Política externa brasileira: capital social e discurso democrático na América
do Sul
Introdução
Será possível falar em capital social em política externa? É bem conhecido que
as pesquisas que agregaram evidências empíricas à idéia de capital social
tratavam de temas de política nacional ou, no máximo, de política comparada
(Almond e Verba, 1989; Putnam 1993, 1997; Locke, 2001; Fukuyama, 1995). Esses
trabalhos têm ressaltado as condições nas quais é possível gerar capital social
positivo e valores cívicos, além de enfatizar o estudo do processo pelo qual é
possível transformar o capital social em capital político, ou seja,
institucionalizar o capital social. Nessa linha, Putnam tem definido o capital
social da seguinte forma: "características da organização social como
confiança, normas e sistemas que contribuem para aumentar a eficiência da
sociedade facilitando as ações coordenadas" (1977, p. 177). No Brasil, o
conceito de capital social tem orientado um bom número de trabalhos entre os
quais pode-se destacar os de Baquero (2003), Boschi (1999) e Reis (2003).
O trabalho de Locke (2001) classifica duas linhas de literatura sobre a geração
de confiança entre atores: uma de natureza sociológica e outra ligada às
análises racionalistas econômicas. No primeiro caso, destacam-se o trabalho de
Putnam (1993), que explica a maior eficiência institucional no Norte e no
Centro em comparação com o Sul da Itália, considerando o estoque de capital
social expresso em comprometimento cívico e tradições cívicas mais bem
desenvolvidas. O segundo grupo é composto por teóricos como North (1990),
Gibbsons (2001) e Hardin (2001), que têm como fonte principal o famoso trabalho
de Robert Axelrod (1984), The evolution of cooperation, cujas premissas básicas
são: a confiança tem por base o auto-interesse de longo prazo, ou "interesse
encapsulado", como denomina Hardin, e a expectativa positiva que decorre do
cálculo de custos e benefícios entre atores maximizadores de utilidade. Nessa
linha claramente racionalista, pequenos grupos de atores consideram vantajoso o
estabelecimento de relações cooperativas se as interações cooperativas forem
repetidas entre os atores e se a informação a respeito do comportamento passado
dos atores for completa.
Para Locke, ambas as correntes apresentam três falhas básicas: 1) são
estáticas, "porque assumem que padrões de associativismo e/ou de capital social
' vistos por alguns como os pré-requisitos da confiança, fixos no tempo e no
espaço" (2001, p. 256); 2) a maior parte da literatura é mecanicista "por
tratar os pré-requisitos da confiança ' sejam eles institucionais ou
sociológicos ' como variáveis homogêneas binárias [...] ou as sociedades
possuem as instituições 'certas' ou não as possuem. Ou elas possuem um estoque
suficiente de capital social ou uma quantidade insuficiente dele" (Idem, p.
257); e 3) a literatura é "majoritariamente pessimista quanto às possibilidades
de se criar confiança no contexto onde as condições favoráveis e/ou pré-
requisitos de que eles supostamente dependem não estão dados" (Idem, p. 156).
Pensando em um contexto doméstico, Richard Locke explora a questão da
possibilidade de se criar confiança e de como fazê-lo (Idem, p. 25).
Mas será possível pensar em termos de "capital social" e "geração de confiança"
ao considerar ações coletivas que envolvem política externa entre Estados? Caso
afirmativo, como fazê-lo? Entendemos que, ao discutir temas como a "cooperação"
e a "confiança" entre atores estatais em política internacional, embora não
exista uma referência explícita, as teorias das relações internacionais
apresentam elementos de aproximação com a teoria do capital social.
A corrente neo-institcionalista, também baseada no trabalho de Axelrod (1984),
tem na teoria da reciprocidade de Robert Keohane um de seus principais
expoentes. Segundo Keohane, que partiu da mesma lógica do auto-interesse como
motivação primária para a cooperação entre atores, Axelrod "demonstra que a
racionalidade da cooperação depende não só dos ganhos imediatos esperados pelos
jogadores, mas também do que se denomina 'sombra do futuro'" (1993a, pp. 194-
195), quer dizer, da incerteza. O dilema pelo qual os atores, nas suas relações
estratégicas de cooperação, fazem a opção ou não por esta é compreendido por
Axelrod num jogo seqüencial chamado de reciprocidade específica.1 A estratégia
de reciprocidade específica usa a tática do "olho por olho". Isso significa que
a um movimento cooperativo de um jogador A seguirá, em contrapartida, uma
jogada cooperativa por parte de um jogador B; a deserção de A será seguida pela
deserção de B. No entanto, a deserção pode criar incentivos para que outros
atores se sintam prejudicados, o que origina uma pressão a favor da cooperação.
Para Keohane,
[...] a virtude adicional à reciprocidade específica pode criar
incentivos para que interesses, que de outra maneira seriam passivos
dentro de seus países, se oponham a uma ação unilateral por parte de
seus próprios governos. Em 1984, por exemplo, os granjeiros norte-
americanos opuseram-se às cotas de aço se antecipando a represálias
[externas] contra suas exportações agrícolas (1993a, pp. 197-198).
O autor, no entanto, não sugere que auto-interesse e percepções de interesses
comuns sejam incompatíveis. Como parte da literatura institucionalista tem
mostrado, ambas as motivações são compatíveis, e o problema apresenta-se nas
características conformadoras da anarquia internacional, assim como nas
restrições que esta impõe para a cooperação (Balwin, 1993).
Uma segunda perspectiva no âmbito da teoria das relações internacionais próxima
da categoria de capital social tem sido desenvolvida pelo pensamento pós-
positivista da escola construtivista, especialmente nos trabalhos de Alexander
Wendt (1992, 1995). Para esse autor, as identidades, positivas ou negativas, e/
ou os interesses dos atores estatais são uma construção, e, "se repetidas com
freqüência, essas operações recíprocas" geram conceitos relativamente estáveis
de ajuda ' "é essa interação recíproca que define nossas identidades e
interesses" (1992, p. 405). Contudo, tais identidades não são estáticas, já que
podem ser construídas e desconstruídas em novos movimentos interativos.
No campo das correntes construtivistas, a "confiança" é a base para a criação
do que elas denominam "comunidades pluralistas de segurança", conceito
inspirado nos trabalhos de Karl Deutsch e outros (1957). O construtivismo tem
definido as comunidades de segurança como "uma região transnacional composta de
estados soberanos, em que as sociedades mantêm expectativas cofiáveis de
mudança pacífica" (Adler e Barnet, 1998a, p. 30). É interessante ressaltar que
uma "comunidade de segurança" apresenta quatro características básicas que
também são parte do núcleo do conceito de "capital social":
1. Os atores compartem valores, identidades e significados.
2. A reciprocidade específica, uma característica que implica algum
grau de interesse de longo prazo, assim como a geração de um senso de
responsabilidade e obrigação em comum ' em outras palavras, valores,
identidades e significados chegam a ser uma "condição" de segurança
nacional ou internacional (Idem, 1998b).
3. A construção de confiança mútua entre estados de uma região. Tal
confiança alimenta expectativas de solução de conflitos que descartam
os recursos de poder baseados na força (ou do tipo power-based) ' as
fronteiras dessa região não coincidem necessariamente com as
fronteiras geográficas, uma vez que a criação de valores, identidades
e significados comuns leva à noção de regiões cognitivas, ou seja, "o
reconhecimento de que as comunidades se desenvolvem em torno de
redes, interações e encontros face a face, que não dependem de
habitar o mesmo espaço geográfico, reconceitualiza a idéia comum de
região" (Idem). Um exemplo notável de fronteiras cognitivas é a
aliança ocidental da Otan, como defendem autores como John Gerard
Ruggie (1998).
4. As comunidades de segurança mesmo que baseadas na confiança entre
parceiros estatais numa determinada região geograficamente contígua
ou cognitiva não são incompatíveis com a realização do auto-interesse
dos atores. Em outras palavras, o conceito de comunidade de segurança
opera na mesma lógica descrita por Putnam (1993) para o capital
social, ou seja, a partir do envolvimento de ações individuais em
ações coletivas que geram redes de confiança recíproca, tendo um
impacto não só na comunidade do agente, mas também para além das
fronteiras da comunidade, posto que essas redes permitem a construção
de virtudes cívicas ou de uma cultura cívica.
Finalmente, uma terceira perspectiva próxima à teoria do capital social tem
sido pensada como uma saída de meio termo entre as análises positivistas (como
as realistas) e as construtivistas. Nessa categoria destaca-se o trabalho
organizado por Goldstein e Keohane, Ideas and foreign policy(1993), obra em que
se pretende uma aproximação entre a conduta externa, movida pelas ou relativa
às idéias, e aquela movida por interesses e poder.2 Os autores, fazendo uma
autocrítica em nome do racionalismo, sobretudo do institucionalismo neoliberal
e do neo-realismo, reconhecem as limitações das perspectivas teóricas
racionalistas sobre o impacto das idéias nas políticas governamentais. Ao
enfocar, principalmente, as variações dos constrangimentos exógenos
(capacidades de poder) das unidades políticas, ponto comum a ambas às escolas,
tanto o neo-realismo como o neoliberalismo cometem uma dupla falta ' por um
lado, assumir que as preferências e as crenças são dadas ou que podem ser
remetidas à caixa preta do interesse nacional, por outro, relegar as idéias e
as crenças à qualidade de epifenômeno ou a um papel periférico, em função do
interesse dos atores.
No campo dos trabalhos empíricos que testam, na arena internacional, a geração
de capital social, um dos pensadores mais marcantes do mainstreamnorte-
americano das relações internacionais, John Ikenberry (2002), tem trabalhado
com um argumento bem próximo dos estudos seminais de Almond e Verba (1989) ' os
quais apontam que uma das fontes da perdurabilidade da hegemonia norte-
americana teria ligação com o fato de os Estados Unidos terem gerado, durante
os anos do pós-Guerra Fria, uma cultura cívica transnacional baseada em duas
fontes. A primeira reside no fato de que seu poder tem sido mais aceitável para
o restante do mundo porque seu projeto é congruente com as forças mais
profundas da modernização. A sincronia entre o estabelecimento dos Estados
Unidos como uma superpotência liberal e global e os imperativos mais amplos da
modernização no mundo criaram um vínculo funcional entre este país e o restante
do mundo. A promoção do fordismo, da força de trabalho educada, de fluxos de
informação e tecnologia e de progressivos e mais especializados sistemas
sociais e industriais de organização são congruentes entre o modelo oferecido
pelos norte-americanos e as demandas modernizantes tanto de aliados, como não-
aliados. A segunda fonte diz respeito à existência de um modelo de identidade
política norte-americana baseado num nacionalismo cívico e multiculturalista, o
que parece ser de grande importância. Com efeito, os Estados Unidos praticariam
um nacionalismo cívico e não um nacionalismo étnico.
