entende ser o "ser verdadeiro", o fundamento do mundo. Não
há nenhuma unidade no fundamento, mas "a dor, a nostalgia, a falta como fonte
primordial das coisas" (VII, 7(165)). O autor do Nascimento da tragédia
ingressa no domínio da teodiceia, ao buscar justificar o sofrimento e a
existência do mundo. Existem dois mundos nessa formulação metafísica: a dor e a
contradição do Ser verdadeiro e o mundo da aparência, do prazer e da harmonia.
Visto que o fundamento é somente dor e contradição, a superação da dor só pode
acontecer no mundo das aparências: "No vir-a-ser deve repousar o segredo da
dor" (idem). Entretanto, o dionisíaco (das Dionysische) também é identificado
ao Uno-Primordial, como prazer primordial (Urlust) em engendrar aparências.
Não podemos afastar as dificuldades que esse caráter substancial e misterioso
do Uno-Primordial acarreta na elaboração da metafísica da arte nietzschiana. O
ponto de partida, o fundamento primordial (Urgrund) é declaradamente
pessimista, de modo que Nietzsche não hesita em lançar mão de uma teodiceia
para superá-lo. O conhecimento (identificado à sabedoria e à verdade)
dionisíaco é pessimista já em suas raízes: "O dionisíaco como mãe dos
mistérios, da tragédia, do pessimismo" (VII, 9(61)).
A teodiceia presente no Nascimento da tragédia consiste na afirmação da
"Vontade" como sujeito e objeto do processo do vir-a-ser do mundo. Os gregos
são o "meio", o instrumento, através do qual a Vontade dá vida à arte, que é o
espelho transfigurador de sua dor primordial: "Nos gregos a 'vontade'18 queria
contemplar a si mesma, na transfiguração do gênio e do mundo da arte; para se
autoglorificar, suas criaturas precisavam sentir-se como dignas de
glorificação, elas tinham de se ver novamente numa esfera superior (...)" (GT,
3, p. 37).
A "teodiceia dionisíaca" presente no pensamento da juventude de Nietzsche,
segundo Georges Goedert, visa principalmente à superação do pessimismo
schopenhaueriano. Nessa teodiceia não seria afirmado somente o prazer panteísta
(die pantheistische Mitfreudigkeit), mas também o sofrimento e a compaixão. A
compaixão dionisíaca se manifestaria no modo como o indivíduo afirma seu
próprio sofrimento, como parte da fatalidade dionisíaca da vida.19 Na obra
Nietzsche der Überwinder Schopenhauers und des Mitleids, Goedert desenvolve
esse confronto a partir da compaixão. Enquanto que para Schopenhauer a
compaixão é a salvação, a cura de todos os males da existência, a única forma
possível e praticável da ética, Nietzsche vê nela o "maior perigo", a última
tentação de Zaratustra.20 A posição positiva de Nietzsche em relação ao
sofrimento, seja no Nascimento da tragédia ou no Zaratustra, marca seu
afastamento do pessimismo schopenhaueriano, o que não implica uma ruptura
total, visto que ele vê afinidades entre budismo e cristianismo. Mesmo nas
críticas tardias, afirma Goedert, ainda permanece a influência de Schopenhauer,
de sua compreensão do cristianismo como uma afloração do budismo, que teria em
comum com aquele o caráter exclusivamente moral e niilista. Além disso, ambos
os pensadores identificariam o amor cristão com a compaixão.21
Questionamos a interpretação de Goedert acerca do sofrimento no Nascimento da
tragédia. Segundo ele, Nietzsche caracterizaria o sofrimento de modo metafísico
(o dionisíaco Uno-Primordial é o eterno sofredor), e de modo religioso, à
medida que Dioniso-Zagreu é o símbolo para o estado da individuação, dos
sofrimentos a ela inerentes. Os dois aspectos aparecem unidos, pois essa
metafísica seria desenvolvida pelos gregos nos mistérios que celebravam os
sofrimentos de Dioniso.22 A nosso ver, Nietzsche não explicita o estatuto
metafísico dos mistérios (cf. VII, 7(121)): na ordem dionisíaca dos mistérios,
essa sabedoria e seus símbolos seriam acessíveis somente aos iniciados, aos
epoptas. Assim, a remissão do segredo da união entre o apolíneo e o dionisíaco
aos mistérios não fornece uma chave para compreender o sofrimento, e sua
relação com o prazer e com a compaixão. A causa do sofrimento não é a mesma:
para Schopenhauer, a individuação é a causa do sofrimento: "Essa autocisão que
se efetua no mundo da individuação é remetida a um misterioso pecado original,
que põe fim à unidade originária e harmônica da vontade consigo mesma".23 Para
o jovem Nietzsche, o Uno-Primordial é causa das dores do mundo da individuação.
