A política de perto: recortes etnográficos de campanhas eleitorais
As marcas espaciais e temporais de uma campanha eleitoral são evidentes. Um
município, um país, ou uma pequena localidade são facilmente reconhecíveis
nesse período de visibilidade da política, caracterizado pela presença de
símbolos visuais e discursivos distribuídos ao longo de um território. Sons,
cores, imagens e palavras compõem um cenário peculiar já amplamente conhecido
pela população, fazendo do momento eleitoral um acontecimento de repercussões
múltiplas na vida social. A categoria nativa tempo da política1 chama a atenção
para essa sazonalidade ímpar das disputas eleitorais, atravessada por eventos
comparáveis a tantos outros rituais, religiosos ou festivos, que integram o
ciclo dos acontecimentos em cidades interioranas do Brasil.
A perspectiva de temporalidade alusiva às eleições pode ser igualmente
percebida em metrópoles, locais por onde transita uma oferta ampla de discursos
e práticas sociais em situação de concorrência. No tempo das promessas,
expressão também utilizada por eleitores para falar sobre a época das campanhas
eleitorais, as disputas entre candidatos materializam-se em eventos e situações
portadores de visões, divisões e classificações sociais. Identificações emergem
(quem fica de que lado), quando se afirmam pactos ideológicos, arranjos e
estratégias que integram o campo da política2.
Neste artigo nos propomos a pensar, com base no conceito de ritual, os atos de
campanha eleitoral, explorando as estratégias de aproximação entre candidatos e
eleitores e as ações simbólicas que contribuem para a construção da
representação política. O contexto urbano serve de referência às discussões
embasadas em pesquisas realizadas em distintos pleitos eleitorais3. O argumento
básico a ser desenvolvido durante o texto considera que os atos de campanha
constroem relações de proximidade entre o que se nomeia de política e os
eleitores, viabilizando a apresentação ampla de concorrentes e redefinindo
pactos sociais que validam os princípios da representação política. Os eventos
de campanha podem ser decifrados como estratégias que tornam a política e os
políticos, geralmente percebidos como distantes e inacessíveis, próximos e
suscetíveis aos acordos que fundamentam o processo de delegação de poderes.
Uma discussão sucinta e introdutória a respeito dos rituais como objeto de
reflexão socioantropológica, incluindo as possibilidades de pensá-los no âmbito
dos atos de campanha eleitoral, oferece subsídios interessantes para o
encaminhamento das reflexões aqui propostas.
A POLÍTICA COMO RITUAL
Os rituais4 reportam-se, em sua origem, a certas cerimônias ligadas ao
sobrenatural, e são percebidos posteriormente como cultos de natureza não
tipicamente religiosa, os quais reúnem outros acontecimentos presentes nas
sociedades modernas.
Autores contemporâneos5, seguindo a perspectiva de Durkheim, definem o ritual
como sistema de comunicação simbólica: um "texto" a ser interpretado em sua
profusão de sentidos. Os ritos representariam cenários amplos para o
entendimento de partes fundamentais da sociedade, cuja característica
reiterativa é capaz de fornecer o elemento estável no qual se apóiam as
observações do pesquisador. É essa dimensão de estabilidade que Cazeneuve6
aponta como sendo estrategicamente relevante para delimitar invariantes
presentes em contextos sociais determinados, tal como se apresentam na
metodologia utilizada por Lévi-Strauss, em estudo sobre os mitos.
As concepções vigentes na literatura de que os ritos são mecanismos funcionais
de preservação social, propulsores de ações que promovem diferentes formas de
identidade social, podem ser repensadas no âmbito das práticas políticas. No
caso das campanhas eleitorais, as dimensões de conflito e de concorrência
sugerem a necessidade de incorporar novos parâmetros analíticos às reflexões
sobre os ritos sociais. Os ritos, vistos sob o prisma de campanhas eleitorais,
podem constituir momentos simultâneos de criação, repetição e concorrência
entre símbolos políticos, expressando não só valores consensuais instituídos,
como também conflitos típicos da sociedade contemporânea, incluindo múltiplos
temas que cerceiam o mundo social7.
As polaridades utilizadas para se pensar os ritos como consenso ou dissenso
terminam reforçando antagonismos que podem significar, na realidade, anverso e
reverso de uma mesma moeda. A proposta de Gerd Baumann8 sobre a possibilidade
de fazer uma releitura de Durkheim no espaço da sociedade plural chama a
atenção para a inclusão da diversidade na análise dos rituais, em substituição
ao princípio preponderante de cristalização de valores básicos culturais. Com
efeito, em vez de constituir um homogêneo "nós", os rituais podem congregar
partes diferenciadas de uma mesma totalidade, abrindo possibilidades
interessantes para se pensar sobre a multiplicidade de símbolos em conflito,
para além da existência de uma "funcionalidade" relacional entre as partes e o
todo. Lévi Strauss já havia alertado para o caráter disjuntivo dos jogos e
competições, os quais podem ser comparados, mutatis mutandis, com situações de
disputa entre candidatos no período eleitoral.
Além dessa característica de competição, os rituais são sinalizadores de
interditos. Pierre Bourdieu9 atenta, dentro dessa perspectiva, para os ritos
como espaços congregadores de diferenças, não tanto pela composição de seus
integrantes, mas pela linha divisória que separa os participantes dos não-
participantes, a exemplo das cerimônias masculinas de circuncisão.
Os rituais expressivos de campanhas eleitorais constituem um foco privilegiado
para se entender o próprio sentido da política em seus mecanismos sociais e
culturais10. Se as cerimônias que sinalizam comemorações afirmam com nitidez os
princípios da ordem política estabelecida, os eventos eleitorais, por outro
lado, situam-se em uma zona fronteiriça de afirmação do princípio de autoridade
e negação dos valores de unidade no interior do campo político. Os ritos
eleitorais constituem, portanto, excelente oportunidade para se observarem as
dissidências e alianças existentes no campo político, normalmente presentes nos
bastidores e desconhecidas para a maioria da população. Os eventos de campanha
são, desse modo, "ritos de enfrentamento", segundo a feliz expressão de Marc
Abélès11, considerando-se que no jogo de disputas pela credibilidade cada
contendor demonstra sua força.
Os rituais políticos explicitam conflitos entre posições, em que se demonstra
também a existência de esferas de elaboração de legitimidade. Nesse sentido,
atualizam os princípios e códigos que regem a ordem política, validando crenças
e memórias. Os rituais de campanha eleitoral constituem, nessa perspectiva,
espaços de reconstrução da política, tal como se apresentam em eventos
específicos como caminhadas, comícios e atividades cotidianas que compõem a
agenda dos candidatos.