Numa sociedade multicultural a identidade do grupo é subordinada a regras de
direitos e a um credo de obrigações políticas; em outras palavras, raça,
religião, língua ou etnicidade não são relevantes para definir os direitos do
cidadão nem para definir sua inclusão no sistema político norte-americano.
Assim, tal sistema rejeita a noção de cidadania ligada à idéia de que direitos
e participação sejam vinculados à etnicidade. Isso suscita duas implicações
importantes: 1) o modelo de nacionalismo cívico estimula a projeção dos Estados
Unidos como projeto de sociedade a ser almejado, inclusive como modelo de
organização no mundo pós-Estados; 2) tal modelo tende a criar uma fonte de
identidade e cooperação com outros Estados ocidentais, uma vez que no senso
comum haveria um favorecimento à coesão e à cooperação. Como o nacionalismo
cívico está enraizado em ideais democráticos e regras de direito
compartilhadas, ele fornece uma importante via de hegemonia branda. O caráter
multicultural da identidade política norte-americana tende a reforçar o
internacionalismo, isto é, uma visão liberal cosmopolita e pluralista, o que se
traduziria na criação de uma identidade que tende a apoiar o instrumental na
construção do multilateralismo internacional em bases mais pluralistas.
A visão de Ikenberry está muito próxima da de Thomas Risse(2002), segundo a
qual existe uma comunidade de segurança ocidental liberal comandada pelos
Estados Unidos ' base da ordem estável contemporânea e da unipolariadade norte-
americana. Três características poderiam definir tal ordem: (1) identidades e
valores em comum; (2) política e economia em base transnacional e
interdependência cultural; e (3) governança institucionalizada.
Não pretendemos fazer uma opção exclusiva por nenhuma destas três perspectivas
' neo-institucionalismo de Keohane; construtivismo; e idéias somadas a
interesses ', mas aproveitar alguns elementos que parecem eficientes para
compreender e explicar os fatos analisados. O objetivo é investigar osefeitos
das idéias democráticase da democratização na formação de confiançaentre países
sul-americanos e o Brasil e comoessas idéias influenciaram a geração de
movimentos cooperativos recíprocos e de imagens positivas do poder de vizinhos
sul-americanos sobre a política externa brasileira. Sustentamos o argumento de
que o discurso democrático foi condição primária para a criação de confiança '
a despeito do estoque de capital social negativo acumulado nos governos
militares que precederam à redemocratização brasileira e apesar do "interesse
encapsulado" implícito nas metas de política externa. Para investigar o efeito
das idéias democráticas e da democratização como meio da política externa
brasileira de criar confiança com vizinhos sul-americanos atentaremos para
cinco categorias: (1) identidades compartilhadas; (2) auto-interesse ou
interesses encapsulados; (3) idéias compartilhadas; (4) histórico de
reciprocidade específica positiva; e (5) institucionalização de normas de
autogovernança, como confiança, transparência e monitoramento.
Este estudo é dividido em quatro partes: na primeira seção mapeamos as
condições que permitiram a formação das preferências pela agenda democrática
como um meio de política externa; na segunda, estudamos as interações
seqüenciais entre o Brasil e a Venezuela e o impacto de idéias democráticas e
dos interesses como instrumentos de política externa para gerar capital social
e confiança; na terceira, repetimos o mesmo procedimento para testar como é
possível gerar capital social e confiança em matéria de segurança e
desarmamento, tomando como base analítica o histórico de reciprocidades entre o
Brasil e a Argentina nos últimos trinta anos; finalmente, fazemos um balanço
mostrando algumas limitações para a política externa brasileira na geração de
capital social positivo na América do Sul.
A formação da preferência pela agenda democrática
No Brasil ainda são muito escassos trabalhos na área de política internacional
que mapeiem relações causais entre conduta externa dos estados e democracia
como ferramenta de política externa. De acordo com a bibliografia existente
(cf. Soares de Lima, 2000; Santiso, 2002; Villa, 2003; Câmara, 1998), o
conjunto de estudos tem se dirigido à análise de variáveis importantes, como as
cláusulas democráticas no sistema interamericano e as determinantes domésticas
e sistêmicas que orientam a promoção da democracia por parte da política
externa brasileira. Por isso, nosso objetivo primeiro é apresentar algumas
idéias referentes a processos de causalidade sobre a formação das preferências
democráticas como recurso de política externa.
Partimos do pressuposto de que a formação da agenda democrática para a América
do Sul ' como uma preferência softque enfraquecia outras possibilidades
baseadas prioritariamente em política de poder ' foi condição para a geração de
capital social positivo no Brasil e em seus vizinhos sul-americanos. Mas, como
se formou essa preferência pela democracia como instrumento de política externa
regional?
Os trabalhos de Goldstein e Keohane (1993), Peter Haas (1992) e Adler (1992),
sustentam que, em contextos internacionais de incerteza, idéias são poderosos
mapas que guiam a procura por novas formas de inserção internacional e
adequação às novas condições emergentes, assim como podem induzir ao
estabelecimento de novos padrões de comportamento e relacionamento entre
Estados.
No sistema de polaridades definidas da Guerra Fria
[...] do ângulo do pensamento institucional, os argumentos sobre a
presença institucional do Brasil tinham como ponto de partida
necessário o sistema internacional que determinava escolhas claras, à
medida que estava estruturado num conflito global: ou adotávamos a
posição de um dos lados, ou alguma forma de neutralidade (Fonseca,
1998, p. 285).
Como reconhece um agente formulador da política externa brasileira, ao se
enfraquecer esse sistema de polaridades definidas, algumas idéias passaram a
ser um instrumento para esclarecer novas escolhas num contexto incerto e duplo
"de riscos e possibilidades" (Amorim, 1994a). Em outras palavras, idéias
surgiam como uma resposta da política externa brasileira às mudanças nas
condições sistêmicas. Na perspectiva epistemológica, a introdução da variável
sistêmica e seu impacto na conduta e nas escolhas de política externa
configurariam aquilo que sugere o pensamento neo-realista e o institucionalismo
neoliberal (Balwin, 1993; Grieco, 1993; Keohane, 1993b). Contudo, as idéias
aparecem não tanto como uma variável dependente da estrutura, mas sim como uma
expectativa endógena aos atores.
A formulação do road mapdemocrático foi apresentada, então, como uma prioridade
para setores vinculados à arena externa brasileira: "é absolutamente necessário
ter um mapa das forças profundas que modelam a transição e que se revelam, ora
explicitamente ora implicitamente, a cada negociação específica, a cada
encontro bilateral, a cada reunião multilateral" (Lafer e Fonseca, 1994, p.
50). Com base nesse tipo de preocupação, que revelava incertezas sobre qual o
caminho a seguir, um problema relevante para as agências formuladoras de
política externa no Brasil passou a ser a formação da preferência dentro do
leque de idéias disponíveis:3 "para compreender a formação das preferências,
precisamos compreender quais idéias estão disponíveis" (Goldstein e Keohane,
1993, p.13).
É necessário compreender, também, quais as condições em que operam as idéias
disponíveis. A identificação desse leque de idéias para os formuladores de
política externa brasileira foi facilitada por três condições sistêmicas.
A primeira reside no fato de que o fim da Guerra Fria, fortemente marcado pela
polarização ideológica, reduziu significativamente as opções valorativas
disponíveis. A hipótese de alguns pensadores norte-americanos ' que tiveram em
Francis Fukuyama um mentor intelectual destacado ' sobre a universalização da
forma institucional de democracia representativa euro-americana parecia, em
princípio, irrefutável. A política também havia se globalizado via o valor da
democracia ocidental liberal. Isto é, num mundo polarizado ideologicamente,
como aquele do período da Guerra Fria, valia a definição de Carl Schmitt (1992)
de que a relação básica da política é a dicotomia amigo-inimigo. Contudo, na
perspectiva analítica, com a globalização unidimensional da política na base da
crença no valor universal da democracia ocidental, um dos campos da metáfora
política de Schmitt (o inimigo) tende a desaparecer.
Mesmo com a crítica a esse tipo de pensamento ' desconfiava-se que fosse uma
justificativa ideológica para preparar a ação do hegemonno pós-Guerra Fria (cf.
Amorim, 1994b, pp. 133-134) ' não houve dúvida de que a variação dos
constraints valorativos sistêmicos (mudança de duas alternativas doutrinárias
para uma só) agiram como uma baliza cognitiva, na medida em que fornecia aos
decision makers internos parâmetros para sondar qual era o grau de manobra
disponível para uma potência média como o Brasil, caso tentasse uma ação menos
padronizada internacionalmente do ponto de vista ideológico. A evidência dos
fatos levou, assim, em início dos anos de 1990, a que o discurso diplomático
constatasse "o amplo consenso em torno da superioridade da democracia
representativa" (Amorim, 1994a, p. 24, grifos nossos).
A segunda condição diz respeito à preferência pela democracia como instrumento
de política externa, que também foi influenciada por processos estruturais
operados no sistema interamericano desde a segunda metade dos anos de 1980 e,
principalmente, pela geração de um sistema normativo de cláusulas democráticas
na Organização dos Estados Americanos (OEA).4 Nessa direção, alguns estudos vêm
apontando o surgimento, no sistema interamericano, de um regime internacional
democrático que guia as expectativas e cria incentivos de cooperação para os
atores (Goldberg, 2001) e de um conceito de defesa coletiva da democracia
(Farer, 1996). A institucionalização dessas duas noções teóricas iniciou-se em
meados da década de 1980, quando o Protocolo de Cartagena das Índias
introduziu, como novos objetivos da OEA, a promoção e a consolidação da
democracia no continente, respeitando o princípio da não-intervenção. Um passo
firme foi dado em 1991, no chamado Compromisso de Santiago do Chile, que
produziu a Declaração de Defesa Coletiva da Democracia e a Resolução 1080 ou
"cláusula democrática" ' mecanismos normativos que prevêem a suspensão do
sistema interamericano em países onde exista quebra da ordem constitucional e
institucional democrática. A resolução 1080 foi aplicada durante a década de
1990 no caso de quatro Estados membros: Haiti (1991), Peru (1992), República
Dominicana (1994) e Paraguai (1996), havendo ainda um pedido de aplicação no
caso das eleições peruanas de 2000, no regime de Alberto Fujimori. Passo mais
decisivo ainda foi a aprovação da Carta Democrática pelos países do continente,
em setembro de 2001.
Além disso, os países sul-americanos haviam reafirmado o "compromisso
democrático" nas duas experiências integracionistas da região. No caso dos
países do Mercosul, o sistema de cláusulas democráticas foi formalizado pelo
Protocolo de Ushuaia, de julho de 1998, e no caso da Comunidade Andina (CAN),
pelo Protocolo Adicional ao Acordo de Cartagena sobre "O Compromisso da
Comunidade Andina com a Democracia".5
A terceira e última condição sistêmica refere-se à aceitação normativa da idéia
de democracia como "valor universal dominante" que ajudou a estabelecer entre
as elites brasileiras o consenso em torno dos vínculos causais entre identidade
democrática, poder regional e desenvolvimento.6 Essa percepção é consistente
com a hipótese de que as relações causais entre idéias e fatos "derivam sua
autoridade do consenso de elites reconhecidas" (Goldstein e Keohane, 1993). Tal
mapa cognitivo foi percebido (e reconhecido) pelas elites brasileiras em
coerência com a tradição de autonomia do país (qualquer que for o qualificativo
aplicado a essa autonomia) e politicamente mais viável que aquele explicitado
durante os anos do governo Collor de Mello (o chamado paradigma modernização
pela dependência), que supunha uma volta ao paradigma americanista e um certo
grau de alienação da soberania nacional (cf. Soares de Lima, 1994).
