Einstein e a modernidade
Para Marcelo Leite
I
A autonomia dos saberes modernos, quando se procura relacionar esses saberes,
ocasiona muitas vezes confusões, conflitos e incompatibilidades. Entretanto,
esses desentendimentos possuem uma razão de ser comum. E essa razão é a própria
autonomia que todo saber moderno conquistou um dia para si. Autônomo é um saber
que se regula por princípios que foi capaz de encontrar numa reflexão sobre
seus fundamentos. E a expressão saber modernonada perde em sua compreensão se
referida tanto às artes e às humanidades como às chamadas ciências duras. Quer
se trate de cinema, psicologia ou química, são a montagem, o comportamento e a
ligação entre os átomos que responderão pelo que cada um desses saberes possui
de específico. Mas nem mesmo no interior de um só saber os desentendimentos se
tranqüilizam. A montagem pode ser de grande relevância para certos filmes, mas
negar importância para outros. O comportamento assume feições díspares e pode
chegar a opor seu aspecto biológico ao aspecto social. Já a separação entre a
química e a física é tão pouco nítida que um terceiro saber, a físico-química,
se faz necessário para tratar das regiões ambíguas. Seja rumo ao exterior, seja
rumo ao interior, todo saber moderno encontra qüiproquós, disputas ou
resistências em comunicar-se. E a razão comum, vale repetir, é a liberdade que
conquistaram de legislar para si mesmos, ainda que essa liberdade se ancore
apenas na pequena ilha de uma bem fundada auto-suficiência, dentro da qual,
porém, os desentendimentos também vigoram2.
A caracterização acima dos saberes modernos diz respeito tanto a seus métodos
como a seus objetos. Pode-se contra-argumentar, desse modo, que objetos muito
diversos, e também os métodos de abordá-los, estão sendo subsumidos por uma
noção autonomia ainda mais sujeita a desentendimentos do que aqueles que
procura assinalar3. Uma objeção semelhante, e em tudo pertinente, é também a
que questionaria a reunião justamente porque a reunião passaria por cima do
que possuem de diferentes e autônomos de saberes da natureza e saberes da
cultura. Não é uma ressalva, porém, que vá muito longe. Para se aproximar já um
pouco do tema deste artigo, que se tome, como exemplo, a física. Seu assunto,
em Aristóteles, foi também o movimento. E nisso Aristóteles está junto de
Newton e Einstein. Os dois últimos, entretanto, são autores fundamentais da
física-matemática. Diferente deles, Aristóteles não examina a natureza e o
movimento por meio de um instrumental matemático. E assim cabe a questão sobre
o critério que indica ser mais condizente o estudo da natureza por métodos
matemáticos ou não. Embora possa haver grande consenso sobre as vantagens de um
estudo matemático da natureza, a decisão de matematizá-la não pertence a seu
objeto em sentido amplo, mas antes a uma tomada de posição que é mais do âmbito
da cultura. Em nenhum enigmático ou, ao contrário, evidente aspecto da natureza
está escrito que ela deva ser conhecida matematicamente4. Nesse sentido, ainda
que seja um truísmo, mas nem sempre evidenciado, todo saber é humano,
histórico, ainda que seu objeto possa ter a índole de que a existência ou não
do homem no Universo em nada o alteraria.
É desse modo que a teoria da relatividade como um saber moderno embora neste
artigo se dê destaque, sobretudo, ao espaço e ao tempo na teoria da
relatividade como conceitos físicos modernos a levou a estudos sobre a origem
do Universo5, mas, mesmo assim, os novos objetos que engendrou vieram da
ambição histórica comum a todo saber moderno de avançar em sua autonomia. Com
Einstein, a física tornou-se ainda mais física, mais regulada por princípios
apenas seus. A insistência de Einstein em afirmar que o tempo é físico e que só
pode ser concebido do ponto de vista da física foi muitas vezes combatida por
outros saberes, em especial pela filosofia, como se verá mais adiante6.
Entretanto, com exceção de cientistas e uma pequena parcela do público
cultivado, pouco se atentou para o fato de que o tempo, em Einstein, é físico e
nada mais do que físico. Sua modernidade está nisso. Caso se pense como um
físico, e essa é uma das lições de Einstein, quase nada que a física não possa
estabelecer por meio da própria física deve entrar nos seus conceitos. O que
pode levar, é certo, a uma pergunta incômoda: o que é a física para que se
possa dizer se determinada noção que emprega é física ou não? Felizmente,
Einstein não se enveredou demais por especulações desse tipo7. A física, antes
da teoria da relatividade, era, grosso modo, a mecânica newtoniana e o
eletromagnetismo de Maxwell. E um saber moderno parte sempre do que já é
história em seu domínio, e isso mesmo se fizer perguntas mais abstratas sobre
sua essência. Foi, assim, pelo questionamento de alguns pressupostos não
físicos da mecânica newtoniana que Einstein estimulado, em especial, pela
teoria de Maxwell reformulou o conceito físico de tempo e o de espaço.
Comparada com a noção einsteiniana de tempo, a noção de tempo newtoniana se
mostra a palavra é em tudo apropriada metafísica. E assim se mostra,
sobretudo, depois que Einstein transformou o tempo num tema moderno e próprio
da física. O tempo, em Einstein, vale sempre repetir, é físico. E não é nada
mais do que físico.
II
Uma explanação concisa sobre o tempo na teoria da relatividade especial8
temas da teoria da relatividade geral serão tratados mais à frente só pode
ser conceitual e deixar equações e deduções mais complexas de lado. Antes de
Einstein, uma acurada reflexão sobre o tempo físico não se pôs porque uma noção
correlata, a de simultaneidade, era abordada de modo inteiramente diverso.
