Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

BrBRHUHu0102-69092008000100010

BrBRHUHu0102-69092008000100010

National varietyBr
Year2008
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Reconhecimento e sociologia

A principal questão posta à sociologia, considerando o conjunto de sua história, é saber se ela sugere uma representação específica do sujeito social ou se ela esboça uma outra teoria da ação mais poderosa que a das disciplinas rivais, como psicologia, filosofia ou ciência econômica. Assim formulada, esta questão parece tão complexa e carregada de problemas de todos os tipos que nos sentimos tentados a descartá-la. Buscar o que é, poderia ou deveria ser uma teoria propriamente sociológica da ação parece equivaler à busca do Graal ou da pedra filosofal. Pode-se pensar que seria o mesmo que abandonar o jogo no início. Como comparar as respostas da sociologia às de outras disciplinas, sabendo que estas estão tão ou mais desarticuladas do que ela? Tomemos por exemplo a psicologia. Qual delas devemos considerar? A psicologia social, as psicologias experimentais, comportamentais, a psicanálise, ou outras? Por outro lado, os limites daquilo que faz a tradição sociológica são bastante fluidos e em parte arbitrários e convencionais. Marx ou Tocqueville eram sociólogos desde sempre mesmo sem o saber? E o que dizer de Weber, que se considerava antes de tudo um economista? A questão da relação da sociologia com a questão do reconhecimento - este também disperso, como veremos adiante - parece então insolúvel. Entretanto, percebe-se que ela é essencial à autodefinição da disciplina. E como falamos aqui de reconhecimento, é possível traduzir essa idéia propondo que a sociologia apenas pode ver reconhecida sua legitimidade e que os sociólogos não podem se reconhecer entre si como tais - atente-se para os dois sentidos diferentes da palavra reconhecimento - enquanto haja no mínimo um ar familiar partilhado entre as diferentes modalidades de se analisar a ação social dos sociólogos; modalidades diversas daquelas dos filósofos, dos psicólogos ou dos economistas.

Retomemos, então, a questão de uma forma mais modesta e conveniente: é possível fixar algumas características desse ar familiar de que partilham as diversas teorias da ação social que reivindicam para si a sociologia ou que a têm imputada? E têm elas relação com a questão do reconhecimento? Para avançar neste terreno instável, es-corregadio e pouco demarcado, é necessário desde logo deixar de lado certo debate recorrente na sociologia que nos conduz ao impasse, de modo que se possa compreender onde a problemática do reconhecimento nos ajuda. A principal linha de divisão no interior da tradição sociológi-ca - a divergência na questão do status da ação social - parece se condensar na oposição entre individualismo e holismo metodológicos. Ou seja, entre sociologias que, seguindo o raciocínio dos economistas, atribuam a ação ao pólo da liberdade e/ou da racionalidade dos indivíduos e sociologias que a enraízem no universo do sentido, da cultura e dos valores. Inútil afirmar neste debate, e nos limites do que nos propomos aqui, que a lacuna das teorias individualistas da ação social é que elas carecem de construção do momento da socialidade, da dimensão propriamente social da ação, e que, inversamente, a lacuna dos vários holismos (funcionalismos, culturalismos ou estruturalismos) é perder a dimensão da ação, da liberdade e da indeterminação relativa da ação social.

Uma das razões do sucesso contemporâneo das teorias da luta pelo reconhecimento, iniciadas sob sua forma atual por Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser, é que certamente elas estão em consonância com os novos tempos (seria preciso perguntar o por quê), mas também que elas parecem indicar o caminho para uma ultrapassagem efetiva da oposição entre individualismo e holismo. Ter como hipótese de partida que os atores sociais estejam em luta de ou para o reconhecimento permite, de fato, fazer justiça a um tempo ao momento da ação - representado pela insistência na luta - e ao momento da socialidade, uma vez que visar a ser reconhecido é necessariamente ser reconhecido por outros que não si mesmo. Sermos reconhecidos por outros que freqüentamos na esfera da intimidade ou do trabalho e pelo "grande outro", aquele que encarna a cultura e os valores compartilhados. Isso significa agir para fazer sentido a si mesmo e aos outros, ou pelo menos aos olhos dos outros.

