Hume: a teoria social como sistema
Economista, historiador e teórico político, David Hume mostrou competência e
criatividade em várias disciplinas da área social, mas foi um mau juiz da
própria obra. Cometeu pelo menos dois erros de avaliação. O primeiro foi quando
renegou o Tratado sobre a Natureza Humana, um fracasso editorial. O segundo,
quando apontou a Investigação sobre os Princípios da Moral como o
"incomparavelmente melhor" de seus livros. Com todos os seus possíveis
defeitos, o Tratado, obra de juventude, é há muito tempo considerado seu
trabalho mais importante pelos leitores mais cuidadosos. O livro deveria
corresponder a um projeto ambicioso. Segundo anunciou numa advertência, o autor
pretendia discorrer sobre o entendimento, as paixões, a moral, a política e a
crítica. A promessa foi parcialmente cumprida. Nos trabalhos posteriores sobre
economia, política, história, crítica e religião, Hume não só reexpôs, mas
ampliou, aprofundou e enriqueceu tecnicamente as teses apresentadas no Tratado.
Seus ensaios econômicos bastariam para garantir-lhe um lugar importante na
história das ciências humanas, por suas contribuições às teorias sobre a moeda,
os preços, o comércio internacional e o desenvolvimento. Mas o livro de
juventude se manteve como a grande matriz de uma obra ampla, diversa e
claramente sistemática. O projeto de um sistema é indicado pelas conexões entre
os grandes segmentos dessa primeira obra ' Do Entendimento, Das Paixõese Da
Moral' e pelo potencial explicativo atribuído a uns poucos princípios.
Imaginem alguém bastante distraído para chegar à seção XII do livro III do
Tratado sem perceber as articulações da obra. Será um choque. Qual o vínculo,
perguntará o leitor espantado, entre relações sexuais e relações
internacionais, excluídos, naturalmente, episódios como o rapto de Helena? A
resposta é mais prosaica do que poderia sugerir Teresa Filósofa. Para decifrar
a questão basta confrontar a moral do sexo masculino com a dos príncipes. A
comparação, desenvolvida por Hume, é uma boa comprovação de sua parcimônia no
uso de princípios explicativos. Uma inteira liberdade sexual para os homens é
contrária ao interesse da sociedade civil, mas a castidade masculina é
socialmente menos importante que a das mulheres. Esta é essencial à
estabilidade do vínculo familiar e, portanto, ao cuidado da prole. Logo, a
obrigação moral do macho deve ser proporcionalmente menor que a da mulher. Da
mesma forma, a fidelidade às promessas e acordos é necessária à paz, ao
comércio e ao bom funcionamento do sistema internacional, mas a lei das nações
admite uma flexibilidade maior que a lei de natureza.
A mesma obrigação natural, derivada do interesse, vincula tanto reinos
independentes quanto indivíduos, "mas, embora o intercurso de diferentes
Estados seja vantajoso, e às vezes até necessário, não é tão necessário nem tão
vantajoso quanto entre indivíduos". Afinal, a natureza humana nem mesmo
sobreviveria sem as ligações interpessoais. A obrigação moral entre Estados é
mais fraca e "necessariamente devemos, portanto, conceder uma indulgência maior
a um príncipe ou ministro que engana outro do que a um cavalheiro que rompe sua
palavra de honra". Hume sintetiza a comparação entre machos e príncipes em uma
fórmula de proporção: segundo "as noções gerais do mundo", as obrigações dos
machos em relação à castidade estão para as obrigações das mulheres
aproximadamente como as da lei das nações para aquelas da lei natural.
A lei das nações é discutida na seção XI do livro III do Tratado. A seção XII é
dedicada à castidade e à modéstia. Se a sequência das duas seções parece
inicialmente estranha, a surpresa logo se dissipa. A discussão da moral sexual
obedece aos mesmos padrões seguidos na exposição sobre a justiça e sobre as
condições indispensáveis à vida social, à cooperação internacional e até à
guerra. "As três regras fundamentais da justiça ' a estabilidade da posse, a
sua transferência por consentimento e o cumprimento das promessas ' constituem
deveres dos príncipes tanto quanto dos súditos" e são derivadas igualmente da
utilidade ou, simplesmente, do interesse dos homens e da sociedade.
Hume explicita essa regra de parcimônia no fim da seção III da Investigação
sobre os Princípios da Moral: "Quando um princípio se demonstrou muito poderoso
e eficaz em um caso, está inteiramente de acordo com as regras filosóficas, e
mesmo da razão ordinária, atribuir-lhe eficácia comparável em todos os casos
similares. Esta, de fato, é a regra principal da atividade filosófica, para
Newton". A referência é ao livro III dos Principia. Em alguns momentos ele
parece rejeitar o critério da simplicidade. Alguns teóricos da moral foram
longe demais "em sua paixão por um princípio geral único", observa Hume na
seção inicial da Investigação sobre o Entendimento Humano1. Mas a expectativa
de encontrar "alguns princípios gerais" para dar conta de todos os vícios e
virtudes é desculpável, acrescenta logo depois. Esforços semelhantes deram
algum resultado "nos campos das artes, da lógica e mesmo da política". Em
outros textos, como no começo do livro II do Tratado, sua adesão à norma da
parcimônia, ou simplicidade, é apresentada de forma inequívoca. No "curso da
natureza", afirma Hume, efeitos variados comumente decorrem de poucos e simples
princípios. Ele chega a atribuir o atraso da filosofia moral à rara observância
dessa norma. A fidelidade a essa regra é um dos aspectos mais notáveis da
filosofia moral de Hume e o principal fator de unidade de seus escritos: um
número muito restrito de teses fundamentais aparece nos textos sobre economia,
história, política e sociologia (ou psicologia social) e confere a toda a obra
um caráter sistemático.
Que um cético tenha produzido um dos mais coesos sistemas do século 18,
cobrindo tantas disciplinas, pode parecer estranho, mas não mais estranho que o
elogio do pensamento abstruso no começo da Investigação sobre o Entendimento
Humanoe na abertura do ensaio Sobre o Comércio, uma espécie de introdução geral
aos textos econômicos. Aponta-se "a filosofia profunda e abstrata" como "fonte
inevitável de erro e de incerteza" e essa é "a objeção mais justa e plausível a
uma parte considerável dos estudos metafísicos"2. Mas essa, acrescenta Hume,
não é uma razão suficiente para os filósofos desistirem de suas pesquisas. Nem
os homens deixarão de ser curiosos, nem os filósofos estarão condenados,
necessariamente, a fracassar em todos os seus esforços. Mais uma vez o sucesso
da filosofia natural é invocado3 como exemplo e fonte de esperança para a
atividade especulativa. E mais uma vez, como no Tratado, o exame da natureza
humana é apontado como o caminho para a determinação das condições do
conhecimento possível.
O ensaio Do Comércioé aberto com uma vigorosa defesa do pensamento filosófico,
mesmo quando o afastamento em relação ao senso comum parece imprudente. Hume
declara de forma inequívoca sua preferência pelos "pensadores abstrusos". Podem
errar o alvo, por excessos, mas oferecem novidades e abrem caminho a
descobertas importantes. A "conversa dos cafés", própria dos "pensadores
superficiais", jamais produzirá resultados semelhantes. "Raciocínios gerais
parecem intricados meramente por serem gerais e não é fácil para a maior parte
da humanidade, distinguir, num grande número de particulares, a circunstância
comum em que todos coincidem ou extraí-la, pura e sem mescla, de outras
circunstâncias supérfluas". Mas, apesar de intricados, princípios gerais, se
justos e sólidos, "devem prevalecer sempre no curso geral das coisas, embora
possam falhar em casos particulares". É função principal dos filósofos e dos
governantes levar em conta esse curso geral. Essa introdução serve como
prefácio aos textos econômicos e como advertência ao leitor: ele deve preparar-
se para encontrar raciocínios incomuns, talvez muito refinados, na aparência,
para "objetos tão vulgares". Talvez sejam falsos, mas ninguém deveria, segundo
Hume, rejeitá-los simplesmente por serem incomuns. Essa introdução contém,
portanto, uma espécie de manifesto filosófico, uma advertência ao leitor e uma
justificativa prática para a investigação científica: o conhecimento do "curso
geral das coisas" é necessário à administração do Estado. Esse caráter prático
da reflexão econômica permeia todos os ensaios. São todos polêmicos e dirigidos
não apenas contra um determinado conjunto de teorias, mas também contra certas
práticas políticas. Tanto essas teorias quanto essas práticas seriam mais tarde
identificadas como mercantilistas. O rótulo comum pode ser impreciso, mas serve
para marcar as principais diferenças do pensamento clássico em relação a ideias
dominantes entre escritores e políticos até meados do século 18. Em suas
versões mais populares, a história do pensamento econômico vincularia a mudança
de paradigma principalmente a Adam Smith e David Ricardo. Mas, quando a Riqueza
das Naçõesfoi publicada, em 1776, alguns autores já haviam avançado muito na
crítica do mercantilismo e na construção dos fundamentos da economia clássica.
Hume, Quesnay e Turgot merecem boa parte do crédito ' a maior, provavelmente '
por esse trabalho.
1. O sujeito autocentrado
Os escritos econômicos, assim como os outros Ensaios Morais, Políticos e
Literários, são bem mais detalhados e tecnicamente desenvolvidos que as
exposições contidas no segundo e no terceiro livros do Tratado. Além disso, são
redigidos como textos independentes e autossuficientes. O leitor pode entender
suas teses centrais sem recorrer a outras obras de Hume. Pontos importantes das
teorias sobre o entendimento, as paixões e a moral são retomados, de forma
resumida, quando necessários para esclarecer o ponto de vista humiano. Mas só o
Tratadooferece a visão geral do projeto como um sistema.
Um claro exemplo de como as teses fundamentais são retomadas em cada escrito
aparece no ensaio Da Origem do Governo. A referência à "grande" e "incurável
fraqueza" da natureza humana remete à distinção entre impressões fortes e
fracas, ou representações próximas e concepções abstratas. O homem
frequentemente se deixa "desviar de seus interesses grandes e importantes, mas
distantes, pelo brilho de tentações muitas vezes próximas, mas presentes",
afirma Hume no ensaio. Não podendo mudar a própria natureza, o homem deve
buscar algum paliativo ' noção também presente no Tratado.O remédio encontrado
é o governo, ou, mais especificamente, pessoas encarregadas de "proferir
sentenças equânimes, de punir transgressores, de corrigir a fraude e a
violência e de obrigar os homens, por mais relutantes que sejam, a levar em
conta os próprios interesses reais e permanentes".