Todas as partes do espaço, na física newtoniana, são simultâneas num mesmo
instante. E o tempo, por sua vez, é compreendido como a sucessão de instante a
instante da totalidade do espaço. Há um só tempo, um tempo absoluto, na física
de Newton e também um só espaço, um espaço absoluto, que se atualiza por
inteiro a cada virada de um instante no seguinte. A teoria da relatividade
especial, porém, se baseia em dois princípios que levam a uma nova compreensão
da simultaneidade de um ponto de vista físico. Pelo primeiro princípio, que não
é outro que o princípio da relatividade, devem-se procurar por leis que sejam
as mesmas para diferentes sistemas de coordenadas. No caso da relatividade
especial, leis válidas para diferentes sistemas inerciais9. Até aqui, não há
diferença entre Einstein e Galileu ou Newton. Também os dois últimos procuraram
leis comuns para diferentes sistemas inerciais. Ou seja, leis que sejam válidas
para sistemas que se movam uns em relação aos outros com velocidades constantes
em valor, direção e sentido. Mas dado que um sistema se move em relação a
outro, torna-se necessário encontrar o que há de invariante entre eles. Para
Newton e Galileu, o tempo e a simultaneidade são invariantes, assim como o
espaço. As diferentes velocidades entre dois sistemas inerciais navegam, assim,
no mesmo tempo, no mesmo espaço e simultaneamente um ao outro. Se um sistema
está em repouso e nele transcorrem dez segundos, num sistema que se movimenta
em relação ao que está em repouso também transcorrem dez segundos. Se num dos
sistemas ocorre um evento em determinado intervalo de tempo, a partir do outro
sistema o mesmo evento será observado no mesmo intervalo de tempo, ou seja, a
cada instante num sistema corresponderá o mesmo instante no outro. O que é o
mesmo que dizer que são simultâneos. Se as distâncias entre dois sistemas se
alteram em razão da velocidade que os afasta ou aproxima, não é o próprio
espaço que varia, mas os comprimentos percorridos pelos diferentes sistemas no
mesmo espaço com uma métrica invariável.
Se o princípio da relatividade é comum a Newton e Einstein, o segundo princípio
da teoria da relatividade especial vem mudar por completo os termos da questão.
Um novo invariante é postulado: a constância da velocidade da luz no vácuo
independente da velocidade da fonte emissora de luz ou da velocidade do
receptor. Essa velocidade, trezentos mil quilômetros por segundo, sendo a mesma
em relação a qualquer sistema inercial, transforma inteiramente as noções
newtonianas de simultaneidade, tempo e espaço para sistemas com velocidades da
ordem de grandeza da luz.
Num sistema considerado em repouso (S), se um sinal luminoso percorre
verticalmente uma distância L, reflete-se num espelho e retorna ao ponto
inicial, num sistema com uma velocidade da ordem de grandeza da luz (S') em
relação ao primeiro, o mesmo fenômeno será visto, a partir de S, não como uma
linha que sobe e desce verticalmente, mas como dois lados de um triângulo de
altura L, semelhante à situação de alguém que corre na chuva e a sente
dirigindo-se inclinada contra si. O mesmo fenômeno ocorrido em S será visto,
assim, de forma diferente em S', se observado a partir de S. Isso porque a
velocidade da luz é constante e demorará mais tempo para percorrer os dois
lados do triângulo de altura L do que duas vezes o comprimento L. Os dois
fenômenos iguais, desse modo, quando visto em S e em S' a partir de S, caso
tenham inícios no mesmo instante, terão como términos instantes diferentes.
Dito de outro modo, não são simultâneos. E não o são porque a velocidade de S'
em relação a S, sendo da ordem de grandeza da luz, impede que a luz caminhe com
rapidez entre o início e o fim do fenômeno observado. Embora muito grande, a
velocidade da luz deixa de fornecer a simultaneidade costumeira para fenômenos
de baixa velocidade. Passa, por assim dizer, a competir com velocidades
próximas a ela. Não seria o caso, então, de somar a velocidade de S' com a da
luz para evitar tais diferenças de medidas? Tal soma, porém, não é possível,
pois resultaria na própria velocidade da luz conforme o postulado da sua
constância. Essa nova simultaneidade, que não é da totalidade do espaço num
único instante, mas conseqüência da capacidade limitada da luz ao percorrer o
espaço com uma velocidade finita, é a pedra de toque da teoria da relatividade
especial.
Se a simultaneidade é relativa ao sistema em que ocorre, uma em S, outra em S'
visto de S, o tempo, suas medidas, também se modifica. O sinal de luz que sobe
e desce a distância L em Sdemora mais tempo para percorrer os dois lados do
triângulo em S' visto por S. O intervalo de medida do tempo é, assim, mais
longo em S' do que em S. O que em Sse passa em dez segundos, em S' passa em
menos tempo. Essa chamada dilatação do tempo da teoria da relatividade ajuda a
explicar outra diferença de medida: os diferentes comprimentos de dois objetos
iguais quando vistos em S ou em S' visto de S. Basta pensar na luz percorrendo
as dimensões dos objetos para fornecer suas medidas em S e em S' visto por S.
No segundo caso, o tempo será menor, como visto acima, e a medida das dimensões
do mesmo modo. Assim, o que se passa em um segundo em um sistema em repouso,
num sistema inercial em movimento em relação ao primeiro se passa em menos
tempo, assim como os comprimentos se mostram menores. Esses são o tempo e o
espaço físicos relativísticos de Einstein no que diz respeito à diversidade de
medidas do tempo e do espaço. E visto que as diferentes medidas resultam do
postulado físico da constância da velocidade da luz, pode-se dizer que o tempo,
ou suas medidas físicas o que dá no mesmo baseia-se, em Einstein, apenas em
conceitos físicos. Daí sua modernidade e autonomia, como antes se salientou,
pois seus princípios encontram fundamentos numa reflexão que se faz no interior
do domínio da própria física.
O enigma de toda a questão não está tanto nos diferentes espaços e tempos
medidos, pois são apenas diferenças de medida10. O enigma é a constância da
velocidade da luz. Mas é um enigma, no entanto, que, de um ponto de vista
físico e em Einstein tudo é físico, independentemente das extrapolações que
se faça para fora da física , é em tudo justificável. A física trata de
velocidades de entes físicos reais. Ora, não havendo velocidade maior que a da
luz, ela não admite a transformação por soma em altas velocidades como seria
a soma, no exemplo anterior, da velocidade da luz com a do sistema S' em
relação a S , porque se obteria a medida de uma velocidade que o Universo
físico, em tudo físico, não suporta, pois, não fosse a da luz, uma outra
velocidade finita que não aceite soma deveria existir. O que é também um modo
de dizer que não há velocidade infinita na física, pois apenas uma velocidade
infinita justificaria a soma de velocidades acima da maior grandeza de
velocidade conhecida até onde a imaginação o desejasse. Nesse caso se somaria c
(a velocidade da luz) o quanto se quisesse: c + c+ c+ ... No limite, isso dá
uma velocidade infinita. Se, além do Universo físico, algo é capaz, por um
sinal que percorreria o Universo numa velocidade infinita, de tornar o Universo
inteiro simultâneo, independentemente da finitude com que os sistemas se
comunicam, enfim, além da finitude da velocidade da luz, esse algo não é
físico. Traduz, talvez, experiências cotidianas com objetos próximos e
simultâneos para todo o Universo, mas não de maneira física11. Ou então esse
algo é divino, pois, numa infinitude que seria só dele, daria do espaço, num só
instante, a simultaneidade de todas as suas partes. É mais por ter tocado,
entre outras coisas, nos pressupostos metafísicos da física newtoniana que
Einstein, paradoxalmente, parece ter abalado convicções quase intransponíveis
sobre o que é o tempo, o espaço, o Universo e assim por diante. Mas Einstein
estava fazendo física, nada mais do que física, e não demonstrando a
inexistência de Deus ou a invalidade de experiências individuais cotidianas, as
quais, vale dizer, são muito mais complexas que as da física quando se
entrelaçam com o mundo, o tempo e o espaço conforme se os vive.
