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BrBRHUHu0101-33002006000200011

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variedadeBr
ano2006
fonteScielo

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Einstein e a modernidade

Para Marcelo Leite I A autonomia dos saberes modernos, quando se procura relacionar esses saberes, ocasiona muitas vezes confusões, conflitos e incompatibilidades. Entretanto, esses desentendimentos possuem uma razão de ser comum. E essa razão é a própria autonomia que todo saber moderno conquistou um dia para si. Autônomo é um saber que se regula por princípios que foi capaz de encontrar numa reflexão sobre seus fundamentos. E a expressão saber modernonada perde em sua compreensão se referida tanto às artes e às humanidades como às chamadas ciências duras. Quer se trate de cinema, psicologia ou química, são a montagem, o comportamento e a ligação entre os átomos que responderão pelo que cada um desses saberes possui de específico. Mas nem mesmo no interior de um saber os desentendimentos se tranqüilizam. A montagem pode ser de grande relevância para certos filmes, mas negar importância para outros. O comportamento assume feições díspares e pode chegar a opor seu aspecto biológico ao aspecto social. a separação entre a química e a física é tão pouco nítida que um terceiro saber, a físico-química, se faz necessário para tratar das regiões ambíguas. Seja rumo ao exterior, seja rumo ao interior, todo saber moderno encontra qüiproquós, disputas ou resistências em comunicar-se. E a razão comum, vale repetir, é a liberdade que conquistaram de legislar para si mesmos, ainda que essa liberdade se ancore apenas na pequena ilha de uma bem fundada auto-suficiência, dentro da qual, porém, os desentendimentos também vigoram2.

A caracterização acima dos saberes modernos diz respeito tanto a seus métodos como a seus objetos. Pode-se contra-argumentar, desse modo, que objetos muito diversos, e também os métodos de abordá-los, estão sendo subsumidos por uma noção autonomia ainda mais sujeita a desentendimentos do que aqueles que procura assinalar3. Uma objeção semelhante, e em tudo pertinente, é também a que questionaria a reunião justamente porque a reunião passaria por cima do que possuem de diferentes e autônomos de saberes da natureza e saberes da cultura. Não é uma ressalva, porém, que muito longe. Para se aproximar um pouco do tema deste artigo, que se tome, como exemplo, a física. Seu assunto, em Aristóteles, foi também o movimento. E nisso Aristóteles está junto de Newton e Einstein. Os dois últimos, entretanto, são autores fundamentais da física-matemática. Diferente deles, Aristóteles não examina a natureza e o movimento por meio de um instrumental matemático. E assim cabe a questão sobre o critério que indica ser mais condizente o estudo da natureza por métodos matemáticos ou não. Embora possa haver grande consenso sobre as vantagens de um estudo matemático da natureza, a decisão de matematizá-la não pertence a seu objeto em sentido amplo, mas antes a uma tomada de posição que é mais do âmbito da cultura. Em nenhum enigmático ou, ao contrário, evidente aspecto da natureza está escrito que ela deva ser conhecida matematicamente4. Nesse sentido, ainda que seja um truísmo, mas nem sempre evidenciado, todo saber é humano, histórico, ainda que seu objeto possa ter a índole de que a existência ou não do homem no Universo em nada o alteraria.

É desse modo que a teoria da relatividade como um saber moderno embora neste artigo se destaque, sobretudo, ao espaço e ao tempo na teoria da relatividade como conceitos físicos modernos a levou a estudos sobre a origem do Universo5, mas, mesmo assim, os novos objetos que engendrou vieram da ambição histórica comum a todo saber moderno de avançar em sua autonomia. Com Einstein, a física tornou-se ainda mais física, mais regulada por princípios apenas seus. A insistência de Einstein em afirmar que o tempo é físico e que pode ser concebido do ponto de vista da física foi muitas vezes combatida por outros saberes, em especial pela filosofia, como se verá mais adiante6.

Entretanto, com exceção de cientistas e uma pequena parcela do público cultivado, pouco se atentou para o fato de que o tempo, em Einstein, é físico e nada mais do que físico. Sua modernidade está nisso. Caso se pense como um físico, e essa é uma das lições de Einstein, quase nada que a física não possa estabelecer por meio da própria física deve entrar nos seus conceitos. O que pode levar, é certo, a uma pergunta incômoda: o que é a física para que se possa dizer se determinada noção que emprega é física ou não? Felizmente, Einstein não se enveredou demais por especulações desse tipo7. A física, antes da teoria da relatividade, era, grosso modo, a mecânica newtoniana e o eletromagnetismo de Maxwell. E um saber moderno parte sempre do que é história em seu domínio, e isso mesmo se fizer perguntas mais abstratas sobre sua essência. Foi, assim, pelo questionamento de alguns pressupostos não físicos da mecânica newtoniana que Einstein estimulado, em especial, pela teoria de Maxwell reformulou o conceito físico de tempo e o de espaço.

Comparada com a noção einsteiniana de tempo, a noção de tempo newtoniana se mostra a palavra é em tudo apropriada metafísica. E assim se mostra, sobretudo, depois que Einstein transformou o tempo num tema moderno e próprio da física. O tempo, em Einstein, vale sempre repetir, é físico. E não é nada mais do que físico.

II Uma explanação concisa sobre o tempo na teoria da relatividade especial8 temas da teoria da relatividade geral serão tratados mais à frente pode ser conceitual e deixar equações e deduções mais complexas de lado. Antes de Einstein, uma acurada reflexão sobre o tempo físico não se pôs porque uma noção correlata, a de simultaneidade, era abordada de modo inteiramente diverso.