Mas em que medida e sob quais condições, no quadro real da problemática da luta pelo reconhecimento, a tradição sociológica pode encontrar uma unidade mínima e relativa? Procederei em três tempos: inicialmente, de forma quase taquigráfica, experimental e exploratória, tentarei ver se é possível reformular certos temas essenciais da tradição sociológica em termos da linguagem do reconhecimento.

Esboçarei, no segundo momento, um mapeamento das dificuldades levantadas pelas formulações contemporâneas desta problemática, para esboçar, enfim, algumas hipóteses sobre a direção a seguir, de forma que as teorias do reconhecimento contribuam de maneira convincente para um paradigma sociológico da ação social.

O reconhecimento na tradição sociológica Examinemos de forma cursiva e meramente indicativa com que poderiam parecer alguns dos temas e capítulos de uma história temática da tradição sociológica que - à maneira de Talcott Parsons ou de R. Nisbet - tentariam delimitar nessa tradição o lugar ocupado pela questão do reconhecimento, quer ela apareça sob esta categoria ou sob outros títulos.

1. Em certo sentido, Tocqueville fala sobre isso. O ódio do privilégio que ele coloca no coração da democracia moderna equivale à recusa visceral de ser desprezado. A aspiração à igualdade das condições é a aspiração a um igual respeito, e não à igualdade de posses. Tocqueville é muito explícito neste ponto. A dinâmica democrática pode, então, ser facilmente lida como o resultado não da luta de classes, mas da luta pelo reconhecimento. E, mais especificamente, para dizê-lo em um vocabulário anacrônico, como uma luta de grupos de status, para além das classes. E, mais especificamente ainda, como uma luta dos grupos de status dominados em vistas de se libertar da lógica estatutária e das lutas que ela induz. Trata-se, em suma, de ultrapassar e regular a questão do reconhecimento estatutário mediante o acesso a um imaginário comum das condições sociais. Ao igual respeito, portanto.

2. Certamente não seria muito difícil sustentar que também Marx fala apenas de reconhecimento, ainda que sua visão da história seja claramente derivada da dialética hegeliana do mestre e do escravo. Seria plausível, pois, reformular e fixar boa parte dos temas marxistas centrais na linguagem do reconhecimento.

Aliás, é isso que, em certa medida, faz A. Honneth e, com maior evidência, E.

Renault. Porém, está claro que Marx não conceitua a luta de classes em termos de luta pelo reconhecimento, em termos de luta pela identidade e pelo ser, mas em termos de luta pela posse, pelo ter. A luta de classes marxista é movida menos pelo desejo de reconhecimento, pelo sentimento de ser vítima de um desconhecimento ou do desprezo, do que pelo desejo de escapar à exploração e à alienação de seu trabalho. Em contraste perfeito, mas também em complementariedade e em simetria com Tocqueville - o qual pensa o conflito social como uma luta de grupos dominados que tentam se sobrepujar, abolindo a própria luta estatutária -, Marx age como se a luta dos grupos de status fosse reduzível a uma luta de classes econômicas que tende à sua própria ultrapassagem e à sua própria destruição. Tanto em um caso como no outro, o que está em foco, anunciado e profetizado, é um lugar para além da luta. Um além das lutas de status em Tocqueville, um além de luta das classes em Marx.

O ponto estranho em Marx é que ele nos agracia, portanto, com uma teoria muito poderosa do reconhecimento, talvez a mais poderosa jamais elaborada, claramente derivada de Hegel. Mas o fato é que a teoria econômica desenvolvida em O capital se apresenta como uma teoria do reconhecimento não dos homens, mas dos bens. Não são os sujeitos humanos, mas os bens que estão em luta para fazer reconhecer seu valor, para o "realizar", como diria Marx. Fica em aberto a questão de saber se as ferramentas desenvolvidas por Marx para pensar o reconhecimento do valor dos bens não seriam mais bem adaptadas a um pensamento do reconhecimento do valor dos sujeitos.