Embora as conclusões de Einstein só digam respeito à física, elas acabaram, bem
ou mal interpretadas, por abalar as noções de espaço, tempo e simultaneidade,
que, na física newtoniana, não se chocavam com as concepções cotidianas ou
filosóficas desses temas. É de esperar, assim, que uma revolução na física
tenha gerado como subproduto uma espécie de revolução também nas noções
cotidianas e/ou filosóficas que portam os mesmos nomes: espaço, tempo,
simultaneidade. Era-se newtoniano e não se sabia. Ou Newton era um metafísico e
isso não transtornava quase ninguém. Mas para dar um fim a tal duelo de titãs,
que se volte para o tema mais abrangente deste artigo. A caracterização acima
da teoria da relatividade especial como saber moderno, mesmo rápida, se
justifica para que confusões, conflitos e incompatibilidades na relação com
outros saberes modernos sejam mais bem explicitados a seguir. Cabe aqui um
exame, nesse sentido, da maior consonância que havia entre a física de Newton e
um outro saber a ela contemporâneo: a pintura perspectiva. A comparação tem o
intuito de preparar outra comparação entre a teoria da relatividade e a pintura
cubista. Em que sentido, retomando o fio da meada, a física de Newton e a
perspectiva são condizentes? Há um espaço absoluto em Newton. Assim como a
velocidade da luz em Einstein é imune às diferentes velocidades dos sistemas
inerciais, em Newton o espaço absoluto cumpre um papel assemelhado. É um espaço
imóvel que a tudo acolhe, em repouso ou movimento, e que serve como referência
última para todos os sistemas inerciais. Suas partes, diferente do espaço da
teoria da relatividade especial, são todas simultâneas num único instante. E é
assim também que de instante a instante o tempo transcorre sem interferências
de medidas diferentes. O tempo de Newton, em outras palavras, também é
absoluto. Imutável, independente da velocidade de um sistema inercial em
relação ao espaço de repouso absoluto, os intervalos entre seus pulsos nunca
muda. Como se mostram o espaço e o tempo newtonianos numa pintura perspectiva?
A perspectiva é um método de projeção que imita a visão humana do espaço. Essa
imitação possui limitações. Pressupõe um olhar de um único olho e também fixo
diante da cena espacial projetada. Afasta-se, assim, de inúmeros aspectos da
visão tal qual se a experimenta. Essas limitações, porém, não desfazem a ilusão
de ver o espaço e, nele, os seres e coisas através do plano da tela da pintura.
São limitações, entretanto, porque seguem à risca leis geométricas e
matemáticas de transformação do espaço tridimensional da física de Newton em
uma superfície plana. Pode ser dito, assim, que o mesmo espaço tridimensional
da física se expressa na perspectiva12. Já a teoria da relatividade especial
não possui um espaço que seja todo simultâneo num único instante e cujos
instantes, na sua sucessão, ou seja, o tempo, independa da medida do espaço e
vice-versa. No espaço newtoniano, porém, é por ser a simultaneidade apreendida
num único instante que a imitação da visão é possível13. É tentador procurar na
negação do espaço perspectivo pela arte moderna uma equivalência expressiva com
um outro espaço físico. O candidato só pode ser o espaço físico, mas também o
tempo, da teoria da relatividade, pois não há outros à disposição. Dado que o
momento mais revolucionário da pintura moderna foi o cubismo, em especial o
cubismo de 1911, tentaram-se inúmeras tentativas de aproximação de Einstein com
Picasso e Braque, para simplificar a questão. Abreviando muito, tentava-se
introduzir a dimensão temporal, mais de um instante, numa pintura cubista14. E
de fato a pintura moderna, já antes do cubismo, no impressionismo, por exemplo,
se temporaliza, pois, ainda que sem uma ordem estabelecida para o olhar, as
marcas de produção da obra saltam à vista e as percorre como se a pintura
pedisse a introdução de tempo para ser olhada. Mas também por uma pintura
perspectiva o olhar não passeia entre as partes? Na pintura moderna, contudo, o
olhar não vaga diante de um espaço congelado num instante, mas num ir para cá e
para lá que salta num espaço de mais de um instante, pois se duas pinceladas
são vistas como que soltas e quase autônomas numa pintura impressionista, elas
significam dois momentos diferentes de execução da obra.
A relação entre espaço físico e espaço pictórico na pintura perspectiva é
homológica. Os dois espaços são matemáticos, assim como as regras de
transformação de um no outro. Já a relação entre a teoria da relatividade e a
pintura moderna é analógica. Um espaço não matemático expressaria um outro que
é matemático. Além disso, as analogias são frágeis. O tempo surge tanto na
pintura impressionista, na cubista e em muitos outros tipos de pintura moderna,
se não em todas. Esse caráter vago, e sua flexibilidade, através do qual o
espaço e o tempo relativísticos foram interpretados pela arte, acabaram por se
disseminar, assim, para todas as artes. Uma arte do tempo, como a poesia,
ganhou espaço, e a maneira de arrumar as letras na página foi ganhando tal
importância que poesia e desenho passaram a se confundir. Uma outra arte do
tempo, a música, também passou a espacializar-se pela distribuição de
instrumentos na sala de audição até a transformação das pautas em nova forma de
música (ou desenho). Pode-se, é verdade, argumentar que os artistas modernos
testavam, desse modo, os limites de seus saberes. E o argumento é válido. Mas
não foram poucas as vezes que recorreram às noções de tempo, espaço e
simultaneidade de Einstein. O que só gerou confusão conceitual. No domínio da
arte, porém, a confusão é muitas vezes fecunda. Então se o discurso que
confusamente as sustentava acabava por ajudar na produção de boas, e mesmo
grandes, obras, por efeito retroativo de toda ideologia as confusões
conceituais também pareciam corretas, dado que as obras possuíam qualidade. E
quase nunca se precisou, já que tudo era confuso, nem mesmo distinguir a teoria
da relatividade especial da teoria da relatividade geral.