Em comum há a depreciação da individuação no processo de redenção que a arte ou
a renúncia ascética acarretam. No Zaratustra, contudo, há uma valorização do
indivíduo singular24 no processo de criação e de "redenção", o que é decisivo
para o afastamento do pessimismo de Schopenhauer.
Ao propor esta teodiceia singular,25 Nietzsche equipara a Vontade ao Uno-
Primordial, que é compreendido como Dioniso, o deus-símbolo da irrestrita
afirmação do mundo.26 A oposição em relação à metafísica de Schopenhauer é
evidente. O valor da arte, para Schopenhauer, consiste em ser um calmante
(Quietiv) para o querer. Através do gênio, sujeito puro do conhecimento, a
vontade toma consciência de suas cisões e contradições imanentes, de onde se
abre a possibilidade da negação do querer viver, através da contemplação
estética e, num nível mais profundo, da ascese.27 Nietzsche, ao contrário,
afirma que a arte é o triunfo contínuo do prazer da aparência e da ilusão sobre
a verdade dionisíaca terrível.
Há, entretanto, uma diferença decisiva entre Schopenhauer e Nietzsche no modo
de compreender o Uno-Primordial. Em Parerga e Paralipomena (II), Schopenhauer
afirma ser algo a priori que "aquilo que criou este mundo seria capaz também de
não fazê-lo", ou seja, a liberdade metafísica da vontade consiste em proceder à
negação de si mesma (enquanto vontade de vida), após percorrer todos os graus
de sua afirmação. Na filosofia "imanente" de Schopenhauer, muitas questões de
cunho transcendente ficam sem resposta, por exemplo: "De onde proveio essa
Vontade, que é livre para afirmar-se, originando assim o fenômeno do mundo, ou
para negar-se, cujo fenômeno não conhecemos?" ou também: "O que pode ter levado
a Vontade a abandonar o repouso infinitamente preferível do nada bem-
aventurado?".28 São problemas insolúveis, que fogem absolutamente da
investigação filosófica, e que o filósofo pessimista assume como uma fatalidade
(trágica), embora as religiões os tratem como "mistérios". Apesar disso, a
afirmação e negação da vontade são a base não esclarecida de sua filosofia
pessimista e metafísica.
Além de não problematizar essa passagem obscura de Schopenhauer, Nietzsche leva
ainda mais longe o delírio metafísico de seu mestre, ao afirmar que o Uno-
Primordial é dor e contradição primordiais, eternas. O que permanece "mistério"
em Schopenhauer é metamorfoseado na teodiceia sui generis, e também
contraditória, na qual o Uno-Primordial é o padecente que, ao mesmo tempo, é
sujeito, o único Eu (Ichheit) verdadeiramente existente. Nesse sentido, o
dionisíaco Uno-Primordial cria o mundo da arte, da aparência e da individuação
para livrar-se das contradições nele concentradas. (Isso foi reconhecido
"tardiamente" por Nietzsche, no Zaratustra (na seção Dos ultramundanos) e na
"Tentativa de autocrítica"). Mas, ao mesmo tempo, a criação dionisíaca é vista
como expressão de um prazer primordial (Urlust)em criar aparências. É
contraditório afirmar que existe um prazer primordial inerente ao Uno-
Primordial, uma vez que o prazer é justamente uma decorrência da fuga, do sair
fora de si. O próprio Nietzsche admite que só por meio de ilusões há prazer,
que "o prazer só é possível no fenômeno e na visão (Anschauung) (VII, 7
(172)).29
Essa teodiceia e a tese metafísica a ela ligada aparecem como evidentes no
escrito "A visão dionisíaca do mundo" e na obra das primícias. Inicialmente,
Nietzsche trata o Uno-Primordial como um "mistério", que seria revelado a
poucos: àqueles que conseguirem ir além das formas conceituais do conhecimento,
para intuir esse saber dionisíaco de caráter esotérico.30 A vinculação do Uno-
Primordial aos mistérios dionisíacos permanece obscura nos escritos de
juventude de Nietzsche, apesar do caráter positivo a eles atribuído. Schelling,