O conceito de ritual, na medida em que incorpora dimensões de ordem, conflito,
competição e diversidade, pode constituir uma importante ferramenta analítica
para se pensar sobre os atos de campanha eleitoral.
MOBILIDADE ESPACIAL
As eleições em contextos metropolitanos delineiam trajetos no espaço público
com base em mapeamentos variados. A busca de áreas especiais para a consagração
de eventos, tais como praças dotadas de notoriedade, zonas de lazer e lugares
caracterizados pela freqüência do "povo", condiz com a estratégia de tornar
visível os candidatos. À ostentação permanente de propostas, através de
outdoors e panfletos, soma-se a afirmação da liderança de candidatos por meio
de eventos variados.
Se for possível encontrar similaridades entre campanhas eleitorais de pequenas
e grandes cidades, ressaltam-se também diferenças que traduzem a diversidade
própria dos espaços metropolitanos. Assim, a difusão de campanhas na orla
marítima e em zonas de maior fluxo populacional condiz com a mobilização de
propostas programáticas como espécie de movimentos massivos de cidades
litorâneas de médio e grande porte.
Os bairros mais distantes de uma metrópole são também configurados, por ocasião
das campanhas, por uma coreografia de sons e cores, que se revela em muros
pintados, cartazes e fotos, os quais designam locais específicos de afirmação
de preferências.
Uma campanha política evoca um sentido de mobilidade, por isso pode ser
descrita a partir de deslocamentos que recortam o espaço urbano em zonas de
reconhecimento, cenário de disputas e busca de locais de consagração. As
agendas dos candidatos constituem pontos de indicação desse conjunto de
atividades, organizados segundo o princípio geral de atualizar antigas adesões
e suscitar outras novas. Também para demonstrar a força de cada candidatura e
difundir plataformas políticas. Perpassa no contexto eleitoral a existência de
uma permanente exposição, que chamaremos de visibilidade12, sendo definida pela
apresentação de candidatos, em locais estratégicos, que usualmente percorrem o
seguinte roteiro: 1. Visita a instituições públicas; 2. Visita a feiras,
mercados e outros locais públicos de concentração; 3. Participação em eventos
significativos, de teor político cultural e religioso; 4. Participação em
caminhadas, comícios e carreatas; 5. Participação em debates públicos,
televisivos.
Os candidatos, enquanto atores em situação de competição, realizam a maratona
de tarefas agendadas, que os expõem permanentemente. "Ser visto" constitui o
cotidiano de suas vidas nesse momento de construção de imagens e tentativas de
pactos públicos de reconhecimento. Representar é também uma maneira de se
apresentar, dotando a presença de uma visibilidade sintomática: o candidato
como personagem de uma drama. De fato, se é possível tomar o conceito de ritual
de forma flexível, é válido afirmar que a própria vida pessoal dos postulantes
ao cargo de representação política transmuta-se em rotina ritualizada13. O uso
de determinadas roupas, a escolha de um cardápio em restaurantes, ou ações
variadas da vida cotidiana viram "curiosidades" que alimentam matérias
jornalísticas interessadas nesse tipo registro.
Um olhar atento sobre a agenda de candidatos revela também uma espécie de
divisão espacial do trabalho político, presente na indicação prévia de lugares,
onde cada postulante irá realizar sua atividade. Trata-se de programação feita
para eleitores interessados em seguir a rota dos eventos de campanha. Por esse
motivo, uma agenda de campanha é também exemplo indicativo de uma cartografia
política, expressão de um movimento de apropriação dos espaços urbanos em torno
dos quais se imprimem as marcas definidoras de cada concorrente. Fazer parte do
dia-a-dia citadino passa a constituir uma tarefa obrigatória aos postulantes a
cargos de representação, o que comprova serem os atos de campanha um elenco de
ações orquestradas cujo objetivo é a conversão da popularidade em capital
político.
Uma explanação mais detalhada de eventos ocorridos durante processos eleitorais
distintos traz elementos importantes para se pensar sobre os atos de campanha
como espaço de reconhecimento da política e conquista de legitimidade.
A ESCRITA MÓVEL
Caminhar, mais que seguir um trajeto, é criar um espaço de enunciação14. Michel
de Certeau, ao analisar as caminhadas pela cidade, lembra que esse ato funciona
como redefinição espacial, ocasião onde cada caminhante faz escolhas, cria
atalhos e desvios, imprimindo sua marca transformadora. Trata-se de ação
reveladora de uma maneira peculiar de se apropriar de lugares, ora
fragmentando-os, ora integrando pontos que conformam novos espaços15.
É evidente que o caminhante não é senhor absoluto de seu trajeto, pois age
sobre um espaço previamente construído. Para Certeau, a prioridade analítica
emprestada à invenção, para além das interferências disciplinares, faz com que
suas observações recaiam sobre os trajetos que escapam às lógicas determinadas
a priori, sendo por isso capazes de alterarem o próprio sentido do espaço
urbano. O ritual das caminhadas que se efetivam em campanhas eleitorais pode
ser visto como exemplo dessa recriação simbólica "uma trajetória que fala",
um espaço de enunciação , para usar uma das expressões desse estudioso do
espaço urbano.
A caminhada com objetivos políticos típicos de uma campanha eleitoral é exemplo
contundente de uma enunciação que faz do trajeto um espaço de afirmação e
invenção pano de fundo de uma apresentação de propostas. É um ritual de
caráter extraordinário, na medida em que opera como contrafluxo, subvertendo os
espaços em sua organização anterior. Os caminhantes, portadores de uma mensagem
a ser publicizada, alteram os sons habituais, andam na contramão, incitam a
adesão de outros, afirmando a força do coletivo.
Em termos gerais há duas formas de expressão das caminhadas. Aquela feita no
centro da cidade e a que se efetiva nos bairros da periferia. As zonas centrais
da cidade são o alvo por excelência das caminhadas, sobretudo aquelas que se
destinam a ser o grande evento do dia. O cortejo, muitas vezes percorrendo o
centro da cidade, liga pontos estratégicos (igrejas, praças, monumentos) e
evoca rememorações que afirmam domínios sobre o espaço urbano. Trata-se da
recuperação de antigas memórias, revalidadas oportunamente, em situações de
mobilização, que fazem de determinados lugares verdadeiros emblemas sociais.
Além de eventos peculiares às campanhas, outros rituais de contestação são
portadores dessa maneira típica de mapear o espaço que valoriza o centro da
cidade, a exemplo dos movimentos sociais vigentes na década de 1970 no Brasil.