Se a teoria da relatividade especial se aplica apenas a sistemas inerciais, a
relatividade geral se aplica a qualquer sistema físico que seja tomado como
sistema de referência para todos os demais. O princípio da relatividade
permanece; mas agora, passo fundamental, as leis físicas devem dar conta de
qualquer sistema. O espaço e o tempo absolutos de Newton garantiam a
estabilidade dos sistemas inerciais. Era possível, assim, dizer quando um
sistema de referência não era inercial e, desse modo, sujeito à ação de uma
força. Sem espaço e tempo absolutos, o que já valia para a relatividade
especial, a relatividade geral não tem onde ancorar os sistemas de referência.
Qualquer sistema de referência agora vale para descrever as mesmas leis
físicas. As disputas entre Galileu e a Igreja se é a Terra ou o Sol que está
no centro do Universo perdem sentido físico embora não para a história e a
história da ciência , pois tanto a Terra como o Sol podem ser adotados como
sistema em repouso ou, ainda, como o sistema referencial a partir do qual o
outro é descrito. Entretanto, há massas maiores do que outras no Universo. E no
lugar de dizer que uma força gravitacional exerce efeito direto à distância
sobre um corpo, Einstein dirá que toda massa possui um campo gravitacional em
torno dela, assim como, apenas para dar uma idéia, limalhas de ferro se curvam
em caminhos entre dois pólos de um imã.
A noção de campo gravitacional é fundamental na relatividade geral. Se qualquer
sistema serve como sistema de referência, as diferentes massas, porém, desenham
o Universo por meio de seus campos gravitacionais de modo inequívoco. Esse
desenho, se assim pode ser dito, não muda, ou, melhor dito, muda constante mas
não arbitrariamente, pois o Sol e a Terra, para continuar com o mesmo exemplo,
não estão em qualquer parte em qualquer momento. Essa espécie de membrana que
junta os campos gravitacionais que se entortam um tanto aqui depois voltam a
uma posição pela qual já passaram, e assim por diante para todas as massas e
campos gravitacionais, não é outra coisa do que o Universo físico15. Não há, na
relatividade geral, espaço e tempo anteriores às massas que viriam habitá-los.
Ao contrário, o Universo físico é suas massas e seus campos gravitacionais. O
desenho que daí resulta é o desenho do Universo. E de novo a luz tem que ser
reinterpretada. Se na relatividade especial ela possuía velocidade constante em
relação a qualquer sistema inercial, na relatividade geral ela se conduzirá
pelas linhas do desenho do Universo. Mesmo não possuindo massa, a luz é
energia, e também sofre a ação de um campo gravitacional. A luz, desse modo,
caminhará em curvas, e curvas as mais diferentes, conforme o campo
gravitacional resultante das massas próximas. Uma luz que percorre curvas não
pode, porém, ter velocidade constante, pois a mudança de posição, ainda que se
mantenha a mesma grandeza, requer aceleração, assim como quando um veículo ao
fazer uma curva requer uma aceleração para não sair em linha reta, e isso sem
que mude a marca do velocímetro. Na relatividade especial, as diferentes
medidas que um sistema A via em B eram simétricas às que B via em A, pois,
sendo inerciais, tanto fazia considerar Aou B como o sistema em repouso16.
Embora a relatividade geral amplie os sistemas de referência e o Universo possa
ser descrito tomando qualquer dos sistemas como estando em repouso, a descrição
será a de um mesmo desenho visto de posições que não são simétricas. Se se
considera o Sol como o centro de um relógio e cada trajetória de Mercúrio em
torno do Sol como a figura de um ponteiro, as observações astronômicas mostram
que o andamento do tempo para Mercúrio é mais lento do que para a Terra. Mas
não há simetria de medidas entre Mercúrio e a Terra se adotados como sistemas
de referência, pois, qualquer que seja o ponto de vista adotado, Mercúrio
navega num ritmo mais lento por estar mais próximo do Sol e, portanto, sujeito
a uma região de maior atração do campo gravitacional do Sol.
A simetria nas medidas entre dois sistemas de referência inerciais na
relatividade especial não é difícil de admitir. Se tanto faz escolher A ou B, a
situação só pode ser simétrica. Entretanto, tanto faz a escolha de A ou B
justamente porque sistemas inerciais não são acelerados ou, melhor dito,
justamente porque não há a presença de massas com campos gravitacionais em
jogo. Já onde há massas e gravitação, tanto faz escolher C ou D, porque
qualquer sistema de referência pode ser adotado. Mas não porque sejam
simétricos. Então C ou D não simétricos podem ser adotados para quê? Para a
descrição do Universo físico ou de parte desse do ponto de vista de Cou D. E o
ponto de vista, por exemplo, de uma massa pequena como a da Terra, em relação à
do Sol, não é o mesmo ponto de vista do Sol. A questão é importante, pois, a
partir dela, as relações da teoria da relatividade com outros saberes deixa de
ser confusa, como se viu para o caso das artes, e passa a ser de confronto. O
mais célebre desses confrontos foi o que se deu entre Einstein e Bergson. Para
o segundo, tratava-se de afirmar a existência de um tempo único. Para o
primeiro, a existência de mais de um tempo, do ponto de vista físico. O
argumento básico de Bergson, como bem o descreve Maurice Merleau-Ponty, é a
simetria entre os referenciais17. E isso é correto na teoria da relatividade
especial. Quanto à relatividade generalizada, Bergson pouco trata dela e,
quando trata, insiste na simetria de sistemas acelerados uns em relação aos
outros18. Mesmo que se refira a campos gravitacionais, nunca diz nada, salvo
engano, da invalidade da constância da velocidade da luz na relatividade geral.
O Universo de Einstein descrito por Bergson deixa de lado seu desenho real,
pois, ao admiti-lo, teria que admitir também diferentes campos gravitacionais e
diferentes tempos. Mas existirá mesmo mais de um tempo, como defende Einstein,
do ponto de vista físico? A resposta é sim e não. Que se tome como exemplo o
célebre problema dos gêmeos e se aceite, como requer a relatividade geral, que
o gêmeo viajante do espaço cósmico com presença de campos gravitacionais
retorne mais moço do aquele que permanece na Terra. Pode-se a partir daí falar
em mais de um tempo?
