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BrBRHUHu0101-33002006000100011

BrBRHUHu0101-33002006000100011

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-3300
ano2006
Issue0001
Article number00011

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A política de perto: recortes etnográficos de campanhas eleitorais

As marcas espaciais e temporais de uma campanha eleitoral são evidentes. Um município, um país, ou uma pequena localidade são facilmente reconhecíveis nesse período de visibilidade da política, caracterizado pela presença de símbolos visuais e discursivos distribuídos ao longo de um território. Sons, cores, imagens e palavras compõem um cenário peculiar amplamente conhecido pela população, fazendo do momento eleitoral um acontecimento de repercussões múltiplas na vida social. A categoria nativa tempo da política1 chama a atenção para essa sazonalidade ímpar das disputas eleitorais, atravessada por eventos comparáveis a tantos outros rituais, religiosos ou festivos, que integram o ciclo dos acontecimentos em cidades interioranas do Brasil.

A perspectiva de temporalidade alusiva às eleições pode ser igualmente percebida em metrópoles, locais por onde transita uma oferta ampla de discursos e práticas sociais em situação de concorrência. No tempo das promessas, expressão também utilizada por eleitores para falar sobre a época das campanhas eleitorais, as disputas entre candidatos materializam-se em eventos e situações portadores de visões, divisões e classificações sociais. Identificações emergem (quem fica de que lado), quando se afirmam pactos ideológicos, arranjos e estratégias que integram o campo da política2.

Neste artigo nos propomos a pensar, com base no conceito de ritual, os atos de campanha eleitoral, explorando as estratégias de aproximação entre candidatos e eleitores e as ações simbólicas que contribuem para a construção da representação política. O contexto urbano serve de referência às discussões embasadas em pesquisas realizadas em distintos pleitos eleitorais3. O argumento básico a ser desenvolvido durante o texto considera que os atos de campanha constroem relações de proximidade entre o que se nomeia de política e os eleitores, viabilizando a apresentação ampla de concorrentes e redefinindo pactos sociais que validam os princípios da representação política. Os eventos de campanha podem ser decifrados como estratégias que tornam a política e os políticos, geralmente percebidos como distantes e inacessíveis, próximos e suscetíveis aos acordos que fundamentam o processo de delegação de poderes.

Uma discussão sucinta e introdutória a respeito dos rituais como objeto de reflexão socioantropológica, incluindo as possibilidades de pensá-los no âmbito dos atos de campanha eleitoral, oferece subsídios interessantes para o encaminhamento das reflexões aqui propostas.

A POLÍTICA COMO RITUAL Os rituais4 reportam-se, em sua origem, a certas cerimônias ligadas ao sobrenatural, e são percebidos posteriormente como cultos de natureza não tipicamente religiosa, os quais reúnem outros acontecimentos presentes nas sociedades modernas.

Autores contemporâneos5, seguindo a perspectiva de Durkheim, definem o ritual como sistema de comunicação simbólica: um "texto" a ser interpretado em sua profusão de sentidos. Os ritos representariam cenários amplos para o entendimento de partes fundamentais da sociedade, cuja característica reiterativa é capaz de fornecer o elemento estável no qual se apóiam as observações do pesquisador. É essa dimensão de estabilidade que Cazeneuve6 aponta como sendo estrategicamente relevante para delimitar invariantes presentes em contextos sociais determinados, tal como se apresentam na metodologia utilizada por Lévi-Strauss, em estudo sobre os mitos.

As concepções vigentes na literatura de que os ritos são mecanismos funcionais de preservação social, propulsores de ações que promovem diferentes formas de identidade social, podem ser repensadas no âmbito das práticas políticas. No caso das campanhas eleitorais, as dimensões de conflito e de concorrência sugerem a necessidade de incorporar novos parâmetros analíticos às reflexões sobre os ritos sociais. Os ritos, vistos sob o prisma de campanhas eleitorais, podem constituir momentos simultâneos de criação, repetição e concorrência entre símbolos políticos, expressando não valores consensuais instituídos, como também conflitos típicos da sociedade contemporânea, incluindo múltiplos temas que cerceiam o mundo social7.

As polaridades utilizadas para se pensar os ritos como consenso ou dissenso terminam reforçando antagonismos que podem significar, na realidade, anverso e reverso de uma mesma moeda. A proposta de Gerd Baumann8 sobre a possibilidade de fazer uma releitura de Durkheim no espaço da sociedade plural chama a atenção para a inclusão da diversidade na análise dos rituais, em substituição ao princípio preponderante de cristalização de valores básicos culturais. Com efeito, em vez de constituir um homogêneo "nós", os rituais podem congregar partes diferenciadas de uma mesma totalidade, abrindo possibilidades interessantes para se pensar sobre a multiplicidade de símbolos em conflito, para além da existência de uma "funcionalidade" relacional entre as partes e o todo. Lévi Strauss havia alertado para o caráter disjuntivo dos jogos e competições, os quais podem ser comparados, mutatis mutandis, com situações de disputa entre candidatos no período eleitoral.

Além dessa característica de competição, os rituais são sinalizadores de interditos. Pierre Bourdieu9 atenta, dentro dessa perspectiva, para os ritos como espaços congregadores de diferenças, não tanto pela composição de seus integrantes, mas pela linha divisória que separa os participantes dos não- participantes, a exemplo das cerimônias masculinas de circuncisão.

Os rituais expressivos de campanhas eleitorais constituem um foco privilegiado para se entender o próprio sentido da política em seus mecanismos sociais e culturais10. Se as cerimônias que sinalizam comemorações afirmam com nitidez os princípios da ordem política estabelecida, os eventos eleitorais, por outro lado, situam-se em uma zona fronteiriça de afirmação do princípio de autoridade e negação dos valores de unidade no interior do campo político. Os ritos eleitorais constituem, portanto, excelente oportunidade para se observarem as dissidências e alianças existentes no campo político, normalmente presentes nos bastidores e desconhecidas para a maioria da população. Os eventos de campanha são, desse modo, "ritos de enfrentamento", segundo a feliz expressão de Marc Abélès11, considerando-se que no jogo de disputas pela credibilidade cada contendor demonstra sua força.

Os rituais políticos explicitam conflitos entre posições, em que se demonstra também a existência de esferas de elaboração de legitimidade. Nesse sentido, atualizam os princípios e códigos que regem a ordem política, validando crenças e memórias. Os rituais de campanha eleitoral constituem, nessa perspectiva, espaços de reconstrução da política, tal como se apresentam em eventos específicos como caminhadas, comícios e atividades cotidianas que compõem a agenda dos candidatos.

