Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil: Estados Unidos, França e Brasil
Introdução
A única unidade que é possível, portanto, reivindicar a respeito destes temas
[exclusão,underclass e marginalidade] é que eles colocam em causa, só por sua
presença, os princípios que fundamentam a ordem social.
Didier Fassin, 1996.
Este ensaio tem por objetivo analisar os significados de uma discussão que se
apóia em temas e termos diversos nos Estados Unidos e na França, com
comentários finais acerca da sociedade brasileira. Não pretendo fazer um estudo
comparativo, pois trata-se antes de realizar o que pode ser designado de
olhares cruzados, captando o que há de essencial no debate acadêmico dessas
sociedades. O tema diz respeito à vasta parcela daqueles que estão à margem,
desligados ou desenraizados dos processos essenciais da sociedade. Trata-se
daquilo que se convencionou denominar os excluídos, noção ampla e escorregadia
que se tornou uso corrente e que necessita ser trabalhada empírica e
teoricamente. É a trajetória desta questão que pretendo realizar, reafirmando
que o intento é clarear o nebuloso e complexo debate acerca dos contingentes
não incluídos nas cidades, mesmo porque as populações rurais fogem do escopo
deste ensaio.
Não são poucos os estudos que discutem este tema de forma a cotejar os desafios
interpretativos que decorrem de realidades nacionais distintas.1 Mas são
raríssimos os que introduzem nesta discussão a produção latino-americana que
tem início no final dos anos de 1960 (Fassin, 1996).
Vale apontar que o debate norte-americano é abertamente político-ideológico.
Isto porque os pesquisadores colocam seus críticos e criticados ou no campo
conservador, ou no liberal, na acepção norte-americana do termo, isto é,
progressista, pois inspirado nas tradições que fundamentam as políticas de bem-
estar social. De um lado, blaming the victim, aberta e feroz culpabilização das
pessoas que se encontram em precárias condições sociais e econômicas, pois,
nessa vertente interpretativa, esta situação é vista como fruto de sua própria
e única (ir)responsabilidade. Mais ainda: segundo essa visão, as políticas
públicas só serviriam para reproduzir ou aumentar a anomia, a ociosidade e a
indolência, a desestruturação familiar, o consumo de drogas e as várias formas
de criminalidade. De outro lado, os liberais enfatizam que não é no
comportamento ou nos valores do indivíduo que se deve buscar as causas do
problema, mas nos processos estruturais amplos, na desindustrialização de
determinadas regiões, nas transformações tecnológicas e gerenciais, nas
mudanças no perfil da mão-de-obra, nas transformações sociais e urbanas das
grandes cidades ou no secular preconceito racial que desaba, particularmente,
sobre a população afro-americana. Como será detalhado, a hegemonia do
pensamento liberal dos anos de 1960-1970 é superada pelo conservadorismo
predominante na década de 1980. No decênio seguinte, com a administração Bill
Clinton, fundamentalmente, no seu segundo mandato, com maioria parlamentar
republicana, há uma aproximação dessas duas visões: as concepções liberais
tradicionais que apregoavam a prerrogativa de direitos (entitlement) são
solapadas pela noção de deveres e, em boa medida, passam também a
responsabilizar os indivíduos por sua condição de vida. O conceito que alimenta
o debate acadêmico e político até o início dos anos de 1990 é o de underclass,
subclasse à margem da sociedade.
O debate francês, a seu turno, baseia-se em conceitos como exclusão, relegação,
desqualificação ou desfiliação social. Afirma que não se trata apenas daqueles
que não puderam pagar o preço do progresso, ficando à margem de uma sociedade
que se modernizava, mas, cada vez mais, após os anos de 1980, também dos que
ocupam posições centrais no sistema produtivo do qual foram desconectados:
seguindo as trilhas da tradição republicana e jacobina, as análises, variando
nos diagnósticos e nas propostas, enfatizam a necessidade de uma forte presença
estatal, que tem como responsabilidade primeira fornecer os recursos materiais
e culturais que promovam a (re)inserção social e econômica dos grupos
marginalizados. O fundamento da própria democracia residiria na dinamização de
formas de solidariedade que não deixassem aqueles que estivessem fora lá
permanecer, pois isso significaria a reprodução das iniqüidades e injustiças
que a ação estatal priorizou combater desde 1789 em nome da defesa dos direitos
básicos de cidadania. Ação que foi aprofundada pelos socialistas e comunistas
durante o Front Populaire de 1936 e, fundamentalmente, após a Segunda Grande
Guerra.
Analisarei, inicialmente, o teor das discussões nos Estados Unidos para, em
seguida, passar para o caso francês. A partir do que estou designando de
olhares cruzados, na parte final deste artigo retomo alguns pontos sobre a
sociedade brasileira. O objetivo deste ensaio não é efetuar um balanço crítico
da literatura, mas, a partir de alguns textos seminais, mostrar os conteúdos e
os contornos que a questão social adquire em função das especificidades
próprias de cada ambiente sociopolítico nacional.
A discussão norte-americana: culpar ou não culpar a vítima
A mera existência de um sistema de bem-estar social [...] [tem] [...] como
conseqüência inevitávelminar o caráter moral do povo. Não trabalhar é mais
fácil que trabalhar.
Charles Murray, 1994.
Liberais versus conservadores
Underclass: subclasse, ou desclassificado, constitui uma questão amplamente
pesquisada nos Estados Unidos. Vale dizer que a maioria dos estudos procura
checar, apoiada em universos empíricos restritos - geralmente um gueto
negro de cidades de médio ou grande porte -, os resultados emanados de
abordagens mais abrangentes. Nesse sentido, os trabalhos de William Julius
Wilson, sobretudo The Truly Disadvantaged, foram objeto de atenção de inúmeros
estudiosos que procuraram testar os resultados de suas investigações: entre
outras questões, as mudanças na oferta de emprego que começaram a ocorrer a
partir da década de 1970, o declínio de taxas de casamento entre a população
afro-americana e o decorrente aumento de famílias monoparentais com chefia
feminina, a evasão dos estratos afro-descendentes abastados para fora dos
guetos, a crescente concentração da pobreza, desemprego e dependência de
serviços sociais e os efeitos desse tipo de vizinhança sobre os jovens no que
concerne ao comportamento sexual, abandono da escola, consumo de drogas e aos
atos delinqüentes.
2
Sem penetrar em detalhes históricos, importa notar que a questão da pobreza
sempre teve uma tônica fortemente ética, na qual os indivíduos que se
encontravam nessa situação eram por ela responsabilizados, pois careciam de
atributos como força de vontade e energia moral: "pauperismo - diz um
pregador no início do século XIX - é a conseqüência de erro intencional,
indolência vergonhosa, hábitos viciosos" (Burroughs apud Katz, 1993, p. 6).
Insisto neste ponto, pois a forma de culpabilizar a pobreza, associando-a à
indolência, à desorganização familiar e até mesmo à criminalidade, continua uma
tônica dominante no debate norte-americano. Esse tipo de representação
sociocultural parece estar ligado ao credo norte-americano que, ao beber nas
águas do puritanismo da ética protestante e do espírito do capitalismo, elege o
individualismo e a competição como atributos básicos para conquistar os
benefícios de uma sociedade que se fundamenta em ideais igualitários, na
independência e na iniciativa pessoal (Katz, idem, pp. 6-7). Nesse contexto que
proclama a igualdade de oportunidades, a marginalização social e econômica
passa a ser encarada como fraqueza peculiar a indivíduos ou grupos que, como
tais, não possuem a perseverança ou o treinamento moral para vencer na vida.
Nesse sentido, o dilema norte-americano estaria concentrado nas realidades e
nas explicações da histórica marginalização social e econômica das populações
afro-americanas (Myrdal, 1994).
Nos percursos da história, várias denominações foram utilizadas para nomear
essas subclasses, todas com conotações de cunho incriminador:
[...] pedinte, desvalido, classe perigosa, ralé, vagabundo e vadio, e
assim por diante, [designações] que os Estados Unidos tomaram
emprestado da Europa. A América também inventou seus próprios termos,
incluindo-se preguiçoso, mendigo e idiota, e, no final do século XX,
outros como, desqualificado, marginal, culturalmente deficiente, e,
mais recentemente, underclass (Gans, 1994).
O termo underclass foi introduzido no início dos anos de1960 para designar o
processo de marginalização do mercado de trabalho assalariado e formal que
marginalizou uma parcela da mão-de-obra de baixa qualificação: utilizado no
âmbito de uma interpretação progressista, apontava como causas desse fenômeno
não os fatores sociopsicológicos próximos das pessoas inseridas na situação de
desemprego ou subemprego, mas as grandes mudanças que marcaram a sociedade
norte-americana no segundo pós-Guerra (Myrdal, 1963). A análise mostrava que as
mudanças tecnológicas e organizacionais tornavam dispensáveis boa parte
daqueles que não tinham capacitação profissional para enfrentar as inovações
que as empresas passaram a exigir dos trabalhadores.
As interpretações presentes na obra de Gunnar Myrdal, The challenge to
affluence, não culpabilizam as pessoas por seu insucesso, por terem ficado à
margem da arrancada de mobilidade ascendente que marcou a sociedade norte-
americana. Em outros termos, a afluência também marginalizava, o que se mostrou
particularmente perverso para parte da população afro-descendente. Isso porque
o circuito excludente se completava através do racismo e da segregação racial
que recaíam sobre os contingentes dos guetos das grandes cidades. Esse livro
representou uma poderosa oposição ao clima de otimismo imperante na época,
expresso na sociedade de abundância, de John Kenneth Galbraith, ou no fim das
ideologias, de Daniel Bell, constituindo-se em um veículo que serviu de alarme
para implementar as políticas públicas de combate à pobreza dos governos
democráticos dos anos de 1960.
3
Esta década foi cenário de enormes debates e embates sobre a questão da pobreza
e da desigualdade de oportunidade. Do ponto de vista do ideário progressista,
os estudos então realizados serviram de forte estímulo para fomentar políticas
públicas que deveriam fornecer condições para retirar as camadas pobres de sua
situação de anomia e marginalização.4 Vale ressaltar que em 1964 é promulgada a
lei dos direitos civis referente à discriminação racial, ao mesmo tempo em que
a administração democrata Lyndon Johnson faz aprovar pelo Congresso os
programas conhecidos como War on Poverty que, ao privilegiarem políticas de
proteção e integração social e econômica, deveriam acelerar a emergência da
Great Society.