Dessa maneira, a sustentação da democracia como mapa do caminho já aparecia, em
início dos anos de 1990, fortemente ligada à crença de que era muito importante
reconhecer a "interdependência complexa" entre idéias e interesses. Essa
interdependência sugeria uma releitura da hipótese dos "3D" do embaixador
Araújo Castro ' idéia formulada em meados dos anos de 1960, em que a missão das
Nações Unidas, e do Brasil nesta organização, passava pela realização de três
metas: desarmamento, desenvolvimento e descolonização. Nas palavras de
formuladores de política externa contemporânea, a atualização da tese dos "3D"
enfatiza os conceitos de democracia, desenvolvimento e desarmamento, "com seus
desdobramentos nas áreas de Direitos Humanos, Meio Ambiente e da Segurança
Internacional" (Amorim, 1994a, p. 21). Foram essas idéias e valores que
forneceram aos formuladores de política externa as coordenadas regulatórias do
mapa para a inserção do Brasil no mundo das polaridades indefinidas que se
abria com o fim da Guerra Fria.
Esses três fatores sistêmicos forneceram uma explicação eficiente das
motivações agregadas em torno da idéia de democracia como meio de ação política
externa e dos cursos de ação a serem desenvolvidos. Serviram também como
argumentos explicativos da escolha feita. A política externa é uma das
dimensões políticas nas quais é preciso, com mais freqüência, explicar as
razões da escolha.
De fato, pela sua própria natureza, a política externa se sustenta,
talvez mais do que outras políticas de Estado, em procedimentos
explicativos já que vive também de atitudes simbólicas que buscam
exprimir ideologicamente a globalidade dos interesses nacionais
(Fonseca, 1998, p. 267).
Assim, a idéia de que existiam certos constraints valorativos universais que
agiam como marcos regulatórios de um novo mainstreamde relações internacionais
serviu como metodologia explicativa da prioridade dada ao curso de ação em face
da "globalidade dos interesses nacionais".
Qual é a influência do tipo de ação que privilegia idéias democráticas ' no
sentido de atingir outras metas, tais como confiança em relação a seus vizinhos
' e imagem positiva regional? A atuação da política externa gera imagens
ambíguas quanto às motivações brasileiras regionais, porque algumas identidades
negativas do passado continuam a prevalecer. No entanto, o marco democrático em
que se sustenta a ação política externa tem operado como um importante
instrumento para desconstruir o estoque de capital social negativo preexistente
até a chegada dos governos democráticos em meados da década de 1980. Mapeadas
as condições nas quais deu-se a formação das preferências por uma agenda
democrática como meio de política, resta saber como foi operacionalizado o
discurso democrático na geração de capital, confiança e melhoria da imagem
entre vizinhos sul-americanos. Os casos das relações diplomáticas com a
Venezuela e com a Argentina (neste último em torno de políticas de segurança e
desarmamento) servirão para ilustrar adequadamente essa questão.
Relações Brasil-Venezuela: das imagens negativas à cooperação estratégica
O caso da Venezuela é significativo, por várias razões, para mostrar como se
pode construir capital social positivo entre atores estatais onde ele não
existe. O Brasil comparte com a Venezuela, fronteiras da ordem de 2.199km.
Alguns autores (Cervo, 2002; Visentini, 1995; Ramos, 1995) defendem que talvez
a relação bilateral mais sólida que o Brasil mantém hoje com seus vizinhos sul-
americanos seja com esse país. Porém, durante os governos militares a
Venezuela, como de resto quase todos os vizinhos sul-americanos, abrigavam
identidades negativas sobre o Brasil. Lembremos que a literatura geopolítica e
militar de intelectuais como Couto e Silva (1967), Terezinha de Castro (1976) e
Correa Rocha (1965), assim como "O desastrado discurso feito por Richard Nixon
em 1971 na Venezuela, afirmando que para onde o Brasil se inclinasse o resto do
continente faria o mesmo" (Shiguenoli, 1999, p. 85) haviam feito estragos na
imagem e na percepção que uma boa parte dos países sul-americanos tinham do
Brasil, atribuindo-se ao Itamarati motivações subimperialistas e expansionistas
baseadas em política de poder. No caso da Venezuela, um destes autores (Correa
Rocha, 1965) chegou a conceber a hipótese pela qual o Brasil teria fixado sua
fronteira norte pelo Mar Caribe, objetivo para o qual o autor propõe uma
divisão pela metade das Guianas com a Venezuela. Na verdade esse tipo de
proposta em vez de agradar a Venezuela alimentava mais temores do que confiança
nas elites deste país.
Além das desconfianças geopolíticas existiam também causas políticas. Não é de
hoje que os governos venezuelanos tentam usar o petróleo como recurso para
alimentar uma pretensa liderança regional em áreas da América Latina, como nos
países andinos, na América Central e no Caribe. Essa pretensão era já muito
marcante durante o primeiro governo do social-democrata Carlos Andrés Pérez
(1974-1979), período em que os preços do petróleo atingiram altas cotações
mundiais. O chamado "milagre brasileiro", junto com a política pragmática
externa do governo Geisel de diversificar relações comerciais e políticas
independentemente da natureza ideológica dos países, também era motivo de
desconfiança por parte das elites venezuelanas, que anteviam disputas com o
Brasil pela liderança nessas regiões. Finalmente, entre as motivações
políticas, ao contrário do projeto de autonomia política do governo brasileiro
diante dos Estados Unidos (ou autonomia pela distancia, como se denominou o
paradigma que orientou a política externa brasileira desde inícios dos anos de
1970 até finais da década seguinte), a política externa venezuelana, durante
quase todo o século XX, sempre definiu como estratégica a parceria política com
os Estados Unidos.
Como foi possível transformar relações de desconfiança em relações de confiança
em que pese esse enfoque acumulado de capital social negativo na época da
redemocratização? A reconstrução do processo histórico de reciprocidade
específica positiva permitirá compreender como isso foi possível. Naquele
quadro de desconfianças e imagens negativas, o Brasil tentou uma primeira ação
cooperativa com a Venezuela ao apoiar a política petrolífera de preços altos,
que reforçava o discurso da diplomacia venezuelana de valorizar as matérias-
primas do Terceiro Mundo. Em compensação, a esse primeiro movimento cooperativo
a Venezuela acertou com o Brasil convênios de cooperação em abril de 1978 nos
ramos do petróleo, da petroquímica, da mineração e da siderurgia e, nesse mesmo
ano, aceitou que a existência de acordos regionais como o Pacto Andino, de
natureza econômica, não eram incompatíveis com acordos de cunho político sobre
a administração de recursos naturais, criando-se, assim, condições para a
assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica, de iniciativa brasileira.
O jogo seqüencial de ações cooperativas e de reciprocidade manteve-se nos anos
de 1980, respondendo o Brasil positivamente a uma velha proposta venezuelana,
qual seja, a criação de uma multinacional latino-americana do petróleo, a
Petrolatina. Também não é de hoje que a diplomacia venezuelana sustenta esse
objetivo.7 O Brasil assinou em Caracas, em 1981, em conjunto com a Venezuela e
o México, um protocolo para dar início a essa idéia. Embora o projeto da
Petrolatina permanecesse engavetado nos cofres das chancelarias desses países
até ser resgatado pela administração Chávez, o gesto diplomático brasileiro foi
um importante passo para começar a mudar a identidade negativa do Brasil
subimperialista perante seu vizinho venezuelano. Em outras palavras, as ações
de reciprocidade específica nesta primeira fase fizeram-se na base da
tolerância e do estímulo de interesses regionais, especialmente do apoio do
Brasil a projetos regionais venezuelanos baseados no seu poderio petrolífero.
Também esse tipo de reciprocidade reforçava, no plano dos atores sociais, os
empresários, já que a aproximação entre ambos os países procurava criar
condições para o desenvolvimento de projetos empresariais destinados a
"robustecer o núcleo central das economias nacionais" (Cervo, 2001, p. 9).
Com a redemocratização brasileira iniciada no governo de José Sarney, uma nova
idéia toma corpo, a de que a inserção mundial competitiva só seria possível por
meio da integração regional sul-americana. Isso supunha que os países sul-
americanos deixassem de pensar em seus modelos de desenvolvimento como
passíveis de serem atingidos na visão nacional-desenvolvimentista, de "voltados
para dentro", para coordenar ações coletivas e cooperativas regionais. Um
mapeamento do discurso diplomático de decision makers de política externa desde
o governo Sarney permite conferir uma constante: a percepção da América do Sul
como prioridade da política externa brasileira (cf. Cardoso, 1993, p. 6;
Amorim, 1994a, p. 16; Lafer, 2001b, p. 2; Silva, 2003, ou nas palavras de
Lafer, a percepção de uma "força profunda da política externa brasileira"
(2001b, p. 2). A construção desse significado permitiu que alguns autores
afirmassem que ao longo de sua história o Brasil foi desenvolvendo a dupla
identidade de país em desenvolvimentoe país sul-americano."Mas a verdade é que
foi preciso que essa dupla identidade, hoje tão óbvia, fosse sendo construída
no discurso e na auto-imagem dos brasileiros ao longo do século XX" (Lamazier,
2001, p. 51). Assim, no discurso da política externa brasileira contemporânea,
sobretudo com a defecção da tão próxima política externa mexicana, hoje em dia,
do Nafta e dos Estados Unidos, houve um esforço sistemático dos governos
brasileiros, desde Itamar Franco, "em redefinir a cooperação regional em termos
de América do Sul antes que [em termos] de uma identidade Latino-americana "
(Hurrel, 1998, p. 257).
A partir do governo Sarney, passa-se a explorar fortemente o caminho
integracionista sul-americano, tendo sido definida a Venezuela pela fronteira
norte e a Argentina pela fronteira sul como as duas relações estratégicas a
serem cultivadas para atingir esse objetivo. Instâncias de comportamento
confiável começaram a ser seladas quando o presidente Sarney conseguiu promover
a idéia entre seus pares venezuelanos de que o pathwayintegracionista era o
melhor caminho para atingir três objetivos: desenvolvimento nacional, defesa da
democracia e inserção competitiva internacional. Ainda durante o governo
Sarney, o governo brasileiro assinou, em 1996, os Protocolos de Cooperação com
a Argentina de Raul Alfonsin (1984-1988), e, com a Venezuela, durante o governo
do social-democrata Jaime Lusinchi (1984-1988), o Protocolo de Caracas, em
1987, a partir dos quais se pretendia fazer deslanchar os processos
integracionistas na América do Sul.