Antes de expressar falas que fixam pontos de escuta, as caminhadas típicas de
campanhas eleitorais existem para ser vistas. Nesse sentido, o ecoar de vozes,
as palavras de ordem, os cânticos e a incitação ao voto substituem a
linearidade da lógica argumentativa. As caminhadas são como grandes cartazes
ambulantes, à moda de um panfleto ao vivo, cuja eficácia está na busca da
atenção mínima à passagem do cortejo. Mínima, supondo-se a efemeridade do
evento, fato que relativiza a existência de um final apoteótico. As caminhadas
geralmente tendem a dispersar-se ao longo do trajeto, quando não desembocam em
comícios que nesse momento mobilizam um público e funcionam como arremate
definitivo do evento.
De modo diferente dos comícios, esses ritos móveis não se efetivam em falas
ordenadas, mas em cânticos e gestos que lembram procissões: o candidato à
frente, seguido de seus eleitores. Tanto a entrada como a saída do postulante
ao cargo de representação política acontecem de forma mais espontânea, em geral
acompanhada de slogans e manifestações de adesão, que lembram congraçamentos
coletivos.
O sentido do trajeto não é de caráter estritamente pacífico. Caminhadas podem
culminar em conflitos entre eleitores de partidos diferentes ou exaltação de
ânimos considerando-se eventuais acontecimentos que possam pôr em xeque a
continuidade do cortejo. O avanço do trânsito ou as proibições de
prosseguimento da marcha podem transformar a caminhada em "movimento".
De forma semelhante aos comícios, as caminhadas podem ser classificadas em
pequenas, como as que envolvem curtos trajetos, via de regra próximos a
comícios; e grandes, cujos percursos ligam pontos estratégicos da cidade. A
proximidade física ou o distanciamento dos participantes em relação ao
candidato expressam o grau de adesão e o comprometimento com a campanha. O
início do cortejo caracteriza-se, geralmente, pela presença de um forte grupo
de apoio, composto por seguranças e pela equipe permanente da campanha. Já a
parte final constitui uma espécie de zona de recrutamento, com inclusão dos que
chegam atrasados, ou passantes que aderem ao evento no calor de sua ocorrência.
As caminhadas, de modo geral, têm um ritmo e uma ordenação hierárquica tal como
acontece em outros rituais. Próximos ao candidato, os apoiadores e seguranças
formam uma espécie de "cabeça" do cortejo. A parte do meio, mais condensada, é
integrada por pessoas portando bandeiras, que servem de ligação entre o começo
e fim do agrupamento. Os acompanhantes que se postam no final vivenciam uma
situação transitória, na medida em que podem, com facilidade, desligar-se do
grupo, sobretudo em momentos finais.
A "cabeça" da caminhada abre os espaços através da emissão de palavras de ordem
e sons que anunciam sua passagem. E abrir espaços significa definir novos
trajetos, atravessando ruas e contrapondo-se ao fluxo de carros. Em algumas
situações, a espera da passagem dos caminhantes produz conflitos, em geral
creditados a correligionários de candidaturas rivais. A caminhada é observada
por assistentes que podem, ou não, manifestar sua opção de apoio, criando um
clima de entusiasmo e uma impressão de êxito ao evento. Esse ritual móvel
próximo ao que Massimo Cannevacci nomeou de irreprodutibilidade, para referir-
se ao "movimento vitalista de publicização de valores e símbolos ao longo do
território" 16 serve como demonstração da força de candidaturas. Os
postulantes aos cargos de representação apresentam-se como parte do "movimento"
e buscam firmar sua popularidade por meio do corpo-a-corpo com o eleitor,
lidando com a emoção, sem mediações. O trajeto tem também a dimensão da
solidariedade, demonstrada durante seu percurso, ocasião em que simpatizantes e
candidato fazem uma espécie de pacto público.
Em termos de trajeto, a caminhada, quando se assume como grande evento, termina
no local onde começou. Situação contrária acontece quando a caminhada desemboca
em outro evento, ou precede um comício realizado na periferia. Na realidade, é
próprio da caminhada não ser percurso para algum lugar. Ela é o próprio lugar,
cena móvel que se desloca ponto a ponto.
O candidato em algumas situações é carregado nos braços, acompanhado de um
grupo de ardorosos seguidores, os quais se apresentam como protetores e
portadores de um troféu. A caminhada mantém semelhanças com as manifestações de
protesto17, guardando pontos de seu repertório referentes à troca de
assentimentos e à oferta de símbolos e crenças. Além da condição de ser um
evento caracterizado como nitidamente eleitoral, configura-se também pela
tentativa de associar a imagem do candidato a outras causas vigentes no
momento. Durante a carreata de Inácio Arruda na avenida Beira-Mar, o candidato
do PC do B à prefeitura de Fortaleza, na campanha municipal de 2004, afirma sua
intenção de não deslocar os barraqueiros conforme os planos do atual prefeito
Juraci Magalhães (PMDB). Outras "causas sociais" são mencionadas como "exemplos
ao vivo" de necessárias intervenções.
A sonoridade das vozes nas caminhadas lembra também o rumor dos protestos, e
nesse sentido o slogan de campanha é o mote que substitui a palavra de ordem.
Se as manifestações constituem uma mistura de campo de batalha e mercado
político18, as caminhadas são a expressão mais explícita de um mercado político
assumido inteiramente na sua parcialidade. Caminha-se por um candidato ou
candidata.
As caminhadas podem ser consideradas como linguagem afirmativa de visibilidade
estética e corporal, com difusão de energia e conquista efetiva de espaços. A
mobilidade típica dessa forma ritualizada de disputa difere, em vários
aspectos, dos comícios tais como podem ser vistos nas referências etnográficas
que se seguem.
COMÍCIOS
Lugares estratégicos, em geral situados na periferia, constituem os cenários
onde ocorrem comícios nos quais cada potencial representante define fortemente
sua presença. Na agenda dos candidatos os comícios são freqüentes, atuando como
símbolo de credibilidade e força das campanhas eleitorais.
É preciso ressaltar que os mesmos locais são percorridos por diferentes
candidatos, o que dá aos moradores dos bairros a condição de anfitriões
permanentes da visita de potenciais representantes políticos. Uma breve
explanação etnográfica baseada em comícios observados nas cidades de Fortaleza,
Natal e Maceió ilustra a disputa pelo uso e consagração dos espaços como
linguagem específica de campanhas políticas.
Os comícios realizados em áreas variadas da cidade constituem práticas comuns
durante as campanhas, tanto nas cidades menores como nas metrópoles. Nestas, a
periferia representa o local por excelência de manifestações que assumem ares
de festa19. Esse é o momento em que os diferentes bairros da periferia recebem
a "visita" freqüente de políticos, oportunidade de solidificação de laços
antigos e conformação de promessas.
A ida de políticos a localidades distantes restabelece o contato com os
moradores de bairros populares, configurando a idéia do representante que não
"esquece" aqueles que estão espacial e materialmente longe dos benefícios
citadinos. Não por acaso, há uma menção feita, nos discursos de candidatos, a
eventuais trabalhos ou visitas de políticos realizadas no bairro, que relembram
elos comprovados de antigos compromissos.
