Negros contando (e fazendo) sua história: alguns significados da trajetória da
Companhia Negra de Revistas (1926)
Conforme tem sido apontado à exaustão por uma extensa bibliografia
especializada, as décadas de 1920 e 1930 representaram momentos decisivos na
formulação e consolidação da imagem do Brasil como uma democracia racial, em
que o fato de o país ser caracterizado pela miscigenação, não sendo apenas
amplamente reconhecido, também se apresentava como motivo de orgulho (cf., p.
ex., Fry, 1982; DaMatta, 1990; Ortiz, 1994; Mota, 1994; Skidmore, 1989;
Schwarcz, 1995; Vianna, 1995, Dantas, 1988). Neste contexto, o samba, a mulata,
a feijoada, o "estilo brasileiro de jogar futebol", a malandragem,
entre outros símbolos, passam, a partir deste período, a ser reconhecidos por
toda uma nação como elementos centrais na definição de sua auto-imagem. Graças
a uma grande quantidade de trabalhos desenvolvidos em áreas como história das
idéias e crítica literária, alguns aspectos do processo de formação e
positivação desta auto-imagem brasileira estão já bem claros, em especial a
atuação de alguns intelectuais, sendo Gilberto Freyre e Mário de Andrade dois
dos exemplos mais marcantes.
Em meio ao processo acima citado, surgiu, em meados de 1926, uma companhia de
teatro que apresentava como peculiaridade a negritude de todos os seus membros.
A Companhia Negra de Revistas, que reunia artistas negros de renome como os
músicos Pixinguinha, Bonfiglio de Oliveira, Sebastião Cirino e De Chocolat ,
obteve grande sucesso em todo o segundo semestre daquele ano no Rio de Janeiro
e em São Paulo, dissolvendo-se no início de 1927, já bastante enfraquecida por
divergências internas. Sua peça de maior sucesso, que permaneceu por um período
mais longo em cartaz, Tudo Preto (de autoria de De Chocolat, o fundador da
companhia), era caracterizada justamente por debater intensamente os temas mais
caros à constituição da identidade nacional naquele momento. Mestiçagem,
influências negras na cultura brasileira, racismo, influências regionais
diferenciadas em um caráter nacional único, todas questões caras a intelectuais
como Gilberto Freyre, eram debatidas por uma companhia negra de teatro perante
um público tão amplo quanto internamente diferenciado, seja em termos étnicos,
como no aspecto socioeconômico.
Em pleno auge dos debates sobre identidade nacional, mestiçagem e temas afins,
como um grupo de negros abordaria tais questões? Que lições o conhecimento
desta abordagem da companhia pôde trazer ao enorme conhecimento deste processo
já tão estudado anteriormente?
Neste contexto, o objetivo central deste artigo é o de estudar, a partir do
surgimento da Companhia Negra de Revistas, desde alguns aspectos de sua
trajetória e de sua recepção, à possível participação de amplos segmentos da
população no debate acerca da identidade nacional nos anos 20. Desta forma, ao
formularem-se estas questões, a finalidade não é apreender, de forma pseudo-
objetiva, o que os negros, como um todo, pensavam a respeito do intenso debate
que se desenvolvia naquele momento. O objetivo seria, antes, exemplificar,
através de um grupo de negros que não se encaixa nos limites da história
intelectual ou literária tradicional, como pessoas que nunca foram
intelectuais, políticos ou membros de grupos de elite podem ter participado
ativamente da construção de uma identidade nacional "mestiça". Assim,
se quer demonstrar que a tradicional caracterização das atividades negras deste
período como meramente "culturais" e "apolíticas" peca por
procurar a "política" apenas em movimentos organizados de massa,
deixando de notar o tom claramente político de algumas destas manifestações
culturais.
O objetivo central deste texto está inteiramente conectado a uma segunda
questão: a da importância do processo de massificação cultural no Rio de
Janeiro, no período. A cultura de massas é aqui pensada não apenas como
veiculadora de idéias que são produzidas totalmente fora de seu domínio, mas
sim como importante fórum de debate. Não se pretende, aqui, debater a natureza
e a função do consumo massificado na sociedade capitalista, ou pensar a
massificação cultural de forma despolitizada, apenas como elemento
democratizador da cultura. Neste texto, o termo "cultura de massas"
indica, antes, o propósito de descrever a ampliação das possibilidades de
veiculação de produtos culturais.
Com isto, pretende-se abordar a diversidade de facetas assumidas pelo processo
de reavaliação da "cultura popular" nesse período, de acordo com o
contexto estudado. Este é um assunto ao qual tem sido dedicado pouco espaço,
com idéias que, formuladas em locais diversos, com finalidades variadas, têm
sido freqüentemente generalizadas para todo o país. Assim, textos de Gilberto
Freyre sobre o Nordeste, ou dos modernistas paulistas sobre seu estado, são
transformados em explicação para todo o movimento de revalorização do
"nacional" e do "popular" ocorrido em escala nacional.
Contudo, esta reavaliação foi revestida de peculiaridades em cada região,
bastando notar a importância, neste processo de construção de símbolos
identitários, da cultura negra urbana no Rio de Janeiro e do cotidiano rural
entre paulistas e gaúchos, por exemplo. A reavaliação que levou uma cultura
negra a uma posição central na definição da identidade carioca, em parte a
mesma cultura temida e desprezada poucos anos antes, permanece como um ponto
obscuro da história do Rio de Janeiro. Por que na Capital Federal estes
símbolos provenientes da cultura negra urbana, e não qualquer outro tipo de
"cultura popular", ocuparam papel tão importante na formação da
identidade da cidade? Através de que meios se deu este processo de reavaliação?
Tendo em vista as questões colocadas, pretende-se conceber este debate sobre
identidades de forma a não colocar intelectuais e políticos fora da sociedade,
tentando pensar os mesmos em interação com seu contexto sociocultural. Talvez
seja possível argumentar que alguns grupos específicos (modernistas paulistas,
regionalistas pernambucanos e políticos estadonovistas etc.) tenham, de fato,
ocupado uma posição de grande importância na consolidação da identidade mestiça
da nação. Mas estes personagens certamente tiveram suas concepções
influenciadas por sua inserção em uma sociedade de massas, no mínimo no nível
da necessidade de compreender o material disponível para veiculação da
ideologia desejada. Tornou-se lugar comum, por exemplo, apontar a música de Ari
Barroso (principalmente as exaltações regionais e nacionais) como prestação de
serviço à ideologia de Getulio Vargas. Caso isto seja verdade, o que se tem
esquecido de observar é que estes gêneros não foram inventados por Ari Barroso
a soldo de Vargas: tais ritmos estavam disponíveis no meio do entretenimento de
massas há muito tempo, e certamente por isto foram aproveitados pelo Estado
Novo.
A identificação de Vargas com o malandro carioca no teatro de revista do
período do Estado Novo (identificação que o ditador soube capitalizar), pode
ser citada como mais um claro momento em que altos escalões da política
nacional buscam seu intento ideológico utilizando o arsenal cultural
disponibilizado pela cultura de massas. Note-se que não se trata de mera
apropriação, para fins político-ideológicos, de idéias apolíticas e inocentes
circulantes no meio cultural; o malandro e o samba-exaltação eram elementos
centrais em um importante debate que se desenrolava, nos meios de comunicação
de massa, a respeito do tema da identidade nacional, pelo menos desde a década
de 1920 (Gomes, 1998). Assim, o que se pretende aqui não é negar a
possibilidade de que alguns intelectuais, políticos e membros da elite possam
ter desempenhado papel destacado na definição da identidade nacional; seria
desejável, antes, apontar o fato de que os debates promovidos nestes círculos
não estavam isolados de discussões semelhantes que ocorriam em um âmbito mais
amplo.
A utilização de uma companhia de teatro de revista como fonte para o
acompanhamento de idéias circulantes no Rio de Janeiro na primeira metade do
século se deve às peculiaridades deste gênero teatral. Em primeiro lugar, era
marcado, fundamentalmente, pela utilização do debate sobre fatos da atualidade
em suas peças, ao lado da exploração da música popular, do humor malicioso. Em
segundo lugar, é uma forma de arte inteiramente inserida na dinâmica da cultura
de massas: as peças chegavam a ser apresentadas em três sessões diárias, e
quando uma peça começava a perder público, saía de cena. Com isso, muitas vezes
as peças entravam e saíam de cartaz com grande velocidade. Bastante
significativa, a este respeito, é a definição, corrente na época, segundo a
qual, quando o bolo de dinheiro proveniente da arrecadação de uma peça diminuía
dois dedos, era a hora de mudar o repertório. Em terceiro lugar, como
decorrência de sua inserção na produção cultural massiva, o teatro de revista
via-se obrigado a recrutar seu público entre as camadas mais variadas da
sociedade. Nesse contexto, a platéia era bastante diversificada, tendo em vista
a grande variedade de preços cobrados para se assistir a uma mesma peça.2
Reunindo as características aqui enumeradas, tem-se um gênero do entretenimento
de massas que debatia os fatos mais comentados do momento perante uma platéia
diversificada, com a permanente necessidade de sucesso. Neste quadro, o intuito
de produzir peças bem-sucedidas em termos de público era alcançado através da
recorrência de temas centrais no debate da época, dentro dos quais poderiam ser
atribuídos sentidos variados por uma platéia bastante heterogênea.3 Se a
entrada mais barata para um espetáculo de teatro musicado podia ser comprada
pelo valor equivalente ao de um exemplar de jornal, é de se esperar que parte
do público fosse recrutado entre uma população que não possuía alto poder
aquisitivo. Por outro lado, o preço muitas vezes maior de uma frisa ou camarote
indica que uma peça de sucesso deveria dar conta desta variedade de público.