O conceito de ritual, na medida em que incorpora dimensões de ordem, conflito, competição e diversidade, pode constituir uma importante ferramenta analítica para se pensar sobre os atos de campanha eleitoral.

MOBILIDADE ESPACIAL As eleições em contextos metropolitanos delineiam trajetos no espaço público com base em mapeamentos variados. A busca de áreas especiais para a consagração de eventos, tais como praças dotadas de notoriedade, zonas de lazer e lugares caracterizados pela freqüência do "povo", condiz com a estratégia de tornar visível os candidatos. À ostentação permanente de propostas, através de outdoors e panfletos, soma-se a afirmação da liderança de candidatos por meio de eventos variados.

Se for possível encontrar similaridades entre campanhas eleitorais de pequenas e grandes cidades, ressaltam-se também diferenças que traduzem a diversidade própria dos espaços metropolitanos. Assim, a difusão de campanhas na orla marítima e em zonas de maior fluxo populacional condiz com a mobilização de propostas programáticas como espécie de movimentos massivos de cidades litorâneas de médio e grande porte.

Os bairros mais distantes de uma metrópole são também configurados, por ocasião das campanhas, por uma coreografia de sons e cores, que se revela em muros pintados, cartazes e fotos, os quais designam locais específicos de afirmação de preferências.

Uma campanha política evoca um sentido de mobilidade, por isso pode ser descrita a partir de deslocamentos que recortam o espaço urbano em zonas de reconhecimento, cenário de disputas e busca de locais de consagração. As agendas dos candidatos constituem pontos de indicação desse conjunto de atividades, organizados segundo o princípio geral de atualizar antigas adesões e suscitar outras novas. Também para demonstrar a força de cada candidatura e difundir plataformas políticas. Perpassa no contexto eleitoral a existência de uma permanente exposição, que chamaremos de visibilidade12, sendo definida pela apresentação de candidatos, em locais estratégicos, que usualmente percorrem o seguinte roteiro: 1. Visita a instituições públicas; 2. Visita a feiras, mercados e outros locais públicos de concentração; 3. Participação em eventos significativos, de teor político cultural e religioso; 4. Participação em caminhadas, comícios e carreatas; 5. Participação em debates públicos, televisivos.

Os candidatos, enquanto atores em situação de competição, realizam a maratona de tarefas agendadas, que os expõem permanentemente. "Ser visto" constitui o cotidiano de suas vidas nesse momento de construção de imagens e tentativas de pactos públicos de reconhecimento. Representar é também uma maneira de se apresentar, dotando a presença de uma visibilidade sintomática: o candidato como personagem de uma drama. De fato, se é possível tomar o conceito de ritual de forma flexível, é válido afirmar que a própria vida pessoal dos postulantes ao cargo de representação política transmuta-se em rotina ritualizada13. O uso de determinadas roupas, a escolha de um cardápio em restaurantes, ou ações variadas da vida cotidiana viram "curiosidades" que alimentam matérias jornalísticas interessadas nesse tipo registro.

Um olhar atento sobre a agenda de candidatos revela também uma espécie de divisão espacial do trabalho político, presente na indicação prévia de lugares, onde cada postulante irá realizar sua atividade. Trata-se de programação feita para eleitores interessados em seguir a rota dos eventos de campanha. Por esse motivo, uma agenda de campanha é também exemplo indicativo de uma cartografia política, expressão de um movimento de apropriação dos espaços urbanos em torno dos quais se imprimem as marcas definidoras de cada concorrente. Fazer parte do dia-a-dia citadino passa a constituir uma tarefa obrigatória aos postulantes a cargos de representação, o que comprova serem os atos de campanha um elenco de ações orquestradas cujo objetivo é a conversão da popularidade em capital político.

Uma explanação mais detalhada de eventos ocorridos durante processos eleitorais distintos traz elementos importantes para se pensar sobre os atos de campanha como espaço de reconhecimento da política e conquista de legitimidade.

A ESCRITA MÓVEL Caminhar, mais que seguir um trajeto, é criar um espaço de enunciação14. Michel de Certeau, ao analisar as caminhadas pela cidade, lembra que esse ato funciona como redefinição espacial, ocasião onde cada caminhante faz escolhas, cria atalhos e desvios, imprimindo sua marca transformadora. Trata-se de ação reveladora de uma maneira peculiar de se apropriar de lugares, ora fragmentando-os, ora integrando pontos que conformam novos espaços15.

É evidente que o caminhante não é senhor absoluto de seu trajeto, pois age sobre um espaço previamente construído. Para Certeau, a prioridade analítica emprestada à invenção, para além das interferências disciplinares, faz com que suas observações recaiam sobre os trajetos que escapam às lógicas determinadas a priori, sendo por isso capazes de alterarem o próprio sentido do espaço urbano. O ritual das caminhadas que se efetivam em campanhas eleitorais pode ser visto como exemplo dessa recriação simbólica "uma trajetória que fala", um espaço de enunciação , para usar uma das expressões desse estudioso do espaço urbano.

A caminhada com objetivos políticos típicos de uma campanha eleitoral é exemplo contundente de uma enunciação que faz do trajeto um espaço de afirmação e invenção pano de fundo de uma apresentação de propostas. É um ritual de caráter extraordinário, na medida em que opera como contrafluxo, subvertendo os espaços em sua organização anterior. Os caminhantes, portadores de uma mensagem a ser publicizada, alteram os sons habituais, andam na contramão, incitam a adesão de outros, afirmando a força do coletivo.

Em termos gerais duas formas de expressão das caminhadas. Aquela feita no centro da cidade e a que se efetiva nos bairros da periferia. As zonas centrais da cidade são o alvo por excelência das caminhadas, sobretudo aquelas que se destinam a ser o grande evento do dia. O cortejo, muitas vezes percorrendo o centro da cidade, liga pontos estratégicos (igrejas, praças, monumentos) e evoca rememorações que afirmam domínios sobre o espaço urbano. Trata-se da recuperação de antigas memórias, revalidadas oportunamente, em situações de mobilização, que fazem de determinados lugares verdadeiros emblemas sociais.

Além de eventos peculiares às campanhas, outros rituais de contestação são portadores dessa maneira típica de mapear o espaço que valoriza o centro da cidade, a exemplo dos movimentos sociais vigentes na década de 1970 no Brasil.