Se a periferia é constantemente nomeada como sendo um local de "esquecimento"
por parte dos políticos, as manifestações eleitorais provocam uma situação
inversa. O momento das campanhas pode ser pensado como constituição de um novo
traçado geográfico que liga, de forma concêntrica, zonas afastadas e áreas
localizadas em espaços mais centrais da cidade. Os ônibus que transportam os
animadores de campanha, saindo dos comitês ou do centro da cidade, exemplificam
o ordenamento de percursos originado por essa geografia eleitoral.
É importante ressaltar que embora a cidade possa estar dividida em zonas
segundo as preferências eleitorais, estas são visitadas durante a campanha por
todos os candidatos. A ida aos bairros não significa, por outro lado, somente a
busca do voto, mas o cumprimento de um papel que comprova a credibilidade do
político como ator que fala para o "conjunto dos cidadãos", moradores de
diferentes recantos da cidade.
Eis por que, candidatos, sabendo que terão poucos ou quase nenhum voto em
determinados bairros, não abdicam de sua função itinerante de percorrer a
cidade de "ponta a ponta". Estar no páreo é, assim, cumprir essa espécie de
"missão diplomática" nos bairros que comportam uma encenação de ampla
receptividade.
Se for possível considerar que a política concentra produção e difusão de
símbolos mediante instituições que encarnam o espaço da representação, as
campanhas, em sua busca de zonas distantes espacial e simbolicamente dos
espaços20 efetivos de decisão, viabilizam a construção temporária de novos
"pequenos centros". Os bairros populares assumem nesse momento a condição de
centralidade da política na medida em que realizam o encontro entre potenciais
representantes e segmentos sociais que se sentem excluídos de bens e poder de
decisão.
Esses locais, construídos temporariamente como espaços políticos, são indutores
de emblemas e discursos a difundir para o restante da cidade. A periferia, bem
como as regiões longínquas percorridas pela Caravana da Cidadania por ocasião
da campanha de Lula em 1989, justificada pelo emblema "Encontro com o Brasil
profundo", aparecem como expressões de um "país real" ou uma "cidade real"
aquela que não está no cartão de visita, mas corresponde a cicatrizes de uma
configuração urbana marcada pela desigualdade e não pelo acesso aos benefícios
da cidadania social e política.
Os comícios podem ser visualizados como eventos de revitalização de zonas
espaciais, que transformam os bairros periféricos em pequenos centros
dinamizados, cotidianamente, pelo conjunto de eventos que acontecem ao longo da
semana. Tal qual o momento das quermesses ou de festividades religiosas, os
bairros mudam sua face diurna. Em torno dessa atividade noturna e diária,
instalam-se pontos de comércio e produz-se uma animação condicionada pelo
transitar permanente de pessoas.
Os comícios seguem assim uma rota itinerante, percorrendo por mais de uma vez o
mesmo bairro. Instala-se também uma diferenciação temporal entre comícios, que
pode ser classificada em eventos de abertura, de animação e de encerramento das
campanhas. Os comícios, realizados por ocasião do encerramento, ocorrem em
bairros onde os vínculos eleitorais estão mais consolidados. Essa é a ocasião
em que os pactos de reconhecimento se tornam explícitos e geralmente os
candidatos em seus discursos despedem-se dos potenciais eleitores afirmando a
"certeza" de que terão a preferência deles, que se consolidará nas urnas.
Os ritos eleitorais caracterizados pela oferta de símbolos de campanha tornam
os moradores de bairros espectadores permanentes, fazendo com que, nesse
momento, a "política" dependa do público como parte complementar de seu
exercício, dando, inclusive, sentido à sua existência. Mais ainda, as campanhas
feitas para o público tentam, em sua linguagem mais sutil, demonstrar que a
política vale a pena.
Os bairros, quando sediam comícios, o fazem na condição de sentirem-se
anfitriões e participantes de um processo. Da parte dos candidatos, algo como
visitar "a casa do pobre" evoca uma reverência hierárquica que valoriza e
legitima o encontro entre mundos distantes. O político que deixa de visitar o
bairro é lembrado de forma negativa pelos moradores: "o único candidato que não
veio aqui foi fulano de tal". Da mesma forma, o candidato que só raramente
visita o bairro é chamado de pára-quedas.
A rotina dos comícios funciona por meio de uma circulação permanente de
candidatos em bairros populares e zonas centrais da cidade. Tem-se a impressão
de que uma agenda coletiva é combinada previamente, organizando a elaboração
temporal e espacial do calendário. É, no entanto, de interesse dos candidatos
estruturar sua agenda de forma independente, afirmando a singularidade de cada
evento.
Se há algo a ser preservado, anterior ao princípio do voto, é a encenação de
que o acontecimento tem ressonância entre o conjunto de participantes. É comum,
por exemplo, que as mesmas pessoas freqüentem comícios de candidatos
concorrentes e se portem como platéias de um espetáculo. Nesse sentido, vaias
podem acontecer, mas as cisões devem ser disciplinadas de modo a evitar
conflitos radicais que impeçam a realização do evento.
Isso não significa que os comícios sejam a expressão pacífica das campanhas.
Notícias de situações envolvendo troca de tiros em Maceió, bem como um forte
policiamento verificado em Natal, são sinais de que existe um grande potencial
de conflitos no decorrer do evento.
No entanto, comício de candidato é evento dotado de afirmação de adesão. Supõe-
se que as pessoas ali presentes estão na condição de correligionários; e o
bairro inteiro, um espaço potencial de eleitores. Diferentemente das
competições esportivas, os ritos políticos efetivam-se em zonas que
possibilitam distintas e demarcadas apropriações do espaço. Eis por que a
proximidade física entre facções partidárias diferentes torna-se algo
ameaçador, havendo uma espécie de cordão de isolamento entre eventos contíguos.
Com efeito, revela-se o acordo tácito entre os concorrentes, visando a
preservar o "nível de cada campanha", o que no fundo significa conservar o
pleito eleitoral em sua totalidade. Todos sabem do desgaste provocado por
agressões de correligionários da campanha, que ajudam a tomar o grupo como
expressão da própria candidatura. Incidentes entre membros de agrupamentos
políticos em competição trazem o necessário pedido de desculpas, acompanhado da
justificativa de não comprometimento do candidato com ações dessa natureza.
Os comícios trazem, portanto, a alquimia da expressão dos conflitos e a
conseqüente manutenção das regras do jogo político. Isso não significa que os
locais, sedes dos comícios, possam ser caracterizados como zonas neutras,
freqüentadas por um público amorfo. Há uma sabedoria popular que consiste em
perceber que os comícios passam e os políticos ficam. Assim sendo, assumir de
forma radical a posição de apoio incondicional a um ou outro candidato pode
implicar a inviabilidade de obtenção de melhorias para o bairro ou para a
cidade.