Hume retoma em poucas palavras, nesses comentários, noções longamente
desenvolvidas no Tratado.Uma delas é a do governo como remédio para uma
deficiência natural e incurável, a incapacidade de levar em conta, em todos os
momentos, as leis da justiça e da equidade e, portanto, os interesses da
sociedade. Sendo "mpossível mudar ou corrigir algo importante em nossa
natureza, o máximo que podemos fazer é transformar nossa situação e as
circunstâncias que nos envolvem, tornando a observância das leis da justiça
nosso interesse mais próximo, e sua violação, nosso interesse mais remoto"4.
Outra noção fundamental, no mínimo implícita na maior parte dos escritos
humianos, é a distinção entre a força das impressões mais próximas e mais
concretas e a dos objetos mais distantes e considerados mais abstratamente. A
inclinação dominante é agir em vista dos mais próximos.
Mas Hume desenvolve, aqui, algo mais que a descrição de uma tendência
psicológica. O interesse mais distante e mais abstrato ' a ordem social ' é um
interesse objetivo, embora esta palavra não seja usada. A função do aparato
judicial e repressivo é, portanto, estabelecer um equilíbrio entre dois
valores, o do bem imediato, frequentemente ilusório, e o da vantagem permanente
propiciada pelo império da justiça. O magistrado e o sistema coercitivo
administrado pelo governo têm a função de tornar menos abstrato, ou mais
presente, o benefício da ordem legal. Mais precisamente, o papel do poder
público, nesse caso, é tornar presente a ideia de um custo bastante grande para
contrabalançar o atrativo do comportamento antissocial. Não se trata de
reprimir os indivíduos o tempo todo, mas de fazê-los lembrar-se com mais
frequência, embora de forma indireta, de seus interesses permanentes e mais
importantes.
O mesmo desequilíbrio contábil entre o benefício imediato da violação o
vantagem duradoura da ordem legal aparece no capítulo VII do livro I do
Contrato Social."Cada indivíduo, com efeito, pode, como homem, ter uma vontade
particular, contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão [...]
Sua existência, absoluta e naturalmente independente, pode levá-lo a considerar
o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda prejudicará
menos aos outros do que será oneroso o cumprimento a si próprio", escreve
Rousseau. Generalizado, esse comportamento levaria à ruína do corpo social: a
soma das transgressões, mesmo pequenas, acabaria devastando a ordem coletiva.
Daí o compromisso necessário, mesmo quando tácito, para dar força a todos os
demais: "aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido
por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois
essa é a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra
qualquer dependência pessoal". A fórmula espantosa à primeira vista, no texto
rousseuniano, é a frase "on le forcera d'être libre". Como forçar alguém a ser
livre? Mas não há de fato um mistério. Se a prevalência da vontade geral é a
condição da liberdade, isto é, da sujeição a si mesmo e não a uma vontade
estranha, o homem só pode ser livre pela submissão à lei civil. A repressão o
reconduz a seu interesse objetivo e permanente, restabelecendo a correta
proporção entre o objeto de atração imediata e o valor duradouro da ordem
legal. Violar a norma não é exercer a liberdade, é comprometê-la.
Pode haver enormes diferenças entre as concepções de Hume e as de Rousseau, mas
é preciso reconhecer dois pontos de aproximação. Um deles é a distinção entre
representações fortes e fracas, com a correspondente diferença entre graus de
afetividade e de identificação entre indivíduos. Daí a preferência rousseuniana
pelas pequenas sociedades, as mais adequadas, segundo a teoria, ao exercício da
liberdade, isto é, da participação do indivíduo nas decisões vitais para a vida
coletiva, Daí, também, a desconfiança de Rousseau em relação às almas
pretensamente cosmopolitas. O segundo ponto, derivado do primeiro, é a
tendência do indivíduo a responder aos estímulos mais próximos e mais
concretos, dando prioridade às suas conveniências e às de seus próximos. Quanto
maior a sociedade, mais difícil a identificação da vontade comum e maior o peso
da ação governamental necessária para manter a ordem e a unidade do Estado.
"Quanto menos se relacionem as vontades particulares com a vontade geral, isto
é, os costumes com as leis, tanto mais deverá a força repressora aumentar.
Conclui-se, pois, que o governo, para ser bom, deve ser relativamente mais
forte na medida em que o povo for mais numeroso"5. Em Hume, a limitação das
percepções, das paixões e também das virtudes naturais (a benevolência, por
exemplo, tem alcance muito restrito) é discutida e exposta num longo trabalho
teórico. Não há nada parecido com essa elaboração, em Rousseau. Ele incorpora
sem muita discussão certas noções disponíveis num grande fundo comum
constituído nos séculos 17 e 18.
Hobbes foi um dos contribuintes desse fundo, com sua teoria sobre a origem
sensível do conhecimento, sua descrição da imaginação e da memória e sua
tentativa de estender as noções da mecânica às ciências do homem. Mas vale a
pena destacar as contribuições de dois outros autores de reconhecida influência
no pensamento iluminista. Pufendorf é uma referência evidente. Ele explora,
numa longa passagem do tratado sobre O Direito da Natureza e das Gentes,a
oposição entre as perspectivas de curto e de longo prazos, criticando quem se
serve da ambigüidade do termo "útil". "Há uma utilidadeque só aparece como tal
ao juízo corrompido das paixões desregradas, as quais, sem se embaraçar com o
futuro, se prendem unicamente às vantagens presentes e passageiras. Mas há
outra utilidade, fundada nas luzes da reta razão, que não considera só o que
tem diante dos olhos, mas examina suas conseqüências"6. Jean Barbeyrac,
tradutor e comentador de Pufendorf, remete numa nota ao capítulo 21 do Ensaio
sobre o Entendimento Humano, de Locke: "Objetos próximos de nossa vista podem
ser tomados como maiores do que aqueles de dimensão superior que estão mais
distantes. O mesmo ocorre com prazeres e sofrimentos [...] Assim, a maioria dos
homens, como os herdeiros perdulários, é capaz de dar mais valor a uma pequena
coisa em mãos do que a um grande ganho futuro [...]"7.
Mas a tendência a valorizar mais o benefício próximo ' e talvez insignificante
ou ilusório ' do que o interesse distante, mas duradouro, é apenas parte da
história. O indivíduo descrito por David Hume tem outras limitações
importantes. Seu mundo afetivo e moral corresponde a uma série de círculos
concêntricos. O cosmopolitismo é tão pouco provável nesse universo quanto no
rousseauniano. Mais que isso: a benevolência tende a esgotar-se muito antes de
atingir os limites de cada sociedade política. A atração entre os sexos, o
cuidado da família e a atenção aos próximos esgotam a capacidade natural de se
interessar pelos outros. O interesse de cada homem por si e por um círculo
restrito de pessoas impediria a vida em grandes sociedades, se nenhum fator
interviesse para controlar a inclinação natural dos indivíduos. A parcialidade
e a afeição desigual devem não só influenciar o comportamento em sociedade mas
também moldar as ideias de vício virtude8. Levados apenas por essa inclinação,
os homens nunca chegariam a se agrupar em grandes conjuntos. Também não
conseguiriam, portanto, reduzir o risco de conflitos em grau suficiente para
desfrutar de razoável segurança e ultrapassar as mais primitivas condições de
vida.
A coexistência em grupos mais amplos depende de regras mais complexas e de
maior alcance que aquelas proporcionadas pela natureza. As virtudes naturais,
como a benevolência e a generosidade e a clemência, manifestam-se em atos
singulares, completos em si mesmos. Ações guiadas por essas virtudes, ou pelos
vícios opostos, "estabelecem relações entre agentes e pacientes particulares",
como bem resume Knud Haakonssen9. O funcionamento de uma sociedade maior,
formada por indivíduos e grupos com interesses diversos e muitas vezes
conflitantes, depende de vínculos de outro tipo. As condições de coexistência,
a começar pelo respeito à integridade de cada um e à propriedade, são
necessariamente diferentes daquelas encontradas no meio familiar e nos pequenos
grupos.
A solução, inventada, é uma virtude artificial, a justiça. Seu exercício
ultrapassa amplamente o alcance das virtudes naturais e a percepção de suas
vantagens vai muito além da visão do interesse imediato. Não se trata, é claro,
de uma criação instantânea. O entendimento intervém nesse processo, mas o
estabelecimento do novo sistema de regras depende um aprendizado resultante da
experiência. Até chegar lá, os homens devem ter conhecido as vantagens e
prazeres da vida social mais extensa e percebido os obstáculos à sua
manutenção. A principal dificuldade é relacionada à estabilidade da posse dos
bens exteriores. Trata-se não de renunciar ao interesse próprio em favor do
coletivo, mas de criar um sistema de garantias para o desfrute dos bens de cada
um. A solução só pode ser um sistema de garantias para todos, baseado em regras
estáveis e de aplicação previsível. O primeiro passo é a percepção do interesse
comum. Essa percepção se traduz na prática, inicialmente, pela disposição de
cada um de se abster dos bens dos demais. Hume usa a palavra convenção, mas não
se trata, obviamente, de um acordo instantâneo, e sim de um jogo de
expectativas e de um aprendizado. Dessa experiência derivam as ideias de
justiça e de injustiça, assim como as de propriedade, direito e obrigação. "Não
há dúvida de que a convenção para a distinção das propriedades e para a
estabilidade da posse é a circunstância mais necessária para o estabelecimento
da sociedade humana, e que, após realizado o acordo para se fixar e observar
essa regra, resta pouco ou nada a fazer para o estabelecimento de uma perfeita
harmonia ou concórdia."10.