no entanto, na sua obra tardia Filosofia da mitologia31 afirma que o espírito
absoluto teria se manifestado no mundo pré-cristão em três estágios dialéticos,
ligados a Dioniso: 1) Dioniso-Zagreus é a primeira manifestação, selvagem, do
espírito fora de si mesmo; 2) com Dioniso-Bakchos,32 enquanto deus do vinho e
da alegria, haveria a superação do caráter selvático-natural do primeiro
Dioniso; e 3) em Dioniso-Iakchos, cultuado e simbolizado nos mistérios,
manifesta-se o estágio superior e espiritual, ao qual ele liga a figura de
Jesus.33
Entendemos que essa despreocupação de Nietzsche em explicitar o estatuto
filosófico, metafísico e misteriosófico do Uno-Primordial expressa sua decisão
irrevogável em instituir a arte como a "única" forma de afirmação e
justificação do mundo (e da existência humana). Ele passa por cima, ou melhor,
não percebe as contradições de sua metafísica e teodiceia, pois está obcecado
em atingir o alvo supremo, a saber, a geração do gênio, do gênio como "cume de
encantamento do mundo" (Verzückungsspitze der Welt) (cf. VII, 7(157)). Se, no
início do Nascimento da tragédia, a preocupação central está em mostrar como
nos gregos o gênio transfigurou a dor primordial da Vontade/Uno-Primordial na
tragédia grega, o foco posterior da obra está na geração do gênio, em meio à
cultura e à arte alemãs (especialmente no gênio da música de R. Wagner), ou
seja, no renascimento da tragédia.
A "teodiceia" nietzschiana está intimamente ligada à metafísica da arte, na
medida em que Nietzsche compreende o apolíneo e o dionisíaco como gênios.
Embora não haja referências explícitas ao Romantismo alemão (no procedimento
nietzschiano de priorizar a discussão com Schopenhauer e Wagner), pode-se
perceber a influência das leituras de autores como F. Schlegel, F. Creuzer, F.
Hölderlin,34 Jean Paul, e de outras obras e comentários lidos por ele no
período de Schulpforta, de Leipzig e da Basiléia. O significado dessas fontes
de Nietzsche foi investigado por intérpretes como E. Behler, M. Baeumer e T.
Brobjer, cujos principais resultados e críticas procuraremos discutir.
Mostraremos ao longo do texto pontos de contato fundamentais da compreensão
nietzschiana do gênio com a dos românticos mencionados, enfatizando o modo
próprio com que Nietzsche se apropria e desenvolve a compreensão romântica do
gênio.
2 A preponderância do gênio artístico-apolíneo sobre a sabedoria dionisíaca
Um modo específico de relacionar dionisíaco e apolíneo pode ser encontrado em
fragmentos póstumos (final de 1870-abril de 1871) e no início do Nascimento da
tragédia. Nietzsche ensaia um modo de compreender a relação entre os dois
impulsos fundamentais, no qual o dionisíaco é visto apenas como conhecimento
das dores a que o Uno-Primordial está submetido, na forma com que seu
sofrimento se reflete nos horrores da existência individual. Apolo triunfa
sobre as potências originárias dionisíacas, visto que, através da arte, ele
consegue glorificar a vontade nas suas manifestações individuais, belas e
aparentes (cf. VII, 7(18)). O apolíneo não é, no entanto, expressão da
autonomia e da liberdade dos gregos para criar uma nova forma de vida; ele é um
dos meios da Vontade (helênica) para "atingir seu alvo, o gênio" (cf. VII, 6
(18)). A arte surge como "meio de cura do conhecimento" (VII, 7(152)). Para a
sua redenção, o Uno-Primordial precisa da aparência, da arte, portanto. Do
ponto de vista de cada indivíduo, a vida só pode ser suportada e afirmada
através das ilusões artísticas, do prazer apolíneo nas aparências (cf. VII, 7
(152) e 7(154)). Nesse contexto, Nietzsche afirma: "Minha filosofia, um
platonismo invertido: quanto mais afastado do ser verdadeiro, tão mais puro e
belo ele é. A vida na aparência como meta" (VII, 7(156)).