Todas as partes do espaço, na física newtoniana, são simultâneas num mesmo instante. E o tempo, por sua vez, é compreendido como a sucessão de instante a instante da totalidade do espaço. um tempo, um tempo absoluto, na física de Newton e também um espaço, um espaço absoluto, que se atualiza por inteiro a cada virada de um instante no seguinte. A teoria da relatividade especial, porém, se baseia em dois princípios que levam a uma nova compreensão da simultaneidade de um ponto de vista físico. Pelo primeiro princípio, que não é outro que o princípio da relatividade, devem-se procurar por leis que sejam as mesmas para diferentes sistemas de coordenadas. No caso da relatividade especial, leis válidas para diferentes sistemas inerciais9. Até aqui, não diferença entre Einstein e Galileu ou Newton. Também os dois últimos procuraram leis comuns para diferentes sistemas inerciais. Ou seja, leis que sejam válidas para sistemas que se movam uns em relação aos outros com velocidades constantes em valor, direção e sentido. Mas dado que um sistema se move em relação a outro, torna-se necessário encontrar o que de invariante entre eles. Para Newton e Galileu, o tempo e a simultaneidade são invariantes, assim como o espaço. As diferentes velocidades entre dois sistemas inerciais navegam, assim, no mesmo tempo, no mesmo espaço e simultaneamente um ao outro. Se um sistema está em repouso e nele transcorrem dez segundos, num sistema que se movimenta em relação ao que está em repouso também transcorrem dez segundos. Se num dos sistemas ocorre um evento em determinado intervalo de tempo, a partir do outro sistema o mesmo evento será observado no mesmo intervalo de tempo, ou seja, a cada instante num sistema corresponderá o mesmo instante no outro. O que é o mesmo que dizer que são simultâneos. Se as distâncias entre dois sistemas se alteram em razão da velocidade que os afasta ou aproxima, não é o próprio espaço que varia, mas os comprimentos percorridos pelos diferentes sistemas no mesmo espaço com uma métrica invariável.

Se o princípio da relatividade é comum a Newton e Einstein, o segundo princípio da teoria da relatividade especial vem mudar por completo os termos da questão.

Um novo invariante é postulado: a constância da velocidade da luz no vácuo independente da velocidade da fonte emissora de luz ou da velocidade do receptor. Essa velocidade, trezentos mil quilômetros por segundo, sendo a mesma em relação a qualquer sistema inercial, transforma inteiramente as noções newtonianas de simultaneidade, tempo e espaço para sistemas com velocidades da ordem de grandeza da luz.

Num sistema considerado em repouso (S), se um sinal luminoso percorre verticalmente uma distância L, reflete-se num espelho e retorna ao ponto inicial, num sistema com uma velocidade da ordem de grandeza da luz (S') em relação ao primeiro, o mesmo fenômeno será visto, a partir de S, não como uma linha que sobe e desce verticalmente, mas como dois lados de um triângulo de altura L, semelhante à situação de alguém que corre na chuva e a sente dirigindo-se inclinada contra si. O mesmo fenômeno ocorrido em S será visto, assim, de forma diferente em S', se observado a partir de S. Isso porque a velocidade da luz é constante e demorará mais tempo para percorrer os dois lados do triângulo de altura L do que duas vezes o comprimento L. Os dois fenômenos iguais, desse modo, quando visto em S e em S' a partir de S, caso tenham inícios no mesmo instante, terão como términos instantes diferentes.

Dito de outro modo, não são simultâneos. E não o são porque a velocidade de S' em relação a S, sendo da ordem de grandeza da luz, impede que a luz caminhe com rapidez entre o início e o fim do fenômeno observado. Embora muito grande, a velocidade da luz deixa de fornecer a simultaneidade costumeira para fenômenos de baixa velocidade. Passa, por assim dizer, a competir com velocidades próximas a ela. Não seria o caso, então, de somar a velocidade de S' com a da luz para evitar tais diferenças de medidas? Tal soma, porém, não é possível, pois resultaria na própria velocidade da luz conforme o postulado da sua constância. Essa nova simultaneidade, que não é da totalidade do espaço num único instante, mas conseqüência da capacidade limitada da luz ao percorrer o espaço com uma velocidade finita, é a pedra de toque da teoria da relatividade especial.

Se a simultaneidade é relativa ao sistema em que ocorre, uma em S, outra em S' visto de S, o tempo, suas medidas, também se modifica. O sinal de luz que sobe e desce a distância L em Sdemora mais tempo para percorrer os dois lados do triângulo em S' visto por S. O intervalo de medida do tempo é, assim, mais longo em S' do que em S. O que em Sse passa em dez segundos, em S' passa em menos tempo. Essa chamada dilatação do tempo da teoria da relatividade ajuda a explicar outra diferença de medida: os diferentes comprimentos de dois objetos iguais quando vistos em S ou em S' visto de S. Basta pensar na luz percorrendo as dimensões dos objetos para fornecer suas medidas em S e em S' visto por S.

No segundo caso, o tempo será menor, como visto acima, e a medida das dimensões do mesmo modo. Assim, o que se passa em um segundo em um sistema em repouso, num sistema inercial em movimento em relação ao primeiro se passa em menos tempo, assim como os comprimentos se mostram menores. Esses são o tempo e o espaço físicos relativísticos de Einstein no que diz respeito à diversidade de medidas do tempo e do espaço. E visto que as diferentes medidas resultam do postulado físico da constância da velocidade da luz, pode-se dizer que o tempo, ou suas medidas físicas o que no mesmo baseia-se, em Einstein, apenas em conceitos físicos. Daí sua modernidade e autonomia, como antes se salientou, pois seus princípios encontram fundamentos numa reflexão que se faz no interior do domínio da própria física.

O enigma de toda a questão não está tanto nos diferentes espaços e tempos medidos, pois são apenas diferenças de medida10. O enigma é a constância da velocidade da luz. Mas é um enigma, no entanto, que, de um ponto de vista físico e em Einstein tudo é físico, independentemente das extrapolações que se faça para fora da física , é em tudo justificável. A física trata de velocidades de entes físicos reais. Ora, não havendo velocidade maior que a da luz, ela não admite a transformação por soma em altas velocidades como seria a soma, no exemplo anterior, da velocidade da luz com a do sistema S' em relação a S , porque se obteria a medida de uma velocidade que o Universo físico, em tudo físico, não suporta, pois, não fosse a da luz, uma outra velocidade finita que não aceite soma deveria existir. O que é também um modo de dizer que não velocidade infinita na física, pois apenas uma velocidade infinita justificaria a soma de velocidades acima da maior grandeza de velocidade conhecida até onde a imaginação o desejasse. Nesse caso se somaria c (a velocidade da luz) o quanto se quisesse: c + c+ c+ ... No limite, isso uma velocidade infinita. Se, além do Universo físico, algo é capaz, por um sinal que percorreria o Universo numa velocidade infinita, de tornar o Universo inteiro simultâneo, independentemente da finitude com que os sistemas se comunicam, enfim, além da finitude da velocidade da luz, esse algo não é físico. Traduz, talvez, experiências cotidianas com objetos próximos e simultâneos para todo o Universo, mas não de maneira física11. Ou então esse algo é divino, pois, numa infinitude que seria dele, daria do espaço, num instante, a simultaneidade de todas as suas partes. É mais por ter tocado, entre outras coisas, nos pressupostos metafísicos da física newtoniana que Einstein, paradoxalmente, parece ter abalado convicções quase intransponíveis sobre o que é o tempo, o espaço, o Universo e assim por diante. Mas Einstein estava fazendo física, nada mais do que física, e não demonstrando a inexistência de Deus ou a invalidade de experiências individuais cotidianas, as quais, vale dizer, são muito mais complexas que as da física quando se entrelaçam com o mundo, o tempo e o espaço conforme se os vive.