Antes de expressar falas que fixam pontos de escuta, as caminhadas típicas de campanhas eleitorais existem para ser vistas. Nesse sentido, o ecoar de vozes, as palavras de ordem, os cânticos e a incitação ao voto substituem a linearidade da lógica argumentativa. As caminhadas são como grandes cartazes ambulantes, à moda de um panfleto ao vivo, cuja eficácia está na busca da atenção mínima à passagem do cortejo. Mínima, supondo-se a efemeridade do evento, fato que relativiza a existência de um final apoteótico. As caminhadas geralmente tendem a dispersar-se ao longo do trajeto, quando não desembocam em comícios que nesse momento mobilizam um público e funcionam como arremate definitivo do evento.

De modo diferente dos comícios, esses ritos móveis não se efetivam em falas ordenadas, mas em cânticos e gestos que lembram procissões: o candidato à frente, seguido de seus eleitores. Tanto a entrada como a saída do postulante ao cargo de representação política acontecem de forma mais espontânea, em geral acompanhada de slogans e manifestações de adesão, que lembram congraçamentos coletivos.

O sentido do trajeto não é de caráter estritamente pacífico. Caminhadas podem culminar em conflitos entre eleitores de partidos diferentes ou exaltação de ânimos considerando-se eventuais acontecimentos que possam pôr em xeque a continuidade do cortejo. O avanço do trânsito ou as proibições de prosseguimento da marcha podem transformar a caminhada em "movimento".

De forma semelhante aos comícios, as caminhadas podem ser classificadas em pequenas, como as que envolvem curtos trajetos, via de regra próximos a comícios; e grandes, cujos percursos ligam pontos estratégicos da cidade. A proximidade física ou o distanciamento dos participantes em relação ao candidato expressam o grau de adesão e o comprometimento com a campanha. O início do cortejo caracteriza-se, geralmente, pela presença de um forte grupo de apoio, composto por seguranças e pela equipe permanente da campanha. a parte final constitui uma espécie de zona de recrutamento, com inclusão dos que chegam atrasados, ou passantes que aderem ao evento no calor de sua ocorrência.

As caminhadas, de modo geral, têm um ritmo e uma ordenação hierárquica tal como acontece em outros rituais. Próximos ao candidato, os apoiadores e seguranças formam uma espécie de "cabeça" do cortejo. A parte do meio, mais condensada, é integrada por pessoas portando bandeiras, que servem de ligação entre o começo e fim do agrupamento. Os acompanhantes que se postam no final vivenciam uma situação transitória, na medida em que podem, com facilidade, desligar-se do grupo, sobretudo em momentos finais.

A "cabeça" da caminhada abre os espaços através da emissão de palavras de ordem e sons que anunciam sua passagem. E abrir espaços significa definir novos trajetos, atravessando ruas e contrapondo-se ao fluxo de carros. Em algumas situações, a espera da passagem dos caminhantes produz conflitos, em geral creditados a correligionários de candidaturas rivais. A caminhada é observada por assistentes que podem, ou não, manifestar sua opção de apoio, criando um clima de entusiasmo e uma impressão de êxito ao evento. Esse ritual móvel próximo ao que Massimo Cannevacci nomeou de irreprodutibilidade, para referir- se ao "movimento vitalista de publicização de valores e símbolos ao longo do território" 16 serve como demonstração da força de candidaturas. Os postulantes aos cargos de representação apresentam-se como parte do "movimento" e buscam firmar sua popularidade por meio do corpo-a-corpo com o eleitor, lidando com a emoção, sem mediações. O trajeto tem também a dimensão da solidariedade, demonstrada durante seu percurso, ocasião em que simpatizantes e candidato fazem uma espécie de pacto público.

Em termos de trajeto, a caminhada, quando se assume como grande evento, termina no local onde começou. Situação contrária acontece quando a caminhada desemboca em outro evento, ou precede um comício realizado na periferia. Na realidade, é próprio da caminhada não ser percurso para algum lugar. Ela é o próprio lugar, cena móvel que se desloca ponto a ponto.

O candidato em algumas situações é carregado nos braços, acompanhado de um grupo de ardorosos seguidores, os quais se apresentam como protetores e portadores de um troféu. A caminhada mantém semelhanças com as manifestações de protesto17, guardando pontos de seu repertório referentes à troca de assentimentos e à oferta de símbolos e crenças. Além da condição de ser um evento caracterizado como nitidamente eleitoral, configura-se também pela tentativa de associar a imagem do candidato a outras causas vigentes no momento. Durante a carreata de Inácio Arruda na avenida Beira-Mar, o candidato do PC do B à prefeitura de Fortaleza, na campanha municipal de 2004, afirma sua intenção de não deslocar os barraqueiros conforme os planos do atual prefeito Juraci Magalhães (PMDB). Outras "causas sociais" são mencionadas como "exemplos ao vivo" de necessárias intervenções.

A sonoridade das vozes nas caminhadas lembra também o rumor dos protestos, e nesse sentido o slogan de campanha é o mote que substitui a palavra de ordem.

Se as manifestações constituem uma mistura de campo de batalha e mercado político18, as caminhadas são a expressão mais explícita de um mercado político assumido inteiramente na sua parcialidade. Caminha-se por um candidato ou candidata.

As caminhadas podem ser consideradas como linguagem afirmativa de visibilidade estética e corporal, com difusão de energia e conquista efetiva de espaços. A mobilidade típica dessa forma ritualizada de disputa difere, em vários aspectos, dos comícios tais como podem ser vistos nas referências etnográficas que se seguem.

COMÍCIOS  Lugares estratégicos, em geral situados na periferia, constituem os cenários onde ocorrem comícios nos quais cada potencial representante define fortemente sua presença. Na agenda dos candidatos os comícios são freqüentes, atuando como símbolo de credibilidade e força das campanhas eleitorais.

É preciso ressaltar que os mesmos locais são percorridos por diferentes candidatos, o que aos moradores dos bairros a condição de anfitriões permanentes da visita de potenciais representantes políticos. Uma breve explanação etnográfica baseada em comícios observados nas cidades de Fortaleza, Natal e Maceió ilustra a disputa pelo uso e consagração dos espaços como linguagem específica de campanhas políticas.

Os comícios realizados em áreas variadas da cidade constituem práticas comuns durante as campanhas, tanto nas cidades menores como nas metrópoles. Nestas, a periferia representa o local por excelência de manifestações que assumem ares de festa19. Esse é o momento em que os diferentes bairros da periferia recebem a "visita" freqüente de políticos, oportunidade de solidificação de laços antigos e conformação de promessas.