O reforço normativo que serviu como mapa cognitivo da estratégia brasileira de
aproximação com vizinhos como Argentina e Venezuela foi o argumento de
formuladores de política externa dos anos de 1990, segundo o qual o Brasil
estava politicamente amadurecido para evoluir das "clássicas fronteiras [para]
modernas fronteiras de cooperação" (Lafer, 2001b, p. 2).8 Destaca-se no
conceito de "fronteiras de cooperação" primeiramente a mudança nas formas de
produção e representação do significado do espaço brasileiro como algo não só
instrumental, mas também substantivo em face dos interesses regionais de
integração regional. Em segundo, o conceito é consistente com a crença nos
[...] investimentos no soft power da credibilidade realizados pelo
país no correr da década de 90, ao tratar de maneira construtiva '
pela participação e não pela distância ' os "temas globais" que se
inseriram, em novos termos, na agenda internacional pós-guerra fria
(Lafer, 2001b. p. 2).
O mais importante a destacar é que nesta fase se consegue desconstruir a
primeira das identidades negativas que mais criavam obstáculos para uma ação
cooperativa entre a Venezuela e o Brasil, a saber, a de que o Brasil seria um
país com motivações subimperialistas. "A imagem de um Brasil expansionista,
hegemônico e dominador modificou-se drasticamente e as expectativas positivas
afloraram" (Cervo, 2001 p. 9).
Porém, ainda restava desconstruir mais duas imagens: primeiro, a de que a
liderança venezuelana no processo de integração regional andino era
incompatível com a liderança regional integracionista sul-americana promovida
pelo Brasil; e, segundo, a idéia de que as metas de política externa
venezuelana eram mais compatíveis com uma política de aliança estratégica com
os Estados Unidos do que com o Brasil, que ocupava um lugar periférico no olhar
das elites venezuelanas. Esses dois objetivos foram trabalhados intensamente
durante toda a década de 1990 pela política externa brasileira, desde o segundo
governo do democrata-cristão Rafael Caldera e na administração Hugo Chávez.
Observemos, então, como se deu esse processo diplomático.
Durante a administração de Itamar Franco no Brasil e de Rafael Caldera na
Venezuela firmaram-se algumas das bases que compatibilizariam o projeto
brasileiro de integração sul-americana com o projeto de integração sub-regional
andino e de desenvolvimento nacional venezuelano. Esse projeto tinha por base
três eixos de ação: desenvolver ações de integração fronteiriça e energética;
desenvolver os fluxos bilaterais de comércio; e finalmente, investimento entre
ambos os países, com proveito para os setores empresariais e criação de uma
zona de livre comércio sul-americana.
O primeiro eixo ' integração de fronteiras ' teve início com o reforço de
políticas de povoamento em estados como Amazonas e Roraima, do lado brasileiro,
e estados como Amazonas, Delta Amacuro e Bolívar, do lado venezuelano. Em ambos
os lados das fronteiras comuns, os dois países desenvolveram políticas
recíprocas e complementares. À iniciativa brasileira do Programa Calha Norte, a
Venezuela responderia, em meados dos anos de 1990, com o programa Prodesur.
Ambos tinham objetivos em comum, tais como a melhoria da qualidade de vida das
populações locais, a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento da
potencialidade econômica das regiões fronteiriças. Um empreendimento
cooperativo de grande envergadura na integração física foi realizado no segundo
mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Ainda, foi reinaugurada a
rodovia BR-174, cujo trecho Manaus-Santa Helena de Uairén (primeira cidade
fronteiriça venezuelana), liga o Brasil a Caracas. A Venezuela já havia feito
sua parte inaugurando a BV-8, pela qual se fornece energia elétrica a Boa
Vista, advinda das usinas do Rio Caroní venezuelano. Os interesses do Brasil
neste mecanismo de integração física são evidentes: inserção de produtos no
mercado venezuelano e de escoamento de produtos brasileiros pelos portos
caribenhos da Venezuela, como La Guaira e Puerto Cabello, localizados ao norte
deste país. De outra parte, desenvolveu-se uma política de integração
energética bastante assertiva nas relações entre a Venezuela e o Brasil. As
estatais de eletricidade ' Eletrobras do Brasil e Edelca da Venezuela ' vêm
aproveitando o fato de a Venezuela ter algumas de suas principais usinas
hidrelétricas instaladas na região sul ' na fronteira com o Brasil ' para,
desta maneira, poder abastecer de energia os estados brasileiros dessa região,
como Roraima, Amazonas e Amapá.
Quanto ao segundo eixo ' fluxos bilaterais de comércio ', desde 1995 a promoção
dos fluxos comerciais e de investimento e as compras de petróleo da Venezuela
vêm aumentando significativamente, já superando, hoje, a Argentina entre os
fornecedores latino-americanos. Os fluxos comercias incrementaram-se entre 1988
e 1995 a uma taxa promédio interanual de 8,2%, registrando-se uma taxa
interanual positiva para a Venezuela de 27,4% e, portanto, uma balança
comercial positiva para este país (Cisneros et al., 1998, p. 9. Em
contrapartida, faz parte da estratégia venezuelana atrair o Brasil como sócio
de investimentos na Corporação Andina de Fomento (órgão financiador da
Comunidade Andina de Nações). Nesse sentido, a Venezuela e o Brasil assinaram,
durante o primeiro ano do governo Lula, um acordo guarda-chuva que inclui o
aumento do fluxo de comércio, investimentos no setor petroquímico, compra e
venda de tecnologias e outros tópicos. Porém,
O acordo guarda-chuva tem outras implicações e derivações. O Brasil,
via BNDES, deverá aumentar sua presença como acionista da Corporação
Andina de Fomento (CAF), banco de desenvolvimento dos países andinos,
e chegar a 20% de participação no principal agente de investimento do
Hemisfério Sul. Total do desembolso brasileiro: US$ 400 milhões em
dois anos. Cada país-membro da CAF pode financiar até quatro vezes o
seu aporte para aplicações no próprio país. No caso, US$ 1,6 bilhão.
Se for projeto binacional, a aplicação pode multiplicar-se por oito '
ou US$ 3,2 bilhões. Ao governo a CAF faz chegar sua intenção de
investir US$ 25 bilhões em toda a região nos próximos quatro anos"
(Carta Capital, 2003, p. 32).
O terceiro eixo ' criação de uma zona de livre comércio sul-americana ' atingiu
dinamismo acentuado, sobretudo a partir da administração Hugo Chávez, tendo
como resultado um aumento sem precedentes da confiança entre esses dois países,
além de operar um câmbio substancial sobre as alianças estratégicas
tradicionais da Venezuela em política externa. O Brasil seria um dos países que
passaria a ocupar um lugar estratégico nas relações externas da Venezuela.
Lembremos que desde o século XIX as desconfianças em relação à política externa
do Brasil sempre foram uma espécie de constante. O próprio Bolívar, naquele
século, não incluiu o Brasil nos seus projetos da Gran Colômbia. E com o início
da fase petrolífera nos anos de 1920, a prioridade em política externa ' para a
Venezuela ' sempre foram os Estados Unidos.
Assim, uma das mudanças mais significativas nas relações de cooperação Brasil-
Venezuela tem a ver com o lugar do Brasil na política externa venezuelana: o
país passou a ocupar um lugar estratégico no planejamento da política externa
venezuelana. Essa inflexão foi operada na base das possibilidades que os
projetos de integração sul-americana ofereciam para a Venezuela. Em que pese
desconfianças iniciais de que uma aproximação mais estreita com o Mercosul
veria diluídas as tentativas integracionistas da região andina, o Brasil
conseguiu atrair a Venezuela para seus projetos sul-americanos e com isso
conseguiu uma redefinição positiva nos planos da política externa venezuelana.
A diplomacia comercial venezuelana, seguindo uma política de continuidade
iniciada na segunda gestão de Rafael Caldera (1994-1998), deslocou seu
interesse integracionista para a "fachada amazônica", especialmente no que se
refere ao aprofundamento de seus vínculos comerciais, energéticos e políticos
com o Brasil e com o Mercosul. "Registre-se que o ex-Presidente Fernando
Henrique Cardoso acolheu e deu seguimento ao desejo de Chávez de mudar o olhar
da elite venezuelana: mirar o Cruzeiro do Sul e não a Estrela Polar" (Carta
Capital, 2003).9
Atualmente, o relacionamento entre Venezuela e Brasil é favorecido pelo
entusiasmo da administração Chávez de integrar o Mercosul com a Comunidade
Andina, como reconhece abertamente um documento oficial da chancelaria
venezuelana, "especialmente pela significação estratégica do Brasil e pelas
aspirações nacionais [da Venezuela] de ingressar no Mercosul" (Ministério de
Relaciones Exteriores de Venezuela, 2005). Nesse sentido, seguindo a seqüência
inaugurada por Bolívia e Peru, a Venezuela transformou-se, durante a última
Reunião de Cúpula do Mercosul (julho de 2004), no terceiro país da Comunidade
Andina de Nações (CAN) a ser admitido como membro associado ao Mercosul. A
opção preferencial da Venezuela pelo Brasil foi muito bem resumida numa frase
de conteúdo simbólico relevante do presidente venezuelano, em que afirma: "os
bons negócios a gente reserva para os amigos. O nosso amigo é o Brasil" (Carta
Capital, 2003, p. 30).
Comentando estas amplas coincidências entre ambos países, Amado Luiz Cervo,
resumiu assim o relacionamento diplomático:
Com efeito, em que pesem diferenças de estilo na ação externa, nenhum
outro país da América do Sul apresenta relativamente ao Brasil, no
início do milênio, tantas variáveis comuns na sua visão do mundo e em
sua estratégia externa quanto a Venezuela. A convergência se
estabelece em torno dos seguintes parâmetros: a) o conceito de
globalização assimétrica como correção ao conceito de globalização
benéfica; b) o conceito político e estratégico da América do Sul; c)
o reforço do núcleo central robusto da economia nacional como
condicionante da interdependência global; d) a prévia integração da
América do Sul como condicionante da integração hemisférica; e) a
percepção da nocividade da Alca, caso se estabeleça sem os
condicionantes anteriores e sem a reciprocidade comercial efetiva; f)
reservas ante o aspecto militar do Plano Colômbia; g) o repúdio a
qualquer presença militar norte-americana e a seus vôos na Amazônia;
h) a decisão de não privatizar o setor petrolífero (2001 p. 19).
Ressalta também Cervo que durante as administrações Caldera, Chávez e Cardoso,
de 1994 ao presente, "o empenho pessoal dos chefes de Estado foi o motor
principal da cooperação que engrandeceu nas esferas da ação política e
econômica" (2001, p. 21).