Embora as conclusões de Einstein digam respeito à física, elas acabaram, bem ou mal interpretadas, por abalar as noções de espaço, tempo e simultaneidade, que, na física newtoniana, não se chocavam com as concepções cotidianas ou filosóficas desses temas. É de esperar, assim, que uma revolução na física tenha gerado como subproduto uma espécie de revolução também nas noções cotidianas e/ou filosóficas que portam os mesmos nomes: espaço, tempo, simultaneidade. Era-se newtoniano e não se sabia. Ou Newton era um metafísico e isso não transtornava quase ninguém. Mas para dar um fim a tal duelo de titãs, que se volte para o tema mais abrangente deste artigo. A caracterização acima da teoria da relatividade especial como saber moderno, mesmo rápida, se justifica para que confusões, conflitos e incompatibilidades na relação com outros saberes modernos sejam mais bem explicitados a seguir. Cabe aqui um exame, nesse sentido, da maior consonância que havia entre a física de Newton e um outro saber a ela contemporâneo: a pintura perspectiva. A comparação tem o intuito de preparar outra comparação entre a teoria da relatividade e a pintura cubista. Em que sentido, retomando o fio da meada, a física de Newton e a perspectiva são condizentes? um espaço absoluto em Newton. Assim como a velocidade da luz em Einstein é imune às diferentes velocidades dos sistemas inerciais, em Newton o espaço absoluto cumpre um papel assemelhado. É um espaço imóvel que a tudo acolhe, em repouso ou movimento, e que serve como referência última para todos os sistemas inerciais. Suas partes, diferente do espaço da teoria da relatividade especial, são todas simultâneas num único instante. E é assim também que de instante a instante o tempo transcorre sem interferências de medidas diferentes. O tempo de Newton, em outras palavras, também é absoluto. Imutável, independente da velocidade de um sistema inercial em relação ao espaço de repouso absoluto, os intervalos entre seus pulsos nunca muda. Como se mostram o espaço e o tempo newtonianos numa pintura perspectiva? A perspectiva é um método de projeção que imita a visão humana do espaço. Essa imitação possui limitações. Pressupõe um olhar de um único olho e também fixo diante da cena espacial projetada. Afasta-se, assim, de inúmeros aspectos da visão tal qual se a experimenta. Essas limitações, porém, não desfazem a ilusão de ver o espaço e, nele, os seres e coisas através do plano da tela da pintura.

São limitações, entretanto, porque seguem à risca leis geométricas e matemáticas de transformação do espaço tridimensional da física de Newton em uma superfície plana. Pode ser dito, assim, que o mesmo espaço tridimensional da física se expressa na perspectiva12. a teoria da relatividade especial não possui um espaço que seja todo simultâneo num único instante e cujos instantes, na sua sucessão, ou seja, o tempo, independa da medida do espaço e vice-versa. No espaço newtoniano, porém, é por ser a simultaneidade apreendida num único instante que a imitação da visão é possível13. É tentador procurar na negação do espaço perspectivo pela arte moderna uma equivalência expressiva com um outro espaço físico. O candidato pode ser o espaço físico, mas também o tempo, da teoria da relatividade, pois não outros à disposição. Dado que o momento mais revolucionário da pintura moderna foi o cubismo, em especial o cubismo de 1911, tentaram-se inúmeras tentativas de aproximação de Einstein com Picasso e Braque, para simplificar a questão. Abreviando muito, tentava-se introduzir a dimensão temporal, mais de um instante, numa pintura cubista14. E de fato a pintura moderna, antes do cubismo, no impressionismo, por exemplo, se temporaliza, pois, ainda que sem uma ordem estabelecida para o olhar, as marcas de produção da obra saltam à vista e as percorre como se a pintura pedisse a introdução de tempo para ser olhada. Mas também por uma pintura perspectiva o olhar não passeia entre as partes? Na pintura moderna, contudo, o olhar não vaga diante de um espaço congelado num instante, mas num ir para e para que salta num espaço de mais de um instante, pois se duas pinceladas são vistas como que soltas e quase autônomas numa pintura impressionista, elas significam dois momentos diferentes de execução da obra.

A relação entre espaço físico e espaço pictórico na pintura perspectiva é homológica. Os dois espaços são matemáticos, assim como as regras de transformação de um no outro. a relação entre a teoria da relatividade e a pintura moderna é analógica. Um espaço não matemático expressaria um outro que é matemático. Além disso, as analogias são frágeis. O tempo surge tanto na pintura impressionista, na cubista e em muitos outros tipos de pintura moderna, se não em todas. Esse caráter vago, e sua flexibilidade, através do qual o espaço e o tempo relativísticos foram interpretados pela arte, acabaram por se disseminar, assim, para todas as artes. Uma arte do tempo, como a poesia, ganhou espaço, e a maneira de arrumar as letras na página foi ganhando tal importância que poesia e desenho passaram a se confundir. Uma outra arte do tempo, a música, também passou a espacializar-se pela distribuição de instrumentos na sala de audição até a transformação das pautas em nova forma de música (ou desenho). Pode-se, é verdade, argumentar que os artistas modernos testavam, desse modo, os limites de seus saberes. E o argumento é válido. Mas não foram poucas as vezes que recorreram às noções de tempo, espaço e simultaneidade de Einstein. O que gerou confusão conceitual. No domínio da arte, porém, a confusão é muitas vezes fecunda. Então se o discurso que confusamente as sustentava acabava por ajudar na produção de boas, e mesmo grandes, obras, por efeito retroativo de toda ideologia as confusões conceituais também pareciam corretas, dado que as obras possuíam qualidade. E quase nunca se precisou, que tudo era confuso, nem mesmo distinguir a teoria da relatividade especial da teoria da relatividade geral.