Os comícios, embora realizados em locais determinados, mantêm a lógica de
articulação de um coletivo. Constituem, na maioria das vezes, o ponto
culminante de uma jornada de compromissos, que inclui pequenas visitas a locais
variados. Não é incomum, em absoluto, que candidatos percorram bairros
circunvizinhos antes de se fixarem naquele que será o centro das atividades
finais e convergentes. Nesse sentido, os bairros servem como sede de políticos,
candidatos e visitantes de outros bairros, nos quais estabelecem diversos
mecanismos de troca e sociabilidade.
Os comícios podem ser então considerados como um dos rituais de campanha que
efetivam estratégias de reconhecimento entre bairros e candidatos. Na condição
de lugar de acolhida "da política" o bairro vira festa, tal como pode ser visto
através da descrição mais detalhada de comícios realizados em Fortaleza.
FESTA NO BAIRRO
A chegada a um comício realizado na periferia da cidade de Fortaleza é
precedida de uma série de buscas, começando pela localização do bairro,
normalmente distante do centro da cidade. Uma vez identificada a entrada no
bairro, a pergunta "onde fica o comício?" constitui o indicador mais seguro ou
via de acesso mais tranqüila para se chegar ao local esperado.
Isso se dá porque o evento é precedido de informações freqüentes, difundidas
durante o dia por meio de um carro de som que percorre as vias principais do
bairro, anunciando horário e local do comício do candidato X. Este, por sua
vez, se faz anunciar no bairro através de sua música de propaganda, slogans e
fotos, normalmente afixadas em pontos estratégicos ou próximos ao evento.
O anúncio do local do comício através do carro de som confere publicidade e
destaque ao bairro-sede do ato de campanha. O convite, feito a todos os
moradores do bairro, evidencia o acontecimento da noite, que se caracteriza por
ser comumente o mais expressivo dos rituais ocorridos durante o dia. "Hoje,
grande comício no bairro X", anuncia a voz do carro de som que circula em
partes variadas da cidade.
Assim, existe a "preparação" do comício, em geral feita pela equipe do comitê
da campanha, que conta ainda com a ajuda de candidatos a vereador e cabos-
eleitorais do postulante a prefeito.
A indicação precisa do local do ato de campanha, para visitantes de outras
localidades que não conhecem o bairro, pressupõe que a "preparação" foi eficaz,
no sentido de tornar o comício difundido entre os moradores. Para estes, mais
do que o comício de um candidato específico, "o comício" se torna o evento da
noite, de magnitude semelhante a um show musical ou a uma novena.
É nessa disposição de ir "assistir" ao acontecimento que os moradores, jovens
em sua maioria, dirigem-se ao local; tanto atraídos pelo show musical que
acompanha os discursos como pelo encontro com outros grupos. Motivações
propriamente políticas mesclam-se aos interesses na apresentação de artistas,
que dão uma outra configuração ao evento, que passa a ser chamado de
showmícios.
A montagem técnica do palanque, de maior ou menor porte, dependendo do tipo de
comício, requer o trabalho de especialistas contratados por empresas que
asseguram os sistemas de iluminação, som, filmagem etc. O tamanho do bairro ou
a capacidade potencial de atrair eleitores parecem ser indícios importantes
para se definir o tipo de investimento. Contribui também, para isso, a
potencialidade eleitoral do bairro, segundo a aprovação a determinado tipo de
candidato. Cada postulante ao cargo de representação política tem sua infra-
estrutura semipronta a ser transposta para diferentes bairros, fato que dá a
impressão de que os comícios são "ambulantes".
Animadores contratados para o comício têm papel fundamental: fingem-se
entusiasmados quase que dirigindo as ocasiões em que deve aplaudir.
Transportados geralmente em ônibus e convocados para a ida ao bairro, durante o
próprio trajeto, agitam bandeiras em veículos cujas traseiras são enfeitadas
por fotos e material de propaganda. Indagado sobre sua função de animador do
evento, um jovem presente no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, afirmou que fazia
parte do seu trabalho, como membro do comitê, a participação noturna em
diferentes comícios realizados em diversos bairros. Na função de animadores do
comício, os "jovens contratados" postam-se à frente do palanque, funcionando
como espécie de reagentes em cadeia que mantêm interlocução mais direta com o
público ouvinte21.
A escolha do local do comício segue tanto a busca de espaços públicos mais
freqüentados, tais como praças e igrejas, como também a opção estratégica por
locais beneficiados com eventuais intervenções urbanas, feitas pelo próprio
candidato ou por seu partido.
Os candidatos podem, por ocasião da ida ao bairro, destacar ações de sua
autoria tais como pavimentação, asfalto ou outra benfeitoria, o que comprova
seu interesse pela região. A escolha de um local central do bairro proporciona,
assim, tanto a aglomeração de ouvintes como a lembrança de uma ação
supostamente ampliada a todos os moradores na hipótese de eleição do candidato.
Além da infra-estrutura do comício, a montagem de barracas para a venda de
bebidas, brinquedos e outras bugigangas lembra outras festas populares
realizadas no bairro. O local é, portanto, uma feira de vendas em que se criam
formas diversas de sociabilidade, funções que ampliam o número de participantes
para além da esfera meramente política.
O comício, como todo ritual, tem diferentes fases. Inicialmente, a multidão é
atraída por uma banda ou grupo musical, cuja apresentação serve de preâmbulo
aos pronunciamentos políticos. A música é executada, portanto, por
profissionais contratados na condição de animadores capazes de seduzir o
público ouvinte. Danças e cânticos são também prenúncios de momentos solenes,
sendo uma espécie de distração da espera ou "aquecimento" para o momento
apoteótico. Nos showmícios observa-se uma espécie de inversão, em que a música
funciona como principal atração. Nesse caso, os músicos ajudam o candidato a se
tornar mais popular ao declararem seu voto a ele, conclamando assim a adesão do
público.
Grandes shows musicais anunciados para depois do discurso de candidatos
asseguram a garantia da assistência por um período mais longo, indicando que o
comício não se esgota nos discursos. A mobilização no bairro, que atesta o grau
de impacto, constitui um dado relevante para identificar especificidade e
diferenciação entre os comícios.
O conjunto de falas dos pretendentes aos cargos de representação acontece em
ritmo ascendente. Os candidatos a vereador proferem seus discursos depois de
políticos de renome, culminando com a fala final do postulante a prefeito.
Anúncios freqüentes da chegada do candidato, que comumente vem de outro evento
ou outro comício, criam um clima de expectativa, estimulado pela fala do
apresentador: "dentro de mais alguns instantes, teremos conosco...".