Esse processo de transfiguração estética se manifestou no triunfo do gênio
apolíneo sobre os horrores do conhecimento dionisíaco (das titanomaquias, p.
ex.). O mundo homérico e sua criação onírica dos deuses olímpicos são
amaterialização do impulso apolíneo à beleza. É Apolo quem conduz Homero, o
artista ingênuo, para a glorificação do prazer da aparência. A superestimação
do sonho tem a função de mostrar o abismo entre a aparência e o Uno-Primordial.
Por isso, Apolo é a "divinização da individuação" (GT 4), a "imagem divina
(Götterbild) do principium individuationis", o "prazer, a sabedoria da
aparência", que prevalece também no mundo interior da imaginação e no sonho.
Isso não impede Apolo de ser também uma divindade ética, que possibilita ao
indivíduo conduzir sua existência nos limites e na moderação. Entretanto, Apolo
não é o "protoartista", o verdadeiro sujeito criador da arte. Esse status
Nietzsche atribui, nos primeiros capítulos do Nascimento da tragédia, ao Uno-
Primordial, à Vontade (helênica) e a Dioniso, entre os quais ele não distingue
explicitamente. É a Vontade mesma que quer contemplar a si mesma "na
transfiguração do gênio": por isso, Nietzsche menciona várias vezes a "vontade
helênica" como sujeito desse processo, e não Homero, Hesíodo ou outro artista.
Ou, como ele expressa em outras formulações: "O verdadeiro existente necessita
igualmente da aparência prazerosa para sua constante redenção"; "A meta do Uno-
Primordial é a sua redenção através da aparência" (GT, p. 38-39).
Enquanto a existência empírica de cada ser humano é aparência, representação do
Uno-Primordial, o sonho seria a aparência da aparência (Schein des Scheins), o
prazer mais puro de um novo mundo da aparência, como é figurado na
Transfiguration, de Rafael (cf. GT 4, p. 39). Com tais artes, os gregos do
mundo homérico conseguiram inverter a sabedoria de Sileno, de modo que o mais
desejável seria continuar vivendo, sonhando, ansiando pela aparência e pelas
transfigurações da arte. Não podemos esquecer das "fantásticas" propriedades
que Nietzsche atribui ao Uno-Primordial. Apesar disso, se seguirmos as suas
ponderações, surge uma dúvida: por que o mundo homérico e os rebentos da arte
do gênio apolíneo não representam a vitória contínua sobre o fundo dionisíaco
da dor e da contradição? A nosso ver, há uma hesitação em relação ao estatuto
da arte apolínea, principalmente nos escritos preparatórios ao Nascimento da
tragédia. Se a meta é viver na aparência, se o Uno-Primordial atinge no gênio a
contemplação sem dor, o gozo estético, então não seria necessária (e nem
compreensível) a arte dionisíaca, nem sequer a tragédia, e seu prazer trágico
(cf. VII, 7(157) e 7(174)). Constatamos, assim, uma assimetria na construção da
arte apolínea em relação à arte dionisíaca.35 Na estética nietzschiana, o
dionisíaco (como estado natural e psicológico da embriaguez) assume nos gregos
um caráter idealizador, transfigurador; mas não fica claro o estatuto da arte
(música) e do artista dionisíaco, nem em sua pouco investigada remissão aos
mistérios.
Todas as criações do gênio são espelhamentos, representações, que constituem
"os mais puros momentos de repouso do ser". A obra de arte, nesse sentido, é o
verdadeiro não existente, visto que o mundo da arte, da aparência (Nietzsche
simplesmente identifica aparência e aparência artística, sem analisar as
implicações metafísicas) é o oposto do mundo do Uno-Primordial (VII, 7(174)).