É espantoso pensar que dois pensadores tão sutis quanto Bergson e Einstein não
possam ter chegado a um acordo. Cada um, certamente, defende seu saber. Um, a
filosofia que renovou. O outro, a nova física que elaborou. E décadas mais
tarde Merleau-Ponty ainda insistirá nos "erros" de Einstein19. A maior
distância que hoje se tem do debate talvez ajude a entender que a palavra tempo
não tem todos os seus aspectos iguais para Bergson e para Einstein20. A
insistência de Einstein nos diferentes tempos, do ponto de vista físico, está
condenada a não sair da física. Nesse sentido, nem Einstein pode erigir a
física em verdade sobre o tempo filosófico e/ou cotidiano; nem Bergson poderia,
como o fez, corrigir a física de Einstein insistindo na simetria de sistemas
acelerados. Se a resposta é sim e não sobre a diversidade de tempos é porque é
preciso entender o que se diz quando se pronuncia tempo em contextos de
diferentes saberes. Suponha-se que o gêmeo viajante acabe de retornar de
viagem. Encontrará, então, o irmão envelhecido. Mas em que tempo o encontrará?
A resposta só pode ser "no mesmo tempo", pois de outro modo não se
encontrariam. Nesse sentido, não há diversidade de tempos. E, muito menos, não
há diversidade de mundos, coisa que, salvo engano, Einstein nunca afirmou21. O
ponto de vista de Bergson estará correto, pois os gêmeos se encontrarão no
único tempo que existe. Mas esse tempo único já não existia também durante a
viagem? Para Bergson sim, pois não pode haver dois tempos. No entanto, os
"relógios-gêmeos" (diga-se assim) marcam horas ou anos diferentes. Mas não há
aqui uma falha conceitual dos dois pensadores em melhor compreender, um no
pensamento do outro, a relação entre a passagem do tempo e o tempo? Quando duas
maçãs iguais são compradas verdes e uma é guardada na geladeira e a outra não,
se dirá que o apodrecimento de uma se deve à velhice e o frescor da outra à
juventude? Se dirá que estiveram em dois tempos diferentes ou simplesmente que
certas reações químicas se deram num ritmo maior em uma delas?
A pergunta pode parecer impertinente, pois diferentes temperaturas não são
diferentes tempos e um campo gravitacional maior que outro não é uma geladeira
que atinja temperaturas mais baixas. Entretanto, a admissão de diferentes
tempos na teoria da relatividade geral significa que processos físicos iguais,
e apenas físicos, registram diferentes contagens de repetições de fenômenos
também iguais. A cada uma dessas repetições não cabe chamar intervalo de tempo
se por tempo se entende um tempo único e no qual os aparelhos, ou gêmeos para
impressionar mais a imaginação , acabarão por se encontrar. Mas se para
exprimir a diversidade de tempos se empregar, mesmo assim, a expressão
intervalo de tempo, então a palavra tempo tem que se referir a algo apenas
físico e que não se confunda com a experiência temporal dos homens. Supondo que
o gêmeo viajante ainda seja um homem, ele experimentará expectativas, pensará
se viverá até encontrar o irmão que verá envelhecido, pois terá estudado teoria
da relatividade e assim por diante. O tempo da experiência humana é bem
diferente de repetições de fenômenos iguais. E não apenas no aspecto
quantitativo; são, sobretudo, tempos qualitativamente diferentes. O tempo, no
sentido físico, é apenas repetição do mesmo. É um relógio, que anda mais lento
ou mais rápido, e nada mais. São as células de dois gêmeos que se renovam mais
rapidamente no que permaneceu em Terra do que no que viajou pelo Universo. É
incômodo, assim, pensar que Einstein pudesse ver na física o fundamento do
tempo em todas as suas acepções e Bergson, na intuição filosófica, capacidade
para corrigir cálculos de física-matemática. Einstein, nesse sentido, age como
um filósofo no sentido tradicional de uma filosofia que pretende tudo abarcar.
Bergson, por seu turno, dá como conquistado esse território do tudo da
filosofia e, mesmo onde talvez não houvesse ameaça a ela, se pôs a corrigir
Einstein. Talvez a posição de Einstein se deva a que, além de físico, e por tão
bem delimitar o que é uma questão física e não, digamos, metafísica, não
pudesse deixar, levado mesmo por seu objeto de estudo, de também pensar além do
que delimitou. No confronto com Bohr, debate que se moveu no interior da
física, a postura filosófica de Einstein não é muito diversa. Einstein pensava
a física como uma questão apenas física, mas não apenas; ou, melhor dito,
sempre que parecesse condizente, também abordava outros saberes de um ponto de
vista físico, mas, seja dito, da sua física. Pois o que lhe desagradava na
física quântica no debate com Bohr e física da qual Einstein foi inclusive um
dos pioneiros não eram os conhecimentos novos que foram surgindo, mas a
relação entre a teoria física e os fenômenos22.
III
Talvez tenha sido a filosofia da ciência que, entre tantos saberes, melhor
compreendeu Einstein. No lugar de empregar seu pensamento para estabelecer
paralelos confusos, confrontos inúteis e recusas infrutíferas, buscou nele um
diálogo além dos conteúdos apenas físicos de seus conceitos. A relação entre
teoria e fenômeno, afinal, é o tema por excelência da filosofia da ciência. É
assim que, na Autobiografia intelectual, Popper relembra o impacto que teriam
sofrido seus pensamentos de juventude durante uma conferência de Einstein.
Diante de fenômenos que negassem a validade de uma teoria, a decisão de
Einstein era simplesmente fazer outra teoria. Essa ausência de dogmatismo,
rememora Popper, teria sido um impulso importante em direção a seu pensamento
futuro sobre a ciência. A idéia de que importa mais uma teoria científica que
se mostre apta a ser refutada do que coletar dados que a afirmem lhe teria
surgido nessa ocasião23. Não há refutabilidade, porém, onde não há
possibilidade de crítica. É nesse ponto que a filosofia da ciência de Popper é
também uma filosofia política, pois apenas uma sociedade aberta, democrática,
garante a crítica livre. Foi por essa brecha que se moveu, e a ampliou, o
pensamento de Kuhn de que um saber novo se estabelece muito mais pelo
convencimento de seus pares próximos por parte do autor quanto ao novo saber do
que por critérios baseados apenas nos significados empíricos dos novos
conceitos em questão. Essa é uma história complexa e fascinante que não envolve
apenas dois autores. E também muitas variantes da epistemologia, da teoria do
conhecimento e da filosofia da ciência não pegaram essa trilha. Importa, porém,
sinalizar que talvez a melhor via para estar com Einstein sem adulterá-lo, de
um modo ou de outro, não está nos conteúdos de seus conceitos se deles se faz
uso e abuso para outros fins, mas na postura crítica e criticável que seu
pensamento dos princípios muito gerais que adotava às conseqüências testáveis
que propunha sabia estar sujeito24. Esse princípio, que não é físico, mas
social e histórico, quem sabe possa ser chamado de primado da crítica.