O caráter artificial ou abstrato das normas da justiça fica mais claro quando
se examinam os diferentes efeitos de sua aplicação. Essas normas são "úteis ao
extremo e, na verdade, absolutamente necessárias ao bem-estar da humanidade",
mas o benefício por elas produzido não resulta de cada ato considerado
isoladamente. Sua importância está associada a um "plano ou sistema global"
seguido por todos ou pela maioria dos membros de uma sociedade. A aplicação de
uma regra de justiça a um caso particular pode ter consequências perniciosas,
como, por exemplo, quando se entrega uma herança a uma pessoa má. O benefício
da justiça "provém apenas da observância de uma regra geral" e consiste na
manutenção da paz e segurança entre os homens. No terceiro apêndice à
Investigação sobre os Princípios da Moral, Hume recorre a imagens da
arquitetura para explicar a diferença entre as virtudes naturais, como a
benevolência, e a mais importante virtude artificial, a justiça. A felicidade e
a prosperidade resultantes das primeiras são comparáveis a um muro construído
com muitas pedras empilhadas por muitas mãos, em atos individuais e com
objetivos individuais. O efeito social da justiça é semelhante a uma abóbada:
cada pedra isolada tenderia a cair e o conjunto só se sustenta pelo arranjo e
pelo apoio mútuo de todos os componentes11.
Mas serão os argumentos e explicações humianos suficientes para sustentar a
qualificacão da justiça como virtude artificial? Sem se render às alegações do
próprio Hume, Stephen Buckle o inclui na tradição jusnaturalista e lhe dedica o
último capítulo de seu livro Natural Law and the Theory of Property. Buckle
aponta, com razão, várias semelhanças entre a construção humiana e a as teorias
da lei natural do século 17. Um bom exemplo é a apresentação do sistema da
justiça como "adventício e necessário", nascido das circunstâncias e
consolidado, ao longo do tempo, como única fundação segura para a vida social.
Além disso, chama atenção, com ênfase especial, para o reconhecimento, pelo
próprio Hume, de sua dívida em relação a Grotius12. Esse reconhecimento aparece
no terceiro apêndice à Investigação sobre os Princípios da Moral."Esta teoria
relativa à origem da propriedade, e consequentemente da justiça, é, na maior
parte, a mesma sugerida e adotada por Grotius" escreve Hume. Em seguida vem uma
citação do livro II, capítulo 2, do Direito da Guerra e da Paz: "Vemos,
portanto, que a causa pela qual se renunciou à primitiva comunidade dos bens '
em primeiro lugar, à dos bens mobiliários, e, em seguida, à dos bens
imobiliários ' foi certamente o fato de que os homens, não mais se contentando
para seu sustento com aquilo que a terra por si mesma produzia, nem com o fato
de morarem em cavernas, de andarem nus ou cobertos apenas de cascas de árvores
ou peles de animais, quiseram viver de maneira mais confortável; e para isso
foi preciso que um dedicasse sua perícia a uma coisa, outro a outra [...]" etc.
Essa teoria nem é inteiramente atribuível a Grotius, nem passou diretamente
dele a Hume sem ser absorvida por outros autores no intervalo. A referência à
comunidade original de bens e ao seu abandono a partir de certas mudanças na
forma de vida dos homens é encontrada em Sêneca, na carta 90 da série daquelas
destinadas a Lucílio. Locke retoma o essencial dessa tese tanto no Primeiro
quanto no Segundo Tratado sobre o Governo. Em Locke, como em Grotius, a
propriedade é apresentada como um direito natural, mas a noção de um direito
natural adventício aparece mais claramente na obra grociana. O foco de Hume não
é inicialmente a ideia de direito, mas o problema da estabilidade da posse dos
bens exteriores. Esse problema é desconhecido nas sociedades mais limitadas e
mais simples, "quando os bens e os prazeres da vida são poucos e de pouco
valor". "Um índio não se sente muito tentado a se apossar da cabana de outro ou
a roubar seu arco, porque já possui esses mesmos benefícios; quanto a qualquer
riqueza superior que possa advir a um deles na caça ou na pesca, será apenas
casual e temporária, e não terá uma tendência muito grande a perturbar a
sociedade"13. Grupos nesse estágio de desenvolvimento podem viver sem governo e
só ocasionalmente, na guerra, submetem-se a um chefe.
Regras de propriedade só aparecem quando a posse de bens externos se torna
insegura. Mesmo essa mudança deve ter ocorrido de forma gradual, com os homens
aprendendo lentamente, pela experiência, a vantagem de se abster cada indivíduo
dos bens alheios. Mas em algum momento é preciso fixar regras para distinguir
os bens de cada um e para determinar os modos de aquisição e de transferência.
Estabelecida a convenção sobre a abstinência da posse dos outros, surgem as
ideias de justiça e injustiça, "bem como as de propriedade, direitoe
obrigação". "Estas últimas", acrescenta Hume, "são absolutamente ininteligíveis
sem a compreensão das primeiras"14. A ênfase no problema da segurança e não no
tema do direito marca bem a diferença entre Hume e os jusnaturalistas do século
anterior. Ele não se mostra interessado, como Locke, por exemplo, em
estabelecer os fundamentos morais ou ontológicos da propriedade. Ele até pode
mencionar a ação do homem sobre a natureza, mas não se detém no exame de como o
esforço do sujeito estabelece uma relação moral entre com a coisa. "O
trabalhode seu corpo e a obrade suas mãos, pode-se dizer, são propriamente
dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu
e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu,
transformando-a em sua propriedade", escreve Locke15.
Para Hume não tem sentido, como já foi indicado, falar de propriedade antes de
fixadas entre os homens as normas da justiça. O direito de propriedade não é
apenas adventício, como são, para Locke, as normas civis concebidas para a
garantia de um direito anterior à sociedade política e a qualquer convenção.
Não é essa a perspectiva humiana. Para ele, a relação moral e a natural não se
dão ao mesmo tempo, nesse caso, "A propriedade de uma pessoa é algum objeto a
ela relacionado; essa relação não é natural, mas moral, e fundada na justiça. É
absurdo, portanto, imaginar que possamos ter uma ideia de propriedade sem
compreender completamente a natureza da justiça e mostrar sua origem no
artifício e na invenção humana. A origem da justiça explica a da
propriedade"16. Hume, no entanto, mais de uma vez se refere às invenções como
leis naturais e junta as duas noções em frases enigmáticas à primeira vista.
Ele menciona, por exemplo, a "invenção" de leis da natureza relativas à
estabilidade da posse e à sua transferência. Páginas adiante, há uma referência
às "três leis fundamentais" da natureza, "a da estabilidade da posse, a de sua
transferência por consentimentoe a do cumprimento das promessas"17.Três
artifícios, mas, ao mesmo tempo, três leis fundamentais da natureza? A união
dessas palavras pode parecer ainda mais intrigante quando se encontra, a partir
do parágrafo seguinte, um longo arrazoado contra a noção da justiça como
virtude natural. Mas convém retomar a leitura lentamente. Logo depois de
mencionar as três leis "naturais", Hume acrescenta: "A paz e a segurança da
sociedade humana dependem inteiramente da estrita observância dessas três leis;
não há nenhuma possibilidade de se estabelecerem boas relações entre os homens
quando elas são desprezadas. A sociedade é absolutamente necessária ao bem-
estar dos homens; e essas leis são igualmente necessárias à sustentação da
sociedade".
A referência às três leis como indispensáveis à sustentação da sociedade remete
às distinções estabelecidas no final da exposição inicial sobre a justiça.
Nessa passagem, Hume esclarece o leitor sobre o uso da palavra natural. Numa
acepção, a palavra é tomada simplesmente como oposta a artificial. É essa a
mensagem, quando ele nega à justiça o qualificativo de natural. Mas o termo tem
outros significados. "Quando uma invenção é evidente e absolutamente
necessária, é tão correto considerá-la natural quanto tudo que proceda
imediatamente de princípios originais, sem a intervenção do pensamento ou
reflexão". Isso se aplica às normas da justiça e Hume ainda acrescenta:
"Tampouco é impróprio utilizar a expressão Leis Naturaispara caracterizá-las,
se entendermos por natural aquilo que é comum a uma espécie qualquer, ou mesmo
se restringirmos seu sentido apenas ao que é separável dessa espécie". Essas
qualificações se aplicam perfeitamente à condição dos homens em sociedade. O
esforço de esclarecimento é retomado na Investigação sobre os Princípios da
Moral.A "naturalidade" da justiça, nesta explicação, é vinculada à necessidade
humana de viver em sociedade e à indispensável criação de regras para a
preservação da propriedade e das condições de coexistência. "Em um animal tão
sagaz, aquilo que surge necessariamente do exercício de suas faculdades
intelectuais pode com justiça ser considerado natural". Outros esclarecimentos
são acrescentados numa nota, mas, no final, Hume parece perder a paciência:
"Todas estas disputas, porém, são meramente verbais". Nem tanto, ou ele não
gastaria tanto esforço para explicar por que considera artificiais a
propriedade e a justiça. Além disso, o foco no direito como soluçãode um
problema ' o da insegurança da posse ' e não como atributoindependente da ordem
política marca uma enorme diferença entre o pensamento humiano e a tradição da
lei natural do século 17. Hume incorpora em seus textos várias noções postas em
circulação por outros autores e disponíveis no grande fundo da tradição
filosófica. Essas ideias trazem as marcas evidentes de grandes figuras como
Grotius, Hobbes, Locke e Pufendorf. Também a herança de autores mais próximos,
como Hutcheson e Mandeville, é identificável sem muita dificuldade. Em alguns
casos, a apropriação da ideia ocorre sem grandes mudanças. Em outros, a herança
é amplamente reprocessada e ganha um significado novo. É o caso do legado
jusnaturalista. Apropriadas por David Hume, tornam o seu discurso parecido com
o dos teóricos da lei natural e do direito natural, mas apenas parecido, porque
o jusnaturalismo foi posto de lado.