A ida de políticos a localidades distantes restabelece o contato com os moradores de bairros populares, configurando a idéia do representante que não "esquece" aqueles que estão espacial e materialmente longe dos benefícios citadinos. Não por acaso, uma menção feita, nos discursos de candidatos, a eventuais trabalhos ou visitas de políticos realizadas no bairro, que relembram elos comprovados de antigos compromissos.

Se a periferia é constantemente nomeada como sendo um local de "esquecimento" por parte dos políticos, as manifestações eleitorais provocam uma situação inversa. O momento das campanhas pode ser pensado como constituição de um novo traçado geográfico que liga, de forma concêntrica, zonas afastadas e áreas localizadas em espaços mais centrais da cidade. Os ônibus que transportam os animadores de campanha, saindo dos comitês ou do centro da cidade, exemplificam o ordenamento de percursos originado por essa geografia eleitoral.

É importante ressaltar que embora a cidade possa estar dividida em zonas segundo as preferências eleitorais, estas são visitadas durante a campanha por todos os candidatos. A ida aos bairros não significa, por outro lado, somente a busca do voto, mas o cumprimento de um papel que comprova a credibilidade do político como ator que fala para o "conjunto dos cidadãos", moradores de diferentes recantos da cidade.

Eis por que, candidatos, sabendo que terão poucos ou quase nenhum voto em determinados bairros, não abdicam de sua função itinerante de percorrer a cidade de "ponta a ponta". Estar no páreo é, assim, cumprir essa espécie de "missão diplomática" nos bairros que comportam uma encenação de ampla receptividade.

Se for possível considerar que a política concentra produção e difusão de símbolos mediante instituições que encarnam o espaço da representação, as campanhas, em sua busca de zonas distantes espacial e simbolicamente dos espaços20 efetivos de decisão, viabilizam a construção temporária de novos "pequenos centros". Os bairros populares assumem nesse momento a condição de centralidade da política na medida em que realizam o encontro entre potenciais representantes e segmentos sociais que se sentem excluídos de bens e poder de decisão.

Esses locais, construídos temporariamente como espaços políticos, são indutores de emblemas e discursos a difundir para o restante da cidade. A periferia, bem como as regiões longínquas percorridas pela Caravana da Cidadania por ocasião da campanha de Lula em 1989, justificada pelo emblema "Encontro com o Brasil profundo", aparecem como expressões de um "país real" ou uma "cidade real" aquela que não está no cartão de visita, mas corresponde a cicatrizes de uma configuração urbana marcada pela desigualdade e não pelo acesso aos benefícios da cidadania social e política.

Os comícios podem ser visualizados como eventos de revitalização de zonas espaciais, que transformam os bairros periféricos em pequenos centros dinamizados, cotidianamente, pelo conjunto de eventos que acontecem ao longo da semana. Tal qual o momento das quermesses ou de festividades religiosas, os bairros mudam sua face diurna. Em torno dessa atividade noturna e diária, instalam-se pontos de comércio e produz-se uma animação condicionada pelo transitar permanente de pessoas.

Os comícios seguem assim uma rota itinerante, percorrendo por mais de uma vez o mesmo bairro. Instala-se também uma diferenciação temporal entre comícios, que pode ser classificada em eventos de abertura, de animação e de encerramento das campanhas. Os comícios, realizados por ocasião do encerramento, ocorrem em bairros onde os vínculos eleitorais estão mais consolidados. Essa é a ocasião em que os pactos de reconhecimento se tornam explícitos e geralmente os candidatos em seus discursos despedem-se dos potenciais eleitores afirmando a "certeza" de que terão a preferência deles, que se consolidará nas urnas.

Os ritos eleitorais caracterizados pela oferta de símbolos de campanha tornam os moradores de bairros espectadores permanentes, fazendo com que, nesse momento, a "política" dependa do público como parte complementar de seu exercício, dando, inclusive, sentido à sua existência. Mais ainda, as campanhas feitas para o público tentam, em sua linguagem mais sutil, demonstrar que a política vale a pena.

Os bairros, quando sediam comícios, o fazem na condição de sentirem-se anfitriões e participantes de um processo. Da parte dos candidatos, algo como visitar "a casa do pobre" evoca uma reverência hierárquica que valoriza e legitima o encontro entre mundos distantes. O político que deixa de visitar o bairro é lembrado de forma negativa pelos moradores: "o único candidato que não veio aqui foi fulano de tal". Da mesma forma, o candidato que raramente visita o bairro é chamado de pára-quedas.

A rotina dos comícios funciona por meio de uma circulação permanente de candidatos em bairros populares e zonas centrais da cidade. Tem-se a impressão de que uma agenda coletiva é combinada previamente, organizando a elaboração temporal e espacial do calendário. É, no entanto, de interesse dos candidatos estruturar sua agenda de forma independente, afirmando a singularidade de cada evento.

Se algo a ser preservado, anterior ao princípio do voto, é a encenação de que o acontecimento tem ressonância entre o conjunto de participantes. É comum, por exemplo, que as mesmas pessoas freqüentem comícios de candidatos concorrentes e se portem como platéias de um espetáculo. Nesse sentido, vaias podem acontecer, mas as cisões devem ser disciplinadas de modo a evitar conflitos radicais que impeçam a realização do evento.

Isso não significa que os comícios sejam a expressão pacífica das campanhas.

Notícias de situações envolvendo troca de tiros em Maceió, bem como um forte policiamento verificado em Natal, são sinais de que existe um grande potencial de conflitos no decorrer do evento.

No entanto, comício de candidato é evento dotado de afirmação de adesão. Supõe- se que as pessoas ali presentes estão na condição de correligionários; e o bairro inteiro, um espaço potencial de eleitores. Diferentemente das competições esportivas, os ritos políticos efetivam-se em zonas que possibilitam distintas e demarcadas apropriações do espaço. Eis por que a proximidade física entre facções partidárias diferentes torna-se algo ameaçador, havendo uma espécie de cordão de isolamento entre eventos contíguos.

Com efeito, revela-se o acordo tácito entre os concorrentes, visando a preservar o "nível de cada campanha", o que no fundo significa conservar o pleito eleitoral em sua totalidade. Todos sabem do desgaste provocado por agressões de correligionários da campanha, que ajudam a tomar o grupo como expressão da própria candidatura. Incidentes entre membros de agrupamentos políticos em competição trazem o necessário pedido de desculpas, acompanhado da justificativa de não comprometimento do candidato com ações dessa natureza.