Sendo o debate sobre o caráter nacional um tema recorrente nos palcos da
revista carioca, a exaltação do caráter mestiço da nação, nesse contexto,
deveria estar balizada pela necessidade de agradar a todos. Neste sentido, o
resultado era uma clara predominância de ambientes "populares" nos
palcos da revista carioca, que invariavelmente tinha quadros passados em
morros, subúrbios e bairros de forte presença negra, como Saúde e Cidade Nova.
Os tipos eram aqueles que ainda hoje aparecem como característicos destes
espaços: malandros, mulatas, portugueses, policiais, caipiras recém-chegados,
valentões, entre outros. Estes personagens, em especial o malandro e a mulata,
serviam como personificação do país.
Contudo, isto não significa que, ao assistir a uma peça em que malandros e
mulatas representavam um alegre, festivo e mestiço caráter da nação, todos os
espectadores tenham voltado para suas casas convencidos de que esta associação
seria plenamente verdadeira, ficando orgulhosos com esta constatação. Isto
seria negar a possibilidade de autonomia do consumo massificado. A produção
cultural de massas, como nota Michel de Certeau, é necessariamente
reinterpretada pelos consumidores. A dificuldade, no estudo deste fenômeno,
reside no fato de que esta produção "não deixa aos consumidores' um lugar
para marcar o que fazem com os produtos" (Certeau, 1998:39). O fato de
estes tipos consagrados surgirem como símbolos nacionais não apenas nas peças
do período, mas em inúmeras outras fontes, com inegável recorrência até os dias
de hoje, não impede que este repertório comum de símbolos permita
interpretações múltiplas. Uma peça deste gênero poderia apenas divertir
espectadores que conhecessem dezenas de malandros e mulatas de carne e osso, e
que identificariam nos personagens da peça caricaturas divertidas de seus
vizinhos e conhecidos. Outros espectadores, eventualmente dotados de
preconceitos raciais, poderiam, mesmo concordando com o caráter
"típico" de tais personagens, ter uma postura crítica sobre sua
importância na cultura brasileira, concordando com o quadro desenhado, mas
deplorando tal situação. Cenas deste tipo poderiam ainda reforçar ou desmentir
crenças desenvolvidas anteriormente pelos espectadores sobre o caráter
nacional.
Há, certamente, outras possibilidades de leitura, mas o que se pretende sugerir
é que debates sobre temas como caráter nacional e mestiçagem estavam em
discussão em um ambiente muito mais amplo do que em apenas alguns seletos
círculos intelectuais. A reavaliação da idéia de Brasil não foi obra de poucos:
estava sendo debatida em um ambiente típico da cultura de massas, como o teatro
de revista. Obviamente, desta idéia, desenvolvida em dezenas de peças do
período, poderiam ser extraídos os mais variados sentidos. A concordância sobre
o caráter "mestiço" da nação poderia gerar simpatia, revolta, ou mero
divertimento para o público do teatro de revista dos anos 1920. Mas não se pode
negar a presença deste debate em um nível mais amplo que o tradicionalmente
apontado pela bibliografia.
*
Neste contexto, a trajetória da Companhia Negra de Revistas, no segundo
semestre de 1926, salta aos olhos como objeto singular para um estudo do
período. Esta companhia, fundada por Jaime Silva, cenógrafo português, e pelo
compositor De Chocolat, fazia questão de ressaltar o caráter negro de seus
componentes a partir de seu próprio nome, assim como da denominação de sua
primeira e mais importante peça: Tudo Preto, de autoria de De Chocolat. Em
alguns meses de duração, a companhia obteve grande sucesso no Rio de Janeiro e
em São Paulo, sublinhando a relação entre cultura negra e caráter nacional.
Neste contexto, compreender a recepção dessa companhia entre o público
configura-se como uma excelente janela para o entendimento de alguns sentidos
do debate sobre identidades nacionais e raciais nas duas maiores cidades
brasileiras nos anos 1920, inclusive por permitir ao estudioso sondar a
possibilidade de recepções diferenciadas nas duas cidades.
As poucas linhas dedicadas ao assunto na bibliografia sobre teatro de revista e
música popular não são de muita valia nesta tarefa, uma vez que tendem a
ressaltar alguns comentários preconceituosos da imprensa da época, indicando
que a Companhia teria triunfado brilhantemente apenas devido a seu mérito,
vencendo os preconceitos de toda uma sociedade. Contudo, os indícios
disponíveis sugerem uma situação mais ambígua. Em primeiro lugar, não haveria
porque existir tamanho estranhamento com a presença de negros no palco, visto
que os artistas da Companhia Negra de Revistas, inclusive os principais, já
eram conhecidos do público há tempos, devido às suas atuações em outras
companhias. No próprio ano de 1926, a Companhia de Burletas e Revistas do
Teatro São José, grande paradigma do teatro musicado naquele momento, ostentava
36 girls (nova denominação das coristas), ao lado de outras dez, que eram
denominadas especificamente de black-girls (Nunes, 1956, v. 3:44). Sendo esta
uma seção das companhias voltada basicamente para atrair a platéia masculina ao
teatro através do apelo feminino, pode-se notar que a presença de mulheres
negras em um palco não era vista como repulsiva à maioria dos espectadores. Os
músicos, como Bonfiglio de Oliveira, Pixinguinha e Sebastião Cirino já
desfrutavam de ampla reputação no meio cultural do período. Em 1922 e 1923, os
cariocas haviam acorrido em massa ao Teatro Lírico, para assistir à companhia
francesa Ba-Ta-Clan, que incluía diversos artistas negros norte-americanos em
sua Revista Negra. Tal fato deixou impressões duradouras:
A Revista Negra' e suas extravagâncias. Um espetáculo do Século XX
ultracivilizado. Esses artistas já trabalharam, há dois anos, em
nosso Teatro Lírico, fazendo parte da Companhia Ba-Ta-Clan' [em uma
foto, dois artistas negros] [. ]. Imagine-se uma revista,
representada por atores negros e vestidos de cores berrantes, com uma
orquestra de manicômio no cenário, a tocar one-step', acompanhado de
um vozerio infernal, entre decorações estilizadas que oferecem
perspectivas de arranha-céus' vistas por olhos de bêbado, ou cabanas
tropicais à luz de uma lua absurda; acrescentem a isso muitas
contorções de macaco, desnudezes de ébano maquilhadas,
caricaturalmente, um canto nostálgico de emigrante, todos os
contrastes, todas as incoerências . e não se terá ainda feito uma
idéia exata.
Mas a gente ri e aplaude; os artistas riem; todo o mundo ri Século
XX, Paris, ultracivilização. Porque não se trata de um aspecto
selvagem, segundo poder-se-ia supor e segundo dão a entender reclames
hiperbólicos. A Revista Negra' possui requintes sutis e sua
selvageria passou pelo cadinho colonizador, falando inglês; os
comediantes que tomam parte nela reduzem-se a uns indivíduos
corretos, de pele escura, que ensaiam conscienciosamente seus
números; seus atavios extravagantes estão de acordo com a mais
moderna estética; o conjunto possui uma coesão, uma coesão adrede
desarticulada, tal como a arte futurista', a troupe', o cenário, os
instrumentos filarmônicos, enfim, vêm de Nova York, cidade do
progresso mecânico e palpável ("O Teatro em Paris", A
Notícia, 8/1/1926).