Se a teoria da relatividade especial se aplica apenas a sistemas inerciais, a relatividade geral se aplica a qualquer sistema físico que seja tomado como sistema de referência para todos os demais. O princípio da relatividade permanece; mas agora, passo fundamental, as leis físicas devem dar conta de qualquer sistema. O espaço e o tempo absolutos de Newton garantiam a estabilidade dos sistemas inerciais. Era possível, assim, dizer quando um sistema de referência não era inercial e, desse modo, sujeito à ação de uma força. Sem espaço e tempo absolutos, o que valia para a relatividade especial, a relatividade geral não tem onde ancorar os sistemas de referência.

Qualquer sistema de referência agora vale para descrever as mesmas leis físicas. As disputas entre Galileu e a Igreja se é a Terra ou o Sol que está no centro do Universo perdem sentido físico embora não para a história e a história da ciência , pois tanto a Terra como o Sol podem ser adotados como sistema em repouso ou, ainda, como o sistema referencial a partir do qual o outro é descrito. Entretanto, massas maiores do que outras no Universo. E no lugar de dizer que uma força gravitacional exerce efeito direto à distância sobre um corpo, Einstein dirá que toda massa possui um campo gravitacional em torno dela, assim como, apenas para dar uma idéia, limalhas de ferro se curvam em caminhos entre dois pólos de um imã.

A noção de campo gravitacional é fundamental na relatividade geral. Se qualquer sistema serve como sistema de referência, as diferentes massas, porém, desenham o Universo por meio de seus campos gravitacionais de modo inequívoco. Esse desenho, se assim pode ser dito, não muda, ou, melhor dito, muda constante mas não arbitrariamente, pois o Sol e a Terra, para continuar com o mesmo exemplo, não estão em qualquer parte em qualquer momento. Essa espécie de membrana que junta os campos gravitacionais que se entortam um tanto aqui depois voltam a uma posição pela qual passaram, e assim por diante para todas as massas e campos gravitacionais, não é outra coisa do que o Universo físico15. Não , na relatividade geral, espaço e tempo anteriores às massas que viriam habitá-los.

Ao contrário, o Universo físico é suas massas e seus campos gravitacionais. O desenho que daí resulta é o desenho do Universo. E de novo a luz tem que ser reinterpretada. Se na relatividade especial ela possuía velocidade constante em relação a qualquer sistema inercial, na relatividade geral ela se conduzirá pelas linhas do desenho do Universo. Mesmo não possuindo massa, a luz é energia, e também sofre a ação de um campo gravitacional. A luz, desse modo, caminhará em curvas, e curvas as mais diferentes, conforme o campo gravitacional resultante das massas próximas. Uma luz que percorre curvas não pode, porém, ter velocidade constante, pois a mudança de posição, ainda que se mantenha a mesma grandeza, requer aceleração, assim como quando um veículo ao fazer uma curva requer uma aceleração para não sair em linha reta, e isso sem que mude a marca do velocímetro. Na relatividade especial, as diferentes medidas que um sistema A via em B eram simétricas às que B via em A, pois, sendo inerciais, tanto fazia considerar Aou B como o sistema em repouso16.

Embora a relatividade geral amplie os sistemas de referência e o Universo possa ser descrito tomando qualquer dos sistemas como estando em repouso, a descrição será a de um mesmo desenho visto de posições que não são simétricas. Se se considera o Sol como o centro de um relógio e cada trajetória de Mercúrio em torno do Sol como a figura de um ponteiro, as observações astronômicas mostram que o andamento do tempo para Mercúrio é mais lento do que para a Terra. Mas não simetria de medidas entre Mercúrio e a Terra se adotados como sistemas de referência, pois, qualquer que seja o ponto de vista adotado, Mercúrio navega num ritmo mais lento por estar mais próximo do Sol e, portanto, sujeito a uma região de maior atração do campo gravitacional do Sol.

A simetria nas medidas entre dois sistemas de referência inerciais na relatividade especial não é difícil de admitir. Se tanto faz escolher A ou B, a situação pode ser simétrica. Entretanto, tanto faz a escolha de A ou B justamente porque sistemas inerciais não são acelerados ou, melhor dito, justamente porque não a presença de massas com campos gravitacionais em jogo. onde massas e gravitação, tanto faz escolher C ou D, porque qualquer sistema de referência pode ser adotado. Mas não porque sejam simétricos. Então C ou D não simétricos podem ser adotados para quê? Para a descrição do Universo físico ou de parte desse do ponto de vista de Cou D. E o ponto de vista, por exemplo, de uma massa pequena como a da Terra, em relação à do Sol, não é o mesmo ponto de vista do Sol. A questão é importante, pois, a partir dela, as relações da teoria da relatividade com outros saberes deixa de ser confusa, como se viu para o caso das artes, e passa a ser de confronto. O mais célebre desses confrontos foi o que se deu entre Einstein e Bergson. Para o segundo, tratava-se de afirmar a existência de um tempo único. Para o primeiro, a existência de mais de um tempo, do ponto de vista físico. O argumento básico de Bergson, como bem o descreve Maurice Merleau-Ponty, é a simetria entre os referenciais17. E isso é correto na teoria da relatividade especial. Quanto à relatividade generalizada, Bergson pouco trata dela e, quando trata, insiste na simetria de sistemas acelerados uns em relação aos outros18. Mesmo que se refira a campos gravitacionais, nunca diz nada, salvo engano, da invalidade da constância da velocidade da luz na relatividade geral.