Um fato que sem dúvida reforçou o estoque de capital social acumulado entre
ambos os países foi a atitude do Brasil na crise política venezuelana durante
os anos da administração Chávez, especialmente com a condenação do breve golpe
de Estado que derrubou Hugo Chávez em abril de 2002 (ainda no governo Fernando
Henrique Cardoso). A proposta do simbólico Grupo de Amigos da Venezuela, sob a
iniciativa do governo, Lula buscava resguardar uma política de Estado que tinha
sido construída ao longo de mais de duas décadas e na qual a política externa
brasileira foi capaz de transformar três identidades negativas enraizadas na
percepção das elites venezuelanas (expansionismo, desconfiança diante dos
planos de integração brasileira e uma visão periférica do Brasil na política
externa venezuelana) em empreendimentos concretos e positivos de confiança
nesses três aspectos.
O caso venezuelano mostra que é possível construir estoques de confiança entre
atores estatais em áreas nas quais ainda não existam. No entanto, o Brasil ter
priorizado o processo de integração no Cone Sul na década de 1990 e o fato de
que as relações entre o Brasil e a Venezuela já eram bastante cooperativas até
o final da década de 1980 tornaram os dois países convergentes a partir do
governo de Rafael Caldera (1994-1998) e mais plenamente a partir do governo de
Hugo Chávez, empossado em 1999. Como foi possível que atingissem esse ponto de
cooperação, levando em conta que, até o final dos anos de 1970, prevaleciam
fortes percepções de desconfiança? Pretendemos analisar esse resultado a partir
de três elementos: identidade, interesses encapsulados e idéias compartilhadas.
Quanto à identidade, deve ser destacado que a diplomacia brasileira compreendeu
bem, na sua estratégia de aproximação com a Venezuela, os elementos que definem
a identidade da política externa venezuelana e a necessidade de tornar
congruente essa identidade com a sua própria. Foi isso que permitiu uma
seqüência de movimentos cooperativos que não foram, em nenhum momento,
incompatíveis com os "interesses encapsulados". Mas os estudiosos da política
externa da Venezuela destacam que ao longo dos últimos cinqüenta anos dois
foram os elementos que caracterizaram a identidade da política externa
venezuelana: a inserção petrolífera internacional do país e a defesa da
democracia (Romero, 2002; Villa, 2004).
O Brasil conseguiu conciliar de maneira eficaz sua identidade de país em
desenvolvimento e sul-americano com sua compreensão de que, para a Venezuela,
em qualquer tempo seria vital a defesa de uma política elevada dos preços de
petróleo em razão de sua dependência fiscal a esse recurso. Foi assim que
procedeu a diplomacia brasileira em finais da década de 1970, o que se manteve
no governo de Chávez, que fez da recuperação dos preços internacionais do
petróleo sua principal meta externa. Em contrapartida, o Brasil conseguiu obter
importantes vantagens em termos de integração física, energética, comercial e
em termos de investimentos. Na administração Chávez, a balança comercial, que
era negativa em relação ao Brasil até finais da década de 1990, transformou-se
em positiva, e empresas brasileiras, como as de cerveja e empreiteiras, fazem
hoje investimentos importantes na Venezuela. Esse argumento demonstra que a
confiança gerada pela reciprocidade específica e positiva não é isenta da
procura de interesses que levem a ganhos mútuos.
Em relação aos interesses encapsulados, é possível creditar o aumento da
confiança da Venezuela, com o Brasil e com o Mercosul, a comportamentos
estratégicos "encapsulados": a Venezuela fez da diversificação das exportações
em proporções equilibradas para diferentes mercados uma estratégia adequada, na
medida em que tornou o país menos dependente de um único mercado e, portanto,
menos vulnerável às contingências de mercado dos Estados Unidos.10. Como
sustentado por Ramos "é possível afirmar que a nova integração entre o Brasil e
a Venezuela guarda em si duas mensagens: uma selecionada e uma secundária"
(1995, pp. 103 e 105). Na mensagem selecionada "o interesse venezuelano aparece
com a possibilidade de se solucionar crises econômicas internas e de se
diminuir a dependência e a dívida externa" (Idem, ibidem). Na opção secundária,
a integração venezuelana com o Brasil "reveste-se de potencialidades
desagregadoras, restos do reflexo do que teria representado o Brasil para as
nações vizinhas durante determinados momentos da história latino-americana: um
país com pretensões hegemônicas" (Idem, ibidem). Em reciprocidade, como
afirmado por um estudioso da história cultural brasileira, a Venezuela
responderia positivamente "às aspirações legítimas do Brasil em ocupar posição
de influência no âmbito internacional dadas as suas dimensões" (Mendible,
1995).
Quanto às idéias compartilhadas, as estreitas relações bilaterais construídas
entre a Venezuela e o Brasil durante a década de 1990 tiveram como ponto de
interseção a visão recíproca de a que estabilidade institucional democrática é
"condição essencial para o fortalecimento da integração regional" ("Comunicado
de Brasília", 2000, p. 128). Essa visão é compatível com a segunda
característica da identidade da política externa venezuelana ' defesa da
democracia. Assim, os interesses foram acompanhados por idéias compartilhadas,
especificamente sobre a democratização do poder. Nesse sentido, a idéia do
fortalecimento das instituições democráticas procura o duplo objetivo de um
institutional building democrático doméstico e de um institutional
buildingdemocrático regional.
Um fator que reforçou a formação das convergências entre o Brasil e a Venezuela
como recurso de política externa foi o argumento da democratização do sistema
internacional tão recorrente desde o final dos governos militares, o que
coincidia com os desejos de democratização interna. Consistente com sua
identidade de país democrático, a Venezuela desde os anos de 1960 pregava a
doutrina Betancourt11 de não reconhecimento de governos autoritários, mas de
governos eleitos mediante normas constitucionais e pela vontade popular. Por
outro lado, a democratização no Brasil foi calibrada por decisores da política
externa e por suas elites como um elemento doméstico útil para a convergência
de identidades positivas com seus vizinhos sul-americanos, e isto foi
importante no caso da Venezuela. Como sustenta Fonseca:
A identidade modela-se historicamente. Há momentos em que coincidem
as transformações internacionais e as internas como ocorreu
claramente com a democratização. O sistema ocidental fecha o espaço
para o autoritarismo e, internamente, as forças sociais contestam o
regime (1998, pp. 275-276).
Tal convergência de identidades era consistente com a idéia de que a existência
de um conjunto de valores universais, ou mapa cognitivo, para a conduta da
política externa deveria ser tomado como marco regulatório normativo, em
relação ao qual metas de desenvolvimento do país eram passíveis de serem
atingidas. Esse discurso doutrinário foi bastante veiculado pela diplomacia
durante toda a década de 1990, tal como sustentou o então p presidente Cardoso:
"O Brasil que entra no século XXI é um país cujos objetivos prioritários de
transformação interna, de desenvolvimento, estão em consonância com os valores
que se difundem e se universalizam no plano internacional" (2000, p. 6).
Enfim, a idéia democrática como recurso de política externa permite adiantar a
conclusão de que é possível criar capital social positivo entre Estados quando
concepções normativas cooperativas do mundo são compartilhadas por atores
estatais. Esse impacto na conduta externa dos países pode ser compreendido pela
premissa de Schumpeter (1984), segundo a qual ao analisarmos os comportamentos
e as estratégias dos atores políticos a democracia aparece como um método
prioritário quando os atores participantes de um conflito têm como intuito
final resolver o problema de forma a tolerarem as posições um do outro e a
chegarem a uma solução democrática. Esse nos parece ter sido o caso das
relações diplomáticas entre o Brasil e a Venezuela nos anos da redemocratização
brasileira. A condição schupemteriana torna possível um desmanche teórico da
idéia dos neo-realistas (Grieco, 1993; Mearsheimer, 2001) de que a cooperação
entre atores estatais é incompatível com o auto-interesse. Em outras palavras,
confiança e auto-interesse são compatíveis se este é mediado por concepções de
mundo cooperativas.
Vejamos então como é possível gerar capital social entre atores estatais no
campo da política de armamento e segurança, entendidos pela teoria realista
como o núcleo duro das metas dos Estados. Seria muito difícil estabelecer
arranjos cooperativos, já que o desarme significaria uma espécie de
comportamento irresponsável do estadista porque o Estado ficaria a mercê da
política de poder de Estados concorrentes. No entanto, de acordo com estas
percepções racionalistas que frisam a desconfiança entre atores, é possível
sustentar que foi possível construir a confiança entre o Brasil e os vizinhos
sul-americanos sobre tais variáveis hard core, especialmente na questão da não
proliferação de armas no plano regional, da cooperação militar e das políticas
de segurança
Relações Brasil-Argentina: capital social na democratização
Como já demonstramos anteriormente, os vizinhos sul-americanos por décadas têm
enxergado o Brasil como um país continental com pretensões ou subimperialistas
ou expansionistas. Na verdade, desmanchar essa identidade e/ou capital social
negativo na esfera regional não tem sido fácil porque, tomando emprestado o
argumento de Oliveiros Ferreira, o temor conspirativo sobre as intenções
imperialistas brasileiras arraigou-se muito fortemente nos ministérios de
relações exteriores de países vizinhos:12 "num ponto, forçoso é reconhecer que
a política externa de ontem e de hoje tem alguma coisa em comum: o temor de que
a América espanhola, nossos vizinhos, considerem que as ações do Itamarati
tenham como objetivo afirmar a hegemonia do país no continente" (Ferreira,
2001, pp. 39-40).
O segundo caso significativo que estudaremos é o das relações entre Brasil e
Argentina, que também mostra como é possível construir capital social positivo
mesmo entre atores estatais historicamente rivais. Tal caso é significativo por
várias razões. Como sustentam alguns comentadores, ambos os países mantêm a
mais velha rivalidade na América do Sul (Burr, 1955; Mello, 1996), que
percorreu o século XIX e se alastrou por todo o século XX, atingindo o clímax
nos governos militares da década de 1960 e 1970. O Brasil e a Argentina
disputam influência regional desde sua consolidação como Estados autônomos. A
linguagem da balança de poder prevaleceu em disputas sobre territórios de 1825
até 1828 e na disputa pela influência sobre o nascente Estado do Uruguai de
1840 a 1950. O Brasil ajudara na derrocada do ditador argentino Rosas em 1952
e, durante os anos do Barão do Rio Branco no comando do Ministério de Relações
Exteriores no Brasil, houve vários momentos de tensão por causa do aumento do
arsenal de armas adquiridas por ambos os países. As percepções e as rivalidades
foram alimentadas ainda mais durante a Guerra do Chaco (1932-1935) pelas
desconfianças brasileiras sobre o papel argentino nesse conflito. Ainda,
durante os anos dos governos militares as desconfianças em torno das intenções
geopolíticas do Brasil em relação à Argentina chegaram ao paroxismo com o
projeto da construção da Usina do Itaipu no final dos anos de 1980.13 O
resultado foi a construção de acervos de imagens fortemente negativas entre
ambos os países, nos quais se embutem plenas desconfianças sobre as intenções
geopolíticas recíprocas.