A palavra crítica é das mais ambíguas. Possui tanto conotação pejorativa como
uma das mais elevadas, variando do uso coloquial "você só me critica" aos
títulos das três principais obras de Kant. A crítica de arte, e nisso se
irmanam o público em geral e boa parcela dos autores de outros saberes, é muito
mais considerada sob o primeiro sentido. Um estudo histórico da palavra mostra,
porém, que a crítica, sem adjetivos, surgiu primeiro com a adjetivada crítica
de arte embora se tenha que admitir que Diderot viveu há 250 anos, Baudelaire
há 150 e que Greenberg, embora falecido há pouco, alcançou seu ponto alto já
faz 50 anos. Não sem antes, contudo, escrever um texto clássico sobre a pintura
moderna. "A essência do modernismo", diz Greenberg em Pintura modernista,
"reside no uso de métodos característicos de uma disciplina para criticar essa
mesma disciplina." 25Frase que, se a disciplina fosse a física, se encaixaria
com perfeição para descrever os feitos de Einstein. É assim que é
característico da pintura moderna, prossegue Greenberg, "a ênfase conferida à
planaridade, [...] mais fundamental do que qualquer outra coisa para os
processos pelos quais a arte pictórica criticou-se e definiu-se a si mesma no
modernismo"26. A consideração de Greenberg, como ele bem ressalta, valeria para
tudo o que é significativo na cultura moderna. Falta na compreensão da
modernidade de Greenberg, porém, uma afirmação forte do momento da relação
entre os saberes, ou disciplinas, para usar o termo dele. Entretanto, se for
para achar um paralelo de época entre a pintura moderna e a teoria da
relatividade, ele não se encontra no espaço de uma em relação ao da outra, pois
entre a superfície plana da pintura moderna e o espaço e o tempo da teoria da
relatividade geral de Einstein não há nada em comum. Os resultados a que
chegaram os dois saberes são frustrantes até mesmo para uma analogia, por
mínima que seja. O que há em comum, do ponto de vista de Greenberg, é o uso do
saber para criticar o saber e dele fazer surgir um novo27.
Não fosse a ausência de uma relação forte com outros saberes, a compreensão da
modernidade por Greenberg seria bastante ampla ainda hoje. Os críticos de
Greenberg, no entanto, esquecem muitas vezes a data, por volta de 1960, de seu
texto. Desde então, tanto a pintura moderna como a modernidade mudou de
aspecto. A concepção de uma pintura plana por Greenberg não negava profundidade
óptica na pintura. A pintura moderna, para Greenberg, tendia ao plano, mas com
ele não se confundia. Quando uma pintura se torna de fato um plano, por meados
dos anos 1950, esse plano passa a ser um anteparo para as mais diversas ações
do pintor. A planaridade de Greenberg, assim, é levada mais longe, não negada.
Para essa nova pintura e sua época alguns preferem dar o nome pós-moderna. Mas
o que pode haver de pós no pós-moderno se é justamente o elemento pré do
moderno no caso da pintura, seus resquícios de uma profundidade óptica do
antigo espaço perspectivo que é suplantado? É bem provável que não haja
pintura nem época pós-modernas. O que há de novo nos saberes contemporâneos é
uma saída de seus âmbitos muito mais intensa do que nos tempos heróicos de
auto-afirmação da modernidade. As pinturas recebem elementos que seriam do
âmbito da escultura, mas ainda permanecem pinturas. A junção dos saberes se faz
por fronteiras, e não por um conceito de espírito de época ou equivalente que
os abarque. Mesmo se indefinidos em seus contornos, e ainda mais sujeitos a
confusões hoje em dia, são saberes ainda autônomos. Se a teoria física não foi
capaz de unir a teoria da relatividade e a mecânica quântica, isso não impede
os experimentos diários da física relativística de partículas. Na maioria dos
casos, porém, os saberes vagam numa anarquia que seria em tudo benéfica, se um
saber que pretende dialogar com os outros não pretendesse também subordiná-los.
Mas se assim for, se os saberes modernos invadem, combatem, tentam dominar ou
batem em retirada quando se relacionam, não haverá algo que os delimite melhor
e os organize além das zonas de fronteira? À medida que a modernidade se
formou, até adquirir sua fisionomia atual, vários saberes disputaram o
privilégio de organizar e formular conceitos que abarcassem o conjunto dos
demais, quando não, também, das múltiplas formas de práticas sociais. A
filosofia, candidata natural para tal ordenação de domínios, mostrou-se, quanto
mais nos aproximamos dos dias de hoje, incapaz de uma tarefa que por séculos
executou com eficiência. Autônomos, os diferentes domínios continuaram a
regular a si próprios. Diante de uma possível regulação superior, se
comportaram de maneira rebelde e justificada em relação a pretensas soberanias
de um saber em particular. Junto com a filosofia, também o marxismo e a
psicanálise acabaram por abrir mão de um reinado do todo. O que, de modo algum,
significa que já nada sabem, mas, ao contrário, que suas hipóteses totalizantes
tiveram que ser abandonadas para que também esses três saberes se renovassem
pela real conquista de suas especificidades. O que vale para a filosofia, o
marxismo e a psicanálise, vale também para qualquer outro saber moderno. Uma
descrição de todas as tentativas de um pensamento do todo talvez seja
inabarcável. Vale mais ir logo para a moral da história: não há saber moderno
que abarque a totalidade dos saberes, das práticas sociais e das formas de
sensibilidade modernas.
Se a autonomia dos saberes recusa saberes superiores que os reuniria diante
do relativo isolamento em que também se encontram é justamente porque todos
possuem um traço em comum, constantemente salientado neste artigo: a procura do
que lhes seja específico segundo seus objetos e os métodos que desencadeiam.