Os comícios trazem, portanto, a alquimia da expressão dos conflitos e a conseqüente manutenção das regras do jogo político. Isso não significa que os locais, sedes dos comícios, possam ser caracterizados como zonas neutras, freqüentadas por um público amorfo. uma sabedoria popular que consiste em perceber que os comícios passam e os políticos ficam. Assim sendo, assumir de forma radical a posição de apoio incondicional a um ou outro candidato pode implicar a inviabilidade de obtenção de melhorias para o bairro ou para a cidade.

Os comícios, embora realizados em locais determinados, mantêm a lógica de articulação de um coletivo. Constituem, na maioria das vezes, o ponto culminante de uma jornada de compromissos, que inclui pequenas visitas a locais variados. Não é incomum, em absoluto, que candidatos percorram bairros circunvizinhos antes de se fixarem naquele que será o centro das atividades finais e convergentes. Nesse sentido, os bairros servem como sede de políticos, candidatos e visitantes de outros bairros, nos quais estabelecem diversos mecanismos de troca e sociabilidade.

Os comícios podem ser então considerados como um dos rituais de campanha que efetivam estratégias de reconhecimento entre bairros e candidatos. Na condição de lugar de acolhida "da política" o bairro vira festa, tal como pode ser visto através da descrição mais detalhada de comícios realizados em Fortaleza.

FESTA NO BAIRRO A chegada a um comício realizado na periferia da cidade de Fortaleza é precedida de uma série de buscas, começando pela localização do bairro, normalmente distante do centro da cidade. Uma vez identificada a entrada no bairro, a pergunta "onde fica o comício?" constitui o indicador mais seguro ou via de acesso mais tranqüila para se chegar ao local esperado.

Isso se porque o evento é precedido de informações freqüentes, difundidas durante o dia por meio de um carro de som que percorre as vias principais do bairro, anunciando horário e local do comício do candidato X. Este, por sua vez, se faz anunciar no bairro através de sua música de propaganda, slogans e fotos, normalmente afixadas em pontos estratégicos ou próximos ao evento.

O anúncio do local do comício através do carro de som confere publicidade e destaque ao bairro-sede do ato de campanha. O convite, feito a todos os moradores do bairro, evidencia o acontecimento da noite, que se caracteriza por ser comumente o mais expressivo dos rituais ocorridos durante o dia. "Hoje, grande comício no bairro X", anuncia a voz do carro de som que circula em partes variadas da cidade.

Assim, existe a "preparação" do comício, em geral feita pela equipe do comitê da campanha, que conta ainda com a ajuda de candidatos a vereador e cabos- eleitorais do postulante a prefeito.

A indicação precisa do local do ato de campanha, para visitantes de outras localidades que não conhecem o bairro, pressupõe que a "preparação" foi eficaz, no sentido de tornar o comício difundido entre os moradores. Para estes, mais do que o comício de um candidato específico, "o comício" se torna o evento da noite, de magnitude semelhante a um show musical ou a uma novena.

É nessa disposição de ir "assistir" ao acontecimento que os moradores, jovens em sua maioria, dirigem-se ao local; tanto atraídos pelo show musical que acompanha os discursos como pelo encontro com outros grupos. Motivações propriamente políticas mesclam-se aos interesses na apresentação de artistas, que dão uma outra configuração ao evento, que passa a ser chamado de showmícios.

A montagem técnica do palanque, de maior ou menor porte, dependendo do tipo de comício, requer o trabalho de especialistas contratados por empresas que asseguram os sistemas de iluminação, som, filmagem etc. O tamanho do bairro ou a capacidade potencial de atrair eleitores parecem ser indícios importantes para se definir o tipo de investimento. Contribui também, para isso, a potencialidade eleitoral do bairro, segundo a aprovação a determinado tipo de candidato. Cada postulante ao cargo de representação política tem sua infra- estrutura semipronta a ser transposta para diferentes bairros, fato que a impressão de que os comícios são "ambulantes".

Animadores contratados para o comício têm papel fundamental: fingem-se entusiasmados quase que dirigindo as ocasiões em que deve aplaudir.

Transportados geralmente em ônibus e convocados para a ida ao bairro, durante o próprio trajeto, agitam bandeiras em veículos cujas traseiras são enfeitadas por fotos e material de propaganda. Indagado sobre sua função de animador do evento, um jovem presente no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, afirmou que fazia parte do seu trabalho, como membro do comitê, a participação noturna em diferentes comícios realizados em diversos bairros. Na função de animadores do comício, os "jovens contratados" postam-se à frente do palanque, funcionando como espécie de reagentes em cadeia que mantêm interlocução mais direta com o público ouvinte21.

A escolha do local do comício segue tanto a busca de espaços públicos mais freqüentados, tais como praças e igrejas, como também a opção estratégica por locais beneficiados com eventuais intervenções urbanas, feitas pelo próprio candidato ou por seu partido.

Os candidatos podem, por ocasião da ida ao bairro, destacar ações de sua autoria tais como pavimentação, asfalto ou outra benfeitoria, o que comprova seu interesse pela região. A escolha de um local central do bairro proporciona, assim, tanto a aglomeração de ouvintes como a lembrança de uma ação supostamente ampliada a todos os moradores na hipótese de eleição do candidato.

Além da infra-estrutura do comício, a montagem de barracas para a venda de bebidas, brinquedos e outras bugigangas lembra outras festas populares realizadas no bairro. O local é, portanto, uma feira de vendas em que se criam formas diversas de sociabilidade, funções que ampliam o número de participantes para além da esfera meramente política.

O comício, como todo ritual, tem diferentes fases. Inicialmente, a multidão é atraída por uma banda ou grupo musical, cuja apresentação serve de preâmbulo aos pronunciamentos políticos. A música é executada, portanto, por profissionais contratados na condição de animadores capazes de seduzir o público ouvinte. Danças e cânticos são também prenúncios de momentos solenes, sendo uma espécie de distração da espera ou "aquecimento" para o momento apoteótico. Nos showmícios observa-se uma espécie de inversão, em que a música funciona como principal atração. Nesse caso, os músicos ajudam o candidato a se tornar mais popular ao declararem seu voto a ele, conclamando assim a adesão do público.

Grandes shows musicais anunciados para depois do discurso de candidatos asseguram a garantia da assistência por um período mais longo, indicando que o comício não se esgota nos discursos. A mobilização no bairro, que atesta o grau de impacto, constitui um dado relevante para identificar especificidade e diferenciação entre os comícios.

O conjunto de falas dos pretendentes aos cargos de representação acontece em ritmo ascendente. Os candidatos a vereador proferem seus discursos depois de políticos de renome, culminando com a fala final do postulante a prefeito.