Nessa oposição, contudo, ele atinge sua meta: "O Ser se satisfaz na completa
aparência" (VII, 7(157)). Se o gênio (apolíneo, nesse caso) é o "cume de
encantamento" do mundo,36 não haveria uma solução para o enigma da dor e da
contradição do Uno-Primordial? Por que Nietzsche não vê as criações do gênio
apolíneo como o triunfo definitivo sobre a dor primordial, na forma de uma
existência afirmativa, imersa na aparência, no vir-a-ser e na ilusão?
3 O gênio apolíneo e o poder da ilusão
O gênio artístico apolíneo está intrinsecamente ligado à aparência. Nisso ele
se diferencia do gênio de Schopenhauer, que nos seus instantes de contemplação
pura se arranca ao mundo do vir-a-ser e das ilusões: "O gênio tem a força de
envolver o mundo com uma nova rede de ilusões. A educação para o gênio consiste
em tornar necessária a rede de ilusões, por meio da zelosa consideração da
contradição" (VII, 6(4)).
Seguindo essas considerações, podemos concluir que o prazer supremo (para os
mortais e para o misterioso Uno-Primordial) reside na imersão total na
aparência artística, nas ilusões do gênio. Há uma completa identificação do
mundo do vir-a-ser com o mundo da arte, da aparência e da ilusão. Esse
procedimento, contudo, acarreta uma depreciação das aparências e,
consequentemente, dos indivíduos, que são apenas aparência (cf. VII, 7(170) e 7
(174)). Isso porque as ilusões artísticas não são ações individuais: é a ilusão
descomunal de "que a natureza tão regularmente se serve para atingir seus
objetivos. O alvo verdadeiro é recoberto com uma imagem ilusória. A esta ilusão
estendemos as mãos, enquanto a natureza atinge aquele alvo através do engano"
(DW 2).
O que no fundo importa nesse processo descomunal que a metafísica da arte (e a
teodiceia a ela inerente) descreve é a meta a ser atingida pela vontade, qual
seja, a contemplação de si mesma na transfiguração das obras de arte, no gênio
(cf. DW 2 e GT 3, p. 37). Os indivíduos seriam somente joguetes e instrumentos,
que a todo-poderosa vontade emprega para atingir sua meta, ou melhor, para
redimir-se das dores e contradições primordiais. A arte bela não teria valor em
si mesma, pois as aparências e todas as ilusões artísticas inclusive as do
gênio devem servir apenas para a autoglorificação da vontade.
Se Nietzsche levasse essa argumentação até suas últimas consequências, ele
teria de abandonar o discurso acerca da verdade, em suas raízes dionisíacas. A
vontade "esconderia" de todos os homens e gênios a verdadeira meta, através das
ilusões que seduzem à vida. Assim, mesmo o conhecimento de natureza apolínea
seria uma forma de ilusão e medida, para a afirmação da vida individual, ou
melhor, para a autoglorificação da vontade. Parece que novamente Nietzsche se
serve de uma passagem obscura de Schopenhauer, para torná-la ainda mais
obscura. Segundo Schopenhauer, todas as formas de conhecimento humanas estão a
serviço da Vontade. Entretanto, quando a Vontade atinge os graus mais elevados
de sua objetivação, no gênio, o conhecimento se volta contra ela, e aponta para
a autocisão e contradição nas suas manifestações. Essa seria a própria
"intenção" da vontade. Schopenhauer não explica por que toda essa cadeia é
necessária, nem justifica essa teleologia inconsciente da Vontade.
A obra do gênio é tanto o cume do prazer e do encantamento da Vontade, quanto o
"processo originário" de projeção de aparências. Nesse sentido, Dioniso, e não
Apolo, é considerado o proto-artista (Urkünstler), que se serve do gênio
apolíneo para atingir seus "propósitos". Assim sendo, só haveria prazer por
meio das ilusões.37 O gênio vê apenas as aparências como aparências; ele mesmo
é aparência (Erscheinung); suas criações são apenas representações (cf. VII, 7
(157)). Com isso, há apenas a reafirmação dos interesses da Vontade em obter,
através do gênio artístico, a "contemplação sem dor", o puro gozo estético.