2. A perspectiva econômica
A economia tem uma importância especial na teoria social de Hume. No centro
dessa teoria está um sujeito egoísta, preocupado principalmente consigo, com
sua família e com seus próximos, embora seja capaz de participar de associações
maiores e de criar esquemas complexos de cooperação. Apesar de autocentrado,
esse indivíduo não pode viver isoladamente. Animais de outras espécies são
naturalmente equipados para se alimentar, para se adaptar ao meio e para se
defender. O animal humano é o menos preparado para isso. Até este ponto da
descrição estamos num território familiar, já percorrido, por exemplo, na Lição
sobre o Poder Civilde Francisco de Vitória18, nas primeiras páginas do Direito
da Guerra e da Paz, de Grotius, e no livro II dos Deveres do Homem e do
Cidadão, de Pufendorf19. Não haveria novidade nessa passagem, se Hume se
limitasse a lembrar as deficiências do homem, quando comparado com outros
animais, e a afirmar, com base nisso, uma sociabilidade imposta pela
necessidade. Ele impõe sua marca à teoria da sociabilidade ao descrever as
vantagens da vida social. Ao se associar, o homem supera três problemas: a
limitação de suas forças, a necessidade de atender sozinho a múltiplas
carências e o risco "da ruína e da miséria" no caso de um infortúnio. A marca
humiana fica mais clara quando os argumentos são expostos de outra perspectiva:
"A conjunção de forças amplia nosso poder; a divisão do trabalho [partition of
employments] aumenta nossa capacidade; e o auxílio mútuo nos deixa menos
expostos à sorte e aos acidentes"20. O segundo ponto faz toda a diferença para
caracterizar a perspectiva de Hume. Ao incluí-lo entre as vantagens da vida em
sociedade ele introduz de imediato um elemento fundamental de sua teoria do
desenvolvimento econômico. Quase quatro décadas mais tarde, esse elemento é
destacado na primeira frase do primeiro capítulo da Riqueza das Nações: "O
maior aprimoramento das forças produtivas do trabalho e a maior parte da
habilidade, destreza e bom senso [judgement] com os quais é em toda parte
dirigido ou executado parecem ter resultado da divisão do trabalho". Hume
retoma esse tema em vários momentos, tanto nos escritos mais técnicos sobre
economia quanto nos textos históricos.
Elemento fundamental das teorias do desenvolvimento e também das teorias
modernas do comércio internacional, a divisão do trabalho é o primeiro
componente marcadamente econômico da teoria social humiana. O segundo é a noção
de escassez. Os homens só precisaram inventar a propriedade e a justiça porque
os bens exteriores são escassos e expostos à rapina. A sociedade permite o
aperfeiçoamento (e a maior oferta) daqueles bens. A sua escassez, no entanto,
motiva o conflito e impediria a vida social, se a imaginação combinada com a
experiência não produzisse um arranjo para regular a posse e as formas de
transferência dos bens.
Os elementos básicos de uma teoria do desenvolvimento são apresentados no
ensaio Do Comércio, texto de abertura dos escritos econômicos compilados nos
Ensaios Morais, Políticos e Literários.Mas a discussão das condições do
crescimento, do aperfeiçoamento do sistema produtivo e das relações entre
economia, política e cultura se estende por quase toda a obra.
A maior parte de cada Estado, escreve Hume no ensaio Do Comércio, divide-se
entre agricultores e manufatores. Os primeiros cultivam a terra, os segundos
transformam as matérias-primas fornecidas pelo primeiros (ou obtidas por meio
da extração, poderia ter acrescentado o autor, mas pode-se deixar de lado este
detalhe). "Quando deixam o estado de selvageria, em que se sustentam
principalmente pela caça e pela pesca, os homens sempre se encaixam nessas duas
classes, embora as artes da agricultura inicialmenteempreguem a parte mais
numerosa da sociedade"21. Diferentemente de outros autores do século 18,
incluído Adam Smith, Hume não se empenha em detalhar as grandes etapas do
desenvolvimento, desde as atividades mais elementares da coleta, caça e pesca
até a fase comercial, passando pelo pastoreio e pela agricultura. Ele avança
diretamente da etapa mais primitiva para um cenário de divisão do trabalho. A
agricultura predomina durante algum tempo, admite Hume, mas o seu interesse
está em outro ponto: o mecanismo da transformação, centrado nos ganhos de
produtividade. "Os aprimoramentos que o tempo e a experiência trazem a essas
artes são tão grandes que a terra pode facilmente sustentar um número muito
maior de homens do que o que são empregados diretamente em seu cultivo ou que
fornecem as manufaturas que lhes são mais necessárias"22. Esse ganho de
eficiência permite a liberação de mais braços para outras atividades e,
portanto, para uma diversificação maior da produção. É fácil imaginar, a partir
desse ponto, uma dinâmica de crescimento alimentada pela multiplicação das
demandas, pelo aperfeiçoamento das técnicas e pela estimulação recíproca dos
vários setores. Mas, antes de dar esse passo, Hume interrompe a exposição para
responder a uma pergunta política: não poderia o soberano reclamar para si
essas mãos supérfluas, empregando-as na atividade militar para aumentar seu
poder e expandir seus domínios? A pergunta é formulada porque o ensaio é
voltado inicialmente para o exame da relação entre o comércio e a grandeza do
Estado. A palavra "comércio", neste caso, é usada para designar uma economia
caracterizada pela diversificação das atividades e pelas trocas entre as
pessoas ocupadas nos diferentes setores.
Como faz com frequência, Hume recorre à história para discutir o problema. A
antiguidade oferece exemplos de Estados poderosos militarmente e com a economia
pouco diversificada. Esparta é uma referência óbvia. "Os hilotas eram
trabalhadores; os espartanos, soldados ou cavalheiros. É evidente que o
trabalho dos hilotas não seria suficiente para manter um grande número de
espartanos se estes vivessem em meio a conforto e a delicadezas e empregassem
um grande número de mercadores e manufatores". Condições semelhantes foram
observadas em outros Estados antigos. Poderia um soberano moderno retomar essa
política? "A isso respondo", escreve Hume, que tal coisa parece praticamente
impossível, dado que a política dos antigos era violenta e contrária ao curso
mais natural usual das coisas." A argumentação inclui uma lista de
peculiaridades culturais e econômicas dos Estados antigos, como a pequena
dimensão dos Estados livres da Antiguidade, a frequência das guerras, e o
espírito público estimulado pela constante ameaça externa e em fatores de ordem
análoga.
Para explicar o "curso normal das coisas", ele aponta certas características
típicas do homem, como o desejo de bem-estar, a avareza e a ambição de ganho.
Essas paixões podem não se manifestar simultaneamente, até porque o espírito de
poupança tende a limitar o impulso do consumo. Esse espírito de poupança, de
fato, nem mesmo se manifesta senão em condições particulares, depois que o
desenvolvimento de uma atividade lucrativa chega a fazer do ganho um objetivo
maior. "Suscitar a frugalidade e e elevar o amor pelo lucro acima do prazer é
uma consequência infalível de todas as profissões industriosas", escreve Hume
no ensaio dedicado aos juros23. Mas essas formas de comportamento ' a
frugalidade e a poupança ' só se manifestam quando a vida social, a divisão das
atividades , o aperfeiçoamento das artes e a expansão do comércio atingiram um
considerável grau de desenvolvimento. É esse o percurso normal da história,
quando circunstâncias especiais não sufocam certas inclinações dos homens.
As transformações geradas pelo amor do bem-estar, do ganho e, depois, pelo
espírito de poupança, seguem um processo de realimentação e de auto-reforço. A
diversificação das atividades e a expansão do comércio conferem preeminência e
poder aos mercadores. Estes "geram indústria, pois servem como um canal que a
espalha por todos os cantos do Estado; ao mesmo tempo, sua frugalidade permite
que adquiram grande poder sobre a indústria e reúnam uma grande propriedade do
trabalho e das mercadorias, de que são os principais instrumentos na produção".
Da atividade intensa e da frugalidade resulta um crescente estoque de capital
disponível para empréstimo a juros baixos e isso realimenta a expansão dos
negócios. No longo prazo ' pois é esta a perspectiva humiana ' a redução dos
juros decorre não da expansão da oferta de moeda, mas do aumento da poupança e,
portanto, do capital utilizável para financiamento. O aumento da moeda em
circulação só estimula a atividade econômica por um breve período, pois seu
principal efeito ' e o único, em prazo maior ' é o aumento de preços. Sem o
comércio, afirma Hume, o Estado é constituído principalmente pela nobreza
perdulária e por camponeses sem recursos para alimentar um grande fluxo de
empréstimos a custo reduzido24. Juros baixos, segundo Hume, são um sinal de
economia próspera e de abundância de produtos e de recursos.
Nas condições normais do mundo moderno, a tentativa de reprimir as artes e o
comércio resultaria mais provavelmente em perda para o soberano e, portanto, em
enfraquecimento do Estado. A limitação das manufaturas e das artes mecânicas
(e, portanto, do comércio) afetaria o conjunto da sociedade e também os
agricultores seriam desestimulados pela redução de oportunidades de negócios.
Os braços tornados supérfluos pelos ganhos anteriores de eficiência ficariam
sem ocupação. Não haveria estímulo a novos aperfeiçoamentos do trabalho e da
indústria, porque não haveria como trocar os produtos adicionais. Em outras
palavras, o próprio avanço da agricultura, condição essencial ao avanço da
urbanização, tenderia a desaparecer, sem o estímulo gerado pela expansão de um
mercado fora do campo. Disso resultaria não só a estagnação da agricultura, mas
também, pela indolência, a perda de qualidade dos homens nela empregados. O
Estado se enfraqueceria, por falta de homens capazes de servir à causa pública
em caso de necessidade. Então, quanto mais trabalho seja empregado para suprir
mais que as necessidades básicas, mais poderoso será o Estado, porque as
pessoas dedicadas a esse tipo de atividade serão fácil e vantajosamente
recrutadas para o serviço público. "Um Estado sem manufatores pode igualmente
dispor da mesma quantidade de pessoas, mas a quantidade de trabalho não é a
mesma, nem do mesmo tipo, pois ali todo trabalho é empregado em necessidades às
quais não é possível renunciar"25.
A defesa do comércio como fator de fortalecimento do Estado inclui o elogio do
refinamento das artes. "O aumento e o consumo de todas as mercadorias que
servem para o ornamento e o prazer da vida são vantajosos para a sociedade,
pois, ao mesmo tempo em que multiplicam as inocentes gratificações dos
indivíduos, são uma espécie de estoquede trabalho que, diante de exigências do
Estado, pode ser voltada para o serviço público"26. Numa nação sem esses
prazeres, continua Hume, os homens mergulham na indolência e o Estado não
consegue manter adequadamente suas forças armadas. "As fronteiras de todos os
reinos europeus são, no presente, quase as mesmas de duzentos anos atrás; mas
qual a diferença de poder e grandeza desses reinos?" A resposta, segundo Hume,
está no aumento da arte e da indústria de alguns desses Estados.