Anúncios freqüentes da chegada do candidato, que comumente vem de outro evento ou outro comício, criam um clima de expectativa, estimulado pela fala do apresentador: "dentro de mais alguns instantes, teremos conosco...".

Nos grandes comícios, os fogos de artifício e as músicas de propaganda servem de preâmbulo à chegada do candidato. Outra forma de chegada ao comício reedita a idéia do político surgido da multidão. O apresentador do comício desempenha um papel fundamental como animador e roteirista do evento, tendo a função de manter o clima "em alta", fazendo constantes apelos à explicitação coletiva e uníssona de apoios. Invoca constantemente a adesão entusiástica da platéia, enunciando invariavelmente a frase: "É nosso candidato ou não é?". Algumas vezes radialista de profissão, o apresentador ao comício o tom de uma apresentação teatral com momentos ascendentes e descendentes de intensa comunicação com o público ouvinte.

A presença do candidato no bairro não acontece sem a tentativa de criar mecanismos interativos capazes de firmar pactos de adesão. Em geral, eles se explicitam por meio de referências ao passado: "Eu conheço este bairro muito tempo" ou " estive outras vezes aqui neste bairro". São afirmativas que buscam passar a idéia de que antes do interesse meramente eleitoral uma relação prévia construída. Em algumas ocasiões, alusões podem ser feitas a um trabalho de benfeitoria realizado no bairro. Os candidatos podem citar uma construção escola, pavimentação de ruas e outros "benefícios", geralmente atribuídos à sua intervenção, na condição de ocupante de alguma função política ou de participante de algum movimento em prol de melhorias efetivadas no local.

Outras situações são reveladoras de que a escolha do local do comício na rua onde ocorreu o referido "beneficiamento" não é casual, afirmando uma espécie de novo "ato inaugural" potencializador de promessas.

A alusão à importância do bairro aparece também na afirmação do seu papel como viabilizador da vitória do candidato. Em muitas situações, os candidatos evocam também os temas da pobreza ou da falta de equipamentos de saúde pública, exemplificando com acontecimentos vivenciados no próprio bairro, mencionando este ou aquele morador como protagonistas desses fatos.

A oratória empregada nos discursos encontra-se geralmente marcada pela tentativa de estabelecimento de cumplicidade entre o candidato e o público assistente do comício. Se a natureza formal da oratória merina de Madagascar22, por exemplo, é extremamente ordenada e afirmadora das regras de poder, a linguagem discursiva que se efetiva entre os candidatos, nos diferentes bairros, tenta romper o circuito das regras formalmente estabelecidas a partir de duas finalidades: tornar-se acessível aos ouvintes e criar mecanismos variados de interação. São, portanto, discursos que mesclam formalização e aparente informalidade explicitada na tentativa de demonstrar identificação: o candidato "fala" a linguagem do povo, pode ser por ele entendido e, portanto, tem condições de representá-lo.

A variável constante nos discursos é, nesse sentido, a referência ao seu contexto de elaboração, construindo a idéia de proximidade que pode ser exemplificada na frase: "eu conheço este bairro".

Os discursos realizados no bairro não abdicam de uma seqüência de argumentos que engloba a comprovação da própria capacidade administrativa, o comprometimento com os moradores, além da crítica aos adversários. Existe, assim, uma parte do discurso genérica e formal, que se repete em diferentes comícios; e outra, "adaptada às circunstâncias".

A ida ao bairro reforça, por outro lado, as classificações preexistentes entre a cidade moderna e a cidade carente por meio da ênfase que os candidatos emprestam ao contexto de realização de seu discurso. Em síntese, as referências principais aos bairros-sede de comícios incorporam os seguintes componentes: alusões a benfeitorias viabilizadas direta ou indiretamente pelo candidato; referência aos problemas sociais do bairro como fruto de ineficácia administrativa; recuperação de elos interativos com o bairro, anterior ao momento das eleições; demonstração de conhecimento da "história do bairro"; referência ao local como espaço consolidado de eleitores.

Tudo se passa como se cada comício, em cada bairro, fosse a expressão de um pacto de assentimento, evidentemente reafirmado diante de outros comícios subseqüentes.

ATOS DE CAMPANHA A discussão sobre os rituais políticos citadinos exemplificados nos atos de campanha eleitoral põe em evidência vários pontos importantes. Em primeiro lugar, a afirmação de uma morfologia política que implica a valorização de espaços populares, a dinamização de eventos e modos de sociabilidade intermediados pelo cenário das opções eleitorais.

A dinâmica das comunicações entre candidatos e bairros populares valoriza o sentido de proximidade. Isso porque as campanhas tornam vivos os problemas dos bairros populares, por meio de discursos que fazem referência enfática aos "descasos do poder público" em face das necessidades da população. As campanhas políticas na medida em que põem em contato eleitores e potenciais representantes criam o "outro" interlocutor com o qual estabelecem uma condição especial de diálogo.

A eficácia simbólica do discurso feito na periferia e para a periferia contém uma perspectiva implícita de constatação. "Conhecer" as dificuldades do bairro no próprio local opõe-se à escuta dos mesmos problemas no espaço dos gabinetes.

"Estar " afirma uma experiência não cambiável pela escuta, sendo da ordem da verificação empírica. Os moradores, postos na condição de "eleitores", adquirem significado e nomeação através de seu bairro.

Além da recuperação da periferia como parte fundamental do cenário das campanhas, os eventos que ocorrem em territórios consagrados da cidade constituem forte momento de legitimação de candidaturas. Assim, a visita a locais como feiras, estádios e fábricas ou as caminhadas em locais que fazem parte do "centro da cidade" dão visibilidade e legitimidade às candidaturas articulando espaço físico e espaço simbólico de representação. Praças tradicionais, igrejas ou outras edificações são espaços de intervenção que fazem das campanhas espécies de acontecimento primordial.

Nas zonas centrais, percebe-se também a luta pela apropriação simbólica dos espaços. Caminhadas e "carreatas" na avenida situada à beira-mar, em Fortaleza, expressam, na mesma perspectiva, os traçados geográficos da política que tenta se fazer presente em todos os recantos da cidade. A geografia eleitoral altera a placidez das atividades cotidianas, interagindo com elas e provocando novas funções.

A caminhada ao centro assemelha-se à rotina do trabalho e do comércio. Os eventos na praia, acompanhados de música, tomam a forma de lazer; os atos de campanha realizados em bairros periféricos adquirem o ar de festas populares.