3. Curiosamente, de todos os grandes sociólogos, Durkheim é sem dúvida o autor em que encontramos menos elementos passíveis de serem reinterpretados em termos de reconhecimento. Isso pode causar estranheza, porque a atenção que ele à importância dos símbolos na vida social deveria lhe conduzir nesta direção. O que são realmente os símbolos, em sua origem e em última instância, senão sinais de reconhecimento? Porém, totalmente voltado a pensar o que é por excelência a religião na ordem simbólica, o que une e forma a sociedade, Durkheim acaba por negligenciar a luta dos vários grupos que a compõem e que se afrontam para se apropriar do domínio do simbolismo e, portanto, do reconhecimento. Nesse sentido, muitas pistas podem ser encontradas em seu discípulo Maurice Halbwachs. Mas em Durkheim, de fato, é a sociedade em seu todo, e não qualquer um de seus subconjuntos, que deve ser reconhecida, o que se faz por meio da religião. O único sujeito que se faz reconhecer é a sociedade. O reconhecimento de sujeitos e grupos aparece em sua obra como uma refração, uma sombra deste reconhecimento mais geral, primeiro.

4. Weber, por sua vez, nos permite entrar nesse debate por meio de duas abordagens muito diferentes. A mais conhecida é a que mostra como a luta dos grupos estatutários se sobrepõe à luta das classes e se autonomiza em relação a ela para compor a ordem propriamente social. Estaríamos, então, no campo da luta pelo reconhecimento, mesmo que esta idéia não apareça em sua obra expressamente nestes termos. Encontra-se , de certo modo, uma síntese de Tocqueville e de Marx, porém desprovida da composição messiânica que apontava na direção de uma possível abolição da luta dos grupos estatutários ou das classes.

Contudo, o mais fecundo é a segunda abordagem do reconhecimento, que se encontra na teoria weberiana da religião. De fato, em Weber toda uma teoria, muito pouco explorada, da racionalização não formal, mas também substancial da religião, isto é, da ordem simbólica. As religiões evoluem porque é necessário que elas constantemente encontrem novas razões que lhes permitam explicar o sofrimento e o infortúnio, atribuindo-lhes um sentido e, assim, dando esperança para os sobrepujar. Elas devem dar a cada classe social, a cada grupo estatutário, assim como a qualquer indivíduo, os meios de encontrar sentido em suas ações e em sua presença na Terra e no além, e, portanto, de se ver reconhecido. Seria preciso cruzar tais reflexões com sua análise específica da ética puritana, que deixa entrever uma questão-chave: saber em que medida as grandes religiões universais não tendem a responder à busca de sentido e de valor em termos de eleição individual e/ou coletiva. Ser reconhecido, em termos religiosos, não seria, afinal, poder considerar-se como eleito, ou seja, dizer- se reconhecido, individual e/ou coletivamente, pelo reconhecedor último, o reconhecedor de todos os reconhecedores possíveis, que é a figura divina suprema, o outro generalizado, o sujeito que supostamente tudo sabe para além de todo o conhecimento? Enfim, a religião como resposta aos enigmas e às aporias do reconhecimento.

5. Seria possível identificar os grandes traços de uma tradição sociológica norte-americana na interseção entre uma forte valorização da pesquisa empírica, da antropologia cultural, da psicologia social e de uma filosofia majoritariamente pragmatista? Encontrar, por exemplo, pontos comuns entre Cooley, Park, Mead, Parsons, o interacionismo simbólico, Goffman e Garfinkel? A tarefa revela-se difícil, mas é plausível dizer que entre estes autores a questão do reconhecimento é absolutamente central. Ela não é nomeada como tal, é verdade, mas definitivamente para onde se voltam todas as análises da dialética dos status e dos papéis tão recorrentes nesta tradição? Ou para onde se volta a insistência goffmaniana sobre a obrigação social de apresentar e representar o "eu" para o "outro" na vida cotidiana, de rastrear implacavelmente todas as ofensas que lhe são feitas e zelar pela reparação das ofensas infligidas ao "eu" do "outro"? O sujeito goffmaniano está de certa forma submetido à obrigação social de lutar para fazer reconhecer seu "eu" sagrado e reparar as usurpações cometidas sobre o "eu" do "outro".