Toda a complexidade advinda da forte presença de elementos culturais
identificados aos negros no cenário da massificação cultural emerge nesta
matéria. O primeiro parágrafo conecta, claramente, a manifestação descrita à
barbárie, recorrendo a associações já bastante conhecidas. Contudo, o segundo
parágrafo do texto complexifica sensivelmente o cenário, indicando (ainda que
com uma ponta de ironia) a associação destas manifestações com a modernidade:
"Século XX, Paris, ultracivilização". Emerge, então, de modo claro, a
ambigüidade com que foi recebida a intensificação da presença, na cultura de
massas, de elementos então identificados à cultura negra. De um lado, tem-se a
inspiração parisiense, já que uma companhia francesa de revistas, como era a
Ba-Ta-Clan, teria apresentado ao público carioca um novo modismo existente na
França: o sucesso de produtos culturais associados aos negros, sucesso este que
incluía de estátuas africanas ao jazz, passando pela dançarina norte-americana
Josephine Baker (Sevcenko, 1992:277-99). Por outro lado, se isto pudesse soar,
na França, como mero apelo ao exótico, no Brasil, um país que há tempos
procurava resolver a questão racial, e onde negros não eram estrangeiros, mas
conterrâneos muitas vezes temidos ou desprezados, a questão adquiriu um outro
sentido. Por um lado, a influência francesa permitia a criação de uma atmosfera
mais favorável a um aumento da difusão de elementos culturais negros. Mas, por
outro lado, esta novidade se chocava com idéias recorrentes de inferioridade
racial. Conciliar esta rejeição com uma nova postura, mais receptiva (ou pelo
menos condescendente), não parecia ser tarefa fácil para o público de elite.
Contudo, a percepção de que havia, na própria Capital Federal, um grande
repertório desta cultura negra agora valorizada em Paris, certamente contribuiu
para formar uma atmosfera mais favorável à associação entre cultura negra e
caráter nacional, fornecida pela Companhia Negra de Revistas.
Ainda que este fenômeno comportasse uma grande variedade de sentidos, muitas
vezes ambíguos, parece claro o estabelecimento, no Brasil dos anos 1920, sob a
influência parisiense, de um redimensionamento da cultura negra, ainda que,
para muitos, sob a marca do exótico. Pode-se notar a complexidade destas
associações entre cosmopolitismo, modernidade, e busca das raízes nacionais no
âmbito do entretenimento massificado no programa de uma festa de revéillon no
Teatro Lírico:
Danças e Canções, nº 1: Extra, pela notável soprano lírico Sra. Inez
Mendez (da Companhia Lírica Italiana); nº 2: clássica danças
egípcias, pela distinta senhorita Mercedes Moratilia; nº 3:
Caracteristic Dances and Songs. Brasil: a) Abigail Maia, a Rainha da
Canção Brasileira no seu repertório. b) Otília Amorim e Pedro Dias,
em um número sensacional de maxixe. c) Margot e Milton, em um
cateretê nortista, de sua original criação. Parte Internacional
divesos artistas apresentando vários países: França, Itália,
Inglaterra, Espanha, Síria, Holanda e Portugal. nº 4: Modern Dances
bailado argentino por La Norma e Wanda di Leo. Danças Norte-
Americanas e Valsa Boston, figurada pelo professor Mário Fontes e
Miss Florence Elliot. Danças Beduínas e Cantos do Deserto, conduzidos
pelo professor Raschid Safadi.
Representação da peça de costumes brasileiros de Artur Azevedo, Uma
Véspera de Reis na Bahia. Grande comparsaria, rancho autêntico de
pastorinhas, com mise-en-scéne de Eduardo Pereira. Batalha de confete
e serpentinas. Grande orquestra, com regência de Rafael Romano. No
hall, um quarteto de clarins e a excelente banda de música do trio de
guerra 245" (Palcos e Telas, 1/1/1920).
A programação montada pelo empresário José Loureiro, para comemorar a passagem
de 1919 para 1920, é bastante útil por vários motivos. Primeiro, torna
virtualmente insustentável a tradicional compartimentalização construída entre
"cultura de elite" e "cultura popular" para este período. O
programa contempla praticamente todos os gostos possíveis, a preços igualmente
variados: frisas, 40 mil-réis; camarotes, 35 mil; poltronas, 6 mil; varandas, 6
mil; cadeiras, 4 mil; balcões, 4 mil; galerias numeradas, 2,5 mil; galerias sem
número, 2 mil. A distância do preço mais caro para o mais barato, e o número de
opções intermediárias, permite supor uma audiência bastante variada, assistindo
a um programa que tinha de tudo um pouco. Abria com um espetáculo legitimado
pelos padrões eruditos uma soprano lírica italiana para seguir com o
exotismo de uma "dança egípcia", e chegar a uma parte de
"characteristic dances and songs". Esta tinha início com três danças
representando o Brasil, incluindo um maxixe e um cateretê, uma dança oriunda da
cultura de massas urbana, e outra simbolizando o fascínio da cultura rural.
Após as danças que representavam outros países, entravam as "modern
dances", representadas pelos Estados Unidos, que aparentemente ocupavam,
no imaginário do lazer massificado no Brasil, o mesmo papel que lhes foi
atribuído na França: o de simbolizar a modernidade e o cosmopolitismo através
de seus ritmos bastante adequados à dança.4Após isto, entrava em cena um
espetáculo que recorria a um repertório de símbolos bastante diverso: as
"Danças Beduínas e Cantos do Deserto, conduzidos pelo professor Raschid
Safadi", que, com seu exotismo, tinham muito do imaginário circense,
buscando, através de seus espetáculos e melodramas, levar o espectador para
lugares distantes.5
Após isto, vinham peças leves, apresentação de um "rancho de
pastorinhas", trazendo a inevitável referência carnavalesca das festas de
revéillon, e a música, igualmente diversificada, dividida em uma orquestra, um
quarteto de clarins e uma banda militar, típico reduto de boa parte dos chorões
cariocas. Tem-se, aqui, um programa que retrata, de modo transparente, alguns
elementos centrais da massificação cultural dos anos do pós-guerra, em especial
no que tange ao entretenimento. As referências cosmopolitas, que traziam um
forte apelo "moderno" (basta lembrar as "modern dances")
vinham invariavelmente intercaladas com atrações "típicas" ou mesmo
exóticas, sem que se tivesse de optar por uma coisa ou outra. Os dois aspectos,
o moderno-cosmopolita e o típico-exótico não devem ser vistos como competidores
ou contraditórios, e sim como uma expressão particular da modernidade no
contexto da massificação cultural do pós-guerra. Neste contexto, localizar as
raízes da nacionalidade na cultura popular não parecia ser visto como menos
moderno que dançar jazz ou freqüentar um café dançante.6 A construção realizada
por historiadores e cientistas sociais para os anos 1920, como um período
marcado, de um lado, por uma exibição afetada de uma cultura de elite
afrancesada, e, de outro, por uma cultura popular reprimida, não parece ter
sido compartilhada pelos cidadãos comuns do pós-guerra, que se divertiam com a
soprano lírico Ignez Mendez, mas também com o rancho de pastorinhas, passando
pelas danças beduínas do professor Raschid. Não parecia haver necessidade de
escolha entre o charleston americano, a valsa francesa e o choro nacional.
Estes componentes da modernidade carioca do pós-guerra misturavam-se
diariamente nos palcos da Capital Federal.
*
Neste contexto, é possível situar o aparecimento da Companhia Negra de
Revistas, que demonstrava, em primeiro lugar, um inegável tino comercial.
Afinal, se a mestiçagem era exaltada no teatro de revista, perante um grupo de
espectadores que ia assistir a uma "revista negra", encenada por
franceses, por que não tentar um fenômeno semelhante com material nacional?
Neste sentido, não é sem importância o fato de que a preparação e a estréia da
companhia ocorreram no exato momento em que a Ba-Ta-Clan se exibia no Teatro
Lírico, na Capital Federal, o que certamente serviu como encorajamento para a
formação da Companhia Negra de Revistas. O próprio De Chocolat certamente sabia
o que estava fazendo ao montar a Companhia Negra de Revistas. Afinal, era um
cançonetista com duas décadas de experiência no entretenimento de massas, tendo
tido, inclusive, a oportunidade de ver, com seus próprios olhos, o sucesso, na
Paris do pós-guerra, de elementos da cultura negra. Provavelmente, tenha
pensado em explorar, na Capital Federal de 1926, uma demanda que havia
percebido, na Paris de 1919, por cultura negra, e em especial por espetáculos
com muita música e dança. Em breve, o sucesso de Tudo Preto mostraria que este
raciocínio estava correto.
Dentro do pequeno espaço dedicado a Tudo Preto na bibliografia, comumente
encontra-se uma narrativa na qual o heroísmo negro vencia o preconceito racial.