Apesar das imagens negativas e das desconfianças sobre as intenções regionais
brasileiras, quando se observam os campos em que tem existido mais convergência
nos últimos vinte anos, é surpreendente apontar que, no início do novo milênio,
a maior cooperação entre esses países residem em matérias como desarmamento
nuclear e cooperação militar. O caso das relações entre o Brasil e a Argentina
sobre as políticas nucleares questionam a assertiva neo-realista de que os
Estados não renunciam nunca às capacidades militares ofensivas (Mearsheimer,
2001). Vale lembrar "que a política nuclear de cada país tinha por inspiração a
consolidação do poder de cada um e o conseqüente aumento de sua segurança"
(Vargas, 1997, p. 45). Como foi possível transformar a linguagem e o histórico
de relações que tanto frisaram o poder regional militar no sentido de gerar
capital social e confiança entre dois países no que diz respeito a temas tão
sensíveis e perpassados historicamente pela construção de identidades negativas
e pressupostos de intenções geopolíticas?
Como argumento inicial pode-se sustentar que a existência de imagens externas
negativas entre os dois parceiros regionais nem sempre inviabilizou pontos de
cooperação; além disso, um mínimo histórico de confiança foi emergindo, tendo
como ponto de partida a fase final dos governos militares. Em 1979, Brasil,
Argentina e Paraguai assinaram um acordo que finalizou mais de trinta anos de
disputa sobre a construção da usina de Itaipu. Antes, em 1978, a Argentina e o
Brasil tinham dado mostras de cooperação militar ao disporem suas armadas à
realização de exercícios conjuntos numa operação conhecida pelo nome de
"Fraterno". Dando seqüência ao jogo cooperativo, em maio de 1980, o general
Figueiredo visitou a Argentina, sendo o primeiro presidente a fazê-lo desde
1935. Nesse encontro assinaram acordos sobre produção conjunta de armamentos,
além de cooperação e transferência de materiais nucleares. Em agosto desse
mesmo ano, o presidente militar argentino Jorge Videla retornou o gesto
diplomático de Figueiredo ao visitar Brasília. Nessa ocasião, sete acordos e
protocolos nucleares foram assinados. A cooperação foi ampliada em 1981, com a
assinatura de acordos adicionais entre a agência brasileira (Nuclebrás) e a
agência argentina nuclear (Narc). Outro passo significativo de aproximação deu-
se certamente durante a Guerra das Malvinas, quando o Brasil apoiou as
reivindicações argentinas, inclusive fornecendo aviões durante o
desenvolvimento do conflito bélico entre a Argentina e a Inglaterra.
Essa primeira fase de aproximação foi importante porque permitiu aos decisions
makers perceberem qual era o limite do conflito entre ambos os países e que a
concorrência regional na Bacia do Prata, embora historicamente legítima, era
compatível com a cooperação em temas sensíveis como segurança e desenvolvimento
de armamento nuclear. De sua parte, o governo brasileiro percebeu que as
imagens geradas por sua intelligentzia geopolítica nos anos do regime militar
tinham sido contraproducentes, pois geravam temores e desconfianças com seu
principal concorrente sul-americano, e que era necessário, portanto,
desconstruir tal imaginário: "Falar da emergência do Brasil como uma grande
potência e da geopolítica de Golbery havia servido para aumentar os temores
hispano-americanos" (Hurrel, 1998, p. 237).
Nos anos da redemocratização, com os governos de Alfonsin e Sarney, as
interações cooperativas aumentaram. Ambos os presidentes assinaram em novembro
de 1985 acordos sobre cooperação nuclear e abriram o processo de negociação de
integração econômica (que, entre 1986 e 1989, incluiu 24 protocolos sob o
Programa de Cooperação e Integração Econômica ' Pice), seguido pelo Programa de
Integração e Cooperação e o Tratado de Cooperação e Desenvolvimento. No marco
desses acordos, os dois governos decidiram criar grupos de trabalho envolvendo
burocracias nucleares. Dos 24 protocolos assinados no Pice, os de número 11 e
19 tratavam do intercâmbio de informação no caso de acidentes nucleares e do
desenvolvimento de pesquisa conjunta, assim como previam visitas técnicas em
ambos os países. Outro passo que mostrou um aumento significativo de
estratégias cooperativas foi a transformação, em 1988, dos grupo de trabalhos
num Comitê Permanente de Assuntos Nucleares.
Dessa forma, as condições políticas e técnicas estavam amadurecidas para
consolidar a reciprocidade específica positiva, no sentido empregado por
Axelrod (1984). Significativo nessa direção foram as visitas dos presidentes
Sarney e Alfonsin aos locais onde se desenvolviam os respectivos programas
nucleares no Brasil e na Argentina. "Muito mais enfaticamente, a confiança foi
atingida pelas visitas de Sarney [às instalações nucleares] facilitadas pela
Argentina em 1987 e 1988 e pela visita de Alfonsin a até então oficialmente
desconhecidas [instalações nucleares brasileiras] em Aramar" (Hurrel, 1998, p.
241).
Todavia, é necessário atentar para algumas divergências diplomáticas que
poderiam eventualmente impor limitações importantes ao jogo cooperativo
seqüencial entre Brasil e Argentina e que mostram bem a dinâmica diplomática de
conflito e cooperação em política externa. O discurso tanto da diplomacia
presidencial como dos chanceleres do Itamarati tem insistido, desde o governo
Sarney (com Abreu Sodré) até o governo Lula (com Celso Amorim), sobre a
necessidade de estabelecer uma aliança estratégica com a Argentina, visando ao
duplo objetivo explícito de conciliar os objetivos econômicos da integração à
procura da estabilidade democrática nos países do Mercosul e da região sul-
americana como um todo. Certamente um dos objetivos latentes da política
externa brasileira consiste em atenuar, via cooperação regional, as
desconfianças argentinas em relação ao Brasil. Nessa direção cooperativa os
porta-vozes mais graduados do Itamarati construíram contemporaneamente o
discurso reiterativo segundo o qual "a parceria estratégica entre Brasil e
Argentina é a pedra angular da política para a América do Sul" (Amorim, 2004).
Porém, nos governos do ex-presidente Carlos Menem da Argentina (1989-1999),
houve uma evidente assimetria de perspectivas sobre o lugar que cada país
ocupava em seus projetos de política externa. Vale lembrar que nesses dez anos
de governo, Menem optou pelo chamado "realismo periférico", que apesar de
coincidir com os objetivos econômicos de integração no Mercosul adotava um
alinhamento político sem restrições com os Estados Unidos. Como notam Russel e
Tokliatan, comentando a política externa do governo:
O lugar reservado ao Brasil nesse paradigma [realismo periférico],
que se derivava logicamente de suas premissas, foi o de um simples
"sócio" econômico, e não de um "aliado estratégico". Assim, aos
importantes avanços produzidos no plano doméstico, que aumentaram a
interdependência entre os dois países, não correspondeu um aumento
das convergências no campo da política externa (2003, p. 89).
Deve-se atentar, porém, que o capital social e a geração de identidades
positivas não têm um significado cristalizado. Como reconhece um dos
formuladores da política externa brasileira nos anos de 1990, o ex-ministro
Celso Lafer (2003, p. 118) "a confiança como capital social pode ser um bem
renovável ou não" entre países. Esses tipos de capital social podem ser
construídos tanto positiva como negativamente, sendo resultados de um processo
de interação seqüencial histórica, em que não é incomum a manutenção entre
vizinhos territoriais de acervos imagéticos no âmbito do poder. Nesses casos,
as identidades negativas formadas no passado são fatores que limitam e criam
importantes constrangimentos à cooperação O posicionamento argentino nos
governos Menem é uma outra forma de constatar que identidades em comum podem
certamente levar ao surgimento de comunidades de segurança, contudo a
profundidade de identidades históricas divergentes (ou negativas) pode se
transformar em obstáculos relevantes à cooperação, já que vez por outra são
recuperados de seus acervos e mobilizados como recursos de política externa.
Todavia, em que pesem as diferenças nas políticas externas do Brasil e da
Argentina durante a era Menem, a idéia de integração regional, com pressupostos
democráticos, pode ter sido um poderoso ponto focal para objetivos cooperativos
em comum e que permitiu a continuidade e o aprofundamento de empreendimentos
cooperativos em áreas sensíveis como segurança e desarmamento. Assim, durante o
governo Collor (1990-1991), esses dois países assinaram, em 1990, a Declaração
de Guadalajara, ou Declaração sobre Uso Exclusivamente Pacífico de Energia
Nuclear. Essa declaração estabeleceu as bases para a criação da Agência
Brasileira-Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC). Os dois países
avançariam um pouco mais nos compromissos de não proliferação ao assinarem um
acordo mais amplo, em dezembro de 1991, o Acordo Quadripartite, entre Brasil,
Argentina e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e a ABACC, para a
criação de um sistema de monitoramento e salvaguarda nucleares. Juntamente com
os esforços de institucionalização do Mercosul pelo Tratado de Assunção de
1991, ainda durante o Collor o Brasil deu um passo importante para esse
incremento de confiança quando encerrou suas pretensões de desenvolver armas
nucleares, simbolizando essa opção estratégica na clausura do campo de testes
da Serra do Cachimbo. Esses acordos firmaram as bases para a completa
implementação do Tratado de Tlatelolco, de controle de armas nucleares no
continente americano, assim como para o Acordo de Mendoça de setembro de 1991,
do qual participou também o Chile, incluindo o controle de armas químicas e
biológicas.
Ainda na década de 1990, aprofundaram-se as ações em matéria de segurança e
desarmamento, aumentando os níveis de confiança entre Brasil e Argentina, além
de sinalizar uma diminuição das suspeitas que, em matéria de geopolítica,
haviam alimentado ambos os países durante o regime militar. Em meados dessa
década, o Brasil deslocou contingentes completos de tropas da fronteira sul em
direção à fronteira norte na Amazônia num claro sinal de que para as elites
militares e políticas brasileiras a ameaça representava outro lugar que não a
fronteira sul com a Argentina. Nesse aspecto, a Argentina fez um movimento
seqüencial de reciprocidade em relação ao Brasil, abandonando a concepção
geopolítica de "fronteiras vazias", pela qual políticas de povoamento, de
valorização econômica e de construção de infra-estrutura para transporte
rodoviário foram descuidadas nas fronteiras com o Brasil, como parte dos
temores à geopolítica de expansão brasileira. Hoje, tal política foi revista
pela Argentina em conseqüência do processo de integração física estimulada pelo
Mercosul.
Acentuando as dinâmicas cooperativas, que tiveram como marco os tratados do
Mercosul, implementaram-se as chamadas Medidas de Incremento de Confiança
(MIC). Tais medidas englobam simpósios entre os Estados maiores das forças
armadas de ambos os países, os exercícios conjuntos entre as armadas dos países
do Mercosul, a implementação do Programa de Cooperação e Integração Aeronáutica
Argentino-Brasileiro e o Programa de Co-Desenvolvimento do avião CBA-123 entre
a empresa aérea brasileira Embraer e a argentina Fama (Giaccone, 1994). A
assinatura, em abril de 1996, de um acordo mais amplo sobre cooperação nuclear
e pesquisa espacial, assim como a assinatura do Tratado de Não Proliferação
Nuclear (TNP) pelo Brasil em 1988 (a Argentina já havia assinado esse tratado
em 1995) completam a escalada cooperativa em termos de segurança e controle de
armamentos.