Mas tal traço comum pode ser compreendido como um conceito, diga-se,
horizontal. Por ele nada é dito "por cima" dos outros saberes ou, para
continuar na mesma linha de metáforas, por ele não se articula um conceito
vertical e totalizador dos saberes. Antes se quer dizer que na maior parte do
tempo cada qual cuida de sua vida sem obedecer a outros. Mas torna-se possível,
assim, uma relação lateral entre os saberes, um exercício constante e crítico
da intersubjetividade dos saberes por meio de seus porta-vozes e guiada tanto
pelo exame cuidadoso de um saber determinado como pela potência de dialogar com
outros e mesmo abrir mão de importantes pressupostos e princípios seus. A
teoria de todas as teorias, nesse sentido, não pode ser escrita, e se subordina
à prática relacional das teorias existentes. Mas uma prática que é preciso,
pelo menos em parte, também teorizar, pois a capacidade de promover confusão,
confronto, recrutamento e recusa entre os saberes é ainda maior hoje do que nos
primeiros 50 anos do século XX, quando a bandeira da autonomia a quase tudo
justificava. Esse é o caminho da secularização e democratização do saber e
nesse sentido pouco importa se do ponto de vista da teoria da relatividade
geral tanto Galileu como a Igreja estivessem certos. O que mais importa é que
Galileu deveria ter tido o direito de inventar a teoria que melhor lhe
conviesse. Foi no desdobramento desse espírito histórico que Einstein se
formou. De funcionário de patentes a título de homem do século pela revista
Time na virada do século, na trajetória moderna de Einstein, inclusive na
figura pública que construiu com os meios de comunicação, há mais de Galileu do
que há da negação dos conceitos físicos de Galileu na teoria da relatividade
especial. Foi a liberdade de reinventar livremente a física num novo quadro
interpretativo que originou a teoria da relatividade especial. E é desse modo
que um assunto que parecia velho, a liberdade de crítica e a separação entre
saber secular e autoridade religiosa, retorna hoje de forma inesperada. Mas
também aqui as análises têm que ser feitas com os cuidados que toda crítica
deve pôr em ação. Assunto para outro artigo e para o qual a figura humorada e
utópica de Einstein teria, com a autoridade de sua celebridade, certamente algo
a dizer. Tema esse que também a celebridade insuperável de Einstein
mereceria análise cuidadosa, na sua mistura de um novo Hesíodo portador de uma
nova cosmogonia com a de um irônico e atuante astro pop.
[1] Este artigo é a versão modificada de uma conferência proferida em 1o de
setembro de 2005 no Seminário Einstein para Além de seu Tempo, organizado pelo
Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST).
[2] Para Habermas, a modernidade, como um processo de diferenciação de
autonomias parciais, torna-se o problema por excelência da filosofia de Hegel.
Hegel teria sido o primeiro filósofo a buscar uma síntese de saberes díspares
que pareciam dispensar fundamentação filosófica, pois já se apresentariam como
saberes historicamente realizados. É a unidade da razão como um tema
histórico novo ao se apresentar cindida em saberes autônomos e já existentes
que Hegel procura reconquistar. Várias tentativas de unificação da razão diante
de seus saberes cada vez mais autônomos foram feitas desde então. O próprio
Habermas tem o tema como central na sua filosofia. Sua concepção da razão como
ação comunicativa possibilita conectar os saberes por processos de recíproca e
igual avaliação e crítica por meio dessa que é, talvez, a idéia filosófica a
de ação comunicativa mais fecunda das últimas décadas. Caracterizá- la tão
rapidamente implica adulterá-la um tanto, assim como têla como inspiração para
o presente artigo sem quase citar sua letra, mas, espera-se, não sem preservar
seu espírito. Ver: Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade. São
Paulo: Martins Fontes,2000,pp.24-33.
[3] Para uma resposta a essa objeção, ver o final deste artigo.
[4] Galileu formulou mais do que uma metáfora ao conceber que a natureza fala a
língua da matemática. Entretanto,que assim não falasse para Aristóteles mostra
o quanto a ciência é história e histórica. Para uma aguda compreensão do
processo de matematização da natureza,ver:Heidegger,M. "L'Époque des
'conceptions du monde'". In: Chemins qui ne mènent nulle part.Paris:
Gallimard,1986.
[5] A teoria da relatividade geral é uma das principais fontes para a
investigação dos problemas cosmológicos modernos, entre os quais o início do
Universo tal qual é conhecido (sua origem temporal) e o seu caráter finito (sua
estrutura espacial).O aprofundamento desses temas, porém, tornaria muito
extenso o âmbito desse artigo.
[6] Para um exame da posição de Einstein de que o tema do tempo é sobretudo
do domínio da física , em contraste com o tempo dos filósofos, contraste que
marcou seu debate com Bergson em 1922, ver: Merleau- Ponty,M. "Einstein et la
crise de la raison". In: Signes. Paris: Gallimard, 1980,p.248.
[7] Einstein faz uma reflexão de interesse nesse sentido,sobre a física
constituir- se na soma dos conhecimentos que podem ser expressos
matematicamente. Ver: Einstein, A. "Os fundamentos da física teórica" (1940).
In: Escritos de maturidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1994, p.103.
[8] Por princípio da relatividade, que não é de Einstein, e que remonta a
Galileu mas Einstein levou às últimas conseqüências, deve-se entender que as
leis físicas são relativas a um determinado conjunto de sistemas de coordenadas
espaciais e temporais. Na teoria da relatividade especial, Einstein procurou
por leis físicas que fossem as mesmas em especial para sistemas inerciais. Para
a noção de sistema inercial, ver a nota_9. O princípio da relatividade é o
princípio dos princípios da física de Einstein. Procurar leis válidas para um
conjunto de sistemas de coordenadas ou para todos é algo que sempre moveu o
pensamento físico de Einstein.
[9] Pode ser considerado inercial,em relação a um sistema em repouso,todo
sistema também em repouso ou com uma velocidade constante em relação ao sistema
em repouso, e constante não só em valor mas também em direção e sentido,ou
seja,que se transporte ao longo de uma reta num de seus dois sentidos e apenas
num. O sistema em movimento é dito inercial, assim como o é um em repouso,
porque seu estado não muda, ou seja, sua velocidade constante ao longo de uma
reta não muda, a não ser que exista a ação de uma força. Houvesse uma força, o
sistema se aceleraria, e assim abandonaria o estado constante e imutável, ou
seja,inerte. A noção de inércia não é intuitiva. Se algo se move, uma outra
coisa deveria movêla.Assim pensava Aristóteles.Mas se a velocidade não muda em
valor, direção e sentido,não há aceleração,pois a aceleração é a medida da
mudança da velocidade. E não havendo aceleração não há força ou mudança do
estado de movimento do sistema.
[10] Quando se diz que um sistema em repouso vê num outro, em movimento, na
teoria da relatividade especial, medidas de espaço e tempo alteradas, isso não
quer dizer que quem está no sistema em movimento também as veja assim. Estar
num sistema significa estar em repouso em relação a ele. Desse modo, em
movimento estará o outro. Dito de modo mais claro,o que está em A vê medidas em
A iguais ao que está em Bvê medidas em B. As diferenças de medidas só surgem
quando um dos dois vê medidas no outro. E as diferenças são as mesmas, pois a
velocidade de A em relação a B é equivalente à de B em relação a A, pois ambos
são sistemas inerciais, portanto não acelerados um em relação ao outro. Na
teoria da relatividade especial as diferenças de medida são simétricas.