A divisão do trabalho tende a ocorrer também entre as nações e o comércio
exterior, quando se desenvolve sem as distorções provocadas pela interferência
governamental, promove a prosperidade de todos os participantes e o
fortalecimento dos Estados envolvidos. Mas o poder do Estado, neste caso, será
usado mais proveitosamente para a interação econômica com os parceiros do que
para a guerra e a conquista. Políticas orientadas pelo temor da competição e da
importação dos produtos estangeiros são para Hume um erro grave e prejudicial à
sociedade e ao poder soberano. Quando se consideram as vantagens da
diversificação de atividades e da expansão das trocas, a condição dos Estados,
argumenta Hume, é semelhante à das pessoas: "Um indivíduo dificilmente será
industrioso se os seus vizinhos são ociosos. As riquezas de muitos membros da
comunidade contribuem para aumentar as minhas, qualquer que seja minha
profissão, pois consomem o produto de minha indústria e fornecem-me o produto
da sua em retorno"27.
Hume economista comanda boa parte do trabalho de Hume historiador. O exame
atento dos arranjos econômicos, das transformações dos sistemas de produção e
de comércio, da tributação e do gasto público é uma das marcas da História da
Inglaterra. Tome-se a análise, por exemplo, do reino de Elisabeth, no terceiro
apêndice do volume IV. "Para entender a antiga constituição da Inglaterra,
nenhum período merece mais estudo que o reino de Elisabeth", escreve Hume ao
introduzir a discussão. O cenário é paradoxal à primeira vista. As
prerrogativas da rainha foram raramente contestadas, ela as empregou amplamente
e "sem escrúpulo", recorreu à violência e, no entanto, desfrutou de grande
popularidade. O mistério é apenas aparente. Aquela popularidade foi possível,
segundo Hume, porque Elisabeth nunca infringiu as "liberdades estabelecidas do
povo"28. Ou, como sugerido no parágrafo inicial do apêndice: nem violou essas
liberdades nem julgou necessário conceder aos súditos mais liberdade do que
aquela desfrutada por seus ancestrais.
Hume discute nesse texto o estilo de governo de Elisabeth, o funcionamento dos
tribunais, o sistema penal, as finanças da Coroa, o comércio, a extensão dos
poderes da rainha, além, naturalmente, dos costumes da nobreza e do
renascimento cultural. Diante desse amplo e animado painel, o leitor talvez nem
perceba um detalhe nada irrelevante: comentários sobre economia e finanças
compõem quase quarenta por cento do texto. Hume não se limita, por exemplo, a
comparar o governo inglês do período elisabetano com o governo turco ainda no
século 18: "O soberano tem todos os poderes, exceto o de impor tributos ao
povo. Nos dois países, essa limitação, sem a compensação de outros privilégios,
parece sobretudo prejudicial ao povo." No caso da Turquia, porque o sultão
permite as extorsões praticadas pelos paxás e pelos governadores de províncias,
para depois tomar-lhes presentes ou impor-lhes confiscos. Na Inglaterra, porque
essa restrição levou a rainha a criar monopólios e a conceder patentes para
comércio exclusivo. Se isso tivesse sido levado mais longe, comenta Hume, a
Inglaterra, "sede de riquezas, artes e comércio, teria no presente tão pouca
indústria quanto o Marrocos ou a costa da Barbaria".
Hume descreve outras formas de extorsão fiscal, como empréstimos compulsórios
sem juros, imposição de embargos comerciais condicionados a benefícios para a
Coroa e vários expedientes de tributação disfarçada. Mas a rainha era frugal e,
além disso, dispunha de rendimentos proporcionados por direitos alfandegários e
por seus bens. Boa parte da despesa pública era destinada a custear "o
esplendor da corte", mas Elisabeth conseguiu, em geral, suportar esses gastos.
Mais que isso: liquidou, segundo se dizia, dívidas de 4 milhões de libras
deixadas por seu pai e por seus irmãos ' uma espécie de herança maldita.
Ao examinar o comércio, Hume retoma a crítica dos monopólios e privilégios,
esboçada na passagem sobre a limitação do poder de tributar. Ele aponta como um
dos erros de Elisabeth a decisão de criar monopólios para estimular o comércio
e a navegação e estabelecer, dessa forma, o poder naval necessário à segurança
do reino. Essa iniciativa tenderia a produzir exatamente o oposto do efeito
desejado, desencorajando a atividade interna, já que apenas alguns
privilegiados controlariam o intercâmbio externo. No entanto, prevaleceu "o
espírito da época", fortemente inclinado para os empreendimentos navais, as
descobertas e a exploração de oportunidades em mercados distantes. Aqui, o
historiador faz contraponto ao economista teórico dos ensaios sobre o comércio
internacional e crítico das práticas mercantilistas.
A atenção à economia se estende à descrição dos costumes e às mudanças de
hábitos da nobreza. Pouco a pouco aristocracia substitui os gastos com a
hospitalidade e o sustento de agregados pelas despesas com roupas, novas
edificações e objetos de luxo, disso resultando novos estímulos à indústria e
às artes, em vez do "vício, da desordem, da sedição e da ociosidade" associados
às velhas formas de vida. A referência ao consumo de bens de luxo e ao
refinamento do gosto e das artes logo remete ao desenvolvimento da manufatura e
do comércio. A mesma relação aparece em vários dos ensaios políticos e
econômicos. Mas a mudança dos hábitos de consumo, além de estimular a atividade
produtiva, acaba afetando a relação entre de poder entre os grupos sociais.
Enquanto predominavam os velhos costumes, os barões dissipavam fortunas com o
luxo da hospitalidade e mantinham uma "ascendência ilimitada" sobre as pessoas
mantidas por sua mesa ou dedicadas ao seu serviço. Com os novos padrões de
consumo, passaram a relacionar-se com artesãos e comerciantes sustentados com
independência pelo próprio trabalho.
Nessa nova relação, o poder dos aristocratas foi reduzido à "moderada
influência" dos clientes sobre seus fornecedores29. Uma relação desse tipo,
segundo Hume, "nunca pode ser perigosa para o governo civil". A conversão do
senhor em consumidor mudou a distribuição de poder entre os súditos e a relação
entre a nobreza e a Coroa. Da mesma forma, os proprietários de terras,
precisando mais de dinheiro que de homens, alteraram a forma de exploração de
suas propriedades, tornando a agricultura mais lucrativa e liberando
trabalhadores para a cidade. O enfraquecimento da aristocracia, nesse período,
não resultou apenas de uma ação do poder central ou de uma aliança da monarquia
com a burguesia ascendente. A própria ascensão da classe burguesa só é
inteligível a partir de uma análise da transformação dos costumes, dos padrões
de consumo e das condições de produção, e a análise humiana valoriza
precisamente esses dados.
3. Economia, poder e moral
O exame dos dados econômicos mostra-se igualmente fecundo quando se trata de
examinar processos muito mais longos de transformação política e social. Hume
interrompe o fio da narrativa, no final do capítulo 23 do segundo volume da
História da Inglaterra, para um balanço antecipado das grandes transformações
ocorridas entre o século 11 e o começo da modernidade ' ou a "aurora da
civilidade e das ciências", no século 15. Depois de resumir muito rapidamente o
período de retração cultural e econômica iniciado com a decadência do império
romano, ele chega a um ponto de inflexão, no século 11. Há sempre, segundo
Hume, um limite para os períodos de exaltação ou de depressão, e a partir desse
ponto a tendência se inverte. A mudança, nesse caso, é de um ambiente de
violência e insegurança para um cenário de maior estabilidade e melhores
condições para o desenvolvimento das luzes. Parte da melhora decorreu do
aumento da segurança externa, associado a um fator econômico: tendo aprendido
as artes da agricultura, os dinamarqueses e outros povos do norte conseguiram
"certa subsistência" em casa e puderam dispensar a "precária sobrevivência por
meio da rapina e da pilhagem de seus vizinhos". Mesmo os governos feudais, no
sul, foram reduzidos a "uma espécie de sistema" e ofereceram alguma
tranquilidade depois de um longo período de desordem.
Novas mudanças nos costumes e nas formas de produção e de organização da vida
material seriam necessárias, antes de se chegar àquela "aurora da civilidade e
das ciências". Hume destaca duas grandes transformações na ordem econômica. Uma
foi o desenvolvimento das atividades manufatureiras e mercantis nas cidades,
primeiro na Itália, depois na França e em seguida em outros países, até atingir
a Inglaterra. As corporações envolvidas nessas atividades foram protegidas
privilégios e governos separados e assim puderam escapar da tirania dos barões.
A outra grande alteração ocorreu no interior dos domínios feudais.
Gradualmente, os senhores dispensaram os servos da terra da prestação de
serviços pessoais, permitindo-lhes dedicar-se exclusivamente à agricultura.
Aqueles serviços, embora muito custosos para os servos, eram de pouca
importância para os barões e valiam menos, afinal, que o produto da atividade
rural. Gradualmente os senhores descobriram também ser mais vantajoso deixar
aos agricultores a responsabilidade pela destinação de seu produto. Com isso se
alterou a relação entre o dono da terra e o seu usuário, com o pagamento da
renda (isto é, do aluguel do solo) substituindo a prestação de serviços.
Deixando de lado a linguagem do próprio Hume, pode-se resumir essa história
como sendo a passagem da produção feudal para a agricultura capitalista,
baseada em ganhos de produtividade e livre acesso ao mercado. Nessa evolução, a
propriedade perde o caráter de elemento de dominação pessoal e transforma-se em
fonte de renda (aluguel). "O interesse do senhor e o do servo (slave é a
palavra usada) concorreram para a mudança" e com isso a servidão (villenage)
"entrou gradualmente em desuso nas partes mais civilizadas da Europa"30.