Nos grandes comícios, os fogos de artifício e as músicas de propaganda servem
de preâmbulo à chegada do candidato. Outra forma de chegada ao comício reedita
a idéia do político surgido da multidão. O apresentador do comício desempenha
um papel fundamental como animador e roteirista do evento, tendo a função de
manter o clima "em alta", fazendo constantes apelos à explicitação coletiva e
uníssona de apoios. Invoca constantemente a adesão entusiástica da platéia,
enunciando invariavelmente a frase: "É nosso candidato ou não é?". Algumas
vezes radialista de profissão, o apresentador dá ao comício o tom de uma
apresentação teatral com momentos ascendentes e descendentes de intensa
comunicação com o público ouvinte.
A presença do candidato no bairro não acontece sem a tentativa de criar
mecanismos interativos capazes de firmar pactos de adesão. Em geral, eles se
explicitam por meio de referências ao passado: "Eu conheço este bairro há muito
tempo" ou "já estive outras vezes aqui neste bairro". São afirmativas que
buscam passar a idéia de que antes do interesse meramente eleitoral há uma
relação prévia já construída. Em algumas ocasiões, alusões podem ser feitas a
um trabalho de benfeitoria realizado no bairro. Os candidatos podem citar uma
construção escola, pavimentação de ruas e outros "benefícios", geralmente
atribuídos à sua intervenção, na condição de ocupante de alguma função política
ou de participante de algum movimento em prol de melhorias efetivadas no local.
Outras situações são reveladoras de que a escolha do local do comício na rua
onde ocorreu o referido "beneficiamento" não é casual, afirmando uma espécie de
novo "ato inaugural" potencializador de promessas.
A alusão à importância do bairro aparece também na afirmação do seu papel como
viabilizador da vitória do candidato. Em muitas situações, os candidatos evocam
também os temas da pobreza ou da falta de equipamentos de saúde pública,
exemplificando com acontecimentos vivenciados no próprio bairro, mencionando
este ou aquele morador como protagonistas desses fatos.
A oratória empregada nos discursos encontra-se geralmente marcada pela
tentativa de estabelecimento de cumplicidade entre o candidato e o público
assistente do comício. Se a natureza formal da oratória merina de Madagascar22,
por exemplo, é extremamente ordenada e afirmadora das regras de poder, a
linguagem discursiva que se efetiva entre os candidatos, nos diferentes
bairros, tenta romper o circuito das regras formalmente estabelecidas a partir
de duas finalidades: tornar-se acessível aos ouvintes e criar mecanismos
variados de interação. São, portanto, discursos que mesclam formalização e
aparente informalidade explicitada na tentativa de demonstrar identificação: o
candidato "fala" a linguagem do povo, pode ser por ele entendido e, portanto,
tem condições de representá-lo.
A variável constante nos discursos é, nesse sentido, a referência ao seu
contexto de elaboração, construindo a idéia de proximidade que pode ser
exemplificada na frase: "eu conheço este bairro".
Os discursos realizados no bairro não abdicam de uma seqüência de argumentos
que engloba a comprovação da própria capacidade administrativa, o
comprometimento com os moradores, além da crítica aos adversários. Existe,
assim, uma parte do discurso genérica e formal, que se repete em diferentes
comícios; e outra, "adaptada às circunstâncias".
A ida ao bairro reforça, por outro lado, as classificações preexistentes entre
a cidade moderna e a cidade carente por meio da ênfase que os candidatos
emprestam ao contexto de realização de seu discurso. Em síntese, as referências
principais aos bairros-sede de comícios incorporam os seguintes componentes:
alusões a benfeitorias viabilizadas direta ou indiretamente pelo candidato;
referência aos problemas sociais do bairro como fruto de ineficácia
administrativa; recuperação de elos interativos com o bairro, anterior ao
momento das eleições; demonstração de conhecimento da "história do bairro";
referência ao local como espaço consolidado de eleitores.
Tudo se passa como se cada comício, em cada bairro, fosse a expressão de um
pacto de assentimento, evidentemente reafirmado diante de outros comícios
subseqüentes.
ATOS DE CAMPANHA
A discussão sobre os rituais políticos citadinos exemplificados nos atos de
campanha eleitoral põe em evidência vários pontos importantes. Em primeiro
lugar, a afirmação de uma morfologia política que implica a valorização de
espaços populares, a dinamização de eventos e modos de sociabilidade
intermediados pelo cenário das opções eleitorais.
A dinâmica das comunicações entre candidatos e bairros populares valoriza o
sentido de proximidade. Isso porque as campanhas tornam vivos os problemas dos
bairros populares, por meio de discursos que fazem referência enfática aos
"descasos do poder público" em face das necessidades da população. As campanhas
políticas na medida em que põem em contato eleitores e potenciais
representantes criam o "outro" interlocutor com o qual estabelecem uma condição
especial de diálogo.
A eficácia simbólica do discurso feito na periferia e para a periferia contém
uma perspectiva implícita de constatação. "Conhecer" as dificuldades do bairro
no próprio local opõe-se à escuta dos mesmos problemas no espaço dos gabinetes.
"Estar lá" afirma uma experiência não cambiável pela escuta, sendo da ordem da
verificação empírica. Os moradores, postos na condição de "eleitores", adquirem
significado e nomeação através de seu bairro.
Além da recuperação da periferia como parte fundamental do cenário das
campanhas, os eventos que ocorrem em territórios consagrados da cidade
constituem forte momento de legitimação de candidaturas. Assim, a visita a
locais como feiras, estádios e fábricas ou as caminhadas em locais que fazem
parte do "centro da cidade" dão visibilidade e legitimidade às candidaturas
articulando espaço físico e espaço simbólico de representação. Praças
tradicionais, igrejas ou outras edificações são espaços de intervenção que
fazem das campanhas espécies de acontecimento primordial.
Nas zonas centrais, percebe-se também a luta pela apropriação simbólica dos
espaços. Caminhadas e "carreatas" na avenida situada à beira-mar, em Fortaleza,
expressam, na mesma perspectiva, os traçados geográficos da política que tenta
se fazer presente em todos os recantos da cidade. A geografia eleitoral altera
a placidez das atividades cotidianas, interagindo com elas e provocando novas
funções.
A caminhada ao centro assemelha-se à rotina do trabalho e do comércio. Os
eventos na praia, acompanhados de música, tomam a forma de lazer; os atos de
campanha realizados em bairros periféricos adquirem o ar de festas populares.
Enfim, as campanhas mobilizam zonas de transição, passagens entre funções e
espaços físicos que fazem da representação política a busca de uma outra
totalidade. A cidade em campanha eleitoral é a cidade que parece conciliada com
seus excluídos, com suas divisões morfológicas. Os conflitos entre candidatos
são frutos dessa vontade de serem únicos porta-vozes da condição de hegemonia
sobre essa totalidade.