Resumindo:se de A se observa z em B, de B se observa z em A; e se A observa Z
em A, B observa Z em B.
[11] Essa é, por exemplo, a posição de Merleau-Ponty. Ver: Merleau-Ponty, M.
"Einstein et la crise de la raison", pp.246-48.
[12] Para Panofsky, a perspectiva, empregando um conceito de Cassirer, é uma
forma simbólica. Traduz para a percepção, assim, o mesmo espaço teórico da
física-matemática que se conecta por leis lógicas. O conceito de forma
simbólica, porém, necessita de unidades conceituais o espaço, por exemplo
que se manifestem de modos diversos. Ora, se isso parece dar certo para a
perspectiva e o espaço newtoniano, para saberes modernos essa unidade é fugidia
ou mesmo inexistente. Como Hegel (ver nota_2), Cassirer, e na seqüência
Panofsky, postulam ainda conceitos filosóficos que abarquem a totalidade do
saber. As poucas comparações entre saberes distintos neste artigo procuram
mostrar que isso não é possível. Um conceito de razão não soberana e que
promova a razão como um processo formal de equipotência dos saberes, como a de
Habermas, é algo mais modesto, mas muito mais condizente com a relação entre os
saberes nos tempos atuais (ver nota_2).Ver: Panofsky, E. La perspectiva como
forma simbólica. Barcelona: Tusquets, 1978, p.26.
[13] Para a relação entre perspectiva e instante de uma ação, ver: Gombrich,
E.H.L'Art et l'illusion.Paris:Gallimard, 1971, pp.167-76.
[14] Para uma análise minuciosa das confusões conceituais entre a física
moderna e arte moderna, ver: Schapiro, M."Einstein e o cubismo:ciência e arte".
In: A unidade da arte de Picasso. São Paulo:Cosac & Naify,2002.
[15] Argan compreende o cubismo como um processo de assimilação estrutural de
espaço e coisa. A analogia entre massa como coisa e campo como espaço é talvez
a melhor analogia que se possa fazer entre uma pintura cubista e o universo
físico da teoria da relatividade. Mas ainda se trata de uma analogia.
[16] Ver nota_10.
[17] Ver: Merleau-Ponty, M. "Einstein et la crise de la raison",p.246-49.
[18] Ver: Bergson, H. Durée et simultanéité. Paris:PUF,1998,p.195.
[19] Ver: Merleau-Ponty, M. "Einstein et la crise de la raison", p.248.
[20] Merleau-Ponty refere-se à polissemia do termo tempono debate entre Bergson
e Einstein, e inclusive como aceita por Einstein. Dessa rica observação, porém,
nem Einstein, nem Merleau-Ponty ao comentar o debate, fizeram uso para levar a
disputa a um acordo.Ver:Merleau-Ponty,M. "Einstein et la crise de la raison",
p.248.
[21] Merleau-Ponty quase dá a entender que a pluralidade de tempos em Einstein
implicaria a inexistência de um único mundo. Ver: Merleau- Ponty,M. "Einstein
et la crise de la raison", p.247.
[22] Tratou-se de um confronto sobre a individuação de fenômenos físicos.Para
Einstein,uma teoria física deve dar conta de individuar por completo no
espaço, no tempo e outras variáveis o fenômeno a que se refere. A física
quântica, porém, quanto mais se aperfeiçoava,mais era incapaz de dar conta da
dualidade partícula/ onda dos fenômenos subatômicos.Ao contrário, cada vez
encontrava equações novas e conteúdos novos que incorporavam a dualidade.
Diante de tal quadro,Bohr propôs o princípio da complementaridade. Seria
inerente aos fenômenos subatômicos e aos modos experimentais e matemáticos de
abordá-los, mostrarem-se apenas sob um de seus aspectos: corpo ou onda, posição
ou movimento. Bohr, propõe, então, que o fenômeno é o mesmo e que é preciso
complementar um aspecto com o outro para atingir sua unidade. Como essa unidade
é apenas pressuposta, muitas medidas experimentais do mesmo fenômeno eram
requeridas para fixar um dos aspectos que se esperava observar. A física
quântica, assim, usa métodos estatísticos. A estatística, contudo, nunca foi
algo a que Einstein se opôs. Ao contrário, Einstein realizou trabalhos teóricos
em mecânica estatística que por si só o fariam um dos grandes físicos do século
XX, assim como ganhou o prêmio Nobel por sua contribuição à física quântica. O
nó da polêmica não eram os resultados experimentais e as formulações
matemáticas cada vez mais apuradas. Isso Einstein evidentemente reconhecia, e
aprovava. Reprovava que não se pudesse obter uma teoria que individuasse os
fenômenos, diga-se assim, de um só golpe. No lugar de aspectos complementares
de um fenômeno, Einstein procurava teorias de fenômenos completos.A posição de
Bohr prevaleceu. É mais condizente com a física quântica e dá a seus
praticantes maior segurança. Einstein, entretanto, tinha uma concepção da
relação entre teoria e realidade que não foi questionada para suas teorias.A
questão, a filosófica,pelo menos,continua em aberto.
[23] Ver: Popper, K. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix,1977,p.43-
45.
[24] Para a compreensão einsteiniana da ciência como um pensamento não
indutivo, mas como invenção de hipóteses sujeitas à crítica experimental, ver:
Einstein,A. "Física e realidade" (1936). In: Escritos de maturidade. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994,pp.99-100.
[25] Greenberg, C. "A pintura modernista". In: Clement Greenberg e o debate
crítico. Rio de Janeiro: Zahar, 1997,p.101.
[26] Idem, p.103.
[27] A posição de Greenberg ao definir a modernidade é,como ele mesmo
explicita,kantiana."Por ter sido o primeiro a criticar os próprios meios da
crítica, considero Kant o primeiro verdadeiro modernista", diz Greenberg. Sua
atenção ao momento interno de um saber em contraste com a menor importância que
atribuía ao momento de articulação externa com outros saberes é, de fato,
kantiana, se for aceita a interpretação de Habermas da relação de Kant com a
modernidade. Para Habermas, "na filosofia kantiana os traços essenciais da
época se refletem como num espelho, sem que Kant tivesse conceituado a
modernidade enquanto tal", pois "Kant não considera como cisões as
diferenciações no interior da razão". Para Greenberg, ver Greenberg, C. "A
pintura modernista", p. 101. Para Habermas,ver:Habermas,J.O discurso filosófico
da modernidade 2000,pp. 29-30.