Enfim, as campanhas mobilizam zonas de transição, passagens entre funções e espaços físicos que fazem da representação política a busca de uma outra totalidade. A cidade em campanha eleitoral é a cidade que parece conciliada com seus excluídos, com suas divisões morfológicas. Os conflitos entre candidatos são frutos dessa vontade de serem únicos porta-vozes da condição de hegemonia sobre essa totalidade.

No âmbito das campanhas eleitorais a representação aparece como um dos elementos mais significativos, que transforma os eventos de campanha na oportunidade, por excelência, de transferir direitos e ordenar legitimidades.

As campanhas aparecem como uma espécie de tempo inaugural, que define quem irá falar em nome de quem e em nome de que conjunto de valores. Instalam, portanto, uma ocasião de discussão e construção de atores, discursos e imagens. Essa construção passa longe da espontaneidade, supondo-se que nesse processo conformam-se estratégias e modos variados de se fazer apresentar.

A apresentação de candidatos é fruto de um trabalho de investimento, de uma encenação teatral ou fachada23, com objetivos claros de obter aceitação entre a maior parcela da população e parte significativa das instituições vigentes no interior do campo político. Os símbolos ou rituais de campanhas visam a diminuir a diferença temporal que acontece após a delegação de poder envolvendo representantes e representados24.

Os símbolos eleitorais podem ser pensados como construção ou reativação de vínculos entre políticos e eleitores, o que se faz a partir da valorização dos discursos, realçando a importância do voto e dos critérios de escolha. São discursos que convocam à participação e recapitulam a presença do "povo" como juiz da causa eleitoral. Nesse sentido, o pacto simbólico entre representantes e representados remete ao domínio da falta, efetivando as costuras necessárias para eliminar os hiatos entre as esferas sociais e políticas.

A construção da representação em seu caráter simbólico evoca a presença de atos de campanha e outras formas de expressão possíveis de serem também ritualizadas. Supõe-se, portanto, que a edificação de ritos, imagens e discursos faz parte de uma simbologia eleitoral que se efetiva através de um tempo e um espaço dotado de várias especificidades. Trata-se de um momento que efetiva separação entre o corpo e lugar da política ocasionando uma dessacralização do poder com normas e princípios a serem discutidos. Por esse motivo, as eleições trazem o ideário de renovação, mesmo que acenem com argumentos de continuidade da gestão anterior. Uma espécie de "novo tempo" ou uma dimensão escatológica surge como forma de marcar a importância de algo que se anuncia como estando mais próximo das aspirações populares.

Os comícios realizados na periferia das cidades e a visita de candidatos traduzem, no contexto de áreas metropolitanas, o espaço dos bairros como a comprovação de proximidade do candidato com o povo.

PROXIMIDADE E DISTANCIAMENTO Proximidade e distanciamento constituem duas expressões presentes nos rituais de representação, que têm significados na ocupação de espaços físicos, na produção de imagens e nas diferentes concepções de representação. É por intermédio da proximidade que os candidatos se colocam como integrantes de uma totalidade. É a proximidade que cria laços de identificação, permitindo a idealização de uma comunhão de princípios e interesses semelhantes que regem a utopia democrática. Trata-se de uma proximidade que se revela espacialmente: o candidato que visita seus eleitores participa de reuniões e integra-se ao circuito físico de seus representados.

A representação por delegação opera, sobretudo, com a dimensão de proximidade, na medida em que o representante é chamado a defender os interesses específicos de uma categoria profissional. A proximidade indica uma possibilidade de controle capaz de efetivar uma espécie de mandato imperativo.

Se a proximidade em seu sentido simbólico realiza a tarefa da identificação, é possível pensar que o distanciamento realiza ao mesmo tempo o trabalho da diferenciação, também necessário para que ocorra a delegação de poderes em nome dos "interesses gerais". Nesse sentido, o candidato precisa comprovar sua experiência, sua capacidade de distinguir-se dos demais mediante a posse de atributos que o elevem à condição de governante.

Na mesma ordem de idéias, compreende-se que são também ritos metafóricos de proximidade e distanciamento, os ritos de representação. Ser igual e diferente constitui a palavra de ordem do postulante a determinado cargo político que, durante o processo eleitoral, busca através de atos simbólicos realizar essa equação. Fazê-la de forma pública, na medida em que na democracia representativa o nexo da representação não ocorre a partir de pactos individualizados, mas com base em um poder público a ser exercido em nome do interesse público25.

O rito de representação é, portanto, de apresentação, de visibilidade e de constituição da política nos espaços públicos. Sua característica é a externalidade que se apresenta no direito à fala pública e no direito a discussões que reflitam a temática do poder. Trata-se de uma permissividade disciplinada que objetiva difundir um ideal de transparência presente na afirmação da sociedade democrática.

As reflexões de caráter genérico apresentadas neste artigo formulam pontos importantes a serem explorados no contexto de novas pesquisas. Em primeiro lugar, destaca-se a possibilidade de atualizar e compreender a diversidade de rituais que ocorrem durante o processo eleitoral. Caminhadas, comícios, caravanas, reuniões e visitas têm suas características singulares apontando para a existência de estratégias que se instalam por ocasião das várias candidaturas. Os rituais são, nesse sentido, linguagens de campanha, que, por sua vez, indicam as maneiras por meio das quais os candidatos se dão a conhecer perante os eleitores. Nesse sentido, o lugar que os candidatos ocupam na vida social interfere fortemente na maneira como elaboram sua campanha e apresentam sua "biografia" de forma pública.

As diferentes situações contextuais das candidaturas apontam as lutas simbólicas em torno da representação política, as quais objetivam fundar, metonimicamente, a percepção da "parte" como representativa do todo.

As pontuações implícitas nas situações de campanha referem-se ao modo como as estratégias justificam a relação complexa entre ausente e presente, situada no fenômeno da representação. A nomeação dos ausentes constitui o aceno aos laços orgânicos que justificam a existência do porta-voz. Fala-se, portanto, em nome dos excluídos, do povo, ou dos moradores da periferia. Fala-se também em nome de valores gerais ou símbolos assumidos pelos representantes como expressivos de uma condição ou característica que lhes é peculiar.

Além da nomeação dos ausentes as campanhas reportam-se ao estabelecimento de vínculos entre representantes e representados. A formulação de mecanismos de proximidade, valores de identificação e transparência constituem recursos de campanha acionados tendo em vista a recuperação dos elos perdidos. Nesse sentido, os rituais não podem ser considerados como meras estratégias de conquista de votos ou simples encenação da política. As campanhas eleitorais podem ser vistas como modos de nomear o "ausente", apresentar o representante, repondo por meio de seus rituais as dimensões legais e legítimas da contratualidade política. Como ritos de construção da representação e de legitimação das escolhas políticas, as campanhas podem ser consideradas como espécies de reencantamento da política e elaboração do ideal de proximidade.