6. Curiosamente o autor que, sem dúvida, está mais próximo de construir uma sociologia geral no plano da problemática do reconhecimento é aquele que mais se distancia do tema. Trata-se de Pierre Bourdieu. O que faz a força inigualável de A distinção é a subversão radical que este livro introduz não na teoria dos gostos estéticos, como também, e de maneira mais geral, na teoria das necessidades. Onde o bom senso e a economia política clássica inserem as necessidades no registro da materialidade, Bourdieu mostra, ao contrário, que até mesmo as necessidades mais materiais - por exemplo, comer e beber, tanto pelo que é consumido como pela maneira de fazê-lo - devem ser pensadas, em última instância, como a necessidade de fazer reconhecer um status social e, de certo modo, legitimar a natureza social, de maneira subentendida a taken for grantedness aferente à cada status.

Ou ainda, a teoria bourdieusiana do capital simbólico não é outra coisa senão a teoria da acumulação de um capital de reconhecimento. É o que o autor mostra de modo exemplar em Esboço de uma teoria da prática (ou no livro O sentido prático). Mais ainda: a bela análise da lógica do ponto de honra - isto é, da luta pelo reconhecimento - é, nessas obras, inseparável da reconstrução minuciosa das categorias de pensamento que estruturam o universo simbólico da sociedade kabyle, imputando o valor social a priori aos gêneros, às idades ou aos diversos grupos sociais de acordo com o lugar ocupado no enredo complexo das oposições entre o norte e o sul, o seco e o úmido, o quente e o frio, o interior e o exterior etc. Aqui se como o conhecimento é indissociável do reconhecimento, como se entrecruzam e se interpenetram as categorias de pensamento, as formas de classificação que permitem pensar e conhecer o mundo, e aquelas que valorizam tanto as categorias cognitivas como as axiológicas. O reconhecimento que conhece, e aquele que normatiza.

Entretanto, como se sabe, todas essas belas análises das lógicas sociais do reconhecimento não contribuem para colocar a sociologia bourdieusiana no terreno de uma sociologia geral do reconhecimento. Decidindo pensar seu sistema sob a rubrica de uma economia geral da prática, e não de uma sociologia geral do reconhecimento, Bourdieu reintegra-se na principal filiação marxista, a qual prioriza as questões do ter material em relação às questões do ser social e de seu reconhecimento. Ele perde, assim, uma grande parte da força de suas descobertas, supondo que elas desmascarariam a lógica oculta da reprodução sistêmica e quase mecânica da busca pela acumulação de posses - capital econômico, capital social, capital simbólico -, quando o que elas de fato mostram, se corretamente reinterpretadas, é o quanto a acumulação desses diversos capitais faz sentido se for pensada como momento e meio da luta pelo reconhecimento.

Em outras palavras, o edifício bourdieusiano repousa sobre a tese meio implícita meio explícita de que a posse e a acumulação do capital econômico são, em última instância, os determinantes da luta social assim reduzida à acumulação de vários tipos de capitais, notadamente capitais social e simbólico. Ao passo que as análises de Bourdieu seriam suscetíveis de assumir todo o seu sentido e porte se inscritas no quadro de uma tese simétrica - que a revitalizaria -, a qual estabeleceria que a acumulação do capital simbólico é o verdadeiro determinante e que a acumulação do capital econômico deve ser pensada como um de seus momentos e de seus meios. Ou, mais precisamente, é necessário considerar a luta pelo reconhecimento o fato social primeiro e primordial, e a acumulação (ou a dilapidação) dos diversos tipos de capital como tantos outros meios e momentos desta luta.