5
Nesse contexto social e político é publicado o relatório Moynihan,
confeccionado por um jovem assistente da Secretaria do Trabalho vinculado à
Casa Branca.
6
O trabalho ressaltava a crescente incidência entre a população afro-americana
de desempregados, famílias monoparentais com chefia feminina, filhos ilegítimos
e dependência dos serviços assistenciais, cuja conseqüência mais grave era a
emergência do que foi então designado de "matriarcado negro". Nesse sentido,
convém ressaltar que as lideranças dos direitos civis consideraram o relatório
"ofensivo", "empiricamente falho", "difamante", "desviando a responsabilidade
das causas da pobreza para suas vítimas" (Katz, 1993, p. 13). Esta foi uma
época de violentos conflitos e manifestações anti-raciais que culminaram no
assassinato de Martin Luther King e no surgimento dos "panteras negras", o que
ocasionou o recuo dos liberais. A fim de escapar da pecha de racistas, deixaram
de se debruçar sobre situações e comportamentos que caracterizavam de forma
crescente os guetos da população afro-americana. Nesse clima de acirramento
político-ideológico, as explicações centraram-se em causas como o racismo e a
exploração econômica, deixando um vazio analítico que foi apropriado pelo
pensamento conservador:
[...] se esta matriz de crítica ideológica desencorajou a pesquisa de
estudiosos progressistas, os pensadores conservadores não ficaram
inibidos. Desde os inícios da década de 1970 até a primeira metade
dos anos de 1980, seus escritos sobre a cultura da pobreza e os
efeitos deletérios da política progressista de bem-estar da Great
Society sobre o comportamento da underclass dos guetos dominaram o
debate acerca das políticas públicas no que diz respeito à diminuição
dos problemas sociais das áreas centrais das cidades (Wilson, 1987,
p. 150).
Conservadores versus liberais
As explicações conservadoras acerca dos habitantes afro-descendentes das
grandes cidades tornaram-se hegemônicas por um longo período, coincidente com
as administrações republicanas de Ronald Reagan e George Bush. Conservadoras
porque, emprenhadas de conteúdos moralizadores, responsabilizavam as pessoas
por sua condição de marginalização e anomia. O foco de análise privilegiava os
componentes culturais, deixando de lado as dimensões estruturais dos problemas
que afetavam estas populações: falava-se de carências culturais e comportamento
deficiente - cultural and behavioral deficiencies - em vez de focalizar
os macroprocessos que se enraizavam nas causas da marginalização social e
econômica. Acusação de cunho moralista, pois se originava na "[...] ausência de
ética do trabalho, valores familiares e religiosos, respeito pela lei e outros
atributos invocados pela Nova Direita" (Silver, 1999, p. 345). Nesse tipo de
abordagem, a parcela mais pobre dos grupos afro-americanos teria atitudes
semelhantes ao refugar o trabalho e preferir a dependência dos serviços
sociais. Uma obra pioneira que serviu para alimentar os estudos que enfatizaram
a assim chamada welfare dependency foi a de Oscar Lewis (1961a, 1961b, 1965,
1966).
A partir de observação participante e de histórias de vida, Lewis constrói o
conceito de cultura da pobreza, cujos traços essenciais seriam a resignação, a
passividade, o fatalismo, o círculo de relações sociais restrito e pouco
diferenciado, as respostas voltadas ao imediato, as aspirações limitadas e o
sentimento de inferioridade. Esses traços forjariam um conjunto de valores,
crenças e atitudes relativamente homogêneo, reproduzido de geração em geração,
que se contrapunha ao referencial cultural dominante marcado pelo sucesso
advindo de trajetórias de vida marcadamente competitivas. Não cabe, no âmbito
deste ensaio, retomar as críticas feitas ao modelo analítico proposto em torno
do conceito de cultura da pobreza (ver Kowarick, 1980, pp. 34-38). Importa,
contudo, apontar que esses escritos tiveram em décadas posteriores uma enorme
influência no que diz respeito às concepções e às políticas relativas à questão
da marginalização social e econômica: "a cultura da pobreza tornou-se um
eufemismo para a patologia dos pobres inúteis e uma explicação para a sua
condição [...]" (Katz, 1993, p. 13). Tal concepção causou sérias conseqüências
no que diz respeito ao encolhimento das políticas de bem-estar social nos
governos republicanos dos anos de 1970 e 1980. Inspiradas numa espécie de
"darwinismo social", afirmava-se que elas fomentavam a ociosidade e o
pauperismo, na medida em que o subsídio público tornava desnecessário o
trabalho regular. Em decorrência, esses grupos não deveriam "ser ajudados
devido a suas patologias destrutivas e anti-sociais. Esqueça-se os fatores
estruturais ou o generoso sistema de bem-estar: culpe a vítima" (Robinson e
Gregson, 1992, p. 40).
7
Na esteira desse pensamento condenatório, deve ser ressaltado que o termo
underclass foi amplamente popularizado através de longas reportagens que
apareceram com destaque em revistas como Newsweek, Fortune ou Readers Digest. A
tônica das apreciações não enfatizava a pobreza que se avolumava nos grandes
centros urbanos ou a falta de oportunidade de ascensão que marcava o destino de
milhões de pessoas, principalmente os afro-americanos, "mas a criminalidade
violenta [...], a depravação moral, a sexualidade incontrolada das adolescentes
filhas/ mães do gueto e o peso fiscal, julgado incontrolável, dos programas
sociais instaurados pela pressão dos movimentos reivindicatórios dos anos de
1960" (Wacquant, 1996a, p. 245). Menção especial deve ser feita à revista Time,
que em um dossiê de quatorze páginas caracterizava o american underclass como
"pessoas que são mais intratáveis, mais socialmente alienadas e mais hostis
[...]" (Russel, 1977, p. 18).
Contudo, foi sem dúvida com os escritos que apareceram em três números de
enorme sucesso da revista New Yorker, depois transformado em livro - The
Underclass -, que a palavra se popularizou, tornando-se tema de debate
cotidiano, com um grande reflexo sobre a opinião pública e de extrema valia
para fundamentar a desativação de políticas de bem-estar social das
administrações republicanas. Vale transcrever uma longa citação do início dos
anos de 1980, período de intensa recessão, conhecida como reaganomics:
[...] não há números precisos, mas estima-se que nove milhões de
norte-americanos não são assimiláveis. Eles constituem a underclass.
Em termos gerais, podem ser agrupados em quatro categorias distintas:
(a) os pobres passivos, que, no mais das vezes, são recipientes de
longo prazo de serviços sociais; (b) o hostil criminoso de rua, que
aterroriza grande parte das cidades e que, geralmente, foi expulso da
escola e é consumidor de droga; (c) o escroque (hustler), [...] que
ganha a vida na economia subterrânea [...]; (d) os bêbados
traumatizados, vagabundos, moradores de rua [...] e os doentes
mentais, que, freqüentemente, vagueiam ou morrem nas ruas da cidade
(Auletta, 1981, p. XVI).
O conservadorismo havia vencido, pois convencera a maioria dos eleitores que
havia um grupo minoritário, porém numeroso, de desajustados, inúteis, ociosos e
perigosos, enfim, uma subclasse desqualificada e imprestável para a qual as
políticas públicas só serviram para reproduzir a indolência, a anomia e a
propensão à criminalidade. Nesse particular, a obra Losing Ground, de Charles
Murray (1994), é seminal. Ao analisar as políticas de bem-estar social, o autor
parte da constatação de que o aumento do orçamento público entre 1950 e 1980
não havia levado à diminuição dos problemas sociais. Ao contrário, os índices
de pobreza e desemprego, de famílias monoparentais chefiadas por mulheres, de
filhos ilegítimos e gravidez de adolescentes aumentaram muito nos guetos
negros, assim como as várias modalidades de violência e criminalidade.
Em outras palavras, os programas dos anos de 1960, que se condensaram na assim
chamada War on Poverty, tiveram resultados nefastos: agora, além de
culpabilizar as vítimas, estava-se também atacando a "generosidade" dos
governos do Partido Democrático. Generosidade que corroía a vontade de
trabalhar, solapava a vida familiar estável e estimulava comportamentos
ilegais. Isto porque, para a mão-de-obra braçal ou pouco qualificada, ficar
desempregado não significava necessariamente ganhar menos e, no caso das
mulheres, filhos ilegítimos poderiam representar ganhos superiores aos
oferecidos pelo mercado de trabalho: a ajuda vinda principalmente do Aid To
Families With Dependent Children - AFDC estimulava o desemprego voluntário
e a desorganização familiar. Produzia-se, assim, por meio das políticas
estatais, uma "cultura da dependência" ou de "parasitismo social"
diametralmente oposta ao ideário norte-americano que cultiva aqueles que ganham
bem com o esforço do trabalho, pagam impostos, educam os filhos nos padrões da
moralidade dominante e participam do desenvolvimento da comunidade em que
vivem.
No prefácio da 2.ª edição, publicada em 1994, Charles Murray, após dizer que o
livro sofreu "ataques selvagens da esquerda", enfatiza que
[...] atualmente é aceito que os programas sociais dos anos de 1960
de modo geral falharam; que o governo é grosseiro e inoperante quando
interfere na vida local; e que os princípios de responsabilidade
pessoal, penalidades para o mal comportamento e recompensas para o
bom precisam ser reintroduzidos nas políticas sociais (p. XVI).
E mais adiante:
[a underclass] não tem os mesmos valores que a classe média
referentes ao trabalho árduo, honestidade e responsabilidade pessoal.
[...]. Há dez anos [eram poucos os estudos que associavam as
políticas] de bem-estar com [nascimentos] ilegítimos. [...]
Atualmente, eles se expandiram consideravelmente. Daqui a dez anos
será amplamente aceito entre os pesquisadores que a existência de um
extenso sistema de bem-estar constitui condição decisiva para
facilitar a ilegitimidade (p. XVII).