No âmbito das campanhas eleitorais a representação aparece como um dos
elementos mais significativos, que transforma os eventos de campanha na
oportunidade, por excelência, de transferir direitos e ordenar legitimidades.
As campanhas aparecem como uma espécie de tempo inaugural, que define quem irá
falar em nome de quem e em nome de que conjunto de valores. Instalam, portanto,
uma ocasião de discussão e construção de atores, discursos e imagens. Essa
construção passa longe da espontaneidade, supondo-se que nesse processo
conformam-se estratégias e modos variados de se fazer apresentar.
A apresentação de candidatos é fruto de um trabalho de investimento, de uma
encenação teatral ou fachada23, com objetivos claros de obter aceitação entre a
maior parcela da população e parte significativa das instituições vigentes no
interior do campo político. Os símbolos ou rituais de campanhas visam a
diminuir a diferença temporal que acontece após a delegação de poder envolvendo
representantes e representados24.
Os símbolos eleitorais podem ser pensados como construção ou reativação de
vínculos entre políticos e eleitores, o que se faz a partir da valorização dos
discursos, realçando a importância do voto e dos critérios de escolha. São
discursos que convocam à participação e recapitulam a presença do "povo" como
juiz da causa eleitoral. Nesse sentido, o pacto simbólico entre representantes
e representados remete ao domínio da falta, efetivando as costuras necessárias
para eliminar os hiatos entre as esferas sociais e políticas.
A construção da representação em seu caráter simbólico evoca a presença de atos
de campanha e outras formas de expressão possíveis de serem também
ritualizadas. Supõe-se, portanto, que a edificação de ritos, imagens e
discursos faz parte de uma simbologia eleitoral que se efetiva através de um
tempo e um espaço dotado de várias especificidades. Trata-se de um momento que
efetiva separação entre o corpo e lugar da política ocasionando uma
dessacralização do poder com normas e princípios a serem discutidos. Por esse
motivo, as eleições trazem o ideário de renovação, mesmo que acenem com
argumentos de continuidade da gestão anterior. Uma espécie de "novo tempo" ou
uma dimensão escatológica surge como forma de marcar a importância de algo que
se anuncia como estando mais próximo das aspirações populares.
Os comícios realizados na periferia das cidades e a visita de candidatos
traduzem, no contexto de áreas metropolitanas, o espaço dos bairros como a
comprovação de proximidade do candidato com o povo.
PROXIMIDADE E DISTANCIAMENTO
Proximidade e distanciamento constituem duas expressões presentes nos rituais
de representação, que têm significados na ocupação de espaços físicos, na
produção de imagens e nas diferentes concepções de representação. É por
intermédio da proximidade que os candidatos se colocam como integrantes de uma
totalidade. É a proximidade que cria laços de identificação, permitindo a
idealização de uma comunhão de princípios e interesses semelhantes que regem a
utopia democrática. Trata-se de uma proximidade que se revela espacialmente: o
candidato que visita seus eleitores participa de reuniões e integra-se ao
circuito físico de seus representados.
A representação por delegação opera, sobretudo, com a dimensão de proximidade,
na medida em que o representante é chamado a defender os interesses específicos
de uma categoria profissional. A proximidade indica uma possibilidade de
controle capaz de efetivar uma espécie de mandato imperativo.
Se a proximidade em seu sentido simbólico realiza a tarefa da identificação, é
possível pensar que o distanciamento realiza ao mesmo tempo o trabalho da
diferenciação, também necessário para que ocorra a delegação de poderes em nome
dos "interesses gerais". Nesse sentido, o candidato precisa comprovar sua
experiência, sua capacidade de distinguir-se dos demais mediante a posse de
atributos que o elevem à condição de governante.
Na mesma ordem de idéias, compreende-se que são também ritos metafóricos de
proximidade e distanciamento, os ritos de representação. Ser igual e diferente
constitui a palavra de ordem do postulante a determinado cargo político que,
durante o processo eleitoral, busca através de atos simbólicos realizar essa
equação. Fazê-la de forma pública, na medida em que na democracia
representativa o nexo da representação não ocorre a partir de pactos
individualizados, mas com base em um poder público a ser exercido em nome do
interesse público25.
O rito de representação é, portanto, de apresentação, de visibilidade e de
constituição da política nos espaços públicos. Sua característica é a
externalidade que se apresenta no direito à fala pública e no direito a
discussões que reflitam a temática do poder. Trata-se de uma permissividade
disciplinada que objetiva difundir um ideal de transparência presente na
afirmação da sociedade democrática.
As reflexões de caráter genérico apresentadas neste artigo formulam pontos
importantes a serem explorados no contexto de novas pesquisas. Em primeiro
lugar, destaca-se a possibilidade de atualizar e compreender a diversidade de
rituais que ocorrem durante o processo eleitoral. Caminhadas, comícios,
caravanas, reuniões e visitas têm suas características singulares apontando
para a existência de estratégias que se instalam por ocasião das várias
candidaturas. Os rituais são, nesse sentido, linguagens de campanha, que, por
sua vez, indicam as maneiras por meio das quais os candidatos se dão a conhecer
perante os eleitores. Nesse sentido, o lugar que os candidatos ocupam na vida
social interfere fortemente na maneira como elaboram sua campanha e apresentam
sua "biografia" de forma pública.
As diferentes situações contextuais das candidaturas apontam as lutas
simbólicas em torno da representação política, as quais objetivam fundar,
metonimicamente, a percepção da "parte" como representativa do todo.
As pontuações implícitas nas situações de campanha referem-se ao modo como as
estratégias justificam a relação complexa entre ausente e presente, situada no
fenômeno da representação. A nomeação dos ausentes constitui o aceno aos laços
orgânicos que justificam a existência do porta-voz. Fala-se, portanto, em nome
dos excluídos, do povo, ou dos moradores da periferia. Fala-se também em nome
de valores gerais ou símbolos assumidos pelos representantes como expressivos
de uma condição ou característica que lhes é peculiar.
Além da nomeação dos ausentes as campanhas reportam-se ao estabelecimento de
vínculos entre representantes e representados. A formulação de mecanismos de
proximidade, valores de identificação e transparência constituem recursos de
campanha acionados tendo em vista a recuperação dos elos perdidos. Nesse
sentido, os rituais não podem ser considerados como meras estratégias de
conquista de votos ou simples encenação da política. As campanhas eleitorais
podem ser vistas como modos de nomear o "ausente", apresentar o representante,
repondo por meio de seus rituais as dimensões legais e legítimas da
contratualidade política. Como ritos de construção da representação e de
legitimação das escolhas políticas, as campanhas podem ser consideradas como
espécies de reencantamento da política e elaboração do ideal de proximidade.