Seria possível avançar ainda mais nessa direção, e desenhar os contornos do que não seria somente uma teoria sociológica do reconhecimento, mas os delineamentos de uma teoria sociológica geral vista como teoria geral do reconhecimento? Para fazê-lo, precisamos organizar um apanhado das dificuldades com as quais colidem as teorias do reconhecimento.

Algumas dificuldades das teorias do reconhecimento Situemos inicialmente os dois problemas mais gerais levantados pelas diversas teorias do reconhecimento que estruturam os debates contemporâneos. O primeiro é saber se do ponto de vista positivo e cognitivo elas oferecem uma verdadeira alternativa aos modelos explicativos dominantes. O segundo levanta a eterna questão da passagem do positivo para o normativo, do is para o ought to: pode- se deduzir da constatação de que os sujeitos humanos desejam antes de tudo ser reconhecidos, que é preciso, necessariamente, lhes conceder o reconhecimento ao qual aspiram? Em um plano positivo, é realmente concebível fazer da questão do reconhecimento um simples caso particular, um subconjunto da teoria geral da maximização da utilidade, da teoria das escolhas racionais ou ainda daquilo que eu chamo de axiomática do interesse. Seria suficiente para tanto considerar o reconhecimento como um bem desejável, que satisfaz uma utilidade ou uma preferência, no mesmo nível que outros bens desejáveis, como, por exemplo, um carro, uma bela casa ou o prestígio. Em um outro registro, como vimos, poder- se-ia facilmente imaginar uma sociologia bourdieusiana subvertida, que não consideraria na raiz da ação o interesse, a lógica de reprodução ampliada do capital econômico, mas o desejo de maximizar o capital simbólico. Ora, mesmo subvertida, e se não mudássemos nada em outros lugares, ainda teríamos uma axiomática da maximização do interesse e do ter. A questão é, então, saber se a própria problemática do reconhecimento é capaz de operar uma verdadeira inversão copernicana que faça surgir a teoria da ação racional como um caso particular do reconhecimento, ou se este permanece nas teorias da ação racional definitivamente passível de submissão ou submisso.

Para avançar neste ponto seria necessário primeiramente desenvolver o questionamento propriamente antropológico. Porém, convém observar que dando continuidade a esta discussão em torno da teoria da justiça de Rawls e de seu contexto teórico, nota-se que os debates atuais se interessam muito mais pela questão normativa, pela teoria da justiça do que pela questão da antropologia.

Curiosamente, eles não fazem quase nenhuma ligação com o antigo discurso do reconhecimento, o que Kojève tirou de sua interpretação da dialética do senhor e do escravo, exposta por Hegel em A fenomenologia do espírito - um Hegel mais tardio do que aquele sobre o qual Honneth se baseia -, e que tanto influenciou o pensamento francês do pós-guerra, especialmente por intermédio de Bataille, e a releitura de Freud realizada por Lacan.

No plano normativo, de início, a questão que se coloca é saber em que medida é permitido passar do ser ao dever ser. Porque, contrariamente ao postulado implícito que se encontra na raiz de numerosas teorias contemporâneas do reconhecimento, não parece possível deduzir do fato incontestável de que os sujeitos humanos desejam ser reconhecidos que eles deveriam sê-lo todos igualmente e em todas as suas demandas. Ou seja, que existiria uma espécie de direito imprescritível ao reconhecimento. Caso não se precise o que é legítimo na busca do reconhecimento e o que não é, a teoria do reconhecimento arrisca-se a alimentar a concorrência entre as vítimas e a supervalorizar a criação infinita de novos direitos que ameaçam, prontamente, revelarem-se autodestrutivos. Convém, aliás, observar que na medida em que o reconhecimento é pensado como subjugado [subsumable], nas teorias das escolhas racionais, e sobretudo anunciado no registro do desejo de ter mais do que no de ser ou de aparecer, é que a busca por reconhecimento se torna suscetível de alimentar a concorrência de vitimização. Ou ainda, nos termos de Nancy Fraser, se a procura de reconhecimento é pensada como uma busca por um bem útil suplementar, comparável a outras utilidades, então ela se rebaixa a uma modalidade particular de luta pela redistribuição.