O Universo de Einstein descrito por Bergson deixa de lado seu desenho real, pois, ao admiti-lo, teria que admitir também diferentes campos gravitacionais e diferentes tempos. Mas existirá mesmo mais de um tempo, como defende Einstein, do ponto de vista físico? A resposta é sim e não. Que se tome como exemplo o célebre problema dos gêmeos e se aceite, como requer a relatividade geral, que o gêmeo viajante do espaço cósmico com presença de campos gravitacionais retorne mais moço do aquele que permanece na Terra. Pode-se a partir daí falar em mais de um tempo? É espantoso pensar que dois pensadores tão sutis quanto Bergson e Einstein não possam ter chegado a um acordo. Cada um, certamente, defende seu saber. Um, a filosofia que renovou. O outro, a nova física que elaborou. E décadas mais tarde Merleau-Ponty ainda insistirá nos "erros" de Einstein19. A maior distância que hoje se tem do debate talvez ajude a entender que a palavra tempo não tem todos os seus aspectos iguais para Bergson e para Einstein20. A insistência de Einstein nos diferentes tempos, do ponto de vista físico, está condenada a não sair da física. Nesse sentido, nem Einstein pode erigir a física em verdade sobre o tempo filosófico e/ou cotidiano; nem Bergson poderia, como o fez, corrigir a física de Einstein insistindo na simetria de sistemas acelerados. Se a resposta é sim e não sobre a diversidade de tempos é porque é preciso entender o que se diz quando se pronuncia tempo em contextos de diferentes saberes. Suponha-se que o gêmeo viajante acabe de retornar de viagem. Encontrará, então, o irmão envelhecido. Mas em que tempo o encontrará? A resposta pode ser "no mesmo tempo", pois de outro modo não se encontrariam. Nesse sentido, não diversidade de tempos. E, muito menos, não diversidade de mundos, coisa que, salvo engano, Einstein nunca afirmou21. O ponto de vista de Bergson estará correto, pois os gêmeos se encontrarão no único tempo que existe. Mas esse tempo único não existia também durante a viagem? Para Bergson sim, pois não pode haver dois tempos. No entanto, os "relógios-gêmeos" (diga-se assim) marcam horas ou anos diferentes. Mas não aqui uma falha conceitual dos dois pensadores em melhor compreender, um no pensamento do outro, a relação entre a passagem do tempo e o tempo? Quando duas maçãs iguais são compradas verdes e uma é guardada na geladeira e a outra não, se dirá que o apodrecimento de uma se deve à velhice e o frescor da outra à juventude? Se dirá que estiveram em dois tempos diferentes ou simplesmente que certas reações químicas se deram num ritmo maior em uma delas? A pergunta pode parecer impertinente, pois diferentes temperaturas não são diferentes tempos e um campo gravitacional maior que outro não é uma geladeira que atinja temperaturas mais baixas. Entretanto, a admissão de diferentes tempos na teoria da relatividade geral significa que processos físicos iguais, e apenas físicos, registram diferentes contagens de repetições de fenômenos também iguais. A cada uma dessas repetições não cabe chamar intervalo de tempo se por tempo se entende um tempo único e no qual os aparelhos, ou gêmeos para impressionar mais a imaginação , acabarão por se encontrar. Mas se para exprimir a diversidade de tempos se empregar, mesmo assim, a expressão intervalo de tempo, então a palavra tempo tem que se referir a algo apenas físico e que não se confunda com a experiência temporal dos homens. Supondo que o gêmeo viajante ainda seja um homem, ele experimentará expectativas, pensará se viverá até encontrar o irmão que verá envelhecido, pois terá estudado teoria da relatividade e assim por diante. O tempo da experiência humana é bem diferente de repetições de fenômenos iguais. E não apenas no aspecto quantitativo; são, sobretudo, tempos qualitativamente diferentes. O tempo, no sentido físico, é apenas repetição do mesmo. É um relógio, que anda mais lento ou mais rápido, e nada mais. São as células de dois gêmeos que se renovam mais rapidamente no que permaneceu em Terra do que no que viajou pelo Universo. É incômodo, assim, pensar que Einstein pudesse ver na física o fundamento do tempo em todas as suas acepções e Bergson, na intuição filosófica, capacidade para corrigir cálculos de física-matemática. Einstein, nesse sentido, age como um filósofo no sentido tradicional de uma filosofia que pretende tudo abarcar.

Bergson, por seu turno, como conquistado esse território do tudo da filosofia e, mesmo onde talvez não houvesse ameaça a ela, se pôs a corrigir Einstein. Talvez a posição de Einstein se deva a que, além de físico, e por tão bem delimitar o que é uma questão física e não, digamos, metafísica, não pudesse deixar, levado mesmo por seu objeto de estudo, de também pensar além do que delimitou. No confronto com Bohr, debate que se moveu no interior da física, a postura filosófica de Einstein não é muito diversa. Einstein pensava a física como uma questão apenas física, mas não apenas; ou, melhor dito, sempre que parecesse condizente, também abordava outros saberes de um ponto de vista físico, mas, seja dito, da sua física. Pois o que lhe desagradava na física quântica no debate com Bohr e física da qual Einstein foi inclusive um dos pioneiros não eram os conhecimentos novos que foram surgindo, mas a relação entre a teoria física e os fenômenos22.

III Talvez tenha sido a filosofia da ciência que, entre tantos saberes, melhor compreendeu Einstein. No lugar de empregar seu pensamento para estabelecer paralelos confusos, confrontos inúteis e recusas infrutíferas, buscou nele um diálogo além dos conteúdos apenas físicos de seus conceitos. A relação entre teoria e fenômeno, afinal, é o tema por excelência da filosofia da ciência. É assim que, na Autobiografia intelectual, Popper relembra o impacto que teriam sofrido seus pensamentos de juventude durante uma conferência de Einstein.

Diante de fenômenos que negassem a validade de uma teoria, a decisão de Einstein era simplesmente fazer outra teoria. Essa ausência de dogmatismo, rememora Popper, teria sido um impulso importante em direção a seu pensamento futuro sobre a ciência. A idéia de que importa mais uma teoria científica que se mostre apta a ser refutada do que coletar dados que a afirmem lhe teria surgido nessa ocasião23. Não refutabilidade, porém, onde não possibilidade de crítica. É nesse ponto que a filosofia da ciência de Popper é também uma filosofia política, pois apenas uma sociedade aberta, democrática, garante a crítica livre. Foi por essa brecha que se moveu, e a ampliou, o pensamento de Kuhn de que um saber novo se estabelece muito mais pelo convencimento de seus pares próximos por parte do autor quanto ao novo saber do que por critérios baseados apenas nos significados empíricos dos novos conceitos em questão. Essa é uma história complexa e fascinante que não envolve apenas dois autores. E também muitas variantes da epistemologia, da teoria do conhecimento e da filosofia da ciência não pegaram essa trilha. Importa, porém, sinalizar que talvez a melhor via para estar com Einstein sem adulterá-lo, de um modo ou de outro, não está nos conteúdos de seus conceitos se deles se faz uso e abuso para outros fins, mas na postura crítica e criticável que seu pensamento dos princípios muito gerais que adotava às conseqüências testáveis que propunha sabia estar sujeito24. Esse princípio, que não é físico, mas social e histórico, quem sabe possa ser chamado de primado da crítica.