[1] O que foi explorado por Moacir Palmeira e Beatriz Heredia em pesquisas
sobre as eleições (In: "Os comícios e as políticas de facções". Anuário
Antropológico, Rio de Janeiro, n. 94, 1995).
[2] Cf. Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP,
1982.
[3] As pesquisas que serviram de embasamento às discussões deste artigo foram
realizadas em Fortaleza, Natal, Maceió, durante as eleições municipais de 1996,
no quadro de pesquisa de bolsa de produtividade do CNPq e do projeto Pronex,
"Uma antropologia da política: rituais, representações e violência". Outras
informações colhidas nas eleições municipais de 2000 e 2004 em Fortaleza deram
subsídios e fundamento às reflexões sobre os atos de campanha. Embora as
investigações estejam restritas a cidades nordestinas, muitas das questões
apresentadas podem refletir outras realidades urbanas do país. O presente
artigo constitui uma síntese, acrescida de novas idéias e reformulações, de
capítulos do meu livro Chuva de papéis, ritos de campanha eleitoral no Brasil.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
[4] Na sociologia clássica, os ritos constituem portas de entrada para se
entender a vida social, ponto central na obra de Durkheim (Les formes
élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1979), para quem não poderia
haver nenhuma sociedade que não sentisse a necessidade de provar e afirmar, em
intervalos regulares, os sentimentos, valores e ideais coletivos que formam a
sua unidade. Com efeito, Durkheim chamava a atenção para a ligação entre
crenças e práticas coletivas, sendo, portanto, o ritual um domínio importante
de expressão, transmissão e reprodução de valores sociais.
[5] Para a discussão das idéias aqui expostas, foram consultados principalmente
Cazeneuve, Jean. Sociologie du rite (Paris: PUF, 1971); Kertzer, David I.
Ritual, politics and power (New Haven: University Press, 1988); Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas (São Paulo:
EDUSP, 1982); Connerton, Paul. Como as sociedades recordam
(Lisboa: Celta Editora, 1993); Da Matta, Roberto. Carnavais,
malandros e heróis (Rio de Janeiro: Guanabara, 1990); Rivière,
Claude. Les liturgies politiques (Paris: PUF, 1988); Shils,
Edward. Centro e periferia (Lisboa: Difel, 1992).
[6] Cazeneuve, Jean, op. cit.
[7] Nesse sentido, ver Coppet, Daniel. Understanding Rituals (Londres:
Routledge, 1993); Rivière, Claude, op. cit.; e também o livro
organizado por Peirano, Mariza. O dito e o feito: Ensaios de antropologia dos
rituais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 [Coleção Antropologia da
Política]).
[8] Baumann, G. "Ritual Implicates 'Others': rereanding Durkheim in a plural
society". In: Baumann, G. Understanding Rituals. Londres: Routledge, 1993.
[9] Op. cit.
[10] Roberto DaMatta (op. cit.) chama atenção para a associação não devidamente
estudada entre ritual e poder, enfatizando a necessidade de observação da
construção de cerimoniais cuja expressão apresenta hierarquias, distâncias
sociais e diversas outras estruturas de autoridade. A argumentação do autor
converge para a análise do rito como uma atualização da estrutura de
autoridade, permitindo situar, dramaticamente, quem sabe e quem não sabe, quem
tem e quem não tem, quem está em contato com os poderes do alto e quem não
está. A demonstração desse domínio não se faz sem conflitos e compensações e o
próprio DaMatta enfatiza como as demonstrações de autoridade podem findar na
informalidade, sendo, portanto, uma forma de apaziguamento. O importante a
acrescentar é que os rituais mantêm um repertório de signos que informam o agir
político.
[11] Abélès, Marc Henri-Pierre Jeudy. Antropologie du politique. Paris: Armand
Colin, 1997.
[12] O conceito de visibilidade na perspectiva de Merleau-Ponty (Fenomenologia
da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994) referenda, na
situação específica aqui discutida, a idéia de que as percepções sensoriais
sendo variáveis no tempo e no espaço distanciam-se da oposição falso versus
verdadeiro. A visibilidade da política, no momento das campanhas eleitorais,
não leva a pensar que ela inexista em outros períodos. A visibilidade atesta a
existência ostensiva da política vista como distante ou próxima da população,
não obstante sua indiscutível e constante presença.
[13] A oposição entre ritual e rotina na perspectiva de Roberto Da Matta (op.
cit.) pode, no caso dos atos de campanha, ser relativizada, supondo-se, no
entanto, que o momento das campanhas representa uma ruptura de práticas
sociais.
[14] Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
[15] Para uma reflexão sobre formas peculiares de sociabilidade em espaços, ver
a utilização da categoria "pedaço" nas pesquisas de José Guilherme Magnani ("De
perto e de dentro": notas para uma etnografia urbana. RBCS, v. 17, nº. 49, jul.
2002) realizadas na cidade de São Paulo.
[16] Canevacci, Massimo. Antropologia da comunicação visual. São Paulo:
Brasiliense, 1990, p. 191.
[17] Cf. Favre, Pierre. La manifestation. Presses de la Foundation Nationale
des Sciences Politiques, 1990.
[18] Idem.
[19] Para uma descrição etnográfica das festas como veículo de sociabilidade
política, ver Alencar Chaves, Cristina de. Festa na política, uma etnografia da
modernidade no Sertão (Buritis-MG). Rio de Janeiro: NUAP/Relume Dumará, 2003.
[20] As idéias de Edward Shills (op. cit.) sobre a existência de um centro na
sociedade, constituído de valores e crenças que governam e dão sentido de
unidade, fornecem subsídios importantes para a compreensão dos comícios. Na
realidade, a noção de centro para o autor não equivale à dimensão espacial,
referindo-se antes a um lugar simbólico, de produção e difusão de crenças que
se assemelham à natureza do sagrado.
[21] Ver Nilin, Danyelle. "Animadores e militantes: classificações da política
no agenciamento do voto". In: Carvalho, Rejane Vasconcelos (org). A produção da
política em campanhas eleitorais, Eleições municipais de 2000. Campinas: Ed.
Pontes, 2003.
[22] Cf. Bloch, Maurice. Linguagem política e oratória em sociedade
tradicional. Londres: Academic Press, 1975.
[23] Cf. Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis:
Vozes, 1996.
[24] Na visão de Lucien Sfez (La symbolique politique. Paris: PUF, 1988), uma crise de representação se instala desde o momento em que o
representado investe no representante de sua confiança um tempo x, sendo que
este age por conta do representado em um tempo y. É essa defasagem que impede a
transparência da representação, ativando as distâncias entre as esferas social
e política.
[25] Bobbio, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo.
Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986.