Aparentemente, esta tendência nasceu com o crítico teatral Mário Nunes, em um
livro, 40 Anos de Teatro, publicado em 1956, que é a fonte principal para
muitos estudos sobre teatro, e que em teoria reúne suas críticas escritas entre
os anos de 1913 e 1934. No livro, encontra-se a seguinte referência a Tudo
Preto: "Duas vezes repleto por um público que queria divertir-se com o
grotesco e o ridículo. Enganou-se: assistiu a espetáculo normal, deveras
interessante". Contudo, aqui se verifica a construção, por parte do
crítico, de uma memória histórica para este evento, pois sua crítica original,
publicada no Jornal do Brasil, enfatiza aspectos diferentes da peça. Em meio a
uma longa e elogiosa resenha de Tudo Preto, o crítico comentava:
Certo o numeroso público que afluiu ao teatro cuidava de divertir-se
com o ridículo e o grotesco de tão estranho elenco, mas depressa se
convenceu de que ia assistir a um espetáculo interessante, pela
maneira correta por que ia ele se desenrolando, com alguns ditos de
espírito da comperage, números de canto e dança bem executados e
marcados, e até mesmo revelação de pendores artísticos que deixavam a
melhor das impressões" (Jornal do Brasil, 1/8/1926).
Entretanto, é duvidoso o fato de que se deva levar a sério tal afirmação a
respeito de uma predisposição do público a achar a peça grotesca. Após
enfileirar elogios à peça, o crítico torna a comentar tal possibilidade:
"Se houve quem fosse, ontem, ao Rialto, pensando que ia ter larga
oportunidade de chacotear, muito outro teria sido o ânimo com que saiu."
Aqui a situação muda bastante: Mário Nunes refere-se apenas à hipótese de
alguém, e não o público como um todo, ter comparecido com a intenção de se
divertir com o grotesco da peça. E mesmo assim, o tom da afirmativa sugere
tratar-se mais de uma peça de retórica do que a convicção de que tal fato tenha
efetivamente se dado. Com efeito, outros críticos fizeram coro com Mário Nunes,
e elogiaram bastante a peça. NoJornal do Commercio, o respeitado crítico João
Luso comentava a peça:
Apresentou-se ontem ao público a Companhia Negra organizada pelos
Srs. Jaime Silva e Chocolate. [...]
A troupe mostrou-se bem ensaiada, disciplinada. Com o timbre especial
da raça, há vozes interessantes; e os coros, com a orquestra
ardorosamente dirigida pelo Sr. Pixinguinha, são de agradável efeito.
Entre os artistas, distinguiram-se as Sras. Jandira Aimoré, Djanira
Flora, Dalva Espíndola, Rosa Negra e a barbadiana Miss Mons que se
exibiu numa curiosa dança africana, trajada de pele vermelha e os
Srs. Chocolat, Mingote, Viana e Flores.
Tudo Preto tem lindos cenários de todas as cores e da lavra do Sr.
Jaime Silva.
A sala do Rialto estava absolutamente cheia, fazendo parte da
assistência, segundo nos informaram, parentes de todos os artistas
L." (Jornal do Commercio, 1/8/1926)
Confirmando a boa recepção da estréia, a peça fez grande sucesso: estreando a
31 de julho de 1926, permanece em cartaz até 1º de setembro (uma permanência
longa em cartaz, para os padrões da revista), substituída por Preto e Branco,
de Waldomiro di Roma, para voltar três dias depois e ficar em cartaz até o dia
19 do mesmo mês, quando a Companhia sai em excursão a São Paulo. Após um
período na capital paulista, a companhia se dissolve, aparentemente por
divergências internas. Com este quadro, não parece se confirmar a presença de
um preconceito violento, generalizado e arraigado em todos os setores do
público: pelo contrário, a peça parece ter agradado a muitos. Gilberto Freyre
esteve presente à peça, assim como o presidente de São Paulo, Carlos de Campos.
A imprensa negra paulistana não deixou de aludir ao fenômeno como um triunfo do
negro brasileiro.7 Em São Paulo, a companhia liderada por De Chocolat obtém
destaque na grande imprensa, e Tudo Preto recebe uma crítica extremamente
favorável, dando ao teatro de revista carioca um espaço poucas vezes visto na
capital paulista.8
Se essa recepção à iniciativa da Companhia Negra de Revistas indica a
possibilidade de que um tipo de caracterização dos negros fosse algo muitas
vezes encarado de forma positiva no ambiente do entretenimento massificado do
Rio de Janeiro dos anos 1920, o conteúdo da peça em muito contribui para
reforçar esta impressão. Do início ao fim do texto, De Chocolat parece
empenhado em apontar a importância do caráter negro e da harmonia racial no
caráter nacional. A peça é aberta com um coro de mulheres negras, que,
despertando a admiração dos personagens Patrício e Benedito, os leva a decidir
fundar uma companhia só com "gente da raça" para mostrar a
"nossa brasilidade", já que havia um empreendimento semelhante em
Paris. É possível imaginar que esta referência a Paris, logo na primeira cena,
tivesse sobre muitos espectadores o efeito de afastar qualquer suspeita de que
a peça promovesse o confronto racial, pois remetia ao tranquilizador e já
citado sucesso da cultura negra na Paris do pós-guerra. A associação dos negros
com a brasilidade também era um elemento forte, não apenas nesta peça, mas que
aparecia em diversos meios e momentos no contexto cultural dos anos 1920.
Sintomaticamente, na mesma cena Benedito afirma que "o preto é quem está
na moda. O próprio branco brasileiro, despido de preconceitos, reconhece isto e
nos adora". Aqui é explicitada a idéia de uma convivência pacífica entre
brancos e negros, idéia esta que posteriormente será associada por muitos à
noção de dominação ideológica de uma elite branca sobre negros excluídos. Os
próprios homens negros "de verdadeiro valor", que são citados na
peça, ajudam a confirmar esta concepção: "Henrique Dias, Cruz e Sousa,
André Rebouças, José do Patrocínio, Luís Gama, entre outros". Basta
lembrar que, nos cânones da história oficial, Henrique Dias foi o negro que,
junto com o índio Filipe Camarão e o branco André Vidal de Negreiros, teria
liderado a expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654, em um episódio
recorrente para exaltar a idéia das três raças fundadoras de uma nacionalidade
mestiça.
Após isto, Benedito aponta o lugar em que deve ser buscada a originalidade da
peça: "no norte, na minha saudosa Bahia. Os nossos avós, quando vieram da
África, construíram as primeiras palhoças na Bahia, e foram delas que saíram as
primeiras mulatas e negras brasileiras". Ao que se segue uma
"baiana", cantando uma música com letra cheia de dengues, no mesmo
estilo das músicas compostas por Ari Barroso, em especial para Carmem Miranda,
nos anos 30.9 Em apoio a esta cena, canta-se "Cristo nasceu na
Bahia", composição de Sebastião Cirino e Duque, que se tornaria, a partir
de então, um clássico da música popular:
"Dizem que Cristo nasceu em Belém
A história se enganou
Cristo nasceu na Bahia, meu bem
E o baiano criou
A Bahia tem vatapá
A Bahia tem caruru
Moqueca e arroz de aussá
Laranja, manga e caju
Cristo nasceu na Bahia, meu bem
Isto sempre hei de crer
Bahia é terra santa, também
Baiano santo há de ser."10
Patrício nota, então, que não conhecia esta naturalidade de Cristo, observando
com entusiasmo: "sim senhor! Não conhecia essa preciosidade! Também,
nascido e criado em São Paulo!". Ao que Benedito acrescenta: "pudera,
vivendo quase no meio estrangeiro, não tiveste tempo nem ocasião de conhecer o
que deverias!". Em seguida, canta uma modinha, "à nossa alma, à
sensibilidade da nossa raça!", para que Patrício não a confunda com
"romanzas amacarronadas". Nota-se, então, que os dois personagens
principais simbolizam dois brasis diferentes. O baiano Benedito, não por acaso
tendo o nome do santo de grande popularidade entre a comunidade negra, é visto
como verdadeira reserva de uma cultura negra apontada como autêntica, e fonte
da mais pura brasilidade. Parecia, aqui, consolidada a associação tão comum
ainda nos dias de hoje da Bahia com este imaginário da pureza da cultura
negra. Por outro lado, o paulista Patrício desconhece as raízes do que é
identificado como "cultura negra", sendo, por isto, caracterizado
quase como estrangeiro, em especial por viver em São Paulo.11 A Bahia (por
sinal, terra natal de De Chocolat) simbolizaria um "Brasil negro",
enquanto São Paulo seria a "Europa no Brasil". No caso, é fácil notar
em qual destas duas opções se localizaria a brasilidade verdadeira.