A palavra crítica é das mais ambíguas. Possui tanto conotação pejorativa como uma das mais elevadas, variando do uso coloquial "você me critica" aos títulos das três principais obras de Kant. A crítica de arte, e nisso se irmanam o público em geral e boa parcela dos autores de outros saberes, é muito mais considerada sob o primeiro sentido. Um estudo histórico da palavra mostra, porém, que a crítica, sem adjetivos, surgiu primeiro com a adjetivada crítica de arte embora se tenha que admitir que Diderot viveu 250 anos, Baudelaire 150 e que Greenberg, embora falecido pouco, alcançou seu ponto alto faz 50 anos. Não sem antes, contudo, escrever um texto clássico sobre a pintura moderna. "A essência do modernismo", diz Greenberg em Pintura modernista, "reside no uso de métodos característicos de uma disciplina para criticar essa mesma disciplina." 25Frase que, se a disciplina fosse a física, se encaixaria com perfeição para descrever os feitos de Einstein. É assim que é característico da pintura moderna, prossegue Greenberg, "a ênfase conferida à planaridade, [...] mais fundamental do que qualquer outra coisa para os processos pelos quais a arte pictórica criticou-se e definiu-se a si mesma no modernismo"26. A consideração de Greenberg, como ele bem ressalta, valeria para tudo o que é significativo na cultura moderna. Falta na compreensão da modernidade de Greenberg, porém, uma afirmação forte do momento da relação entre os saberes, ou disciplinas, para usar o termo dele. Entretanto, se for para achar um paralelo de época entre a pintura moderna e a teoria da relatividade, ele não se encontra no espaço de uma em relação ao da outra, pois entre a superfície plana da pintura moderna e o espaço e o tempo da teoria da relatividade geral de Einstein não nada em comum. Os resultados a que chegaram os dois saberes são frustrantes até mesmo para uma analogia, por mínima que seja. O que em comum, do ponto de vista de Greenberg, é o uso do saber para criticar o saber e dele fazer surgir um novo27.

Não fosse a ausência de uma relação forte com outros saberes, a compreensão da modernidade por Greenberg seria bastante ampla ainda hoje. Os críticos de Greenberg, no entanto, esquecem muitas vezes a data, por volta de 1960, de seu texto. Desde então, tanto a pintura moderna como a modernidade mudou de aspecto. A concepção de uma pintura plana por Greenberg não negava profundidade óptica na pintura. A pintura moderna, para Greenberg, tendia ao plano, mas com ele não se confundia. Quando uma pintura se torna de fato um plano, por meados dos anos 1950, esse plano passa a ser um anteparo para as mais diversas ações do pintor. A planaridade de Greenberg, assim, é levada mais longe, não negada.

Para essa nova pintura e sua época alguns preferem dar o nome pós-moderna. Mas o que pode haver de pós no pós-moderno se é justamente o elemento pré do moderno no caso da pintura, seus resquícios de uma profundidade óptica do antigo espaço perspectivo que é suplantado? É bem provável que não haja pintura nem época pós-modernas. O que de novo nos saberes contemporâneos é uma saída de seus âmbitos muito mais intensa do que nos tempos heróicos de auto-afirmação da modernidade. As pinturas recebem elementos que seriam do âmbito da escultura, mas ainda permanecem pinturas. A junção dos saberes se faz por fronteiras, e não por um conceito de espírito de época ou equivalente que os abarque. Mesmo se indefinidos em seus contornos, e ainda mais sujeitos a confusões hoje em dia, são saberes ainda autônomos. Se a teoria física não foi capaz de unir a teoria da relatividade e a mecânica quântica, isso não impede os experimentos diários da física relativística de partículas. Na maioria dos casos, porém, os saberes vagam numa anarquia que seria em tudo benéfica, se um saber que pretende dialogar com os outros não pretendesse também subordiná-los.

Mas se assim for, se os saberes modernos invadem, combatem, tentam dominar ou batem em retirada quando se relacionam, não haverá algo que os delimite melhor e os organize além das zonas de fronteira? À medida que a modernidade se formou, até adquirir sua fisionomia atual, vários saberes disputaram o privilégio de organizar e formular conceitos que abarcassem o conjunto dos demais, quando não, também, das múltiplas formas de práticas sociais. A filosofia, candidata natural para tal ordenação de domínios, mostrou-se, quanto mais nos aproximamos dos dias de hoje, incapaz de uma tarefa que por séculos executou com eficiência. Autônomos, os diferentes domínios continuaram a regular a si próprios. Diante de uma possível regulação superior, se comportaram de maneira rebelde e justificada em relação a pretensas soberanias de um saber em particular. Junto com a filosofia, também o marxismo e a psicanálise acabaram por abrir mão de um reinado do todo. O que, de modo algum, significa que nada sabem, mas, ao contrário, que suas hipóteses totalizantes tiveram que ser abandonadas para que também esses três saberes se renovassem pela real conquista de suas especificidades. O que vale para a filosofia, o marxismo e a psicanálise, vale também para qualquer outro saber moderno. Uma descrição de todas as tentativas de um pensamento do todo talvez seja inabarcável. Vale mais ir logo para a moral da história: não saber moderno que abarque a totalidade dos saberes, das práticas sociais e das formas de sensibilidade modernas.

Se a autonomia dos saberes recusa saberes superiores que os reuniria diante do relativo isolamento em que também se encontram é justamente porque todos possuem um traço em comum, constantemente salientado neste artigo: a procura do que lhes seja específico segundo seus objetos e os métodos que desencadeiam.