Por outro lado, essas dificuldades gerais convertem-se em quatro séries de questões complementares. Respectivamente: quem deve ser reconhecido? Por quem? O que deve ser reconhecido? E, finalmente, o que significa a própria idéia de reconhecimento? 1. Quem quer e quem deve ser reconhecido realmente? Os indivíduos ou as comunidades? Não assistimos hoje, como observa S. Trigano, a uma curiosa contradança [chassé-croissé] entre os indivíduos e as comunidades? Quando acreditamos ver, por toda parte, o desenrolar das lutas de emancipação dos indivíduos, parece que elas acontecem mais freqüentemente em nome de uma comunidade de pertencimento mais ou menos real ou fantasiada (as mulheres, os homossexuais ou lésbicas, os negros, os judeus etc.). No geral, podemos distinguir quatro faces principais da subjetividade: a do indivíduo, que se refere apenas a si próprio; a da pessoa, em relação com os outros privilegiados dentro dos grupos primários; a do crente ou do cidadão, membro de uma religião, de uma Igreja ou de uma comunidade política; e por fim a do Homem, sem adjetivações, o homem genérico. O que deve ser reconhecido: o indivíduo singular, a pessoa particular, o crente/cidadão ou o Homem universal? 2. Reconhecido por quem? Esta questão desdobra-se na seguinte: por quem os sujeitos humanos desejam e devem ser reconhecidos? Evidentemente, o reconhecimento apenas tem sentido e alcance se os sujeitos, as instituições ou as instâncias de que esperam reconhecimento sejam eles-próprios reconhecidos; e que se possa postular que eles reconheçam bem e justamente. Um dos ângulos possíveis do atual debate sobre o reconhecimento é o fato de que, muito freqüentemente polarizado pela questão da justiça, ele tende a abandonar o campo do amor (ou o que denomino "socialidade primária") e a divisão do trabalho, para se polarizar de fato e implicitamente no único domínio político do direito ao igual reconhecimento sob a forma do respeito. Ora, mesmo que seja essencial afirmar solenemente a mesma humanidade dos diversos componentes de uma comunidade política - indivíduos, culturas ou religiões -, é duvidoso que o Direito seja suficiente para produzir o reconhecimento desejado. Na crise das periferias francesas que eclodiu em novembro de 2005, ficou claro que não era o Direito que discriminava e que estava na raiz do problema de reconhecimento sentido pelos manifestantes. Não foi, então, ao Direito que eles recorreram, mas, de forma difusa, ao conjunto da sociedade francesa.

O fato de que não se pode ser plenamente reconhecido, a não ser por um sujeito ao qual se concede o reconhecimento, um sujeito que supostamente pode reconhecer, induz a uma distinção e a uma dialética entre lutas pelo reconhecimento e lutas de reconhecimento, a depender se desejamos ser reconhecidos por um reconhecedor ou se, ao contrário, contestando seus títulos de reconhecedor instituído, pretendemos mudar as regras do jogo para nos tornarmos reconhecedores - juízes que estigmatizam aqueles que nos desprezaram.