O raciocínio do autor no que concerne a filhos ilegítimos está baseado na trama
hipotética de dois jovens trabalhadores sem qualificação profissional -
Harold and Phyllys - na qual, não estando casados, ela está grávida. Em
1950, quando inexistiam subsídios a mães solteiras, seguindo um cálculo
racional, eles, supostamente, escolhem o casamento e a busca de remuneração por
meio de inserção no mercado de trabalho. Dez anos depois, há subsídio para mães
solteiras, e, portanto, nesse momento, a escolha lógica seria a de não se
casarem. Já nos anos de 1970, a ajuda é maior do que o salário que Harold
poderia obter na hipótese de não se casarem e, assim, enquanto ele opta por
permanecer desempregado e não se casar, ela prefere continuar tendo filhos:
[na década de 1970] era mais fácil sobreviver sem ter um trabalho.
Era mais fácil para o homem ter um filho sem ser responsável por ele,
para a mulher ter um filho sem ter marido [...]. Porque era mais
fácil sobreviver sem trabalho, era mais fácil ignorar a educação.
Porque era mais fácil sobreviver desempregado, era mais fácil passar
de um trabalho para outro e através disto acumular uma ficha de
inempregável (p. 175).
Para os estudiosos progressistas da época era difícil contra-argumentar as
colocações conservadoras que insistiam na culpabilização das vítimas e nos
nefastos efeitos das políticas de bem-estar social em produzir a desnecessidade
de trabalhar e a desorganização familiar: "deste ponto de vista, o 'sucesso'
atual da noção de underclass como figura do undeserving poor só é o sucesso
político dos conservadores" (Avanel, 1997, 217).
Isso não significa dizer que não houve autores que tenham se oposto aos modelos
explicativos e às políticas conservadoras dos anos de 1980.
8
Nesse particular, ganha relevância a obra de William Julius Wilson. Mesmo este
autor, cujas pesquisas sobre a pobreza urbana são das mais reconhecidas no meio
acadêmico, necessita explicitar, no prefácio de The Truly Disadvantaged, sua
posição política: "eu sou um social democrata" (p. VIII). Isto porque, malgrado
ser um pesquisador que se situa no campo progressista, em trabalho anterior, ao
argumentar que a questão racial explicava cada vez menos a marginalização da
população afro-americana, recebera, por essa razão, críticas que procuraram
situar sua argumentação no espectro conservador do debate acerca da
problemática sobre a underclass (p. 5). O teor da polêmica foi um exemplo
flagrante de como o debate norte-americano era abertamente polarizado entre
conservadores e liberais. Nas primeiras páginas da obra em pauta pode-se ler:
[...] gostaria de sugerir como a perspectiva liberal pode ser
reforçada para colocar em xeque a atualmente dominante visão
conservadora acerca do ghetto underclass e, mais importante do que
isto, fornecer uma discussão intelectual mais equilibrada acerca do
crescimento dos problemas das áreas centrais [...] [que concentram a
população negra] (p. 11). [E, nesse sentido, Wilson vai insistir que]
o racismo constitui uma explicação demasiadamente simples (p. 61).
Além do racismo, a explicação proposta pelo autor privilegia o processo de
desindustrialização na maioria dos grandes centros urbanos, em que mudanças
tecnológicas e organizacionais levaram à redução do trabalho pouco ou não-
qualificado. Paradoxalmente, a expansão econômica e a universalização dos
direitos civis dos anos de 1960 fizeram com que as camadas afro-americanas mais
habilitadas para enfrentar as mudanças que ocorriam deixassem os guetos para
irem trabalhar e morar em comunidades mais prósperas. Essa evasão foi
desastrosa para os estratos negros que lá permaneceram, pois levou não só a uma
maior concentração de pobreza, desemprego, desorganização familiar e anomia,
como também a um isolamento que gerou graves conseqüências. A saída de
indivíduos e instituições propulsoras de relações e oportunidades sociais e
econômicas - escolas, igrejas, lojas e profissionais - acirrou a
marginalização ante as pujantes dinâmicas que ocorriam na sociedade norte-
americana: "o conceito teórico, portanto, não é cultura da pobreza, mas o
isolamento social".9
Vale ressaltar que a ambigüidade do termo underclass e sua utilização
acusatória fez com que o próprio Wilson, que havia defendido a utilização do
conceito em Truly Disadvantaged, em agosto de 1990, no discurso oficial como
presidente da Associação Americana de Sociologia, recomenda o seu abandono
(1990). Em When work disappears (1997), o autor utiliza o termo raramente e de
maneira crítica, preferindo a designação de jobless ghetto para conceituar os
assim chamados novos pobres urbanos.10 A partir da década de 1990 são raros os
pesquisadores progressistas que o utilizam, pois se tornou "um instrumento de
acusação pública" (Wacquant, 1996a, p. 250).
11
Conservadorismo e novo liberalismo
"America is back": coesão familiar, trabalho árduo, laços comunitários, esforço
e responsabilidade individual, diminuição da ação estatal, crença no livre jogo
do mercado, patriotismo. Eis algumas ênfases dos valores que caracterizam os
discursos e as ações da hegemonia conservadora que se acentuam a partir dos
governos Ronald Reagan e George Bush. No âmbito das políticas públicas, cabe
destacar a lei de 1988, conhecida como Family Support Act -FSA, que altera
as regras do Aid to Families with Dependent Children - AFDC: tratava-se de
combater a permissividade dos subsídios públicos. O espírito do novo programa
colocava em xeque o princípio de prerrogativas de direitos - entitlement
-, pois a concepção de contrapartida passa a ser condição necessária para a
obtenção de benefícios: deve "haver obrigações sociais da cidadania" (Mead,
1986).12 O clima social e político dominante na década de 1980 permite tornar
explícito os pressupostos acerca da pobreza feminina, principalmente, a afro-
descendente:
[...] eles implicam que as políticas de bem-estar causam ruptura
familiar, que as mulheres pobres têm filhos para aumentar seus
benefícios, que mulheres sem maridos são promíscuas e sexualmente
irresponsáveis e que o casamento constituía uma estratégia eficiente
de combate à pobreza para as mulheres sem recursos (Abramovitz e
Withorn, 1998, p. 156).
A hegemonia do período republicano produziu novas concepções políticas que
aproximaram liberais e conservadores no governo democrata subseqüente de Bill
Clinton: end the welfare as we know it, frase da primeira campanha
presidencial, sintetiza novos postulados neo-liberais que desembocam no
estuário tradicional das premissas conservadoras e que, em meados dos anos de
1990, com a vitória republicana no Congresso, como será detalhado mais adiante,
dará origem ao PROWORA - Personal Responsability and Work Opportunity
Reconciliation Act. Seus pressupostos são a exigência da necessidade de
trabalhar e o combate à desestruturação familiar, enquanto o benefício torna-se
mais difícil de ser obtido, limitado no tempo e sujeito a constante
verificação.
O elã liberal de promover grandes reformas consubstanciadas na War on Poverty
da década de 1960 chegou ao fim, quando o próprio presidente Clinton declara
que "the era of government is over". Mas não apenas mais mercado e menos Estado
passaram a alimentar o inventário dos novos democratas, também os postulados
progressistas tradicionais foram sendo solapados por concepções moralistas
acerca dos comportamentos e dos valores da população pobre. A retórica
conservadora triunfava na medida em que as entonações acusatórias relacionadas
ao welfare dependency ganhavam suporte na opinião pública e traduziam-se em
políticas governamentais. Em síntese, tratava-se do "colapso do liberalismo"
(Noble, 1997, p. 135).
Vale insistir nas teclas da aproximação dos novos liberais com as entonações da
ação e do pensamento das partituras conservadoras:
[...] o ataque sistemático nas políticas de bem-estar teria sido
outra rodada de reformas historicamente conservadoras se não tivesse
sido aprovado com grande suporte liberal. Os legisladores "liberais",
a media "liberal" e os cientistas sociais "liberais" apoiaram as
reformas de maneira acrítica, justificaram seus ataques ou
consentiram por meio do próprio silêncio (Abramovitz e Withorn, 1998,
p. 152).
A pouco mencionei que o termo underclass tinha caído em desuso nos anos de
1990. Desuso relativo, pois o núcleo do pensamento conservador reforçou nas
tintas que pintavam essas subclasses urbanas em termos marcadamente patológicos
e imorais. Nesse aspecto, novamente despontam os estudos de Charles Murray:
Eles se comportam de maneira diferente de todos os demais [...]. O
homem na família era incapaz de manter um trabalho por mais de
algumas semanas. A crianças estavam negligenciadas e comportavam-se
de forma grosseira, criando problemas nas escolas. Freqüentemente, os
pais dessas crianças não eram casados. Alcoolismo e promiscuidade
sexual eram comuns. Assim como o crime, pequeno ou grande. Esse tipo
de comportamento é o que designo pelo termo underclass - que não
é somente pobreza, mas uma forma de comportamento [...]. Dez anos
atrás, eu não poderia ter escrito os parágrafos precedentes sem ter
sido chamado de racista (Murray, 1996, pp. 91 e 100).13
A arrogância desse conservadorismo triunfalista, que radicalizou a
culpabilização das vítimas, continuou no percurso dos anos de 1990 a suscitar
fortes críticas. Para só citar algumas obras recentes: foram denunciadas novas
modalidades de racismo que insistiam na falta de motivação por parte dos grupos
afro-descendentes e, portanto, na inoperância do apoio público (Wilson, 1999,
pp. 21 e seguintes). Contestou-se a inexistência de aspirações diversas entre
camadas pobres e remediadas ou abastadas e que a questão da pobreza deveria ser
equacionada em torno das diferenças de oportunidades socioeconômicas (Gans,
1994, caps. 1 e 2). Contudo, a argumentação dominante deixou de estar centrada
nas análises macroestruturais - mudanças tecnológicas e organizacionais,
desindustrialização, deteriorização e êxodo urbano, dinâmica das classes,
preconceito racial, ou na questão feminina. Esses enfoques perderam grande
parte de sua capacidade persuasiva na medida em que sucumbiram na avalanche
explicativa que culpabilizava os pobres por sua situação. Em suma, nas palavras
de um texto radical que mostra a capitulação dos novos liberais: "a direita
venceu" (Abramovitz e Withorn, 1998, p. 173).