Mas tal traço comum pode ser compreendido como um conceito, diga-se, horizontal. Por ele nada é dito "por cima" dos outros saberes ou, para continuar na mesma linha de metáforas, por ele não se articula um conceito vertical e totalizador dos saberes. Antes se quer dizer que na maior parte do tempo cada qual cuida de sua vida sem obedecer a outros. Mas torna-se possível, assim, uma relação lateral entre os saberes, um exercício constante e crítico da intersubjetividade dos saberes por meio de seus porta-vozes e guiada tanto pelo exame cuidadoso de um saber determinado como pela potência de dialogar com outros e mesmo abrir mão de importantes pressupostos e princípios seus. A teoria de todas as teorias, nesse sentido, não pode ser escrita, e se subordina à prática relacional das teorias existentes. Mas uma prática que é preciso, pelo menos em parte, também teorizar, pois a capacidade de promover confusão, confronto, recrutamento e recusa entre os saberes é ainda maior hoje do que nos primeiros 50 anos do século XX, quando a bandeira da autonomia a quase tudo justificava. Esse é o caminho da secularização e democratização do saber e nesse sentido pouco importa se do ponto de vista da teoria da relatividade geral tanto Galileu como a Igreja estivessem certos. O que mais importa é que Galileu deveria ter tido o direito de inventar a teoria que melhor lhe conviesse. Foi no desdobramento desse espírito histórico que Einstein se formou. De funcionário de patentes a título de homem do século pela revista Time na virada do século, na trajetória moderna de Einstein, inclusive na figura pública que construiu com os meios de comunicação, mais de Galileu do que da negação dos conceitos físicos de Galileu na teoria da relatividade especial. Foi a liberdade de reinventar livremente a física num novo quadro interpretativo que originou a teoria da relatividade especial. E é desse modo que um assunto que parecia velho, a liberdade de crítica e a separação entre saber secular e autoridade religiosa, retorna hoje de forma inesperada. Mas também aqui as análises têm que ser feitas com os cuidados que toda crítica deve pôr em ação. Assunto para outro artigo e para o qual a figura humorada e utópica de Einstein teria, com a autoridade de sua celebridade, certamente algo a dizer. Tema esse que também a celebridade insuperável de Einstein mereceria análise cuidadosa, na sua mistura de um novo Hesíodo portador de uma nova cosmogonia com a de um irônico e atuante astro pop.

[1] Este artigo é a versão modificada de uma conferência proferida em 1o de setembro de 2005 no Seminário Einstein para Além de seu Tempo, organizado pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST).

[2] Para Habermas, a modernidade, como um processo de diferenciação de autonomias parciais, torna-se o problema por excelência da filosofia de Hegel.

Hegel teria sido o primeiro filósofo a buscar uma síntese de saberes díspares que pareciam dispensar fundamentação filosófica, pois se apresentariam como saberes historicamente realizados. É a unidade da razão como um tema histórico novo ao se apresentar cindida em saberes autônomos e existentes que Hegel procura reconquistar. Várias tentativas de unificação da razão diante de seus saberes cada vez mais autônomos foram feitas desde então. O próprio Habermas tem o tema como central na sua filosofia. Sua concepção da razão como ação comunicativa possibilita conectar os saberes por processos de recíproca e igual avaliação e crítica por meio dessa que é, talvez, a idéia filosófica a de ação comunicativa mais fecunda das últimas décadas. Caracterizá- la tão rapidamente implica adulterá-la um tanto, assim como têla como inspiração para o presente artigo sem quase citar sua letra, mas, espera-se, não sem preservar seu espírito. Ver: Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes,2000,pp.24-33.

[3] Para uma resposta a essa objeção, ver o final deste artigo.

[4] Galileu formulou mais do que uma metáfora ao conceber que a natureza fala a língua da matemática. Entretanto,que assim não falasse para Aristóteles mostra o quanto a ciência é história e histórica. Para uma aguda compreensão do processo de matematização da natureza,ver:Heidegger,M. "L'Époque des 'conceptions du monde'". In: Chemins qui ne mènent nulle part.Paris: Gallimard,1986.

[5] A teoria da relatividade geral é uma das principais fontes para a investigação dos problemas cosmológicos modernos, entre os quais o início do Universo tal qual é conhecido (sua origem temporal) e o seu caráter finito (sua estrutura espacial).O aprofundamento desses temas, porém, tornaria muito extenso o âmbito desse artigo.

[6] Para um exame da posição de Einstein de que o tema do tempo é sobretudo do domínio da física , em contraste com o tempo dos filósofos, contraste que marcou seu debate com Bergson em 1922, ver: Merleau- Ponty,M. "Einstein et la crise de la raison". In: Signes. Paris: Gallimard, 1980,p.248.

[7] Einstein faz uma reflexão de interesse nesse sentido,sobre a física constituir- se na soma dos conhecimentos que podem ser expressos matematicamente. Ver: Einstein, A. "Os fundamentos da física teórica" (1940).

In: Escritos de maturidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1994, p.103.

[8] Por princípio da relatividade, que não é de Einstein, e que remonta a Galileu mas Einstein levou às últimas conseqüências, deve-se entender que as leis físicas são relativas a um determinado conjunto de sistemas de coordenadas espaciais e temporais. Na teoria da relatividade especial, Einstein procurou por leis físicas que fossem as mesmas em especial para sistemas inerciais. Para a noção de sistema inercial, ver a nota_9. O princípio da relatividade é o princípio dos princípios da física de Einstein. Procurar leis válidas para um conjunto de sistemas de coordenadas ou para todos é algo que sempre moveu o pensamento físico de Einstein.

[9] Pode ser considerado inercial,em relação a um sistema em repouso,todo sistema também em repouso ou com uma velocidade constante em relação ao sistema em repouso, e constante não em valor mas também em direção e sentido,ou seja,que se transporte ao longo de uma reta num de seus dois sentidos e apenas num. O sistema em movimento é dito inercial, assim como o é um em repouso, porque seu estado não muda, ou seja, sua velocidade constante ao longo de uma reta não muda, a não ser que exista a ação de uma força. Houvesse uma força, o sistema se aceleraria, e assim abandonaria o estado constante e imutável, ou seja,inerte. A noção de inércia não é intuitiva. Se algo se move, uma outra coisa deveria movêla.Assim pensava Aristóteles.Mas se a velocidade não muda em valor, direção e sentido,não aceleração,pois a aceleração é a medida da mudança da velocidade. E não havendo aceleração não força ou mudança do estado de movimento do sistema.

[10] Quando se diz que um sistema em repouso num outro, em movimento, na teoria da relatividade especial, medidas de espaço e tempo alteradas, isso não quer dizer que quem está no sistema em movimento também as veja assim. Estar num sistema significa estar em repouso em relação a ele. Desse modo, em movimento estará o outro. Dito de modo mais claro,o que está em A medidas em A iguais ao que está em Bvê medidas em B. As diferenças de medidas surgem quando um dos dois medidas no outro. E as diferenças são as mesmas, pois a velocidade de A em relação a B é equivalente à de B em relação a A, pois ambos são sistemas inerciais, portanto não acelerados um em relação ao outro. Na teoria da relatividade especial as diferenças de medida são simétricas.