Assim sendo, o termo "metafísica de artistas" (Artisten-Metaphysik) é mais
apropriado do que "metafísica da arte" (Metaphysik der Kunst), pois Nietzsche
tem como principal foco de sua estética o processo de criação genial. No 'cume
do encantamento do mundo', "a dor primordial é completamente dominada pelo
prazer da contemplação" (7(175)).
Não chegaríamos assim, para utilizar uma expressão de Peter Heller,38 ao pan-
ilusionismo (Pan-Illusionismus) da filosofia nietzschiana, ao triunfo
derradeiro das ilusões e aparências sobre a verdade de fundo, a contradição
primordial e seu esfacelamento em indivíduos? Não é esse o caminho que ele
segue na época do Nascimento da tragédia. O cume do encantamento do mundo no
gênio é um limite, um estado provisório. Esse é o processo de autoaniquilamento
do gênio apolíneo: "O gênio é a aparência que aniquila a si mesma. Serpens nisi
serpentem comedirit non fit draco" (VII, 7(160)).39 O gênio é, ao mesmo tempo,
cume e autodestruição do mundo das aparências.
Nesse momento crucial, em que as aparências se autodestroem e retornam ao fundo
primordial, Nietzsche busca "revelar" o mistério da união entre os gênios
apolíneo e dionisíaco e, de certo modo, esclarecer o nascimento da tragédia. O
gênio apolíneo é apenas um momento da Vontade, a saber, quando ela atinge sua
completa exteriorização. A Vontade não é apenas "encantamento supremo", mas
também "dor suprema". A chave para compreender a relação entre dor e prazer,
entre vida e morte está no gênio. Nietzsche se enreda em uma vasta série de
argumentos, exemplos e análises para tentar provar que há uma dupla
manifestação do gênio. Além de ser uma aparência apolínea, o gênio é
"espelhamento da contradição e a imagem da dor", à medida que ele é
"espelhamento adequado do Uno-Primordial" (VII, 7(157)). Também o gênio
dionisíaco está imerso no mundo das aparências, mas carregando em si as
projeções da dor primordial: "Toda aparência é, ao mesmo tempo, o Uno-
Primordial mesmo: todo sofrimento, sensação é sofrimento primordial, apenas
visto, localizado na rede do tempo" (ibidem).
A tese da metafísica de artista: "somente como fenômeno estético a existência e
o mundo podem ser justificados eternamente" (GT, p. 47) não diz respeito apenas
à arte e ao gênio apolíneos. Também a arte dionisíaca mostraria que a vida é
digna de ser vivida, apesar dos sofrimentos. A nosso ver, a afirmação da arte e
do gênio dionisíaco face a suas contrapartes apolíneas é fundamental para
compreender o afastamento de Nietzsche emrelação a Schopenhauer. É também
decisiva para sustentar a tese da "origem" da tragédia, mas o que está em jogo,
no fundo, é o estabelecimento da arte, da arte do gênio, como único poder
afirmador da vida.
O que move Nietzsche a passar, sem fornecer uma ligação interna, da sabedoria
dionisíaca pessimista para a arte dionisíaca? Aparentemente, não há nenhuma
ligação imediata entre a "sabedoria" do deus Silvano e a música dionisíaca. No
Nascimento da tragédia, a sabedoria de Sileno é ligada com a embriaguez
extática do Dioniso asiático, sem explicitar que forma de arte está em questão.
O dionisismo oriental seria um impulso da natureza, mas a própria natureza
original seria dotada de poderosos impulsos artísticos, e teria, assim, um
vínculo com a verdade: "a arte, que em sua embriaguez extática fala a verdade,
a sabedoria de Sileno" (GT 4, p. 41).40 Essa verdade, como vimos, é "o
desmedido da natureza", expresso na arte dionisíaca como "prazer, sofrimento e
conhecimento". Em que sentido se pode falar aqui de arte? Foi essa ameaça
dionisíaca que elevou o apolíneo a uma nova configuração artística: "a sublime
obra de arte da tragédia grega e do ditirambo dramático" (GT 4, p. 41).