A crescente segurança da propriedade foi um fator importante para o aumento da
produção e, portanto, para todas as mudanças decorrentes dos ganhos de
produtividade e discutidas mais extensamente no ensaio Do Comercio. As terras
eram mais bem cultivadas onde o produtor desfrutava de segurança de sua posse,
escreve Hume na História da Inglaterra, e com isso começou a prevalecer o
sistema de concessão de uso (lease) e os vínculos de servidão se romperam
totalmente. Esse vínculo entre direitos ' de fato ou respaldados por lei ' e as
práticas econômicas é recorrente nos escritos históricos e teóricos de Hume.
Neste caso, a mudança legal completa ocorreu muito depois da consolidação das
alterações no sistema produtivo e da extinção da diferença entre servo e homem
livre. Mas o sistema jurídico havia começado a transformar-se muito antes do
esboroamento do regime feudal, a partir da importação de novas concepções
desenvolvidas no continente.
Nesse capítulo da HistóriaHume presta uma rara homenagem ao clero católico,
pela preservação da cultura na Idade Média e pela renovação do pensamento
jurídico a partir da redescoberta do direito romano. "Talvez nenhum evento",
escreve ele, "tenha contribuído tanto para o aperfeiçoamento daquela era quanto
[...] o encontro de uma cópia dos Pandectas de Justiniano por volta do ano
1.130 na cidade de Amalfi, na Itália"31. O clero estudou e difundiu esse
"excelente sistema" de concepções jurídicas por toda a Europa e em menos de dez
anos o assunto era discutido em Oxford. Os eclesiásticos tinham interesse nessa
difusão, em parte porque a sede do antigo império romano era também a sede de
sua igreja e em parte porque desejavam maior segurança para suas posses em toda
a Europa. Mas essa ressalva tem muito menos, no comentário humiano, do que o
reconhecimento dos méritos do novo sistema e dos efeitos positivos de sua
adoção em muitos Estados europeus.
O sistema romano jamais foi adotado internamente na Inglaterra, mas foi em
grande parte "transferido secretamente para a prática das cortes de justiça".
Além disso, os ingleses, desejando imitar os vizinhos, "esforçaram-se para
gradualmente elevar a própria lei de sua condição original de rudeza e
imperfeição"32. De certa forma, a adoção dos padrões do direito romano, mesmo
sem a sua incorporação no sistema legal, teve um efeito civilizatório em toda a
Europa e, de modo especial, "entre os saxões ou ingleses antigos", por causa da
"extrema imperfeição" de sua jurisprudência. Na Inglaterra ainda prevaleciam
práticas como a autorização de vinganças privadas, da compensação em dinheiro
por qualquer crime e do duelo. "Esse estado da sociedade era muito pouco
avançado em relação ao rude estado de natureza", comenta Hume, numa rara
referência ' metafórica, naturalmente ' à condição natural descrita pelos
contratualistas. A metáfora, neste caso, refere-se à passagem de uma situação
sem lei e sem segurança para um mundo ordenado segundo regras fixas e objetivas
de justiça. É a mesma transição descrita no livro III do Tratadoe mencionada no
ensaio Da Origem do Governo, uma evolução necessária tanto ao desenvolvimento
das artes quanto à dinamização e à diversificação da atividade produtiva.
É o caso, talvez, de se perguntar se há, no pensamento de Hume, uma precedência
dos fatores econômicos ou dos arranjos sociais e institucionais na ordem
causal. Em alguns momentos ele acentua a influência das mudanças econômicas nos
demais aspectos da vida coletiva, ao apontar, por exemplo, a passagem da
agricultura servil para a comercial como um fator de redistribuição de poder.
Em outras passagens, a consolidação das instituições de justiça aparece como
liberadora das forças produtivas e da capacidade criadora nas artes e nas
técnicas. A mesma aparente ambiguidade ocorre na discussão dos vínculos entre
as artes e a liberdade. "Uma vantagem fundamental derivada da introdução e do
progresso das artes foi a introdução e progresso da liberdade e esta
consequência afetou os homens tanto na sua capacidade pessoalquanto na civil",
está escrito na História33. No entanto, o ensaio Da Ascensão e Progresso das
Artes e Ciênciascontém uma tese à primeira vista contrastante: "Minha primeira
observação sobre esse assunto é que é impossível que as artes e ciências
ascendam primeiro em meio a um povo qualquer se esse povo não desfruta da
bênção de um governo livre"34.
A tese do ensaio é sustentada com uma extensa argumentação histórica e
política, A cultura não pode florescer em sociedades bárbaras, onde os homens
buscam antes de mais nada proteção contra a violência e a injustiça mútua e se
tornam dependentes de chefes capazes de se impor pela força. O ambiente será
ainda menos propício ao desenvolvimento cultural se o poder for concentrado nas
mãos de um homem, "Esperar, portanto, que as artes e ciências surjam primeiro
numa monarquia é esperar uma contradição. Antes que esses refinamentos tenham
lugar, o monarca é ignorante e desinstruído e, sem conhecimento suficiente para
torná-lo sensível à necessidade de balancear seu governo em leis gerais, ele
delega plenos poderes a todos os magistrados inferiores. Essa política bárbara
degrada o povo e impede para sempre todo aprimoramento"35. Este comentário abre
caminho para uma comparação entre o regime republicano e o monárquico e sobre
as possibilidades da cultura e da liberdade em cada um. Não é o caso, neste
momento, de avançar longamente nesta discussão. Deve ser suficiente a indicação
de alguns pontos, a começar por um dado favorável à república, isto é, ao
regime caracterizado por eleições e pela participação do povo: mesmo uma
república bárbara "dá à luz o direito, "antes mesmo que "os homens tenham
realizado avanços consideráveis em outras ciências"36. "Do direito surge a
segurança; da segurança, a curiosidade, e da curiosidade, o conhecimento." Mas
o surgimento da luzes pode dar-se também pelo contágio resultante da vizinhança
de números Estados independentes e ligados pelo comércio e pela política ' um
fator mencionado mais de uma vez nos ensaios políticos e econômicos. A
fragmentação dos Estados e a consequente limitação do poder igualmente
facilitam o aparecimento das condições necessárias ao progresso do conhecimento
e das artes. Além disso, os sistemas políticos podem mudar, por influência de
vários fatores, e assim o comércio e as artes podem florescer também nas
monarquias absolutas, observa Hume no ensaio Da Liberdade Civil."Como discuto
aqui as alterações que o tempo produziu ou poderá produzir na política, devo
observar que todos os gêneros de governo, livres e absolutos, parecem ter
experimentado, em tempos modernos, uma mudança para melhor no que se refere à
administração externa e doméstica". Com isso se pode dar conta do notável
florescimento das letras, das artes e das ciências, assim como do comércio, na
França absolutista. A segurança da propriedade parece ter-se tornado tão segura
"numa monarquia europeia civilizada quanto numa república" e, além disso, é
preciso considerar a força da avareza, móvel da indústria, diante de obstáculos
de todo tipo. Se o comércio tende a decair em governos absolutos, continua
Hume, não é por ser menos seguro, mas menos honroso. Como a subordinação de
classes é necessária à manutenção da monarquia, "nascimento, títulos e cargos
devem ser honrados acima de indústria e riquezas"37.
Retomando a questão: haverá precedência de alguma classe de fatores na ordem da
causalidade? O exame da História, dos Ensaiose do Tratadosugere uma resposta
mais complexa do que a indicada na formulação da pergunta. Há um jogo de
influência recíproca entre os vários fatores e, embora Hume não recorrra a essa
imagem, suas descrições apontam um processo de realimentação. Ora a alteração
econômica afeta a distribuição de poder e a vida política, ora a mudança no
exercício de poder libera o potencial produtivo e a criação nas artes e nas
ciências e assim por diante. Os textos citados até agora mostram a causalidade
operando em mais de um sentido. Mas é preciso, também, levar em conta a
importância atribuída por Hume aos impulsos elementares não só da
sobrevivência, mas também da ação produtiva e da criação de formas
crescentemente complexas de organização econômica. As três vantagens básicas da
vida social, tais como descritas no Tratado, são a agregação de forças, a
divisão do trabalho (a possibilidade de aperfeiçoamento em cada atividade) e a
segurança diante do infortúnio. O problema da segurança da propriedade e,
portanto, da justiça, só se manifesta com a multiplicação das ocasiões de
conflito e impõe a busca de um arranjo artificial e mais complexo que a mera
associação. Esse arranjo é a vida política.
Alguns ordenamentos políticos são mais favoráveis que outros ao desenvolvimento
do comércio, das artes, das ciências e ' como síntese de todas as condições
mais favoráveis à manifestação das capacidades humanas ' da liberdade. A
comparação entre regimes frequentemente assume a forma do confronto entre
monarquia e república. Mas o contraste essencial, no pensamento humiano, não é
de fato entre os sistemas monárquico e republicano, mas entre governos
despóticos e governos livres, ou, mais precisamente, entre regimes com
diferentes graus de autoridade ou de liberdade e com diferentes níveis de
segurança para a propriedade. Em algumas passagens a ênfase da linguagem
humiana dificulta a percepção de certas distinções mais finas. A discussão
sobre formas de organização política e liberdade fica mais clara quando se
examinam mais de perto alguns detalhes da análise política. Até aqui, houve
referências principalmente às funções básicas do governo ' proporcionar
segurança externa e interna e garantir a aplicação de normas de justiça. Mas o
conjunto é bem mais complexo e um de seus aspectos mais interessantes é uma
teoria sobre a autoridade.
Como podem os governantes mandar no povo, conseguir submissão e conseguir dos
indivíduos a renúncia a seus interesses e paixões? Não pode ser só pela força,
porque, nesse caso, a vantagem estaria do lado dos governados. "Portanto",
afirma Hume, "o governo funda-se tão somente na opinião, e essa máxima vale
tanto para os governos mais despóticos e militarizados quanto para os mais
livres e populares"38. As opiniões podem ser de interesse e de direito. A
primeira se vincula "principalmente" à percepção das vantagens derivadas do
governo e de sua estabilidade. A segunda pode referir-se a dois tipos de
direito ' ao poder e à propriedade. O interesse próprio, o medo e a afeição
podem também afetar o exercício da autoridade, mas, segundo Hume, não exercem
influência independentemente das opiniões a respeito do interesse público, do
direito ao poder e do direito à propriedade. A combinação desses princípios
favorece diferentes formas de organização institucional e de exercício do
poder, não só pela aceitação da autoridade, mas também pela maior ou menor
lealdade a cada tipo de governo. Neste ensaio (Dos Primeiros Princípios de
Governo) o objetivo de Hume é obviamente a elaboração de uma teoria sobre os
fundamentos da obediência ou, se se quiser usar um conceito mais moderno, da
legitimidade no sentido da sociologia política weberiana.