Resumindo:se de A se observa z em B, de B se observa z em A; e se A observa Z em A, B observa Z em B.

[11] Essa é, por exemplo, a posição de Merleau-Ponty. Ver: Merleau-Ponty, M.

"Einstein et la crise de la raison", pp.246-48.

[12] Para Panofsky, a perspectiva, empregando um conceito de Cassirer, é uma forma simbólica. Traduz para a percepção, assim, o mesmo espaço teórico da física-matemática que se conecta por leis lógicas. O conceito de forma simbólica, porém, necessita de unidades conceituais o espaço, por exemplo que se manifestem de modos diversos. Ora, se isso parece dar certo para a perspectiva e o espaço newtoniano, para saberes modernos essa unidade é fugidia ou mesmo inexistente. Como Hegel (ver nota_2), Cassirer, e na seqüência Panofsky, postulam ainda conceitos filosóficos que abarquem a totalidade do saber. As poucas comparações entre saberes distintos neste artigo procuram mostrar que isso não é possível. Um conceito de razão não soberana e que promova a razão como um processo formal de equipotência dos saberes, como a de Habermas, é algo mais modesto, mas muito mais condizente com a relação entre os saberes nos tempos atuais (ver nota_2).Ver: Panofsky, E. La perspectiva como forma simbólica. Barcelona: Tusquets, 1978, p.26.

[13] Para a relação entre perspectiva e instante de uma ação, ver: Gombrich, E.H.L'Art et l'illusion.Paris:Gallimard, 1971, pp.167-76.

[14] Para uma análise minuciosa das confusões conceituais entre a física moderna e arte moderna, ver: Schapiro, M."Einstein e o cubismo:ciência e arte".

In: A unidade da arte de Picasso. São Paulo:Cosac & Naify,2002.

[15] Argan compreende o cubismo como um processo de assimilação estrutural de espaço e coisa. A analogia entre massa como coisa e campo como espaço é talvez a melhor analogia que se possa fazer entre uma pintura cubista e o universo físico da teoria da relatividade. Mas ainda se trata de uma analogia.

[16] Ver nota_10.

[17] Ver: Merleau-Ponty, M. "Einstein et la crise de la raison",p.246-49.

[18] Ver: Bergson, H. Durée et simultanéité. Paris:PUF,1998,p.195.

[19] Ver: Merleau-Ponty, M. "Einstein et la crise de la raison", p.248.

[20] Merleau-Ponty refere-se à polissemia do termo tempono debate entre Bergson e Einstein, e inclusive como aceita por Einstein. Dessa rica observação, porém, nem Einstein, nem Merleau-Ponty ao comentar o debate, fizeram uso para levar a disputa a um acordo.Ver:Merleau-Ponty,M. "Einstein et la crise de la raison", p.248.

[21] Merleau-Ponty quase a entender que a pluralidade de tempos em Einstein implicaria a inexistência de um único mundo. Ver: Merleau- Ponty,M. "Einstein et la crise de la raison", p.247.

[22] Tratou-se de um confronto sobre a individuação de fenômenos físicos.Para Einstein,uma teoria física deve dar conta de individuar por completo no espaço, no tempo e outras variáveis o fenômeno a que se refere. A física quântica, porém, quanto mais se aperfeiçoava,mais era incapaz de dar conta da dualidade partícula/ onda dos fenômenos subatômicos.Ao contrário, cada vez encontrava equações novas e conteúdos novos que incorporavam a dualidade.

Diante de tal quadro,Bohr propôs o princípio da complementaridade. Seria inerente aos fenômenos subatômicos e aos modos experimentais e matemáticos de abordá-los, mostrarem-se apenas sob um de seus aspectos: corpo ou onda, posição ou movimento. Bohr, propõe, então, que o fenômeno é o mesmo e que é preciso complementar um aspecto com o outro para atingir sua unidade. Como essa unidade é apenas pressuposta, muitas medidas experimentais do mesmo fenômeno eram requeridas para fixar um dos aspectos que se esperava observar. A física quântica, assim, usa métodos estatísticos. A estatística, contudo, nunca foi algo a que Einstein se opôs. Ao contrário, Einstein realizou trabalhos teóricos em mecânica estatística que por si o fariam um dos grandes físicos do século XX, assim como ganhou o prêmio Nobel por sua contribuição à física quântica. O da polêmica não eram os resultados experimentais e as formulações matemáticas cada vez mais apuradas. Isso Einstein evidentemente reconhecia, e aprovava. Reprovava que não se pudesse obter uma teoria que individuasse os fenômenos, diga-se assim, de um golpe. No lugar de aspectos complementares de um fenômeno, Einstein procurava teorias de fenômenos completos.A posição de Bohr prevaleceu. É mais condizente com a física quântica e a seus praticantes maior segurança. Einstein, entretanto, tinha uma concepção da relação entre teoria e realidade que não foi questionada para suas teorias.A questão, a filosófica,pelo menos,continua em aberto.

[23] Ver: Popper, K. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix,1977,p.43- 45.

[24] Para a compreensão einsteiniana da ciência como um pensamento não indutivo, mas como invenção de hipóteses sujeitas à crítica experimental, ver: Einstein,A. "Física e realidade" (1936). In: Escritos de maturidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994,pp.99-100.

[25] Greenberg, C. "A pintura modernista". In: Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Zahar, 1997,p.101.

[26] Idem, p.103.

[27] A posição de Greenberg ao definir a modernidade é,como ele mesmo explicita,kantiana."Por ter sido o primeiro a criticar os próprios meios da crítica, considero Kant o primeiro verdadeiro modernista", diz Greenberg. Sua atenção ao momento interno de um saber em contraste com a menor importância que atribuía ao momento de articulação externa com outros saberes é, de fato, kantiana, se for aceita a interpretação de Habermas da relação de Kant com a modernidade. Para Habermas, "na filosofia kantiana os traços essenciais da época se refletem como num espelho, sem que Kant tivesse conceituado a modernidade enquanto tal", pois "Kant não considera como cisões as diferenciações no interior da razão". Para Greenberg, ver Greenberg, C. "A pintura modernista", p. 101. Para Habermas,ver:Habermas,J.O discurso filosófico da modernidade 2000,pp. 29-30.


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