Como essa projeção positiva poderia ser explicada a partir de uma perspectiva
de capital social? A nosso ver, três fatores são cruciais a esse respeito: 1) o
papel das idéias compartilhadas e do auto-interesse; 2) o histórico de
reciprocidade específica positiva; e, 3) a criação de normas de transparência e
monitoramento, que geraram um sistema de princípios de autogovernança e
confiança, institucionalizados em mecanismos de confidence buiding.
O primeiro fator sugere o impacto da visão compartilhada da democracia como
valor global entre a Argentina e o Brasil. Nesse nível sistêmico, as visões
brasileira e argentina eram consistentes com a de suas elites governantes. Como
transparece o discurso diplomático de um de seus formuladores, essas
coincidências são plenamente coerentes com "os valores que se difundem e se
universalizam no plano internacional" (Cardoso, 2000, p. 60) e que visam ao
estabelecimento de padrões de cultura cívica transnacional no sentido afirmado
por Ikenberry (2002) para o caso dos Estados Unidos.14 O impacto da idéia de
democracia sobre a conduta da política externa e sua capacidade de veiculá-la
como recurso político para atingir metas como segurança e desarmamento podem
ser compreendidos não só pelo fato de que crenças fornecem guias para os
Estados "sobre como atingir seus objetivos", mas também por que, de acordo com
Waltz (2000, pp. 106-108), tanto indivíduos como estadistas tendem a selecionar
idéias e comportamentos que, socializados internacionalmente, se mostram bem-
sucedidos. O exemplo do sucesso de países da Europa Ocidental, enfatizando a
interdependência entre democracia e bem-estar social, a regulação dos
nacionalismos e os problemas de segurança regional, talvez tenha animado as
elites brasileiras e argentinas, desde os governos Sarney e Alfonsin,
respectivamente, com o objetivo de que, dada a condição de país em
desenvolvimento, a eficácia de ações individuais com tendência a procurar
soluções para o problema da segurança dependa de uma assunção do núcleo do
discurso democrático global na forma de "liberalismo qualificado". Está claro
para as elites brasileiras que formulam a política externa para a América do
Sul que a identidade negativa do "subimperialismo brasileiro", construída de
longa data, mas acentuada nos anos do regime autoritário pós-64, só pode ser
desconstruída seguindo-se um curso de ação que privilegie a atenuação dos
acervos imagéticos do poder, substituindo-os por um nacionalismo cívico no
sentido mencionado por Ikenberry (2002). Isto é, o enraizamento em ideais
democráticos e em regras de direito compartilhadas fornece uma via potencial
para a liderança branda em âmbitos regionais por ser menos propenso às
políticas de poder.
A combinação de idéias e do auto-interesse em torno de outros objetivos da
política externa é importante também para explicar o surgimento de confiança
entre a Argentina e o Brasil. Pode-se concordar com a afirmação de que "o
interesse próprio dos atores estabelece o fundamento de todos os esforços
confiáveis" (Locke, 2001, p. 261), ou com a afirmação de que "escolhas de
idéias específicas podem simplesmente refletir os interesses dos atores"
(Goldstein e Keohane, 1993, p. 11). Mas quando combinado com idéias, o auto-
interesse pode sustentar metas legítimas em política externa. No caso
brasileiro, além de matizar entre seus vizinhos sul-americanos as preocupações
com os hipotéticos planos expansionistas, o auto-interesse procurava a
institucionalização de normas regionais que estabelecessem relações causais da
democracia com outras metas de política externa. Sob a liderança brasileira em
2002, a Reunião de Presidentes da América do Sul em Brasília tentava justificar
o vínculo causal entre desarmamento, desenvolvimento e democracia.
Reconhecendo que a paz, a democracia e a integração constituem
elementos indispensáveis para garantir o desenvolvimento e a
segurança na região, os presidentes destacaram a importância da
Declaração do Mercosul, Bolívia e Chile como Zona de Paz e livre de
armas de destruição em massa. Assinada em Ushuia, em julho de 1998, o
Compromisso Andino de Paz, Segurança e Cooperação, contido na
Declaração de Galápagos de dezembro de 1998. Nesse espírito, os
presidentes acordaram criar uma Zona de Paz Sul-americana
("Comunicado de Brasília", 2000, p. 126).
Quanto ao histórico de reciprocidade específica positiva, a combinação de
idéias e do auto-interesse dos atores é importante também para explicar por que
o Brasil sempre destacou durante os anos de 1990 a incompatibilidade entre
democratização e pesquisa nuclear com fins bélicos:
[...] o raciocínio com o qual [pretendeu-se] justificar a
predisposição a aceitar a renúncia à pesquisa e desenvolvimento de
foguetes escondia, estou certo, a convicção, embora não se tornasse
explícito, de que qualquer esforço maior nesse sentido seria inútil
porque a crise fiscal obrigava a cortar investimentos na área militar
' além daquela outra convicção de que, como pretendia o chanceler
Lampreia, a redemocratização torna inviável qualquer proposta
destinada a cuidar do equipamento das Forças Armadas em termos
modernos (Ferreira, 2001, p. 27, grifo nosso).
Certamente, pensar no impacto que teve a redemocratização na geração de
confiança não é incompatível com o reconhecimento da importância dos fatores
sistêmicos ou de alguns fatores institucionais domésticos que também
pressionaram no sentido de que a aproximação entre o Brasil e a Argentina fosse
uma iniciativa regional diplomática necessária. A partir de uma perspectiva
neo-realista, os constrangimentos sistêmicos, tais como as pressões externas da
Agência Internacional de Energia (AIEA) e dos Estados Unidos, poderiam sugerir
que ambos os países estivessem tentando criar uma agenda positiva de cooperação
nos anos da Guerra Fria. Ou de um ponto de vista institucional, a decisão de
abandonar projetos de construção de armamento nuclear ou desenvolver tecnologia
nuclear também poderia ser explicada pelo fato doméstico de que os poderosos
ministérios de relações exteriores dos dois países (Itamarati, no Brasil, e San
Matin, na Argentina) tinham visões coincidentes sobre a integração sub-regional
em bases democráticas e mutuamente favoráveis sobre as políticas de controle de
armamentos. Essa visão compartilhada entre ambas as corporações de política
externa teria muita influência sobre os grupos técnicos de trabalho que
elaboraram os planos de controle e desarmamento na época da redemocratização
(Hurrel, 1998). Em contrapartida poderia ser argumentado com razão que os
custos financeiros para desenvolver tecnologia nuclear bélica era muito alto e
que a escolha foi no sentido de redirecionar esses recursos para outros
aspectos funcionais às metas do desenvolvimento.
Porém, sem negar a importância das variáveis sistêmicas, a influência das
corporações de política externa e dos custos financeiros envolvidos, também foi
importante porque a redemocratização havia gerado condições políticas entre
Brasil e Argentina para a institucionalização de normas de cooperação na agenda
de desarmamento. Em outras palavras, o auto-interese dos atores não é
incompatível com a percepção de interesses em comum. E o processo de
redemocratização deflagrou percepções cognitivas entre atores que permitiram a
compreensão recíproca de interesses apesar das diferenças na política externa.
Um aspecto fundamental foi que o processo de democratização pode ter fornecido
para a Argentina e o Brasil uma visão comum de interesses e identidades e,
sobretudo, fez com que compreendessem a vulnerabilidade e a fragilidade do
processo de redemocratização e a importância de sua defesa conjunta. Assim, a
cooperação bilateral passou a desempenhar um papel de escudo comum contra as
ameaças domésticas ao processo de redemocratização. Embora essas ameaças fossem
maiores na Argentina ' onde o movimento militar dos Caras pintadas tentou
quebrar a institucionalidade democrática no final da década de 1980 ', o
governo brasileiro percebeu que o amadurecimento da redemocratização no país
dependia em muito da consolidação da democracia na vizinha Argentina.
"Acreditar na redemocratização foi importante para redefinir os interesses, as
dentidades e um senso comum de propósitos" (Hurrel, 1998).
O terceiro fator ' autogovernança e confiança ' explica-se pelo fato de que foi
possível construir confiança e capital social positivo devido à
institucionalização de um sistema de normas de autogovernança de confidence
building sobre desarmamento e segurança. A criação de confiança advém de um
histórico de reciprocidade especifica positiva que paulatinamente foi
institucionalizado desde meados dos anos de 1980. Sem esse histórico de
reciprocidade positiva teria sido pouco provável a geração de confiança e a
institucionalização desta. Em conseqüência, criou-se um bem-sucedido sistema de
normas de autogovernança e de monitoramento15 ou de mecanismos recíprocos de
confidence buildingentre ambos os países, o que permitiu a estabilidade e a
continuidade dos empreendimentos cooperativos. As confidence building measures
objetivam criar transparência, mecanismos de monitoramento nos procedimentos e
nas operações militares, diminuir as assimetrias de informações entre os
Estados membros de um regime de normas no tratamento de problemas de segurança
e desarmamento. A institucionalização do histórico de reciprocidade e do jogo
seqüencial de cooperação incluiu, além das ações já referidas durante os anos
de 1990, os intercâmbios permanentes entre os staffs dos Estados maiores
militares dos dois países e a continuidade dos grupos de trabalho binacionais
em matéria nuclear. Também essas de normas de confidence buldingabrangeram a
institucionalização dos canais de comunicação entre os dois presidentes, os
altos funcionários (seguindo o caminho europeu do segundo pós-Guerra Fria),
consultas sobre a participação em peacekeepinge o estabelecimento da cooperação
na tríplice fronteira (Argentina-Brasil-Paraguai) para tratar aspectos de
narcotráfico, contrabando e terrorismo. Dessa maneira, Brasil e Argentina
criaram condições institucionais de autogovernança com a construção de um
frameworkde normas de confiança em matéria de segurança e desarmamento. Tais
condições permitiram o estabelecimento de: 1) medidas de coordenação e
monitoramento de política nuclear; 2) "novos hábitos de comunicação",
incentivos para a mudanças de atitude e de percepções e novos padrões de
interação estratégica"; e, 3) consenso de interesses a ser atingido via
cooperação, mesmo se tratando de aspectos sensíveis à segurança nacional, como
o projeto de energia nuclear.