A trajetória do programa designado de Aid to Families with Dependent Children
- AFDC pode dar uma visão da evolução das políticas públicas nos Estados
Unidos. Criado em 1935 como uma medida de proteção às viúvas, foi ampliado
durante a década de 1960, com a implementação da War or Poverty para famílias
que tinham um ou dois desempregados, bem como para as monoparentais,
principalmente, de mães solteiras. Essa política passa a ser extremamente
criticada pelos conservadores e cada vez mais irá prevalecer a concepção de
contrapartida para quem é ajudado pelo poder público. Como já mencionado, esse
é o espírito da lei conhecida como Family Support Act de 1988, promulgada
durante o governo de George Bush. Nela, o princípio de welfare é substituído
pelo de workfare e learnfare, que se tornaram condições prévias para se obter
auxílios. Bill Clinton não tem posição diversa: em 1994 é aprovada uma lei que
substitui a AFDC pela TANF - Temporary Assistence for Needed Families, que
possibilita uma ajuda de apenas dois anos consecutivos ou cinco no total,
permitindo a cada Estado estipular o montante a ser despendido e legislar sobre
as regras para a concessão de auxílio. Finalmente, a reforma de agosto de 1996,
quando há maioria republicana, o 103º Congresso, com a adesão de uma grande
fatia dos democratas, aprova um novo Contract-with-America, o Personal
Responsability and Work Opportunity Reconciliation Act - PROWORA, que torna
a concessão de benefícios mais rígida, baseada na emulação da responsabilidade
individual. Sua finalidade, ao extinguir a prerrogativa de direitos, é combater
a assim designada welfare dependency.
Vale insistir na importância dessas mudanças:
Esta reforma [PROWORA] efetivamente destruiu a antiga presunção de
sessenta anos de que as famílias com necessidade tinham "direito" às
políticas de bem-estar social. Pela primeira vez, governos estaduais
poderiam negar auxílio às mulheres pobres, mesmo quando se
encontravam qualificadas segundo as regras de elegibilidade do
programa. O novo nome para AFDC - Temporary Aid to Needed
Families - assinala a intento dessas drásticas revisões
(Abramovitz e Withorn, 1998, p. 159).
Repita-se quantas vezes necessário for: apesar de amortecida durante os anos de
1990, a discussão norte-americana continua centrada na questão da welfare
dependency e, em última instância, em blaming or not blaming the victim.
O debate na atualidade francesa: a responsabilidade do Estado
Não se constrói cidadania sobre a inutilidade social.
Robert Castel, 1995a.
Os percursos da questão social
Extraída de obra seminal, esta frase sintetiza a amplidão do debate francês.
Sintetiza, ao contrário da polêmica norte-americana, que a extensa
vulnerabilidade é de responsabilidade do Estado. De fato, com diagnósticos e
propostas diversas, os diferentes partidos do espectro político francês, da
esquerda à extrema direita, consideram ser função essencial da ação estatal
combater a assim chamada exclusão social e econômica. Por outro lado, vultuosos
recursos são alocados em áreas degredadas, os quartiers difficiles, que
concentram contingentes de estrangeiros, mas também grande número de franceses
que se encontram desempregados ou com tarefas precárias, onde é freqüente a
desorganização familiar, o isolamento social e a delinqüência juvenil.
Vale dizer que nenhum agrupamento político, sindical, técnico ou intelectual
coloca em xeque a necessidade da atuação governamental: os debates e embates
residem no que e como o Estado precisa atuar. Apesar de antigos, eles ganham
novos contornos depois da Segunda Grande Guerra, no contexto de uma nação que
recém expulsara os invasores nazistas e fizera as contas com os
colaboracionistas de Vichy: era necessário reconstruí-la. Nesse sentido,
aponte-se que, após 1945, inicia-se uma longa fase de crescimento, no qual os
órgãos governamentais têm forte interferência econômica. São os "Trinta anos
gloriosos", caracterizados pelo pleno emprego e pela extensão de uma gama de
direitos que fundamenta a proteção social dos assalariados. Mais do que nunca
se impulsiona a construção do Estado de bem-estar social - État Providence
ou État Social.
É nesse contexto social e político que se tecem os fios da questão social da
atualidade francesa.
14
Sua problematização e as políticas sociais dela derivadas podem ser
periodizadas em quatro grandes momentos. O primeiro, no esforço de reconstrução
do pós-guerra, estende-se até o fim dos anos de 1960 e o problema a ser atacado
centra-se na moradia, principalmente, em prédios antigos que abrigam cortiços.
Daí a palavra de ordem levada adiante pelo abade Pierre em 1965: "guerre au
taudis"! Desencadeiam-se ações governamentais de renovação urbana, construção
de grandes conjuntos, principalmente os HLM, habitação de aluguel moderado. Na
mesma direção desse discurso católico, Jean Labbens, militante da Association
Quart Monde - ATD, designação que se refere aos que não conseguiram se
manter ou se tornar assalariados, denuncia as injustiças e clama por
intervenções que incorporem os "esquecidos" do progresso (Labbens, 1969, 1978).
15
É este também o posicionamento do abade Wrisinski, criador da citada entidade
e dinamizador do movimento aide à toute détresse, ou seja, daqueles que não
conseguiram acompanhar o dinamismo da sociedade industrial.
No segundo momento, já em meados dos anos de 1970, a problemática transborda o
âmbito da moradia e dos deserdados da fortuna. É nessa conjuntura que o termo
exclusão social, através do livro de René Lenoir (1974), secretário de Estado
da Ação Social do governo Jacques Chirac, de filiação gaullista, começa a
adquirir visibilidade ao instalar-se de forma ainda pouco ruidosa no universo
discursivo da política e da imprensa. Malgrado a análise realçar os problemas
pessoais em detrimento dos macroprocessos socioeconômicos, já se aponta para o
fato de que o crescimento da riqueza em si não reduz os níveis de pobreza que
se abate sobre os handicapés sociaux: doentes mentais, alcoólatras, deficientes
físicos e mentais e uma gama de inadaptados que deveriam ser beneficiados por
políticas específicas de proteção social. Trata-se de uma "outra França [...] à
margem da normal [...] mas que, não obstante sua situação de excepcionalidade,
constitui uma [...] gangrena que ameaça [...] o conjunto do corpo social"
(Lenoir, 1974, pp. 10 e 36).
A partir da segunda metade da década de 1980, já não se diz mais os "expelidos
pelo dinamismo do progresso", pois os diagnósticos e as proposições se calibram
em torno do que se convencionou chamar de nova pobreza.
16
Nova pobreza porque a vulnerabilidade deixa de afetar só os grupos periféricos
para se tornar um problema que desaba sobre as camadas que ocupam os estratos
inferiores da pirâmide social. Não é mais só a fímbria da sociedade, mas se
trata agora também de suas bases:
Nos anos de 1980, o movimento de precarização econômica e social
afeta as pessoas de baixa qualificação, os handicapés légers, grande
número de pessoas que, durante o período de expansão designado de
"Trinta Gloriosos", tinha um emprego. A participação na vida
econômica e social torna-se, para esses novos pobres,
conjunturalmente aleatória. Os mais dotados em capitais escolares e
relacionais permanecem, por um tempo ainda, poupados por essa nova
pobreza (Frétigné 1999, p. 62).
Lenta e persistentemente a questão social adquire novas e amplas configurações,
passando dos "esquecidos do crescimento" dos anos de 1970 para os menos
preparados do decênio seguinte, para culminar em uma situação de extensa
vulnerabilidade que, em sua plenitude, desponta no início da década de 1990. Em
síntese, em vinte anos a questão social metamorfoseia-se de "anormais
incapazes" para "normais inúteis" (Donzelot, 1996, p. 59).
17
Ela passa a englobar também estratos com níveis mais elevados de instrução e
qualificação, trabalhadores especializados e quadros profissionais que até
então trilhavam carreiras estáveis e previsíveis, num percurso protegido por
direitos que lhes propiciava a ascensão econômica e social e uma forte presença
no cenário político. Inicia-se uma situação de vulnerabilidade advinda do
desemprego e da precarização do trabalho, rebaixamento de status e da perda de
raízes ligadas à sociabilidade primária. Trata-se de grandes e variados grupos
de "excluídos", sobre os quais as ciências humanas produziram dezenas de
investigações e inúmeras teorizações sobre essa sempre renovada questão social
que passa a penetrar o centro dos debates jornalísticos e políticos.
Não pretendo fazer um balanço dessa vasta literatura, mas tão-somente apontar a
caracterização feita por alguns autores que toca em pelo menos três pontos
básicos interligados. O primeiro diz respeito à desnecessidade desses grupos
para as dinâmicas econômicas. Cito apenas alguns autores: Jaques Donzelot e
Philipe Estebe (1991, p. 26) falam em "normais inúteis", Robert Castel (1991,
p. 154; 1993, p. 145), em "desestabilização dos estáveis". Serge Paugam (1991,
pp. 6 ss.) alude ao "descrédito" que se abate sobre os que estão à margem,
Vincent Gaujelac e Isabele Leonetti (1994, p. 4) sublinham a percepção de
"inferioridade", de "identidade de ferida", Viviane Forrester (1997, p. 38)
exagera acerca da "normalização da anulação social", enquanto Pierre Bourdieu
(1993, pp. 487-498), em magnífica obra coletiva, descreve o sofrimento físico e
mental decorrente da extrema pobreza e nos revela o que significa "viver por um
fio".18 Finalmente, há a temática referente à perda das identidades advinda do
desenraizamento familiar e comunitário, à queda da participação em associações
recreativas, sindicais e partidárias, processos que conduzem à apatia e ao
isolamento em um cenário social e político marcado pela diminuição dos
conflitos abrangentes, fragmentação dos atores sociais e diluição de interesses
coletivos. É nesta acepção que Jacques Donzelot e Philipe Estebe (1991, p. 27)
se referem às "não-forças sociais, esta classe de desclassificados", que Robert
Castel (1985a, p. 427) acentua a "ausência de perspectivas para controlar o
futuro", e que Pierre Rosanvallon (1995, p. 203) dirá: "os excluídos
constituem, de fato, quase que por sua própria essência, uma não-classe".