[1] O que foi explorado por Moacir Palmeira e Beatriz Heredia em pesquisas sobre as eleições (In: "Os comícios e as políticas de facções". Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 94, 1995).

[2] Cf. Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1982.

[3] As pesquisas que serviram de embasamento às discussões deste artigo foram realizadas em Fortaleza, Natal, Maceió, durante as eleições municipais de 1996, no quadro de pesquisa de bolsa de produtividade do CNPq e do projeto Pronex, "Uma antropologia da política: rituais, representações e violência". Outras informações colhidas nas eleições municipais de 2000 e 2004 em Fortaleza deram subsídios e fundamento às reflexões sobre os atos de campanha. Embora as investigações estejam restritas a cidades nordestinas, muitas das questões apresentadas podem refletir outras realidades urbanas do país. O presente artigo constitui uma síntese, acrescida de novas idéias e reformulações, de capítulos do meu livro Chuva de papéis, ritos de campanha eleitoral no Brasil.

Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

[4] Na sociologia clássica, os ritos constituem portas de entrada para se entender a vida social, ponto central na obra de Durkheim (Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1979), para quem não poderia haver nenhuma sociedade que não sentisse a necessidade de provar e afirmar, em intervalos regulares, os sentimentos, valores e ideais coletivos que formam a sua unidade. Com efeito, Durkheim chamava a atenção para a ligação entre crenças e práticas coletivas, sendo, portanto, o ritual um domínio importante de expressão, transmissão e reprodução de valores sociais.

[5] Para a discussão das idéias aqui expostas, foram consultados principalmente Cazeneuve, Jean. Sociologie du rite (Paris: PUF, 1971); Kertzer, David I.

Ritual, politics and power (New Haven: University Press, 1988); Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas (São Paulo: EDUSP, 1982); Connerton, Paul. Como as sociedades recordam (Lisboa: Celta Editora, 1993); Da Matta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis (Rio de Janeiro: Guanabara, 1990); Rivière, Claude. Les liturgies politiques (Paris: PUF, 1988); Shils, Edward. Centro e periferia (Lisboa: Difel, 1992).

[6] Cazeneuve, Jean, op. cit.

[7] Nesse sentido, ver Coppet, Daniel. Understanding Rituals (Londres: Routledge, 1993); Rivière, Claude, op. cit.; e também o livro organizado por Peirano, Mariza. O dito e o feito: Ensaios de antropologia dos rituais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 [Coleção Antropologia da Política]).

[8] Baumann, G. "Ritual Implicates 'Others': rereanding Durkheim in a plural society". In: Baumann, G. Understanding Rituals. Londres: Routledge, 1993.

[9] Op. cit.

[10] Roberto DaMatta (op. cit.) chama atenção para a associação não devidamente estudada entre ritual e poder, enfatizando a necessidade de observação da construção de cerimoniais cuja expressão apresenta hierarquias, distâncias sociais e diversas outras estruturas de autoridade. A argumentação do autor converge para a análise do rito como uma atualização da estrutura de autoridade, permitindo situar, dramaticamente, quem sabe e quem não sabe, quem tem e quem não tem, quem está em contato com os poderes do alto e quem não está. A demonstração desse domínio não se faz sem conflitos e compensações e o próprio DaMatta enfatiza como as demonstrações de autoridade podem findar na informalidade, sendo, portanto, uma forma de apaziguamento. O importante a acrescentar é que os rituais mantêm um repertório de signos que informam o agir político.

[11] Abélès, Marc Henri-Pierre Jeudy. Antropologie du politique. Paris: Armand Colin, 1997.

[12] O conceito de visibilidade na perspectiva de Merleau-Ponty (Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994) referenda, na situação específica aqui discutida, a idéia de que as percepções sensoriais sendo variáveis no tempo e no espaço distanciam-se da oposição falso versus verdadeiro. A visibilidade da política, no momento das campanhas eleitorais, não leva a pensar que ela inexista em outros períodos. A visibilidade atesta a existência ostensiva da política vista como distante ou próxima da população, não obstante sua indiscutível e constante presença.

[13] A oposição entre ritual e rotina na perspectiva de Roberto Da Matta (op.

cit.) pode, no caso dos atos de campanha, ser relativizada, supondo-se, no entanto, que o momento das campanhas representa uma ruptura de práticas sociais.

[14] Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

[15] Para uma reflexão sobre formas peculiares de sociabilidade em espaços, ver a utilização da categoria "pedaço" nas pesquisas de José Guilherme Magnani ("De perto e de dentro": notas para uma etnografia urbana. RBCS, v. 17, . 49, jul.

2002) realizadas na cidade de São Paulo.

[16] Canevacci, Massimo. Antropologia da comunicação visual. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 191.

[17] Cf. Favre, Pierre. La manifestation. Presses de la Foundation Nationale des Sciences Politiques, 1990.

[18] Idem.

[19] Para uma descrição etnográfica das festas como veículo de sociabilidade política, ver Alencar Chaves, Cristina de. Festa na política, uma etnografia da modernidade no Sertão (Buritis-MG). Rio de Janeiro: NUAP/Relume Dumará, 2003.

[20] As idéias de Edward Shills (op. cit.) sobre a existência de um centro na sociedade, constituído de valores e crenças que governam e dão sentido de unidade, fornecem subsídios importantes para a compreensão dos comícios. Na realidade, a noção de centro para o autor não equivale à dimensão espacial, referindo-se antes a um lugar simbólico, de produção e difusão de crenças que se assemelham à natureza do sagrado.

[21] Ver Nilin, Danyelle. "Animadores e militantes: classificações da política no agenciamento do voto". In: Carvalho, Rejane Vasconcelos (org). A produção da política em campanhas eleitorais, Eleições municipais de 2000. Campinas: Ed.

Pontes, 2003.

[22] Cf. Bloch, Maurice. Linguagem política e oratória em sociedade tradicional. Londres: Academic Press, 1975.

[23] Cf. Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1996.

[24] Na visão de Lucien Sfez (La symbolique politique. Paris: PUF, 1988), uma crise de representação se instala desde o momento em que o representado investe no representante de sua confiança um tempo x, sendo que este age por conta do representado em um tempo y. É essa defasagem que impede a transparência da representação, ativando as distâncias entre as esferas social e política.

[25] Bobbio, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo.

Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986.


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