Analiticamente é possível afirmar que a partir desses desenvolvimentos
históricos a Argentina e o Brasil estabeleceram as bases para a formação de uma
comunidade minimalista ou fraca de segurança (loosely coupled security
community), no sentido descrito por alguns teóricos quando afirmam que as
"sociedades mantêm expectativas confiáveis de mudança pacífica" (Adler e
Barnet, 1998a, p. 30). Ambos os atores compartem minimamente valores,
identidades e significados comuns, praticam a reciprocidade específica,
característica esta que implica em certo grau de interesse de longo prazo,
assim como na geração de um senso de responsabilidade e obrigação em comum, e,
ainda, alimentam expectativas de solução de conflitos que descartam os recursos
de poder baseados na força (power-based).
No entanto, se do ponto de vista conceitual o procedimento explicativo da
política externa brasileira nem sempre é o mais esclarecedor em relação a essas
temáticas,16 deve-se reconhecer que a escolha do "mapa do caminho" democrático
abre portas para resolver o dilema de como continuar mantendo suas aspirações
de liderança regional sem que isso seja percebido pelos vizinhos sul-americanos
como a continuidade de um objetivo expansionista. Como reconhecem os setores
ligados à corporação diplomática, o pathway democrático significa um efetivo
soft power de credibilidade para a política externa (cf. Lafer, 2003), o qual
atenuaria suspeitas de que no futuro o governo poderia optar pelo recurso do
tipo based-power. Não estamos sugerindo que a democracia e as declarações
pacifistas doutrinárias sejam a única dimensão explicativa das escolhas em
política externa, mas que elas são importantes no contexto do pós-Guerra Fria
em termos de procedimentos explicativos da política externa, sobretudo para os
atores que procuram justificar tal ação ou escolha para o público doméstico.
Esses procedimentos explicativos transformam-se em atitudes simbólicas que
visam a legitimar e viabilizar ideologicamente a globalidade dos interesses
nacionais, como nos lembra Fonseca (1998).
Entre essas atitudes simbólicas, sem dúvida não se pode negar a ponte que liga
credibilidade, confiança e imagem externa à aderência a regimes de não
proliferação de armas. Essa sentença é mais verdadeira para o caso de temas
sensíveis, em que normas de segurança internacional, baseadas em confidence
building, requerem transparência e monitoramento na execução de regimes que
regulamentam a matéria, requisitos esses para os quais as democracias estão, em
princípio, mais predispostas a aceitar e em melhores condições de atender. Em
síntese, em que pesem tanto as assimetrias de políticas externas como a
permanência de imagens negativas construídas no passado, a democratização levou
a uma variação significativa do conteúdo dessas duas variáveis, permitindo a
construção de um capital social positivo entre a Argentina e o Brasil. Isto
quer dizer que as imagens negativas e as desconfianças se amorteceram e que as
divergências hoje incidem sobre quais seriam os melhores meios econômicos e
quais alianças políticas seriam mais privilegiadas para a inserção do país no
mundo globalizado.
Na verdade, o pathway sugerido pela democracia como recurso de ação da política
externa na geração de capital social positivo pôde ajudar a resolver dois
dilemas de ação coletiva vivenciados pela política externa brasileira. Ao
assumir que os sistemas sul-americanos podem se organizar de maneiras variadas
sob o que denominamos "liberalismo político qualificado",17 o Brasil construiu
a base para promover a estabilidade democrática como instrumento útil de
cooperação regional sul-americana sem ser percebido por seus vizinhos como um
país exportador de valores democráticos homogeneizadores que não levam em conta
as especificidades nacionais. De outra parte, o "liberalismo político
qualificado" assegurou uma coerência ideológica com os valores políticos
ocidentais e certa margem de autonomia ante os Estados Unidos, ao mesmo tempo
em que sinalizava para os vizinhos sul-americanos a mesma possibilidade de
escolha sem que houvesse uma idéia rígida de democracia globalizada, como
sugerem os teóricos do "fim das ideologias". Em segundo lugar, possibilitou
esclarecer, para as elites brasileiras, a natureza política das condições
político-institucionais nas quais é possível procurar interesses políticos e
econômicos regionais de maneira mais eficiente, e a um só tempo ser
ideologicamente coerente com a normatividade liberal global, isto é, sem
grandes lacunas entre a economia liberal e a natureza do sistema político
doméstico.18
Considerações finais
O que têm em comum os casos estudados? Compartem a importância do
reconhecimento de que o auto-interesse é compatível com a satisfação recíproca,
o que sugere que a construção de capital social entre Estados é mais do que um
jogo racionalista de soma-zero, permitindo, por sua vez, a desconstrução de
imagens negativas. Outro ponto comum constitui um aspecto significativo
ignorado pelas teorias de relações internacionais meanstream: a geração de
confiança entre atores estatais é possível a despeito da natureza anárquica do
sistema internacional. E, finalmente, os casos analisados mostram que há duas
condições para gerar a confiança: 1) histórico de reciprocidade positiva; e 2)
compartilhamento de visões de mundo normativas cooperativas, pois, caso
contrário, na hipótese da partilha de visões negativas, a geração de confiança
seria uma meta muito difícil de ser atingida. Entre as visões normativas
compartilhadas nos dois casos, a possibilidade da agenda democrática como
recurso de política externa configurou-se como a principal alternativa. Nesse
ponto, o discurso democrático da política externa brasileira tem sido o mais
importante recurso para a transformação das desconfianças em confiança dos
países sul-americanos em relação ao Brasil.
É viável pensar a agenda democrática em termos de geração de capital social
positivo? A afirmação de vantagens na implementação de uma agenda democrática
na América do Sul não significa que devamos ter como pressuposto a existência
de condições para a sua geração. Esse parece ser o maior ponto de
vulnerabilidade na política externa brasileira, que tem por base a consolidação
institucional democrática na América do Sul. A fragilidade da implementação de
uma agenda democrática no continente, visando a fortalecer o projeto de
integração regional e a confiança mútua, não decorre tanto de sua capacidade de
ação e iniciativa política ' esta, existe de fato, como mostraram as atuações
da política externa desde o golpe de Fujimori no Peru, em 1992, até as crises
políticas na Bolívia em 2003 e 2005. A principal limitação parece recair sobre
as condições políticas em que se desenvolvem as democracias regionais ou
democracias delegativas, como tem sido chamada por alguns autores.19 O baixo
grau da continuidade e da institucionalização das chamadas regras do jogo em
vários países da região, em especial no conjunto dos países da Comunidade
Andina, impossibilita um mínimo de congruência entre a racionalidade formal
(exprimida juridicamente em constituições, cláusulas ou decretos) e a prática
efetiva da democracia.
Também as identidades negativas do passado são um grande obstáculo à
implementação de uma agenda democrática para a América do Sul. Em que pesem os
esforços brasileiros por melhorar sua imagem, e mesmo sustentando a necessidade
do princípio de não intervenção, exemplos mais recentes, como o caso
boliviano,20 mostram que as elites desses países continuam muito sensíveis a
discursos e imagens do passado sobre as intenções expansionistas do Brasil. Em
outras palavras, o discurso da democratização da região e da estabilidade das
regras constitucionais veiculado pela política externa brasileira ainda não
resolve satisfatoriamente o problema das intenções reais da política externa
brasileira nas percepções de alguns de seus vizinhos.
Também é verdade que não é suficiente que o caminho democrático esteja
institucionalizado em cada país. Um importante requisito é que as metas
prescritas devem contar com "a existência de um conjunto de crenças
compartilhadas" (Goldstein e Keohane, 1993) sobre as qualidades sem par do mapa
que serve de guia às ações.21 Essas crenças podem estar emergindo, porém temos
elementos empíricos para sustentar tal hipótese? Em primeiro lugar, as relações
bilaterais cooperativas com a Venezuela, que datam de bem antes da chegada de
Chávez ao poder, mostram que é possível construir uma relação de confiança se
as relações cooperativas tiverem continuidade em ações concretas. Em segundo, a
ação coletiva sugere um mínimo de esforço de coordenação. Nesse sentido, no que
diz respeito ao Brasil, se as cúpulas sugerem algum tipo de ação coletiva
substantiva, a Reunião de Presidentes da América do Sul de setembro de 2000,
realizada em Brasília, destacou a democracia representativa como "fundamento da
legitimidade dos sistemas políticos" e uma interconexão entre "paz,
estabilidade e desenvolvimento da região" ("Comunicado de Brasília", 2000, p.
128).
Embora possamos reconhecer que tais parâmetros empíricos sejam ainda uma
evidência fraca para responder ao problema da ação coletiva baseada em idéias
compartilhadas, existe pelo menos um elemento importante a ser destacado: "a
teoria das relações internacionais sugere ser necessário um acordo básico entre
atores para levar uma política à frente ou existência de um ator com suficiente
capacidade de alavancagem" (Vigevani, 2000, p. 3). A maior capacidade do Brasil
em termos regionais não é só um dado geográfico, é também um dado político. Daí
sua maior capacidade de alavancar visões de mundo que, de outra maneira, seriam
percebidas pelos atores regionais como um bem público regional em construção,
capaz de gerar confiança entre Estados na base de expectativas recíprocas sobre
as vantagens da democratização regional como elemento-chave do relacionamento
diplomático.
No entanto, deve-se ter cautela quanto a hipóteses que tratem a precondição
democrática como o objetivo final da política externa brasileira na região sul-
americana. Talvez a melhor síntese dessa cautela, e que expressa o frágil
equilíbrio entre idéias e interesses, esteja resumida no discurso diplomático
contemporâneo de "não intervenção, mas sem indiferença", esboçado por
formuladores contemporâneos de política externa (Amorim, 2004), asserção essa
que baliza bem os limites possíveis de uma ação baseada em princípios.
Todavia, a metodologia explicativa da política externa em bases normativas
cumpre um destacado papel para justificar a democracia como recurso de poder
soft na América do Sul, uma vez que a região é definida como um dos elementos
formadores da identidade externa brasileira. Certamente, a tradição normativa,
independentemente de ser o certificado de "grociano" o mais adequado para
expressar o conteúdo doutrinário pelo qual se baliza a ação externa, tem sido
aproveitada bastante bem para desenvolver esse papel. O apelo à tradição
normativa ou doutrinária grociana cumpre razoavelmente a função de satisfazer o
público interno, caso a opinião pública não compreenda qual é o lugar do
interesse nacional na ação externa em curso, como é comum acontecer no
exercício de agendas externas baseadas em princípios. Também as razões
explicitadas pela matriz normativa satisfazem um público externo, que aceita
com menos resistência a idéia da exportação da estabilidade democrática como um
bem público regional, em contraste com a do imperialismo brasileiro, cuja
imagem esteve tão enraizada nos vizinhos sul-americanos durante quase todo o
regime militar.
Uma vantagem considerável dos formuladores da política externa brasileira para
os objetivos da consolidação da agenda democrática é a bem-sucedida transição
democrática no país, que teve seu ponto alto na passagem do governo de Fernando
Henrique Cardoso para o de Luis Inácio Lula da Silva. Essa exitosa transição
pode ser operacionalizada como recurso de ação externa, isto é, como modelo a
ser seguido por alguns países da região e que certamente aumenta a
potencialidade de credibilidade sobre suas intenções não predatórias, mas sim
benéficas da política externa brasileira.