Em suma: a questão social passa a ser marcada por um processo em massa de
desenraizamento e vulnerabilidade social e econômica. O operário, antes
sindicalizado e freqüentemente simpatizante ou militante de esquerda, comunista
ou socialista, vivia em bairros densos de vida social e política, dos quais se
destaca, por sua tradições e experiências de luta, a ceinture rouge,
correspondente às áreas que rodeiam Paris (Brunet, 1980, 1981; Pronier, 1983;
Fourcaut, 1986). Nelas ramificavam-se múltiplas formas de sociabilidade
operário-popular em torno das associações de bairro e também nas horas de
lazer, festas, esportes e no bistrot, onde se teciam redes de solidariedade que
asseguravam uma proteção advinda da proximidade social das classes
trabalhadoras (Magri e Topalov, 1990).
Seja pelo aumento do desemprego e trabalho precário, seja pela crise econômica
pós-1975, pelas mudanças tecnológicas e organizacionais decorrentes do modo de
acumulação flexível ou por inúmeras outras causas que não cabem aqui
aprofundar, o importante a realçar é que esses mundos operário-populares se
desfazem: neles, os conflitos e as reivindicações contrapunham-se a opositores
visíveis - o Estado, a burguesia, o patronato - e a violência inerente
a essas lutas construía significados e sentidos que visavam a alterar a balança
dos benefícios e das riquezas, e não poucas vezes projetavam valores de uma
nova sociedade. Dito de outra forma, é o momento da centralidade das classes
trabalhadoras, sobretudo da operária, na hegemonização das lutas e das
reivindicações socioeconômicas e políticas. Nas áreas em que as indústrias
têxteis, metal-mecânica, automobilística, química ou siderúrgica fecharam suas
portas, os moradores que puderam sair, assim o fizeram, lá permanecendo aqueles
que não tinham a alternativa de partir destes bairros, que passaram a ser
chamados de "difíceis" ou "sensíveis", para permanecer nas designações oficiais
mais freqüentes. Nessa conjuntura acirrada nos anos de 1980 e 1990,
desarticulam-se as formas associativas que sedimentavam identidades assentadas
no trabalho assalariado e na vida comunitária: trata-se de um enorme processo
que Castel denomina crise da sociedade salarial (Castel, 1995a, caps. 7 e 8).
Por outro lado, vale sublinhar que a assim chamada violência urbana passa a ser
freqüente no cotidiano desses bairros, também designados de "relegados"
(Delarue, 1991).19 São manifestações esparsas e descontínuas, um pipocar de
depredação, brigas, pequenos delitos ou outros atos predatórios realizados por
jovens, la galère. Traduzem sentimentos difusos de "ira", "ódio", "raiva" ou
"tédio", "a chatice e o vazio da existência" que, em certas ocasiões, explodem
nas banlieus, também chamadas de exílio:20 "eles se revoltam mas não
reivindicam nada. Expressam pela rebelião um desespero" (Donzelot e Estebe,
1991, p. 38). Minguettes, periferia de Lyon, verão de 1981: logo após a vitória
dos socialistas com a eleição de Mitterrand, numa conjuntura política
promissora às propostas da esquerda, jovens furtam e queimam automóveis de
luxo, sob os olhares perplexos do país, que a tudo assiste ao vivo pela
televisão, e de uma polícia que não sabe o que fazer. Não são delinqüentes, mas
cometem pequenos delitos, são arruaceiros que em bandos perambulam sem rumo,
consumidores de drogas, com baixo nível educacional, uns desempregados, outros
trabalhando, saltitando de estágio em estágio profissional. Seus comportamentos
caracterizam-se pela incivilidade e falta de civismo em relação à família, à
escola, ao prédio e ao bairro em que vivem, onde se localizam grandes conjuntos
habitacionais, freqüentemente degradados e depredados. Suas cóleras voltam-se
contra os agentes públicos, professores, assistentes sociais e, sobretudo,
contra a polícia. Ativismo que não se canaliza em reivindicações concretas,
"nomadismo imóvel", pois, como um relógio, sempre volta para o mesmo ponto,
"agitações sem objeto", já que suas energias não se calibram para superar
problemas concretos: "zonear significa perambular na superfície das coisas,
aprimorar-se em nada fazer, ir de um lugar a outro sem ir a lugar algum"
(Castel, 1995b, p. 14).21
Tudo indica que a galera não se caracteriza por uma "cultura da pobreza" à la
Oscar Lewis ou pelo "isolamento sociocultural" como William J. Wilson se refere
aos inner cities ghettos underclass dos Estados Unidos, mas revela atitudes e
comportamentos que já foram cunhados de "cultura do aleatório" (Rouleau Berger,
1992, apud Castel, 1995a, p. 411).22 Contudo, nessas áreas, não habitam apenas
pessoas que vivem um processo de ruptura social e econômica, nem prevalecem a
desesperança, a desordem ou um potencial crônico de agressão. Isso existe, sem
dúvida, mas, como mostra a etnografia que se deteve no significado da vida
nesses bairros, é também um espaço do trabalho, do estudo, das relações
afetivas e - como não poderia deixar de ser - onde se arquitetam
projetos e aspirações que combinam desânimo, desilusão, esperança e otimismo.23
A problemática urbana e a dos jovens tornaram-se, no decorrer da década de
1990, um dos eixos que norteiam a questão social. Nesse sentido, são exemplos a
serem destacados o Développement Social de Quartier, de 1981, as Zones
d'Education Prioritaires, no ano seguinte, o Comité Communal de la Prévention
de la Délinquence, Délégation e Comité Interministerielle de la Ville, em 1988,
que culminaram um ano depois no Ministère de la Ville, que coordena a ação de
vários órgãos referentes à educação, à saúde, ao emprego, à reforma e ao
planejamento urbano, além de programas específicos voltados a jovens, idosos,
famílias numerosas ou de chefia feminina (Damon, 1997). Sabe-se que os bairros
periféricos são diversos, bem como a população que lá habita (Vários autores,
1998). Não obstante essa constatação, as análises insistem na temática da
"fratura urbana", da "cidade desfeita, quebrada e implodida", em síntese, da
"sociedade incivil" (Donzelot, 1999, p. 97).
Repita-se quantas vezes necessário for: nesses locais ocorreu o esfacelamento
do modo de vida de tradição operário-popular, decorrente de um processo de
urbanização que criou os grandes e desumanos conjuntos habitacionaise do
esvaziamento das atividades fabris e da capacidade organizativa de associações,
sindicatos e partidos de esquerda. Nesses locais, onde "não se deve ir", o
cotidiano é marcado por manifestações endêmicas de violência urbana. Utilizo
longa citação de uma pesquisa que mergulhou no significado de habitar nessas
periferias marcadas pela marginalização:
[Essas aglomerações são] os lugares onde não se vai jamais, a não ser
quando lá se mora ou quando há razões imperiosas [...]. A violência
volta-se contra aqueles que dividem o mesmo habitat, a mesma
comunidade de destino. E, forçosamente, ela transborda para o
exterior de maneira errática, não política, ela faz as famílias
implodirem [...]. São também locais em que bombeiros, policiais e
trabalhadores sociais ou outros visitantes não podem mais ir sem ser
insultados ou agredidos [...] não podem mais deixar seus automóveis.
[É onde] a lei do silêncio reina sobre os atos cometidos de uns
contra os outros, quando a vingança privada suplanta a sanção pública
(Murard, 1995, pp. 203, 207 e 217).
A presença do Estado
Afirmei que foram inúmeros os autores que trataram deste complexo tema,
utilizando conceitos os mais diversos. Para mencionar apenas alguns:
desqualificação social, que indica os rejeitados do processo produtivo e suas
conseqüências socioculturais, ou desinserção, caracterizada pelo
enfraquecimento dos laços relacionais e por uma identidade (auto)estigmatizante
que acaba por induzir ao retraimento, à resignação ou à rebeldia.24 Aponto
também as colocações de Alain Touraine, segundo as quais a oposição "no alto ou
em baixo" teria sido uma hierarquização típica das sociedades industriais
estruturadas na dinâmica das classes sociais e superada pelos solavancos das
sociedades pós-modernas. Nelas, as estruturações sociais e econômicas estariam
assentadas na dicotomia de setores in e out, pois a verticalidade das
polarizações teria sido suplantada por aquela de caráter horizontal, isto é,
estar ou não nas banlieus (Touraine, 1992; 1991).
Não obstante tais contribuições, considero, contudo, que a obra de maior
envergadura histórica e teórica é a de Robert Castel:
[...] silhuetas incertas às margens do trabalho e nas bordas das
formas de troca socialmente consagradas - desempregados de longa
duração, habitantes das periferias deserdadas, beneficiários da renda
mínima de inserção, vítima das renconversões industriais, jovens em
busca de emprego e que perambulam de um estágio a outro, pequenas
tarefas em ocupação provisória - quem são eles, de onde vêm, como
chegaram lá, o que irão se tornar? (1995a, p. 13).25
Situações as mais diversas: ex-operários que possuíam uma profissão, idosos que
vivem retirados no seu isolamento, bandos de jovens que vagueiam sem nada
fazer. Essas trajetórias nada têm em comum e seus destinos não os unem, salvo a
existência vulnerável, a percepção de um destino incerto: desfiliação significa
perda de raízes sociais e econômicas e situa-se no universo semântico dos que
foram desligados, desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, inúteis
e desabilitados socialmente.26 Não se trata, alerta o autor, de um estado ou de
uma condição, mas de um percurso que é preciso constantemente perseguir para
delinear suas múltiplas metamorfoses, pois a questão social só pode ser
equacionada do ponto de vista histórico, por conseguinte, dinâmico, mutável e
contraditório. Daí o título do livro: Les métamorphoses, "metamorfoses,
dialética do mesmo e do diferente [...]. A questão social é uma aporia
fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e
procura conjurar o risco de sua fratura" (1995a, pp. 16 e 18, grifos meus).