Além da boa convivência entre as raças, a brasilidade seria, também, marcada,
na visão da peça, por sua associação com os negros. Uma vedete, descrita no
texto como "cançonetista francesa numa luxuosa toilette, ornada de
plumas", canta uma canção francesa que a identifica como "Mistinguett
brasileira".12 Logo, para abrasileirar uma atriz francesa, De Chocolat não
a faz cantar um samba ou usar roupas mais comuns no Brasil. A cor negra de sua
pele é suficiente para lhe dar "a graça dos brasileiros". Os símbolos
do que é "ser negro" também soam bastante familiares. Um casamento
inter-racial é salvo devido à utilização de rezas especiais, pela esposa negra,
para impedir que seu marido volte para Portugal. A modinha é apresentada como
"refletindo toda a alma sentimental e nostálgica da nossa raça". Uma
preta africana canta um batuque. Um outro personagem exalta a feijoada.
Com tudo isto, a primeira reação de um leitor atual de Tudo Preto poderia ser a
de pensar que a Companhia Negra de Revistas teria feito uma peça apelando
apenas para o lado exótico da "gente da raça", com o intuito de fazer
sucesso em uma sociedade preconceituosa. Contudo, este não parece ser o caminho
mais frutífero para explicar as semelhanças entre a visão de raça e nação de
uma peça que se autodenomina uma "revista negra", e o tratamento do
mesmo tema dado por autores que atualmente são rotulados como conservadores,
tal como Gilberto Freyre. Afinal, o público do teatro de revista era bastante
diversificado, e uma peça certamente não ficaria tanto tempo em cartaz fazendo
sucesso apenas entre brancos que queriam rir do exotismo de uma manifestação
negra. Além disto, o Teatro Rialto, onde era encenada a peça, não se
caracterizava como território de elite. Pode-se, ainda, lembrar da contínua
exaltação à peça por parte da imprensa negra paulistana. O fato é que, embora
não seja possível afirmar nada em termos conclusivos, os poucos indícios
sugerem que a peça foi aceita por amplos setores, não tendo desagradado
particularmente à comunidade negra.
Talvez um crítico atual de Tudo Preto ressaltasse, ainda, algumas passagens
sobre os negros que dificilmente seriam tranqüilamente aceitas em fins do
século XX. Pode-se lembrar alguns momentos que chegam a constranger o leitor
atual do texto da peça, devido ao seu gosto no mínimo duvidoso para os padrões
posteriores. Um exemplo se dá quando Patrício e Benedito observam que uma peça
representada apenas com atores negros daria grande lucro à Light, pois a
iluminação teria de ser muito mais forte. Contudo, isto está ligado à dinâmica
do teatro de revista, inteiramente inserida na cultura de massas. Por um lado,
era necessário satisfazer, ao menos de passagem, espectadores menos propensos a
uma aberta exaltação da "gente da raça". Por outro, a cena poderia
apenas ressaltar a "escuridão" como peculiaridade dos negros, ainda
que isso soe estranho atualmente. De qualquer forma, não se pode correr o risco
do anacronismo e postular, a priori, que tal passagem de Tudo Preto soasse mal
para os simpatizantes dos negros. Enfim, deve-se sempre ter em mente o caráter
ambíguo destas peças, já que, longe de ser "teatro de tese", o teatro
de revista visava dar aos temas um tratamento que pudesse satisfazer o maior
número possível de gostos. Possivelmente, esta cena seja mais um exemplo desta
característica.
Por outro lado, o amplo sucesso de Tudo Preto poderia nos levar a fazer uma
interpretação que seguisse por um caminho diverso: a de que esta idéia de
"Brasil mestiço", hoje tida como mascaradora do racismo brasileiro,
tenha, em um outro contexto histórico, sido popular entre os negros, incluindo
os que militavam abertamente contra o racismo. Em um período próximo da ampla
difusão de idéias como branqueamento e racismo científico, e no qual a imprensa
negra paulista noticiava seguidamente os espancamentos sofridos por não-brancos
nos Estados Unidos e denunciava a violência das relações raciais nos EUA,13 a
idéia de democracia racial como peculiaridade nacional não parece ter soado
como desprezível, pelo menos para parte da comunidade negra. Tudo Preto é
apenas um indício neste sentido, mas talvez seja interessante para se começar a
considerar a hipótese de que negros tenham lutado por uma concepção mestiça de
Brasil, na qual não haveria problemas raciais, e o conceito de brasilidade
estaria intimamente associado com a "gente da raça". Isto indicaria
que a idéia de democracia racial, ainda que possa ter na prática um efeito
mascarador da violência das relações raciais no Brasil, teve vários sentidos no
momento de sua formulação, longe de ter sido meramente um estratagema de grupos
de elite com objetivos de dominação. No momento estudado, a idéia de
"Brasil mestiço" poderia ser, em parte, uma reivindicação orgulhosa
da contribuição do negro para a formação da nação. Vale lembrar, por exemplo,
que a exaltação a Henrique Dias como fonte de orgulho negro não deixa de seguir
uma tradição colonial, quando os regimentos negros de milícia se
autodenominavam henriques, em referência ao personagem citado (Schwartz, 1999:
414).
Vale a pena, ainda, ressaltar que em alguns momentos da peça se nota uma certa
dissonância entre a proposta de identidade étnica e nacional de Tudo Preto, e a
identidade nacional tal qual descrita por autores como Gilberto Freyre, que
buscam, em um passado distante, a contribuição do negro para a cultura
brasileira. Um exemplo está em um quadro da peça no qual aparece um almofadinha
negro. Os almofadinhas eram um tipo freqüentemente ridicularizado no teatro de
revista, em função de sua elegância afetada. Em Tudo Preto, o fato se repete (é
descrito no texto como "ridículo e metido a rico"), mas De Chocolat
faz questão de ressaltar que se trata de um almofadinha negro (o personagem não
tem nome, mas é designado apenas como "preto elegante"), que utiliza
muitas gírias em inglês e está acompanhado por black girls vestidas de calças e
luvas. Aqui, é necessário levar em conta o fato de, na primeira cena, Patrício
afirmar o objetivo da peça como sendo o de demonstrar que os negros não são
apenas serviçais. Tendo-se em mente este propósito, declarado na primeira cena
da peça, este personagem ganha um sentido claro: reivindicar para a raça negra
não apenas as origens folclóricas de um caráter nacional, mas também o desfrute
de uma urbanidade civilizada, mesmo que sob o risco da afetação (ainda que,
dentro da ambigüidade que caracteriza o teatro de revista, esta cena pudesse
ser lida como a comprovação de que os negros tendem a simplesmente imitar os
brancos). Não obstante tal apelo, os personagens negros do teatro de revista
continuaram a ser malandros de morro, domésticas e outros personagens
"típicos". Mas, não deixa de ser sugestivo que, em uma "peça
negra", se tente mostrar que os negros possam representar não apenas as
raízes da nacionalidade, como também o seu presente.
Outro dado a ser ressaltado em Tudo Preto é a escolha realizada pelo autor
entre as manifestações culturais negras que poderiam ser apresentadas em um
palco de teatro de revista, perante um público amplo. Afinal, são privilegiados
alguns símbolos específicos da cultura negra, como a Mãe Negra, alguns gêneros
musicais, a mistura religiosa e a feijoada, enquanto outros, por exemplo a
capoeira, são esquecidos. Muito se escreveu visando explicar, através de uma
genérica "valorização da mestiçagem", ocorrida entre os anos 1920 e
1930, a utilização de produtos da "cultura negra" ou da "cultura
popular urbana" na constituição de uma idéia mestiça de caráter nacional
(um exemplo recente de grande repercussão é Vianna, 1995). Contudo, noções como
"cultura negra" ou "cultura popular urbana" não podem ser
tratadas como uma totalidade, visto que comportam um grande número de
manifestações culturais, algumas das quais foram elevadas ao status de símbolo
nacional, enquanto outras não tiveram a mesma sorte. A idéia de "ser
negro" em Tudo Preto não parece associada a manifestações como a capoeira,
e seu resgate do passado não inclui, de forma alguma, o carnaval popular. Os
caminhos que levaram à adoção de alguns símbolos "mestiços" como
parte de um "caráter nacional", enquanto outros eram pouco ou nada
celebrados, são um tema que ainda requer investigação. Contudo, é irresistível
a suspeita de que, ao ser exaltada como "cultura nacional", essa
"cultura negra" teria sido depurada de suas manifestações, que
poderiam soar como ameaçadoras a um público menos propenso a aceitar a idéia de
que os negros simbolizariam o caráter nacional. Assim, esta "cultura negra
urbana" teria sido previamente polida, a fim de se tornar mais
tranquilizadora. De qualquer forma, vale registrar que explicações centradas em
uma ampla e genérica "valorização da cultura negra", a fim de
entender a ascensão do samba ou da mulata ao papel de símbolos nacionais, nunca
poderão dar conta de explicar os métodos que levaram à seleção de uma
"cultura negra urbana" específica como "cultura nacional".
Por que o samba antes que a capoeira? Por que o malandro sambista antes que o
malandro de navalha? São questões ainda praticamente virgens na pesquisa
acadêmica.