4 O gênio dionisíaco grego
O apolíneo e o dionisíaco são, numa primeira afloração, "estados", "potências
artísticas da natureza", que se expressam no homem através do sonho e da
embriaguez (cf. GT 1 e DW 1). Em relação ao dionisíaco, a forma imediata e
natural de sua manifestação é o êxtase das orgias dionisíacas asiáticas,41 em
especial as sáceas babilônicas, que teriam a duração de cinco dias. Até aqui
não há nenhuma mediação do artista (como indivíduo humano), mas somente a
poderosa manifestação da natureza "na embriaguez dionisíaca, no delírio
tempestuoso de todas as escalas da alma, através de excitações narcóticas ou no
desencadeamento dos impulsos primaveris" (DW 1, p. 41). Assim, a música
dionisíaca é o simbolismo universal da Vontade, na "violência comovedora do
som" e na sua harmonia (idem). Apesar disso, a unificação do indivíduo com o
"fundo íntimo do mundo",42 o esquecimento de si, não constitui ainda nos
bárbaros dionisíacos um fenômeno estético. Isso ocorre somente nos gregos. Por
isso, o gênio artístico dionisíaco é uma "criação" grega, ou melhor, da Vontade
grega, de seu impulso transfigurador, no qual as orgias dionisíacas têm o
sentido de "festas de redenção do mundo e dias de transfiguração" (GT 1, p.
33).
O gênio dionisíaco abarca o prazer e a dor de um modo bem diferente da
transfiguração apolínea. A dor primordial não é simplesmente mascarada: ela se
repete nas dores da existência do indivíduo submetido ao encantamento
dionisíaco. Nietzsche tem dificuldades consideráveis em expor a arte
dionisíaca, visto que toda "arte" está vinculada à aparência, ao vir-a-ser. Por
isso, mesmo que ele mencione em alguns momentos o caráter puro da música
dionisíaca,43 a embriaguez musical dionisíaca necessita dos poderes
transfiguradores de Apolo, ou seja, só pode revelar-se simbolicamente por meio
da "imagem onírica" (cf.GT 2, p. 31). É a célebre duplicidade do apolíneo-
dionisíaco. Até esse ponto, pode-se notar mais uma inconsistência na obra de
Nietzsche. O recurso a algumas imagens e "experiências" não esclarece o
fenômeno fundamental da dor e sua reversão em prazer. No entusiasta dionisíaco
há uma "duplicidade", uma confusão de afetos, que apontam para o fenômeno em
que "dores despertam prazer" e "o júbilo arranca do peito sons dolorosos" (GT
2, p. 33).44
Para esclarecer essa duplicidade, Nietzsche ressalta o "poder idealizador" da
vontade dionisíaca grega, no fenômeno do gênio lírico de Arquíloco. Se num
primeiro momento ele aponta para o "mistério" da união entre os gênios apolíneo
e dionisíaco, a tarefa consistirá em revelar o "segredo", o caráter íntimo
dessa união. Por isso, Nietzsche tenta ir além da inserção de imagens e
alusões, para compreender o processo estético dessa união. O gênio lírico é
"artista dionisíaco";45 nele está a chave para compreender o processo artístico
dionisíaco, como a fusão com o Uno-Primordial é prazerosa e como se descarrega
numa profusão de símbolos: ele (o gênio lírico-dionisíaco) "unificou-se
completamente com o Uno-Primordial, com sua dor e contradição, e produz a
imagem (Abbild) do Uno-Primordial como música" (GT 5, p. 43).
Não se trata aqui da música absoluta, completamente dionisíaca e afigural,
visto que o lírico só pode relacionar-se "simbolicamente" com a dor primordial
(cf. GT 6, p. 51). Com isso, Nietzsche quer assegurar o caráter próprio do
simbolismo dionisíaco. Enquanto a linguagem (da palavra e do conceito) de Apolo
é símbolo das aparências, o "simbolismo universal da música" emana diretamente
do Uno-Primordial. O resultado disso é a depreciação da criação artística do
gênio individual, que é apenas imitação dos majestosos poderes artísticos da
natureza dionisíaca. Comparado com a noção de gênio artístico de Kant e de
Hegel, o indivíduo genial dionisíaco ocupa uma posição bem mais modesta e
periférica no ato da criação, visto ser apenas um pálido reflexo, um "segundo
espelhamento", uma réplica da dor e contradição primordiais (cf. GT 5, p. 44).