De modo esquemático, o modelo formal está apoiado em dois eixos, um de caráter
econômico, e outro, social, representados pelas trajetórias, respectivamente,
do emprego estável e regular para modalidades de trabalho precário até atingir
a situação de desemprego, e da plena inserção na sociabilidade primária -
família, vizinhança, comunidade -, marcada por sólidas redes sociais ao
retraimento do universo domiciliar/pessoal, definido pela fragilização das
relações. Daí surgem quatro zonas: de integração, caracterizada por garantias
de um trabalho permanente e por relações sociais sólidas; de vulnerabilidade,
que conjuga precariedade no trabalho e fragilização da sociabilidade primária;
de assistência, que revela um quadro no qual várias formas de subsídio público
se tornaram imprescindíveis para não ocorrer uma dinâmica de desligamento
social e econômico; e, por fim, de desfiliação, que significa não só
desemprego, mas também perda das raízes forjadas no cotidiano do trabalho, do
bairro ou da vida associativa. "Atualmente [início da década de 1990] a zona de
integração se fratura, a zona de vulnerabilidade está em expansão e alimenta
continuamente à zona de desfiliação. O único recurso reside em reforçar no
mesmo ritmo a zona de assistência?" (Castel, 1991, p. 153).
Indivíduos desenraizados sempre existiram e sobre estes errantes de séculos
passados desabava uma representação flagrantemente discriminatória e
estigmatizante. Sobre as ditas "profissões infames" despencavam a pecha
vadiagem, malandragem, charlatanice ou patifaria, e, no decorrer da história,
várias foram suas designações: "indigentes franceses, malfeitores ingleses,
aventureiros na Alemanha, pícaros espanhóis, larápios, velhacos, excluídos,
mendigos, rufiões, truões, malandros, malabaristas, farsantes, devassos,
luxuriosos e rameiras [...]" (Castel, 1999, p. 33).
Esses segmentos marginais não devem ser confundidos com aqueles que se
encontram em uma condição de exclusão. Trata-se de uma diferenciação conceitual
crucial, porque a noção de exclusão, além de estar saturada de significação,
traz consigo a idéia de uma dicotomia estática e, portanto, a-histórica
(Castel, 1995a, p. 15). É também crucial, pois se sabe que, já no século XIV, a
palavra esteve associada à idéia de não ser admitido, repelido ou de ser
mandado embora. Posteriormente, seu significado passa a designar alguém que se
encontra desprovido de direitos (Rey, 1992, apud Frétighé, 1999, p. 151); ou
seja, significa cercear, separar ou confinar, cujos exemplos são o apartheid,
da África do Sul, até recentemente, ou os negros norte-americanos que até os
anos de 1960 em Estados do Sul eram impedidos de entrar em determinados locais.
Pode ter, além disso, o sentido de banimento, cujo exemplo clássico foi a
expulsão de judeus e mouriscos da Espanha dos reis católicos, que obrigaram sua
conversão ao catolicismo ou, em contrapartida, o exílio. Restrição de acesso,
confinamento ou expatriação supõe um ato que tenha força legal, até mesmo em
situações extremas de extermínio, sejam os considerados heréticos pela Santa
Inquisição, seja os judeus e ciganos na Alemanha nazista. Não se trata,
portanto, de desfiliação, que significa fragilização de laços socioeconômicos,
mas de destituição de direitos que, em última instância, pode atingir, seguindo
o pensamento de Hannah Arendt, a perda do direito de ter direitos (Castel,
1995b, pp. 18-19).
Por conseguinte, a questão social, que caracteriza a crise da sociedade
salarial, reside num amplo e variado processo de vulnerabilidade, mas não
revela, no caso francês, uma situação de exclusão nos vários graus e tipos
antes apontados. Ela é fruto de um percorrer histórico que leva à ampliação e à
consolidação de direitos coletivos, relativos à seguridade social e ao
trabalho, enfim, à constituição de um campo legítimo e legal de reivindicações
em que os opositores se chocam nos conflitos e aceitam as regras de sua
negociação. Trata-se de um embate institucionalizado que visa à expansão do
direito a ter direitos. Ela é, ademais, forjada pela chamada cultura do pobre,
na acepção que Richard Hoggart (1970) confere à percepção de pertencer a
valores e expectativas, a sociabilidade que aproxima as pessoas numa
metamorfose que entrecruza o mundo do trabalho com comunidade de bairro. A
sociedade salarial é também constituída pela formação das classes trabalhadoras
- da qual nos fala Edward P. Thompson (1997) -, apoiada nas tradições
que lapidam mútuos reconhecimentos e experiências compartilhadas.27
A dignificação do trabalho assalariado é um tortuoso percurso que atravessa
todo o século XIX e parte do século XX. De forma sumária, pode-se dizer que
começa a se configurar após 1830 uma nova questão social que se circunscreve em
torno do pauperismo imperante com o avanço da Revolução Industrial. A liberdade
de contratação vigente produziu uma mão-de-obra mal-remunerada, freqüentemente
mutilada por acidentes e dilapidada prematuramente pelas longas jornadas de
trabalho que caracterizavam as chamadas satanic mills. Basta ler Os miseráveis,
de Vitor Hugo, para se ter um quadro do rigor e dos horrores vinculados ao
trabalho assalariado e à moradia em bairros pobres, onde predominavam a
insalubridade e a promiscuidade da vida nos cortiços e também se concentravam
as "classes perigosas" dos inícios do século XIX.
A questão social da época residia em regulamentar as condições de trabalho
quanto à remuneração, à jornada e à segurança e em criar um leque de proteção
social para aqueles que ficassem sem emprego. Basta a análise do processo que
leva ao reconhecimento do desempregado para se perceber que a construção da
sociedade salarial é plena de conflitos e negociações que produzem o
reconhecimento público do assalariado como sujeito de direitos coletivos
(Topalov, 1994): férias remuneradas, convenções coletivas e jornada de quarenta
horas semanais, em 1936, leis da moderna seguridade social, após a Segunda
Grande Guerra, e salário mínimo, em 1950, são degraus que edificam a sociedade
salarial, ao passo que o controvertido contrato individual referente à renda
mínima de inserção - RMI, de 1988 - e à redução da jornada de trabalho
para 35 horas semanais, promulgada em 2000, já são expressões da crise que se
alastra a partir da década de 1980:
[...] da mesma forma que o pauperismo do século XIX estava inscrito
no coração da dinâmica da primeira industrialização [...] a
precarização do trabalho é um processo central, comandado por novas
exigências técnico-econômicas do capitalismo moderno. Nisso residem
muitos pontos para levantar uma nova questão social, com a mesma
amplitude e a mesma centralidade que aquela que o pauperismo colocava
na primeira metade do século XIX [...] (Castel, 1995a, pp. 409-410).
Repita-se ainda uma vez: quero crer que a questão social na França deve ser
equacionada no âmbito da tradição republicana que se assenta - do ângulo
que aqui cabe salientar - em uma poderosa maquinaria pública de proteção e
regulação econômica e social. Trata-se de instâncias de mediação de interesses
conflitantes que têm por objetivo produzir um campo institucional de direitos e
obrigações. Além de republicana, é também jacobina, no sentido de se opor a
privilégios, e de esquerda, posto que, desde o século XIX, bebeu nas águas do
sindicalismo e do mutualismo operário, e que, no século XX, valeu-se dos
partidos e dos sindicatos comunistas e socialistas, que exerceram um papel
decisivo na formatação do Estado de Bem-Estar já no período entre as duas
Grandes Guerras Mundiais. Assim, penso ser possível afirmar que a problemática
central do atual sistema político francês reside em gerar instâncias de combate
à vulnerabilidade econômica, social e urbana. Não é por outra razão que a forte
presença da ação pública, ao procurar mediar formas de solidariedade, encontra-
se em outro universo da tradição do individualismo norte-americano, apoiada na
valorização da work ethics e nos perigos, não raramente persecutórios, da
welfare dependency:
[...] exclusão [é] uma palavra-chave da retórica republicana
francesa. Não só ela se origina na França, mas também está ancorada
na interpretação da história republicana revolucionária francesa e do
pensamento republicano. Desse ponto de vista, a exclusão não é
concebida como um simples fenômeno econômico ou político, mas como
uma falta de "nacionalidade", um esgarçamento do tecido social
(Siver, 1994, pp. 591-592, grifos meus).
Essa problemática está presente no discurso político oficial há algumas
décadas. Contudo, o termo "exclusão", no sentido forte de garantir a coesão
social, só aparece no âmago do aparelho do Estado em 1991. É quando o
Comissariat Général du Plan assume a responsabilidade de promover a inclusão
dos segmentos em situação de vulnerabilidade, destacando a cidade, a escola, o
emprego e a proteção social, pois os bairros periféricos, os jovens que não
acompanham a seriação educacional, os desempregados de longa duração e aqueles
que necessitam de assistência despontavam como questões sociais que colocavam
em xeque a solidariedade social da sociedade francesa (Fassin, 1996, pp. 43-
44).