Ele não chega a estabelecer uma tipologia como a de Weber, mas evoca diferentes
configurações do poder com diferentes limites da autoridade. No ensaio
seguinte, Da Origem do Governo, Hume acrescenta uma qualificação essencial à
sua análise da extensão e dos limites do poder político. Cabe, aqui, uma
citação longa: "Em todos os governos", escreve, "há uma luta perpétua e
entranhada, aberta ou secreta, entre AUTORIDADE e LIBERDADE, mas nenhuma delas
pode prevalecer na disputa. [...] O sultão é senhor da vida e da fortuna de
cada indivíduo, mas não pode impor novos impostos a seus súditos. Um monarca
francês pode impor impostos a seu bel-prazer, mas percebe o perigo de atentar
contra a vida e a fortuna de indivíduos. Também a religião é, na maioria dos
países, um princípio intocável, e outros princípios ou preconceitos
frequentemente resistem a toda autoridade do magistrado civil, cujo poder se
funda na opinião [...]"39. Se esta descrição traduzir, de fato, o ponto de
vista de Hume, a hipótese do governo perfeitamente despótico só terá sentido
como um caso limite concebido por abstração. Se as configurações do poder
fossem descritas por uma curva determinada por duas séries de valores '
autoridade e liberdade ' dispostos em dois eixos, as combinações de fato sempre
estariam entre os extremos. A sociedade é sempre mais que um ajuntamento de
objetos inertes ou passivos diante do poder. Para admitir essa hipótese seria
preciso descartar a natureza humana tal como concebida na teoria humiana. O
artifício da política é necessário porque os homens não podem mudar essa
natureza, mas apenas criar condições de controle de algumas de suas
manifestações. O poder político tem essa função ' mas também é incapaz de mudar
ou de anular essa natureza.
Hume expõe a sua concepção do homem a partir de uma descrição de como o
indivíduo recebe e processa os estímulos sensoriais e de como as paixões afetam
o seu comportamento. Os atributos do indivíduo são essenciais para a construção
da teoria social humiana, mas esse "individualismo" é muito mais complexo que o
de Hobbes e a concepção política dele resultante é muito diferente. Apesar de
seu interesse predominante por si e pelos próximos, esse sujeito é, por assim
dizer, condenado à vida social. "Em todas as criaturas não predadoras e que não
são agitadas por paixões violentas manifesta-se um notável desejo de companhia,
que faz com que se associem umas às outras, sem que possam pretender tirar
qualquer proveito dessa união. Isso é ainda mais visível no homem, que é,
dentre todas as criaturas do universo, a que tem o desejo mais ardente de
sociedade e está preparada para ela pelo maior número de circunstâncias
favoráveis. " Uma única paixão, a simpatia, anima todas as demais ' orgulho,
ambição, avareza, curiosidade, vingança ou luxúria. Nenhuma delas teria força,
"se fizéssemos abstração dos pensamentos e sentimentos alheios"40.
O conceito de simpatia é fundamental, no pensamento humiano, tanto para a
construção de uma teoria da interação social quanto para a elaboração da teoria
política. Adam Smith pode ter ido mais longe na exploração desse conceito, em
sua Teoria dos Sentimentos Morais,mas a contribuição de Hume tem sido
provavelmente subestimada, embora o tema seja discutido tanto no exame das
paixões, no segundo livro do Tratado, quanto na exposição sobre a moral, no
terceiro livro. No livro II, o assunto aparece numa seção sobre a estima
dedicada aos poderosos e ricos. Aqui, Hume antecipa alguns tópicos e argumentos
da exposição smithiana. Um exemplo é a referência ao prazer causado pela
contemplação de objetos e instalações de conforto mesmo quando o observador não
desfruta pessoalmente desses benefícios. Tudo se passa como se o espectador se
pusesse no lugar do proprietário. "Entramos em seu interesse pela força da
imaginação, e sentimos a mesma satisfação que esses objetos naturalmente nele
ocasionam"41. Cinco parágrafos adiante: "Podemos observar, em geral, que as
mentes dos homens são como espelhos umas das outras, não apenas porque cada uma
reflete as emoções das demais, mas também porque as paixões, sentimentos e
opiniões podem reverberar várias vezes, deteriorando-se gradual e
insensivelmente". A metáfora do espelho, retomada por Smith, é especialmente
útil, na Teoria dos Sentimentos Morais, para a descrição de como os valores e a
moralidade se formam no espaço intersubjetivo. Desse jogo resultam não só
padrões pessoais de julgamento, mas um padrão socialmente dominante, expresso
nas avaliações do espectador imparcial.
No livro III, essas teses são parcialmente reexpostas na seção dedicada às
virtudes e aos vícios naturais. "As mentes de todos os homens são similares em
seus sentimentos e operações; ninguém pode ser movido por um afeto que não
possa ocorrer também nas outras pessoas, seja em que grau for. Como cordas
afinadas no mesmo tom, em que o movimento de uma se comunica à outra, todos os
afetos passam prontamente de uma pessoa a outra, produzindo movimentos
correspondentes em todas as criaturas humanas [...] Nenhuma paixão alheia se
revela imediatamente à nossa mente . Somos sensíveis somente às suas causas ou
efeitos. É desses que inferimos a paixão; consequentemente, são eles que geram
nossa simpatia."42. O texto reproduz em seguida, com outras palavras, as
considerações sobre os efeitos da observação das coisas belas e úteis. O ponto
mais importante para a teoria política vem adiante: "Esse mesmo princípio
produz, em muitos casos, nossos sentimentos morais, assim como os do belo.
Nenhuma virtude é mais apreciada que a justiça, e nenhum vício mais detestado
que a injustiça [...]"43.
Hume desenvolve a exposição, a partir desse ponto, discorrendo sobre como os
homens aprovam, por simpatia, virtudes artificiais valorizadas por serem
benéficas à sociedade e à humanidade, como a justiça, a obediência civil, a
modéstia e o respeito ao direito internacional. Este é um ponto crucial para a
construção da teoria política. É fácil explicar racionalmente por que os homens
precisam da autoridade e esse ponto é exposto no Tratadoe com clareza ainda
maior no ensaio Da Origem do Governo. A imposição da lei pela força do poder
comum compensa, de certa forma, o caráter abstrato do interesse geral. No
entanto, a referência ao poder da autoridade conta apenas uma parte da
história. Apesar da força dos interesses mais próximos, o indivíduo é capaz de
valorizar o coletivo. A injustiça nos desagrada mesmo quando é distante e não
afeta diretamente nosso interesse, "pois a consideramos prejudicial à sociedade
humana" e "participamos, com simpatia", do desprazer imposto à vítima do ato
injusto. "Assim, ointeresse próprioé o motivo original para o estabelecimentoda
justiça, mas uma simpatia com o interesse públicoé a fonte da aprovação
moralque acompanha essa virtude"44. A observação é acompanhada de uma ressalva:
"Este último princípio, da simpatia, é fraco demais para controlar nossas
paixões; mas tem força suficiente para influenciar nosso gosto e para nos dar
os sentimentos de aprovação ou de condenação". A vida política é muito mais que
um arranjo de poder para regular a coexistência de indivíduos egoístas.
O egoísmo é um dado e o conflito, também, mas o estado pré-político, tal como
descrito por Hume, não é uma condição de indivíduos atomizados. O surgimento do
poder político marca uma etapa da experiência coletiva e responde a uma
necessidade gerada por mudanças nas condições materiais de vida. Isso já foi
indicado neste comentário. A invenção da justiça responde a uma crise de
crescimento: sem um mecanismo para disciplinar a posse dos bens exteriores e as
formas de apropriação e transferência, a sociedade entraria em colapso. Nessa
altura, o grupo social envolve, com certeza, relações muito mais complexas que
do que seriam os vínculos criados por uma cooperação eventual e passageira. A
função primária do poder político é fortalecer esses vínculos e impedir seu
rompimento. A nova forma de articulação dos indivíduos não surge de um ato
criador. O progresso natural dos sentimentos é insuficiente para garantir a
manutenção da vida social, mas é "favorecido pelo artifício dos políticos, que,
com o intuito de governar mais facilmente os homens e preservar a paz na
sociedade humana, buscaram produzir um apreço pela justiça e uma aversão pela
injustiça". Mas os políticos podem apenas, com seu esforço, estender os
sentimentos "além de seus limites originais". Não podem criá-los. Precisam
dispor da matéria-prima, isto é, de alguma noção das distinções morais
fornecida pela natureza45. Essas noções são reforçadas pelo elogio público e
pela condenação dos comportamentos, assim como pela educação e pela instrução
privada e pelo valor atribuído, afinal, à reputação. Desde cedo transmitidos às
crianças, "os sentimentos de honra podem criar raízes em suas mentes delicadas,
adquirindo tal firmeza e solidez que não ficam muito aquém dos princípios mais
essenciais à nossa natureza e mais profundamente enraizados em nossa
constituição interna"46.
Inútil, portanto, procurar em Hume uma teoria política pura, de tipo
mecanicista, construída sem referência a formas de interação moral
independentes da ação de um poder comum. A política humiana é construída sobre
a base de uma psicologia social e também isso o distancia do universo
hobbesiano. Embora valorizando o modelo da física clássica e aproveitando
elementos da política de Grotius, Hobbes, Locke e Pufendorf, Hume e Smith abrem
caminho para uma teoria social muito diferente da seiscentista.
4. Ceticismo e liberalismo
Não se pretende neste artigo discutir ponto a ponto a construção do sistema
humiano e testar no detalhe a coerência de seus textos. Esse exercício é em
muitos casos improdutivo. Como em Rousseau, a consistência é dada, neste caso,
muito mais pelas grandes linhas do pensamento ' pela unidade substancial, como
diria Goldschmidt ' do que pela ênfase ocasional num ou noutro ponto47. Parece
difícil, depois de todos os pontos expostos e discutidos até aqui, por em
dúvida não só a intenção sistemática de Hume, mas também seu sucesso na
construção de um amplo conjunto de análises psicológicas, políticas, econômicas
e histórias a partir de um conjunto restrito de princípios e de teses.