Outro dado interessante é a apoteose da revista. As apoteoses, nas convenções
do teatro de revista, funcionavam como um grand finale para as peças, quando a
companhia inteira voltava ao palco para dançar ao som de alguma música,
geralmente em exaltação a algum tema. E a apoteose de Tudo Preto,
lamentavelmente não descrita no texto da peça, denomina-se "Mãe
Negra". O mais provável é que a peça reivindicasse o reconhecimento da
contribuição da raça negra na formação do Brasil, simbolizada na Mãe Negra.
Hoje em dia, tal símbolo remete diretamente a Gilberto Freyre, portanto à idéia
de uma ideologia branca. Mas, no contexto da década de 1920, esta figura assume
outra conotação: tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, grupos negros
lutavam para conseguir erigir monumentos em homenagem à Mãe Negra, assunto
amplamente comentado na Capital Federal quando da encenação de Tudo Preto. A
idéia havia sido lançada por Cândido Campos, no jornal A Notícia, alguns meses
antes, e era intensamente debatida na imprensa, sendo a construção do monumento
defendida por cronistas como Benjamin Costallat, em uma passagem que inclusive
ajuda a iluminar a tradicional presença dos negros nos palcos da revista
carioca antes da encenação de Tudo Preto: "Não devemos apenas querer bem
ao negro, nem das negras fazer estrelas de teatro. O negro merece que lhe
levantemos o monumento da gratidão brasileira" (A Notícia, 24/4/1926).
Esses movimentos acabaram por tornar-se bandeiras aglutinadoras de grupos
negros do período. Com isto, é possível imaginar que a apoteose pudesse ser
fundamentalmente uma tomada de posição política a favor do movimento pela
construção do monumento à Mãe Negra, mas sem deixar de lado a exaltação a uma
brasilidade fortemente associada à cultura negra.
Como já foi mencionado, as críticas não apontam uma grande quebra no quadro
normal do teatro de revista carioca devido a Tudo Preto. Musicalmente, a peça
agradou em cheio, tendo lançado um dos maiores clássicos da década, a citada
"Cristo nasceu na Bahia". Segundo Hermano Vianna (1995:25), esta peça
teria originado a vontade de Gilberto Freyre de conhecer melhor a música de
Pixinguinha. Em geral, a imprensa da época reteve também a singularidade do
fato de uma apresentação exclusivamente negra em um palco. Isto apontava,
também, um triunfo do próprio esquema publicitário da Companhia Negra de
Revistas, que freqüentemente ressaltou seu ineditismo nos anúncios de jornal.
Dois dias antes da estréia, os jornais da Capital Federal traziam um anúncio da
Companhia que conclamava o público a assistir "o mais original dos
espetáculos até hoje visto no Brasil: Companhia Negra de Revistas, no Teatro
Rialto". O texto fala, ainda, em "grande procura por bilhetes de
entrada". Na véspera da estréia, o anúncio é mais detalhado, falando em
"32 figuras de elenco! Uma bailarina clássica! Uma excêntrica! 18
Nigrolemas Girls!". A Companhia Negra de Revistas não pareceu desprezar
nenhuma das formas de atrair o público. Entre as estratégias, pode-se notar a
exaltação das peculiaridades da "gente da raça" e da brasilidade,
assim como o enquadramento de Tudo Preto em um quadro no qual o elemento
exótico tinha forte apelo. Neste sentido, a valorização da cultura negra em
parte era legitimada pelo fenômeno análogo que ocorria em Paris, e que fazia
sucesso no Brasil naquele mesmo momento através de companhias de revista
francesas. Este fenômeno em território nacional, certamente teve uma
importância muito maior que a de uma moda passageira, modificando toda a auto-
imagem do Brasil. Aqui, nota-se uma importante peculiaridade do desenvolvimento
do debate sobre mestiçagem e identidade nacional no âmbito da cultura de
massas: a recorrente referência à França, neste caso visando emprestar o
prestígio da companhia francesa Ba-Ta-Clan ao empreendimento da Companhia Negra
de Revistas.
E não há dúvidas de que, tanto a Companhia Negra de Revistas, quanto grande
parte do público estava ciente deste sucesso das produções culturais vistas
como negras na Paris do pós-guerra, e o próprio teatro de revista oferece
exemplos neste sentido. Outro deles seria através de uma companhia sobre a qual
ainda se sabe muito pouco, a Companhia Mulata Brasileira. Em uma entrevista com
uma de suas estrelas, Jaci Aimoré (definida pelo repórter como "mulatinha
dengosa, de passo miudinho e muito pernóstica"), fica ainda mais claro a
consciência deste contexto entre os artistas. A artista declara ao repórter sua
vontade de "ir para fora". Convidada a especificar melhor este seu
desejo, Jaci Aimoré afirma: "para o estrangeiro, para a Argentina, para a
Europa. Dizem que por lá gostam muito de mulatas, por isso quero ver se é
verdade" (O Globo, 17/12/1930). Assim, este grupo de negros aqui estudado,
provavelmente estava muito consciente do que fazia ao buscar agenciar sua
presença como núcleo da identidade nacional em um momento em que parecia se
abrir esta possibilidade.
É absolutamente indispensável, contudo, notar que, ao se apontar a relação
entre o sucesso de manifestações culturais negras em Paris e uma maior abertura
a manifestações vistas como similares em território nacional, não se pretende
reafirmar a incontavelmente repetida tendência atávica do Brasil para a mera
cópia do estrangeiro. Afinal, a(s) cultura(s) negra(s) era(m) valorizada(s) em
Paris como parte de um amplo contexto em que culturas exóticas obtinham grande
sucesso na capital francesa. Produções culturais russas obtinham talvez ainda
mais sucesso, bastando lembrar da notoriedade de Stravinsky, Diaghilev ou
Nijinsky, no mesmo período. O Oriente Médio e o Extremo Oriente também tinham
seu lugar neste processo, assim como o tango argentino. Portanto, pode-se
perceber que esta atmosfera parisiense foi utilizada de modo bastante seletivo
no Brasil, especialmente no que tange às estratégias de reconhecimento por
parte de grupos negros, que a utilizaram como importante componente em sua luta
por cidadania.
*
Em território paulista, a trajetória da Companhia Negra de Revistas parece ter
tido outros sentidos. Na verdade, a Companhia chegou em fins de outubro já
dividida possivelmente por divergências pessoais entre seus membros em
duas: a Companhia Negra de Revistas e a Ba-Ta-Clan Preta,14 tendo ambas
visitado São Paulo entre outubro e novembro de 1926. A Companhia Negra de
Revistas não recebeu maior destaque da grande imprensa, ainda que Tudo Preto
tenha sido elogiada: "quer pela concorrência que tiveram as duas sessões,
quer pelos aplausos com que foram recebidos vários números da peça, resultou em
mais um animador sucesso".15 Na verdade, esta era uma Companhia Negra de
Revistas bastante desfalcada, pois a maior parte dos nomes de peso da companhia
ficou com a Ba-Ta-Clan Preta, inclusive Pixinguinha e De Chocolat. O grande
sucesso estampado nos cartazes da Companhia era o ainda jovem Grande Otelo. A
companhia se apresentou no Teatro Apolo, no Teatro Mafalda (no Brás) e no
Cassino Antártica, despedindo-se de São Paulo no dia 10 de novembro.
A 11 de novembro estreava no Teatro Santa Helena a Companhia Ba-Ta-Clan Preta,
precedida de amplo esquema promocional. Dez dias antes, O Estado de São Paulo
já anunciava a estréia, fato repetido no dia 7, com um grande anúncio da peça
Na Penumbra, anunciando a presença de músicos famosos como Pixinguinha e
Bonfiglio de Oliveira e "12 mulheres de ébano, 12 mulheres de
azeviche", definindo-se como uma "revista negra". No dia 9, o
crítico teatral d'O Estado de São Paulo afirmava que "têm sido bastante
procuradas as entradas para o Santa Helena". Na véspera da peça, a
publicidade da Ba-Ta-Clan Preta anunciava "30 mulheres de ébano e uma
jazz-band de azeviche". No dia da estréia o crítico teatral do mesmo
jornal comentava a expectativa da apresentação, e a publicidade da empresa
mostrava um enorme anúncio com um desenho da estrela Deo Costa nua, envolta em
lençóis negros, com a legenda "A Vênus de Jambo". O anúncio ainda
prometia uma jazz-band, dois trompetes, além de trombone, saxofone, piano e
bateria. No dia seguinte, o comentário do crítico teatral d'O Estado de São
Paulo dá grande destaque à peça, elogiando principalmente os músicos e atores,
criticando porém a excessiva imitação parisiense e cobrando mais originalidade.