Desde então o debate penetra no coração dos embates e debates políticos,
despontando como prioridade nacional que articula plataformas eleitorais e
políticas de várias instâncias de governo: a fracture sociale está no centro da
campanha de 1995, quando a direita, com Jacques Chirac, ganha as eleições,
assim como dois anos depois, ocasião em que os socialistas, liderados por
Leonel Jospin, conseguem a vitória eleitoral: aquele aposta na dinamização da
atividade econômica e este - vale lembrar - prescreve a diminuição da
jornada de trabalho para 35 horas semanais. Na extrema direita, Jean Marie Le
Pen, no seu Appel aux Français, impregnado de racismo e xenofobia, também
prioriza o combate à pobreza e à desigualdade, vociferando contra a presença de
estrangeiros em solo pátrio: o neo-fascista fala em extirpar a França dos males
alienígenas que a contaminam para devolvê-la aos verdadeiros franceses. É
também assunto central da grande imprensa que o aborda em termos indignados,
pois considera o alijamento social e econômico em massa verdadeira "vergonha
nacional". Como exemplo: "uma sociedade desenvolvida não pode viver com
semelhante fratura e tolerar que uma parte importante de sua população arruíne
sua coesão social".28
Para terminar este tópico, convém mencionar algumas ações governamentais para
os anos 2000-2006 centradas na Gestion Publique de la Politique de Ville, do
governo de Jospin, dirigidas prioritariamente para a renovação urbana, o
emprego, o desenvolvimento, a educação e a segurança pública. Trata-se de uma
intervenção coordenada a partir de contratos realizados com o Estado em 1.310
bairros prioritários, 750 zonas urbanas sensíveis (ZUS), outras 416 de
redinamização urbana (ZRU), 44 denominadas franquia urbana (ZFU), nas quais
ocorrem isenções de impostos e de encargos sociais. Acrescente-se ainda trinta
operações de renovação urbana e cinqüenta grandes projetos para cidades (GPV),
686 zonas de educação prioritária (ZEP), 850 conselhos comunais de prevenção da
delinqüência (CCPD) e nada menos que 8.500 agentes locais de mediação social,
especialmente treinados para múltiplas atuações no âmbito comunitário.29
Esse conjunto de atuações interligadas constitui uma entre muitas formas de
intervenção das instâncias públicas no combate da assim denominada "fratura
social". Não estou discutindo se a forma mais adequada de reinserção
socioeconômica seja por meio da questão urbana, apoiada na dinâmica do bairro,
pois sabe-se que os processos essenciais da precarização e da vulnerabilidade
não estão centrados no âmbito local (Préteceille, 1998, p. 42). Deve-se até
mesmo questionar essas políticas caso estejam orientadas por uma concepção de
segurança pública, que visa, por meio de órgãos assistências, jurídicos e
policiais, a combater a pequena delinqüência praticada por jovens nas ruas dos
bairros sensíveis ou difíceis, fazendo com que "a prevenção estrutural
desaparecesse em proveito da prevenção da delinqüência" (Bonelli, 2001, p. 20).
Contudo, à diferença do caso norte-americano, o republicanismo francês sempre
priorizou a ação estatal como mediadora de interesses e conflitos e, nesse
sentido, criou aparatos que lhe conferem a responsabilidade de agir contra a
marginalização social e econômica. Os embates e debates não se centram,
portanto, na polaridade "culpar ou não culpar as vítimas" - ponto modal da
controvérsia norte-americana -, mas de criar instâncias públicas que
interfiram nessas situações e nas causas que as produzam.
Nesse aspecto, a renda mínima de inserção (RMI) é paradigmática, pois o núcleo
do debate não reside no fato de ela provocar uma "cultura da inatividade". Ao
contrário, as críticas dominantes são dirigidas por ela não ser um direito de
caráter inquestionável e apresentar a formalização de um contrato individual,
constantemente submetido a questionamentos de entrevistas ministradas por
agentes dos serviços sociais. Para ter acesso a esse direito, a pessoa
necessita comprovar sua "desabilitação social" advinda de uma trajetória de
vida estilhaçada por sofrimento e fracassos e que precisa ser retomada por meio
de um projeto pessoal alicerçado na formação e na capacitação profissional, na
busca de um emprego ou de outra atividade social.30 Contudo, à diferença da
concepção norte-americana, prevalece o princípio de prerrogativa de direitos:
as políticas sociais orientam-se para reinserir os grupos marginalizados, mas
não constituem contrapartida necessária para a obtenção de benefícios. Em
síntese, trata-se de um direito universal e, portanto, ao contrário da
responsabilização individual presente nos Estados Unidos, a fórmula republicana
francesa consiste em afirmar que "todo problema social do indivíduo é, antes de
tudo, responsabilidade da sociedade, que o indivíduo sofre os efeitos da
sociedade, e esta, portanto, lhe deve proteção" (Donzelot, 2001, p. 223).
Essas são as linhas básicas do debate acerca da questão social na atualidade
francesa, na qual a presença da ação estatal continua estratégica e prioritária
para a reinserção dos grupos vulneráveis.
E nós, como ficamos?31
Neste sentido ela [a pobreza] tem sim uma finalidade, qual seja a de reproduzir
a ordem social que é sua desgraça. Como ficamos?
Roberto Schwarz, 1990.
Nas páginas anteriores mostrei que a temática da vulnerabilidade está centrada,
no caso norte-americano, em culpar ou não culpar a vítima. O discurso
hegemônico que os conservadores vêm proferindo nos últimos vinte anos apregoa
que os serviços sociais estariam quebrando a ética do esforço e da
responsabilidade individual ao instalar o que chamam de welfare dependency. No
caso francês, ao contrário, em função da forte tradição republicana e jacobina
estruturada na crença sobre as virtudes da civilidade e do civismo que
fundamentam os laços de solidariedade entre os diversos interesses e
reivindicações, o debate, à esquerda ou à direita, torna o Estado elemento
central na promoção da re-inclusão dos grupos marginalizados ou desfiliados.
E nós, como ficamos? A pergunta ganha sentido quando se tem em conta que as
grandes transformações socioeconômicas e políticas das últimas décadas não
foram capazes de atenuar a pobreza em massa imperante na sociedade brasileira.
Em outros termos, quais discursos e ações dão conteúdo e forma às questões
sociais de nossa atualidade urbana em torno da problemática da desigualdade e
da injustiça?
Diferentemente da estruturação discursiva norte-americana, creio que a matriz
da desigualdade da sociedade brasileira não reside em culpar os pobres por sua
pobreza, apesar de o discurso sobre a vadiagem ter estado muito presente em
vários momentos da nossa história colonial, imperial e republicana. Contudo, a
magnitude do pauperismo, na atualidade de nossas cidades, aparece de forma tão
evidente que impede, cada vez mais, a afirmação de que vivemos em uma sociedade
aberta e competitiva, onde quem trabalha duro e arduamente consegue ter êxito.
Mesmo porque o desemprego, o subemprego e a precarização do trabalho atingiram
também parcelas importantes das camadas médias. O mito da ascensão social pelo
esforço e perseverança não encontra mais raízes para fundamentar o ideário da
escalada social. Ao contrário, o trabalhador honesto, cumpridor de seus deveres
- ante os ganhos provenientes de atividades ilícitas e ilegais - é
visto não poucas vezes como "o otário que labora cada vez mais para ganhar cada
vez menos" (Valladares, 1994, p. 107).
Por outro lado, inversamente aos embates e debates da sociedade francesa, o
problema da pobreza passa a ser menos atribuído como de responsabilidade do
Estado, mesmo porque a ação pública de proteção sempre foi de pequena
envergadura. Além disso, atualmente, ganha corpo a percepção de que o Estado
seja inoperante, ineficaz, corrupto, falido e que suas funções devam ser
reduzidas e substituídas por agentes privados, mais capacitados para enfrentar
as várias manifestações da marginalização social e econômica. Em conseqüência,
tem ocorrido um amplo e diverso processo de desresponsabilização do Estado em
relação aos direitos de cidadania, e, no seu lugar, surgem ações de cunho
humanitário que tendem a equacionar as questões da pobreza em termos de
atendimento particularizado e local.
Não desconheço as potencialidades de novas arenas que podem vir a estruturar
campos de proteção e lutas por direitos socioeconômicos e civis, cujos exemplos
mais promissores constituem o estatuto legal de defesa das crianças e
adolescentes, das mulheres, dos consumidores ou a recente legislação que
procura enfrentar os graves problemas urbanos de nossas cidades. Todos esses
esforços, não obstante abrirem canais de defesa e reivindicação, são ainda
embrionários, o que sustenta a ocorrência de amplo e variado processo de
destituição de direitos.
Penso que tal processo tem pelo menos duas matrizes de atuação diversas, mas
articuladas entre si. A primeira é clássica, e pode ser designada de controle e
acomodação social pela naturalização dos acontecimentos. Ao invés de
culpabilizar os pobres, os mecanismos residem justamente em desresponsabilizá-
los da situação em que foram lançados por acaso, sorte ou azar que despenca
aleatoriamente sobre uns e não sobre outros. Trata-se de discursos da
imponderabilidade que seguem as leis incontroláveis da natureza ou a
inevitabilidade daquilo que é assim porque assim sempre foi. A atualização
desses equacionamentos proclama as leis inescapáveis do mercado, da
globalização, do avanço tecnológico ou da hierarquização social e, dessa forma,
acaba por levar à individualização da questão do pauperismo. Estar
desempregado, morar em favela ou ser assassinado pela polícia ou por bandidos é
equacionado como uma sina que cai sobre os deserdados da sorte: trata-se,
enfim, de um "coitado".32 Em conseqüência, não só quem está no comando da
relação social se desobriga dos que estão em posição de subalternidade, mas
também a própria dinâmica que produz a marginalização ganha a nebulosidade do
descompromisso, pois, segundo esse raciocínio, ela é também tida e havida como
inelutavelmente natural: "tornando o pobre um 'não sujeito', a pobreza é como
que 'naturalizada' e as relações sociais tornam-se 'naturalmente' excludentes"
(Nascimento, 1994, p. 301).33
A outra matriz de controle e acomodação social pode ser designada de
neutralização. Baseia-se tanto em ardilosos artifícios de persuasão, como em
escancarados métodos de constrangimento e coação que conformam mecanismos para
reforçar as dinâmicas de subalternização. Inicio esta colocação aludindo ao
tradicional ditado, não tão popular, que afirma que as pessoas devem permanecer
nos seus devidos lugares - "cada macaco no seu galho". Trata-se de uma
forma de discriminação escrachadamente marginalizadora e, com certeza, de
difícil aplicação, pelo menos nos grandes centros urbanos. Mas há outras
maneiras de demarcar o espaço social dos pobres. Basta observar nos edifícios
das camadas remediadas e abastadas a existência de elevadores "sociais", para
os proprietários, e os de "serviço", que, como sabemos, não se prestam apenas
para a entrega de mercadorias. Esse pequeno exemplo revela a potência de nossas
adocicadas formas de marginalização, afinal, neste país ninguém se considera
preconceituoso, mas somos capazes muitas vezes de mantermos amizade com pessoas
que manifestam restrições refletidas ou explosivas aos que são diferentes de
sua e nossa cor ou condição social (Schwarcz, 2001).