Não há nenhuma subjetividade individual em ação: é Dioniso, o "Eu
verdadeiramente existente e eterno", o verdadeiro sujeito da arte. Nesse
sentido, o gênio lírico (Arquíloco como modelo exemplar) é "somente uma visão
do gênio universal (Weltgenius), que expressa simbolicamente sua dor primordial
naqueles símbolos (Gleichnisse) do homem Arquíloco" (GT 5, p. 47).46 Assim, o
indivíduo dionisíaco genial deve fundir-se "no ato da geração artística" com o
proto-artista do mundo. Essa seria a culminância da criação dionisíaca, de sua
pujança e autossuficiência, na qual a existência é afirmada e destruída como
fenômeno estético. Ocorre, no entanto, que o proto-artista do mundo descarrega,
através dos gênios e artistas individuais, seu ímpeto e prazer em gerar
aparências. Ele não se expressa apenas no simbolismo universal da música, mas
necessita do gênio apolíneo para aparecer. Desse modo, a música relaciona-se
com a poesia e com a palavra. O gênio lírico dionisíaco interpreta a música
através da imagem da Vontade; com isso, ele precisa se transformar em gênio
apolíneo (cf. GT 6, p. 51); ao mesmo tempo que permanece "puro e imperturbável
olho solar". É um processo sem dúvida "misterioso", o da descarga da música em
imagens. A música, que em si é uma disposição isenta de Vontade, aparece,
necessita aparecer como vontade. Enquanto no Nascimento da tragédia Nietzsche
afirma que "toda aparência é apenas símbolo (Gleichniss)" (GT 6, p. 51), num
póstumo de 1870 ele afirma ser um Mysterion a existência de "um outro poder,
inteiramente passivo" o da aparência (Schein) , ao lado do ser eterno. No
ser eterno, uno, não haveria Vontade, visto que a Vontade é múltipla. Para
justificar as aparências, ele recorre ao simbolismo (Symbolik): "A aparência é
um constante simbolizar da Vontade" (VII, 5(80)); e o homem é somente um
"simbolismo dos fenômenos" (VII, 5(81)). Confrontamo-nos aqui com outra
inconsistência do livro sobre a tragédia: em muitos momentos, a Vontade é
identificada ao Uno-Primordial; em outros ela é uma espécie de reino
intermediário (a forma universal dos fenômenos).
As ambivalências e inconsistências do Nascimento da tragédia, que procuramos
analisar, podem lançar uma nova luz para o que há de propriamente criativo na
"metafísica da arte". Nietzsche procurou, com toda dedicação e "consagração" de
sua juventude, investigar (ou melhor, imergir em) o "maravilhoso fenômeno
dionisíaco dos gregos". A resposta que ele forneceu à pergunta "o que é
dionisíaco" de modo algum é unívoca e clara, pois as análises estéticas e
filológicas estão mescladas com uma certa retórica dos mistérios, e com o teor
metafísico do pensamento schopenhaueriano. Além disso, as "esperanças
apressadas" que ele depositou em R. Wagner são um sintoma de seu forte vínculo
(pouco esclarecido e reconhecido) com o Romantismo alemão, com a recepção
romântica de Dioniso e do "dionisíaco". Em meio às obscuridades da estética do
jovem Nietzsche, veio à luz um projeto que assumiu sempre mais um caráter
próprio em seu pensamento: o projeto de criação do gênio. A tentativa de unir o
apolíneo, o dionisíaco e certos traços "românticos" do santo nas criações do
gênio estético não recebe uma configuração definitiva na sua obra das
primícias. Mas ela ainda atravessa o período de ceticismo e de "cura do
Romantismo", para renascer em Zaratustra, que se tornará o arauto das mais
elevadas esperanças do último "discípulo e iniciado" do deus-artista Dioniso.