Que um pensador rotulado como cético tenha empreendido um trabalho desse tipo
já não deve surpreender ninguém há muito tempo. Primeiro, porque o ceticismo de
Hume, seja qual for a sua qualificação, não se sobrepõe às exigências da
natureza. Os homens não deixarão de agir e de viver para seguir qualquer
raciocínio abstrato. Evitarão jogar-se no abismo, terão cuidado com o fogo e
escolherão seus alimentos entre aqueles considerados mais seguros, embora sejam
incapazes, pelo exercício da filosofia, de afirmar com certeza demonstrativa
uma relação causal ou qualquer proposição relativa a questão de fato. Não há
demonstração no raciocínio moral, referente a questões de fato e de existência:
"não é contraditório que o curso da natureza possa mudar e que um objeto
aparentemente semelhante aos de que tivemos experiência possa vir acompanhado
de efeitos diferentes ou contrários. Tentar demonstrar por argumentos prováveis
a conformidade do futuro com o passado seria "andar em círculo e tomar como
dado" exatamente o ponto em debate. De fato esperamos efeitos semelhantes de
causas semelhantes, mas essa expectativa não é produzida pela razão nem pode
resultar de qualquer número de experiências. No entanto, só um "insensato ou
louco" poderia "por em questão a autoridade da experiência ou rejeitar essa
grande condutora da vida humana"48.
Mas o ceticismo não é superado ou atenuado apenas pela força de uma natureza
defensora de seus direitos. De modo geral, os homens se orientam pela
experiência comum ou por ideias mais ou menos elaboradas e complexas. Assim
sobrevivem tanto os sábios quanto os indivíduos de cultura limitada. Mas a
contenção do ceticismo vai além da prática cotidiana e este é o segundo ponto.
As pessoas com propensão para a filosofia continuarão a filosofar, pelo prazer
dessa ocupação e também porque "as decisões da vida comum nada mais são do que
os pensamentos da vida comum metodizados e corrigidos". A filosofia pode ser
uma exigência da natureza para algumas pessoas. "Sinto crescer em mim a ambição
de contribuir para a instrução da humanidade e de conquistar um nome por minhas
invenções e descobertas. Tais sentimentos brotam naturalmente em minha
disposição presente; e, se eu tentasse erradicá-los, dedicando-me a qualquer
outra tarefa ou divertimento, sintoque perderia no âmbito do prazer; e esta é a
origem de minha filosofia"49.
Ninguém é obrigado a filosofar, mas quem sente essa inclinação pode, apesar de
todas as limitações do entendimento, entregar-se à reflexão com a esperança de
produzir algo de valor. "Enquanto uma imaginação ardorosa for admissível em
filosofia, e enquanto se aceitar que hipóteses possam ser abraçadas meramente
por especiosas ou agradáveis, jamais poderemos ter princípios firmes ou
sentimentos adequados à prática e à experiência comuns. Mas, se algum dia essas
hipóteses forem eliminadas, poderemos ter então esperanças de estabelecer um
sistema ou conjunto de opiniões que, se não verdadeiras (pois isso talvez seria
esperar demais), sejam ao menos satisfatórias para a mente humana e resistam à
prova do exame mais crítico"50. Que mais seria necessário para justificar um
empreendimento tão ambicioso quanto aquele enunciado no começo do Tratado? Mas
a decisão de filosofar pode também garantir um resultado prático de imenso
valor. Acolher a filosofia é aceitar raciocínios elaborados e refinados. Para
rejeitá-la, devemos basear-nos em raciocínios igualmente complexos, como
aqueles desenvolvidos no exame das operações e dos limites do entendimento.
Qualquer decisão é difícil, mas uma delas ' a recusa do filosofar ' tem um
custo especialmente alto. É quase impossível, segundo Hume, a mente humana
permanecer dentro do "círculo estreito" dos objetos da conversação e da vida
cotidiana. É preciso, portanto, escolher o guia mais seguro e agradável.
"Quanto a isso, ouso recomendar a filosofia, e não hesito em escolhê-la em
lugar da superstição, de qualquer gênero ou nome." A superstição domina
facilmente as mentes e frequentenente perturba as ações. Já a filosofia, "se
legítima (just), só pode nos oferecer sentimentos brandos e moderados; e, se
falsa e extravagante, suas opiniões são objetos de especulação fria e geral e
raramente chegam a interromper o curso de nossas propensões naturais".
Há um sentido prático ' e especialmente político ' na escolha da filosofia. A
superstição não perturba somente a vida individual. Afeta a vida coletiva e
favorece a tirania, fortalecendo o poder sacerdotal e dificultando a liberdade
civil, porque "torna o homem dócil e abjeto e ajusta-o para a escravidão"51. O
entusiasmo religioso também envolve perigo, por induzir à rebelião, à violência
e à instabilidade política, mas "sua fúria é como a do trovão e da tempestade,
que logo passam e deixam o ar mais calmo e sereno do que antes". Como é
associado à autoconfiança e ao ânimo vigoroso, é favorável à liberdade e à
tolerância, Hume relaciona a superstição aos católicos tradicionais e aos
tories. O entusiasmo, aos quacres, aos independentes, aos presbiterianos e aos
whigs. Ele aponta divisões políticas e religiosas semelhantes em outros países
da Europa. No caso da França, a oposição mais notável é entre molinistas,
conduzidos pelos jesuítas, e jansenistas. "Os jesuítassão os tiranos do povo; e
os jansenistasmantêm acesa a pequena centelha de amor pela liberdade que se
encontra na nação francesa"52.
Embora manifeste menor rejeição aos entusiastas, Hume tenta manter-se distante
das duas posições. Ele rejeita a tirania e qualquer pretensão ao poder
absoluto. Ao mesmo tempo, defende a monarquia inglesa de seu tempo, moderada
pelo poder do Parlamento, por uma legalidade bem estabelecida e, de modo
especial, por instituições e costumes favoráveis à liberdade ' ou às
liberdades, como a de imprensa, por ele descrita como mais ampla do que em
qualquer outro governo republicano ou monárquico. A explicação dessa
peculiaridade inglesa, segundo Hume, está na organização política: "A razão por
que as leis nos permitem essa liberdade parece advir de nossa forma mista de
governo, que não é nem inteiramente monárquica, nem republicana". Também aqui
aparece a tese a respeito da combinação entre as formas de exercício do poder.
Os dois extremos, a liberdade e a escravidão, muitas vezes se aproximam. "Tão
logo se abandonem esses extremos, misturando à liberdade um pouco de monarquia,
o governo torna-se sempre mais livre; e, por outro lado, quando se mistura à
monarquia um quinhão de liberdade, o jugo torna-se sempre mais penoso e
intolerável"53. Neste ensaio, como em muitos outros, a tese é discutida e
sustentada com base em exemplos históricos contemporâneos e do passado. Na
Inglaterra prevalece a parte republicana, embora "com grande mistura de
monarquia". Aí, o equilíbrio do regime depende de uma severa limitação dos
poderes dos magistrados, por meio de leis "gerais e inflexíveis" concebidas
para "assegurar a vida e a fortuna" de cada súdito. A liberdade para vigiar e
criticar o governo é um dos instrumentos de segurança: "o poder arbitrário se
instauraria entre nós, se não tivéssemos o cuidado de impedir seu progresso; e
não há método mais simples para isso do que soar o alarme de uma ponta a outra
do reino". A liberdade de imprensa pode dar origem a abusos, mas é difícil
propor um remédio adequado a esse mal. Hume claramente prefere os
inconvenientes dessa liberdade ilimitada aos males derivados da restrição.
Como economista, como escritor político e como cidadão, Hume defende as
instituições inglesas de seu tempo e defende maior abertura para a atividade
produtiva, para o comércio e, portanto, para o desenvolvimento das artes e das
ciências e, portanto, para todos os benefícios consequentes. Há em seus
escritos e em suas atitudes políticas uma mistura de conservadorismo e de
reformismo. É preciso evitar o radicalismo político e preservar as liberdades e
as formas de coexistência estabelecidas e consolidadas a partir da revolução de
1688. Mas é preciso, também, avançar na liberação da atividade produtiva e
comercial. A crítica à política dos monopólios, dos privilégios e das barreiras
impostas ao comércio é uma tentativa de eliminar resíduos do absolutismo. Os
fisiocratas desenvolvem na França uma campanha semelhante. Turgot, amigo e
correspondente de Hume, batalha pela liberação do espaço econômico francês e
pela difusão de novas práticas de produção e de circulação de mercadorias. O
trabalho continuará com Adam Smith, Jean-Baptiste Say e David Ricardo.
Hume descreve a história europeia, desde o ponto de inflexão no século 11, como
a construção progressiva de uma sociedade livre. As mudanças econômicas,
culturais e políticas vividas entre a fase final do feudalismo e o começo da
modernidade produzem em toda parte resultados semelhantes: "Assim, a
liberdadepessoal tornou-se quase generalizada na Europa e essa vantagem
pavimentou o caminho para o aumento da liberdade políticaou civil"54. Mesmo
quando esse efeito foi incompleto, acrescenta o historiador, a transformação
proporcionou aos membros da comunidade alguns dos principais benefícios. A
experiência inglesa, segundo ele, tem uma característica especial, porque a
vontade do monarca, desde a invasão da ilha pelo saxões, jamais foi
"inteiramente absoluta e incontrolada". "Em outros aspectos, no entanto, o
equilíbrio de poder mudou amplamente entre as várias ordens do Estado [...]".
Hume nunca se mostra bastante otimista para apostar na continuidade indefinida
do progresso ou mesmo na preservação das liberdades e das luzes. Sua tese sobre
a inflexão histórica depois dos períodos de exaltação ou de depressão nunca é
abandonada. Além disso, ele nunca deixa de alertar para os perigos do
radicalismo e do partidarismo. Mas a maior parte de seus escritos parece conter
pelo menos a crença na possibilidade de um longo período de liberdade e de
progresso, se houver suficiente investimento na polidez e no bom senso.