Nessa direção, encontram-se os mecanismos de evitação e apartação presentes na
sociabilidade cotidiana (Caldeira, 1997, pp. 142 ss.). Além disso, humilhação,
extorsão, agressão, espancamento ou até mesmo homicídio, são atos cotidianos
praticados tanto pela polícia como por bandidos, que permanecem ausentes das
estatísticas, pois as pessoas, por medo de represália, se calam. Tal prática
acaba por se tornar uma eficiente forma de controle e de acomodação social, na
medida em que induz à idéia de que sair do seu "devido" lugar se trata de um
ato bastante arriscado: "este brasileiro faz parte da comunidade política
nacional apenas nominalmente. Seus direitos civis são desrespeitados
sistematicamente. Ele é culpado até prova em contrário. Às vezes mesmo após
provar em contrário" (Carvalho, s. d., p. 92).
Destacam-se nessa linha teórica as análises de Wanderley Guilherme dos Santos
em polêmica categorização, segundo a qual em nosso tropicalismo exuberante há
apenas natureza, uma espécie de hobbesianismo social, pois as pessoas se
encontram isoladas e enredadas por sociabilidades fragilizadas, temem a
convivência, desconfiam e desacreditam das instituições jurídicas e policiais
e, em conseqüência, negam e sonegam os conflitos e as variadas modalidades de
vitimização a que freqüentemente são submetidas: trata-se da cultura cívica da
dissimulação (1994, pp. 100 ss., grifos meus). Francisco de Oliveira, em ensaio
empolgante por sua radicalidade, refere-se à destituição, ao roubo ou à
anulação de fala, isto é, à desclassificação dos conflitos e das reivindicações
das classes dominadas (1999, pp. 55-81, grifos meus). Penso que é também nesta
trilha interpretativa que se encaixam os argumentos de José de Souza Martins,
quando indica a existência de dois mundos cada vez mais irredutíveis, onde as
pessoas se encontram "separadas em estamentos": a modernidade brasileira
estaria produzindo "uma espécie de sociedade de tipo feudal" (Martins, 1997, p.
36, grifos meus).
Estas reflexões não ignoram que os grupos, as categorias e as classes sociais
se movimentam no sentido de se mobilizarem e lutarem pela conquista de seus
direitos. Enfatizam, simplesmente, que no cenário atual de nossas cidades estão
em curso vastos processos de vulnerabilidade socioeconômica e civil que
conduzem ao que pode ser designado de processo de descidadanização.
Como sugerido na introdução desse ensaio, a questão da vulnerabilidade
apresenta especificidades nos Estados Unidos, França e Brasil na maneira tanto
de diagnosticar o problema, como de implementar as políticas públicas. O debate
acadêmico, por conseguinte, reflete os impasses e os desafios das diversas
conjunturas políticas nacionais.
NOTAS
1 A título de exemplo, vale citar Silver (1999, pp.336-354; 1996, pp. 105-138);
Avenel (1997); Procacci (1996); Wacquant (1996b). Ver também vários artigos
publicados em Donzelot e Jaillet (2001), principalmente, a parte II, "La
Politique de la Ville, Une Comparaison entre les USA et la France".
2 Ver Wilson (1987). Uma das muitas avaliações críticas ao trabalho de Wilson
pode ser encontrada na coletânia editada por Jenks e Peterson (1991), ou no
excelente artigo de Katz (1993). Ver também Wilson (1992).
3 Ver Wacquant (1996a).
4 Entre outros, ver o influente livro de Harrington (1962).
5 Para uma análise desses programas, ver Wilson (1987), principalmente, os
capítulos 6 e 7.
6 Moynihan (1965), posteriormente publicado em Rainwater e Yancey (1967).
7 Vale insistir neste ponto: "o crescente antagonismo foi ainda mais agravado
pela atmosfera política conservadora, particularmente durante a presidência
Reagan, que não só reforçou o sistema de crenças americanas segundo o qual a
pobreza é reflexo de inadequações individuais, mas também desencorajou
iniciativas para novos e mais vigorosos programas sociais dirigidos aos
crescentes problemas de desigualdade urbana" (Wilson, 1991-1992, p. 65).
8 Entre outros, ver Ryan (1976); Jenks (1985); Wacquant (1996a); Marks (1991);
Heisler (1991); Wilson (1987, principalmente, capítulo 4, escrito em conjunto
com Aponte e Neckerman). Ver também Wilson (1993).
9 O autor refere-se ao Social Buffe, espécie de aparador ou colchão social que
dinamizava a vida nos guetos e constituía um elo com os circuitos que serviam
de canais para o processo de mobilidade ascendente. Idem, pp.56 e seguintes.
10 Em sua obra mais recente (Wilson, 1999), o termo nem aparece.
11 A principal exceção talvez seja Gans (1995).
12 Vale insistir no pensamento do autor: "A principal tarefa da política social
não é mais a de reformar a sociedade, mas restaurar a autoridade dos pais e
outros mentores que moldam os cidadãos [...]. A fonte de liberdade para os
muito pobres da atualidade não é mais a oportunidade, mas a ordem. Para eles o
caminho para avançar não é mais liberdade, mas obrigação" (Mead (1996, pp. 274-
175).
13 Ver também Murray (2002). Vale insistir: "[...] a ética da underclass: pegue
o que você quiser. Responda de modo violento a qualquer um que o antagonize.
Despreze a cortesia, pois trata-se de fraqueza. Sinto orgulho em fraudar
(furtar, mentir, explorar) com sucesso" (Murray, 1999, p. 14).
14 Robert Castel mostra que a questão social na Europa desponta em 1349 na
Inglaterra, quando o rei Eduardo III promulga uma ordenança sobre o estatuto
dos trabalhadores; na França, dois anos após, João II, dito o Bom, edita uma
ordem real de combate à vadiagem, isto é, daqueles que podem mas não querem
trabalhar, distinguindo-os dos inválidos e incapazes que necessitam e merecem
proteção (1995a, p. 75).
15 Vale mencionar que as favelas ainda eram numerosas nos arredores de Paris e
Marselha até 1964, quando uma lei obriga sua erradicação (Guerrand, 1999, p.
226).
16 Veja, entre outros, PAUGAM, Serge - La Societé Française et ses Pauvres,
Paris, Presses Universitaires de France, 1993 e La Disqualification Sociale:
Essai sur la Nouvelle Pauvreté, Paris, Presse Universitaires de France, 1991.
17 Ver também Donzelot e Roman, 1991, pp. 5-10.
18 Na mesma direção, ver também o penetrante estudo etnográfico de Laé e Murard
(1995).
19 A literatura acerca do tema em pauta é vasta. Cf. Rey (1996), Body Gendrot
(1993).
20 Dubet (1987). Ver também Dubet e Lapeyronnie (1992). Para uma visão
dramática e desesperançosa a respeito desses grupos jovens, ver Lapeyronnie
(1995, pp. 2-17).
21 Ver também Donzelot (1999).
22 Para uma análise que aponta as diferenças entre o gueto negro dos Estados
Unidos e as periferias empobrecidas da França, bem como a atuação do poder
público nesses países, ver Wacquant (1996b, pp. 234-274).
23 Ver, entre outros, Vários Autores (1995, principalmente, parte 1) e Madec e
Murard (1995).
24 Cf. Paugam (1991), "Pauvreté et exclusion, la force des contraintes
nationaux", em Paugam (1999), e Gaujelac e Leonetti (1994).
25 Silhuetas, indivíduos perdidos, extraviados, maltrapilhos, decompostos nos
seus gestos, muitos inválidos. Castel faz alusão à pintura de Gerome Bosch que
mistura corpos de contornos mal-definidos, unificados em movimentos que aludem
à alegoria do sofrimento. Impossível deixar de associar essa descrição ao
quadro de Jean Baptiste Debret, Primeiro impulso de virtude guerreira, de 1827,
que abre o brilhante ensaio "Neoclassicismo e a escravidão" de Rodrigo Naves
(1997). Na formação da sociedade francesa, observam-se elementos como a
desqualificação e a perda de raízes, em vários momentos da expansão
capitalista; no Brasil, prevaleceram o "travo", o "desacerto", a
"dissolvência", a "atmosfera viscosa", o "falseamento", pois a estrutura social
criada dentro do sistema escravista considera os trabalhadores, após a
abolição, uma massa crescente de livres e pobres, socialmente desclassificados
e inaptos para o trabalho, verdadeira ralé destituída de humanidade.
Prepotência, arbítrio e violência permeiam toda a sociedade. Nas palavras de
Rodrigo Naves: "com Debret a representação do Brasil urbano do começo do século
XIX ganha uma nova dimensão, que a miséria contemporânea em parte ainda
avaliza" (p. 116).
26 Redigindo de forma saudosa e comovente, Castel (1990) debruça-se sobre o
mito de Tristão e Isolda, paixão impossível, tragédia do amor absoluto para
mostrar os percursos da desfiliação.
27 Ver também Jones (1983).
28 Le Monde, edição de 18 de outubro de 1994, apud Fassin, 1996, p. 47.
29 Cf. Délégation Interministerielle de la Ville - DIV, s. d.
30 A literatura sobre RMI é vasta e polêmica. A título de exemplo, ver Castel e
Laé (1992), e o número especial da Revue du Mauss, "Vers un revenu minimum
inconditionnel?", Paris, n. 7, 1º semestre, 1996.
31 Retomo e resumo os argumentos publicados em Kowarick, 2002, pp. 26-30.
32 O termo "coitado" vem da palavra "coito", aquele que foi submetido à cópula
carnal. Devo esta observação a Adrian Gurza Lavalle, feita durante o curso que
proferi em 1997. Tal acepção está próxima da expressão usada por Roberto
DaMatta (1990): "criamos até uma expressão grosseira para esse tipo de gente
que tem que seguir imperativamente todas as leis: são 'os fodidos' do nosso
sistema" (p. 199).
33 Vera Silva Telles, em artigo recente, também utiliza esses argumentos: "
[...] nossas elites podem ficar satisfeitas com sua modernidade e dizer
candidamente que a pobreza é lamentável, porém inevitável [...]. Nessa pobreza
transformada em fato bruto da natureza há também o esvaziamento da função
crítica das noções de igualdade e justiça" (1999, pp. 87-88).