Aparentemente, a Companhia seguiu o conselho, visto que já no dia seguinte o
mesmo cronista elogiava as mudanças feitas na peça, que teria ficado "mais
leve e interessante", graças à intensificação dos números de "música
característica e danças típicas". Com o tempo, a Companhia deixa de ser
notícia. Talvez para recuperar o sucesso, volta a Tudo Preto, depois faz uma
síntese das duas peças, denominada
A Revista das Revistas
.16 A despedida da Companhia, no dia 22 de novembro, recebe um destaque mínimo.
A evolução do posicionamento da crítica teatral e dos anúncios publicitários da
Companhia indica um sentido claro. Aparentemente, a Ba-Ta-Clan Preta pensava
seguir a mesma receita de sucesso utilizada no Rio de Janeiro, misturando
exaltação à "gente da raça" e associação a uma modernidade
cosmopolita, que não deixava de fazer seu apelo ao exótico. Porém, o público da
capital paulista, em boa parte marcado por uma outra forma de exaltação ao
"nacional" e ao "popular", voltada para o nativismo
sertanejo (Sevcenko, 1992:236-57), preferiu o lado "típico" da Ba-Ta-
Clan Preta. E mesmo assim, parece ter sido, antes, um modismo que rapidamente
perdeu fôlego. O mais provável é que esta exaltação da nacionalidade
brasileira, fundada em manifestações negras não apenas rurais, mas também
urbanas, não tenha encontrado solo fértil na capital paulista, onde os
bandeirantes eram exaltados como glórias nacionais. Certamente, este símbolo
estava relacionado a outros tipos de associações com o passado. Sevcenko (1992)
enfatiza, nesta exaltação ao bandeirante, uma forma de distinção das elites
tradicionais paulistas frente à desagregação de sua autoridade, causada pelos
imigrantes e pelo crescimento urbano e industrial. Já Bresciani (1999), tende a
enfatizar a importância do bandeirante como reorganizador da identidade
paulista, após a perplexidade causada pela explosão populacional de São Paulo
no final do século XIX e início do XX.
Para os objetivos deste texto, é suficiente notar que, tendo em vista o debate
transcorrido em São Paulo, pode-se supor que parte significativa do público não
tivesse sido receptivo à forma utilizada pelas duas companhias cariocas para
exaltar a brasilidade. Pode-se imaginar a decepção de paulistas, que
eventualmente tenham ido assistir a uma companhia de teatro formada por negros
com a expectativa de ver um espetáculo "típico", e encontrando, na
verdade, negros tocando música popular urbana e, muitas vezes, estrangeira.
A já citada Companhia Mulata de Revistas parece sintetizar admiravelmente a
argumentação aqui desenvolvida. Formada em São Paulo, mas tendo excursionado ao
Rio de Janeiro, a companhia apostava largamente no imaginário folclórico-
regionalista para vender seu produto. No jornal carioca A Noite, de 15/12/30
(quatro dias antes da estréia da companhia no Rio de Janeiro), via-se um
anúncio da peça Batuque, Cateretê e Maxixe, de meia página, com um desenho
representado uma festa escrava, em um ambiente rural, e o título "Entra
Macacada!". Aqui, é desnecessário insistir muito na diferença em relação
aos anúncios da Companhia Negra de Revistas, que sublinhavam sua associação com
uma modernidade cosmopolita, falando em jazz bands e vedetes de pouca roupa.
Não se pode, contudo, simplificar esta questão, caracterizando paulistas e
fluminenses como duas totalidades monolíticas que esperam de "seus"
negros coisas totalmente diferentes. Esta crítica de Batuque, Cateretê e
Maxixe, feita por um crítico carioca, ancorada em uma comparação com Tudo
Preto, demonstra definitivamente a inviabilidade de realizar uma inflexível
clivagem entre a atmosfera cultural no Rio de Janeiro e em São Paulo. A
crítica, afinal, poderia ter sido escrita pelo mais ardoroso regionalista
sertanejo paulista:
Muito interessante, muito superior ao que fora dado esperar, esteve a
estréia da Companhia Mulata Brasileira ontem, no Teatro República.
Pode mesmo ficar certo o público freqüentador de teatros de que esta
exibição de agora é coisa muito diferente da que, há anos, foi feita
no Rialto. A de anos passados teve de fracassar, e esta, a de ontem,
é justo que vá avante. O conjunto de agora está bem orientado; não é
levado a ridículas imitações de coisas estrangeiras e incompatíveis
com o característico da Companhia, ao contrário, explora aspectos
regionais, episódios e música brasileira, quase sempre do interior do
país, e daí o estar bem à vontade, no desenrolar numeroso de quadros,
cenas e cortinas. (O Globo, 20/12/1930).
Neste texto, o negro claramente tem um lugar definido na sociedade: o de
representar uma brasilidade folclórica; a modernidade cosmopolita é, aqui,
verdadeiramente "incompatível com o característico da companhia". A
partir desta afirmação, pressupõe-se que o papel do negro é o de reserva
folclórica, inatingível pela modernidade, cujas vantagens parecem ser
reservadas aos brancos. Não por acaso, nota-se uma crítica do cronista à
Companhia Negra de Revistas quatro anos após sua atuação. O negro, aqui,
aparece como mais um caso típico de "beleza do morto".17
Por outro lado, para o movimento negro paulistano, organizado em torno de
periódicos e associações, a Companhia Negra de Revistas era, já no momento de
sua estréia na Capital Federal, algo a ser ressaltado com grande destaque:
Nossos parabéns!...
Felizmente, o nosso progresso nestes últimos tempos é um fato que
diariamente vai-se multiplicando, apesar dos pesares.
Nas rodas esportivas já possuímos valorosos competidores e em todas
as atividades humanas: ciências, artes, disciplinas várias e letras;
o nosso teatro ligeiro está de parabéns, um fato interessante que de
há muito era esperado, hoje nos apresenta para concretizar a nossa
crescente evolução: fundou-se, lá na capital do nosso país, uma
Companhia Negra de Revistas, graças ao conhecido e prestimoso homem
de teatro, o grande cenógrafo Jaime Silva e demais pessoas que
emprestaram seu auxílio e ao aplaudido De Chocolat, conhecido em
todos os palcos da Europa, que escrevera propositadamente a revista
de estréia, desse conjunto Tudo Preto' que tem conquistado inúmeras
palmas do povo carioca, e musicada pelo Sr. Cirino. [...]
É para todos nós, este acontecimento teatral, mais um passo firme e
vitorioso ao templo do progresso, na evolução do nosso país.
Portanto, seria uma injustiça de nossa parte, deixar na obscuridade
esse fato, que vai portanto concorrer para o reerguimento do teatro
nacional (Clarim d'Alvorada, 22/8/1926).
A chegada da Companhia Negra de Revistas a São Paulo seria um evento amplamente
comentado na capital paulista. A Companhia Negra de Revistas estreou ainda em
outubro no Teatro Apolo. O Clarim d'Alvorada não deixou de registrar o evento:
Nós, paulistanos e paulistas, brasileiros sensatos, hoje, mais que
nunca estamos satisfeitos. Um fato importantíssimo vem concorrer com
a desejada ansiedade de longos meses em expectativa, é o da estréia
da Cia. Negra de Revistas, no Apolo.
Para lá nos dirigimos, aplaudimos com veemência, entusiasmo os nossos
patrícios, nesse espetáculo inédito e de tantas excentricidades; os
nossos artistas foram merecedores, portanto é de justiça mais uma vez
expressar de coração os nossos francos aplausos a Jaime Silva, o
grande organizador desse conjunto, e o artista patrício De Chocolat.
Temos, pois, a nossa consagração e portanto é mister labutarmos
sempre com ânimo forte para que se alimente o nosso progresso.
A época é nossa, conforme afirmações inúmeras; essa novidade teatral
surgiu na Cidade-Luz Paris, com Josephine Baker, hoje entre nós
brasileiros está se celebrizando; todos nós devemos, de bom grado, ir
aplaudir os patrícios que com ardor e boa vontade estão labutando
encorajosamente para o complemento de nossas glórias" (Clarim
d'Alvorada, 24/10/1926, ênfases minhas).
Para a militância negra paulistana, o evento se recobria de um sentido claro: o
de demonstrar a possibilidade do negro de alcançar o sucesso em atividades
diversas. Pode-se notar, ainda, em especial nos trechos grifados, a presença,
também aqui, da França como legitimadora da iniciativa da companhia. O
principal é notar que, em um momento no qual a elite paulista reescrevia a
história de São Paulo, falando de um passado distante em que apenas
quatrocentões e índios mereciam papel de destaque, a associação entre os
"patrícios" e a brasilidade (e também a crítica às "romanzas
amacarronadas") promovida por Tudo Preto, deve ter soado como música aos
ouvidos da militância. A passagem da Companhia Negra de Revistas por São Paulo
marcou época no meio cultural negro paulistano, que pareceu se maravilhar com a
qualidade da produção da Companhia. Por seu lado, seus membros, segundo o
militante José Correia Leite, teriam se deliciado com os bailes exclusivamente
negros da capital paulista.18 Não há pistas que indiquem que a Companhia tenha
sido encarada como um fenômeno com tal singularidade na Capital Federal, onde,
de resto, atividades culturais negras eram difundidas diariamente, com grande
sucesso, no âmbito do entretenimento massificado, além de artistas presentes em
grupos não exclusivamente negros. Em São Paulo, onde a cultura de massas era
permeada por um debate marcado pela associação da identidade paulista com
outros símbolos, é possível indicar que a Companhia Negra de Revistas tenha
sido encarada de outra forma, e seu caráter "negro" tenha chamado
mais a atenção.
Esta recepção diferenciada permite levantar uma hipótese: a de que a exaltação
da cultura negra como nacional possa ter ligação com o sensível aumento da
difusão de produtos culturais como o samba, pelos caminhos do entretenimento
massificado (peças teatrais, discos, rádio, publicações popularizando a música
popular etc). Ganhando mais visibilidade através dos meios de difusão
disponíveis pela massificação cultural, a cultura negra teria tido a
oportunidade de conquistar, paulatinamente, uma maior audiência e consolidar-se
como cultura nacional. Pode-se notar que o desenvolvimento da cultura de
massas, no Brasil, ocorre paralelamente à valorização das "raízes
populares da nacionalidade", ambas ganhando mais visibilidade nos anos do
pós-guerra para se consolidarem de forma generalizada entre as décadas de 1930
e 1940. É, ainda, uma mera hipótese a ser investigada, mas é possível, a partir
dela, inserir uma nova e importante dimensão no debate sobre a identidade
nacional, e sugerir uma explicação para a grande importância da cultura negra
urbana na definição da nacionalidade.
De qualquer forma, a experiência da Ba-Ta-Clan Preta ajuda a iluminar alguns
elementos deste período de discussões sobre identidade nacional, como a
relevância das peculiaridades regionais, a importância do lado exótico dos
elementos "populares" exaltados para uma parcela do público, assim
como o caráter central da exaltação da "gente da raça" para outros
segmentos, e a forte presença do fenômeno da massificação cultural neste
debate, entre outros dados presentes. O debate sobre a identidade nacional, na
experiência aqui estudada, recobre-se de vários sentidos e aparece como
amplamente presente na sociedade urbana brasileira do período.
*
Como já explicitado anteriormente, Tudo Preto e a experiência da Companhia
Negra de Revistas estão ausentes da história cultural do Brasil, assim como dos
estudos sobre a formação de identidades. Uma explicação possível é o pouco
espaço que historiadores e cientistas sociais têm dedicado à massificação
cultural, o que acaba gerando a insuficiência de trabalhos sobre o teatro de
revista. Por outro lado, a preferência pela história intelectual, como
ferramenta para se compreender a formação da identidade nacional, não deixa de
revelar uma concepção de que o público mais amplo não teria tido um papel
importante no processo. Chega a ser curioso notar que um dos únicos textos que
mencionaram a Companhia Negra de Revistas tenha elaborado o seguinte
comentário:
Só não se falou no autor ou nos autores no texto, sabendo-se que De
Chocolat havia criado alguma coisa, mas escrever não era a sua
especialidade. É provável que por ser branco (Luís Peixoto? Carlos
Bittencourt? Marques Porto? Qual deles?), o autor tenha preferido o
anonimato (Cabral, 1997:108).
O que é impossível deixar de notar é que Sérgio Cabral não tenha sequer
cogitado a idéia de que De Chocolat poderia ter efetivamente escrito Tudo
Preto, ainda que todos os cartazes promocionais da Companhia e o texto da peça
tragam indicação de autoria. Parece ter, mesmo sem nenhum indício, a certeza de
que outra pessoa teria escrito o texto. Por isto, acaba cogitando três dos
principais escritores do teatro de revista do período, ainda que o estilo de
Tudo Preto nada tenha a ver com o estilo dos autores citados. A pergunta que
fica é: seria um negro, estranho aos grupos intelectuais de nome, incapaz de
debater a questão do caráter nacional e das identidades raciais?
Ainda hoje há uma tendência a concordar com esta idéia, não tendo sido ainda
cogitada a possibilidade de que grupos mais amplos da sociedade possam ter
participado do processo de discussão destes temas. O que Tudo Preto e a
Companhia Negra de Revistas sugerem, é que talvez valha a pena pensar de outra
maneira, sublinhando de forma mais enfática as experiências cotidianas destes
outros grupos, e sua relação com o desenvolvimento do debate sobre a formação
de identidades sociais e culturais.
Notas
1.
Muitas pessoas debateram este texto em sua fase de preparação, e agradeço a
todas elas, assim como ao meu orientador, Robert W. Slenes, e minha amiga Micol
Seigel, a quem esta pesquisa muito deve. Não se pode deixar de mencionar ainda
a FAPESP, agência financiadora de minha pesquisa de doutorado, da qual este
artigo é parte.
2.
Em 1925, uma entrada no que era então o maior templo do teatro de revista
carioca, o Teatro São José, na Praça Tiradentes, variava de 1,5 mil-réis
(geral) a 25 mil-réis (frisas e camarotes). Ver os arquivos da Empresa Pascoal
Segreto, que era a dona do teatro nesse período (Biblioteca Nacional Divisão
de Música Popular).
3.
Ver, ainda, um trabalho sobre outro período, em Mencarelli (1999).
4.
Vale notar, ainda, a presença de um "bailado argentino", certamente
relacionado ao sucesso do tango em Paris.
5.
Sobre este aspecto do imaginário circense, ver Duarte (1995, esp. cap. 3.2).
6.
Situação semelhante na capital paulista foi estudada por Sevcenko (1992, cap.
4).
7.
Ver o Clarim d'Alvorada, 22/8/1926, 24/10/1926 e 14/11/1926.
8.
Um exemplo é O Estado de São Paulo, que aborda o tema por diversas vezes em
novembro de 1926.
9.
Estas composições "baianas" de Ari Barroso são tradicionalmente
apontadas pela bibliografia como manifestações de uma faceta integradora do
regime Vargas. Se assim for, a presença desta composição, já em 1926 (anterior,
portanto, a Vargas e Ari Barroso), apóia a idéia de que esta
"brasilidade" imposta por Vargas teria, no máximo, se aproveitado de
um fenômeno da música popular já existente. Isto reforçaria a idéia de que a
concepção "mestiça" do Brasil, muitas vezes apontada como mera
imposição das elites, pode ter sido, em boa parte, influenciada pela cultura de
massas.
10.
Duque, o provável autor da letra, era um bailarino que havia obtido grande
sucesso dançando maxixe em Paris, e certamente deveria conhecer as
possibilidades comerciais desta valorização, um tanto exótica, da cultura
negra.
11.
Não por acaso, há referência às "romanzas amacarronadas": o
imigrante europeu é, assim, associado a uma cultura alienígena, enquanto o
negro simboliza uma cultura nacional autêntica.
12.
Mistinguett era a principal estrela da companhia francesa Ba-Ta-Clan.
13.
Neste caso, chama a atenção o recorrente uso da palavra "ódio" para
definir as relações raciais nos EUA: Getulino, 21/10/1923 e 23/11/1924, Clarim
d'Alvorada, 14/11/1926 e 2/12/1928; Progresso, 9/7/1928, 13/1/1929, 24/2/1929,
23/6/1929, 31/8/1929 e 26/9/1929.
14.
Note-se, aqui, a contínua referência à França: esta metade da companhia se
apresenta como uma versão "preta" da citada companhia francesa.
15.
O Estado de São Paulo, 4/11/1926. O escasso espaço dedicado à companhia na
grande imprensa leva à pergunta: o que pensaria a platéia paulista do citado
quadro de Tudo Preto em que São Paulo era caracterizada como território semi-
estrangeiro? Seria esta uma explicação para seu pouco sucesso?
16.
Note-se, mais uma vez, a influência da Ba-Ta-Clan: uma das peças encenadas por
esta companhia em sua temporada brasileira, em 1926, denominava-se precisamente
Revue des Revues.
17.
O conceito de "beleza do morto" é de Certeau, Revel e Julia (1995).
18.
Em suas memórias, José Correia Leite atribui o fim desta companhia ao fato de
que os negros paulistanos teriam ficado transtornados pelas negras que nela
trabalhavam, passando a oferecer todas as vantagens financeiras para que
abandonassem a vida no teatro (Leite, 1992:50-1).