3. Reconhecimento de que? Eis que se levanta também a questão de saber o que deve ser reconhecido, e construir um objeto do reconhecimento, de forma que os sujeitos se constituam como tais. Esta questão significa saber o que faz o valor dos sujeitos, o valor que eles esperam ver reconhecido. Introduzimos, assim, um termo mediador entre o reconhecimento e os sujeitos, o conceito de valor, curiosamente ausente dos debates atuais. Ora, uma boa maneira de reformular a distinção entre a problemática da redistribuição e a do reconhecimento seria dizer que a primeira se preocupa em entender como se a redistribuição de bens e serviços dotados de certo valor econômico (isto é, mercantil), ao passo que a segunda se detém sobre a redistribuição das marcas de valorização das pessoas. A introdução da questão de valor suscita de imediato um outro problema: pode haver bases objetivas, ou objetiváveis, do valor dos sujeitos - dos "fundamentais", diriam os analistas da bolsa a quem se coloca o mesmo tipo de questão em um outro domínio - ou tudo é arbitrariedade, pura construção social e mimetismo? 4. Finalmente somos levados a nos questionar sobre o grau de consistência do próprio conceito de reconhecimento. Boa parte da discussão atual recai sobre a distinção entre o que se poderia chamar de reconhecimento positivo e o reconhecimento normativo, ou seja, a identificação reiterada, a admissão de um fato, de um acontecimento, de uma pessoa, ou a atribuição de um valor positivo ou negativo ao acontecimento, ao fato ou à pessoa. O livro de P. Ricoeur, Percurso do reconhecimento,1 dedica-se amplamente ao primeiro termo da discussão. Porém, está claro que a problemática sociológica e filosófica do reconhecimento se desdobra essencialmente no âmbito do segundo registro, o normativo. Ora, o que queremos dizer quando propomos que o que é próprio dos sujeitos humanos é desejar o reconhecimento? Dando continuidade à trilogia proposta por A. Honneth - entre a autoconfiança em que buscamos na esfera do Amor, o respeito ao qual aspiramos na esfera político-jurídica e a autoestima que pretendemos acessar pela nossa contribuição à divisão social do trabalho - propomos analisar se o conceito de reconhecimento é de fato aquele que inclui necessariamente amor, respeito e autoestima. Ou, em outros termos, se o reconhecimento pode ser imaginado como tal, independentemente de suas formas particulares de manifestação.2 De que se trata então? Seria permitido escrever R = A + Re + E (Reconhecimento = Amor + Respeito + Estima), e esse reconhecimento se esgotaria na soma de suas traduções ou teria ele uma consistência própria? E ainda, uma hierarquia e uma ordem léxica entre A, Re e E, ou eles estariam justapostos em situação de igualdade? Esta questão sobre o grau de consistência e de homogeneidade do conceito de reconhecimento normativo emerge porque o amor, a dignidade cívica e as remunerações sociais materiais e simbólicas funcionam de maneira invertida. O Direito reconhece a dignidade de todos os sujeitos igualmente, afirmando sua humanidade comum, ao passo que o Amor escolhe um sujeito imposto como preferível a todos os outros e que as remunerações materiais ou simbólicas testemunham o grau de superioridade de um sujeito sobre os outros.3 Seria, então, possível afirmar que, desejando ser reconhecido, o ser humano almeja, ao mesmo tempo e igualmente, ser amado, respeitado e estimado? Ou, ao contrário, que desejando ser amado, respeitado e estimado, o que ele quer in fine é ser reconhecido? O reconhecimento seria a verdade do amor, do respeito e da estima? Ou o amor, a verdade do reconhecimento, desde que o respeito ou a estima não sejam considerados como tais?

Algumas pistas para uma teoria do valor social Evidentemente, é impossível responder a todas essas questões de maneira sistemática e argumentativa, pois elas são complexas e interdependentes. Mas talvez possamos tentar identificar o que torna o núcleo vivo e sensível, a questão central em torno da qual elas gravitam, o que sentido profundo ao conjunto do debate sobre o reconhecimento. Numa palavra, para todas essas discussões, um conjunto de respostas, mas temos dificuldade em perceber qual é a questão fundamental.

Ora, mesmo que ela ainda não tenha sido formulada de maneira explícita neste debate - por razões que será necessário esclarecer -, talvez não seja tão difícil localizá-la: sem dúvida, trata-se de saber o que forma o valor dos sujeitos humanos e sociais; em outras palavras, o valor dos indivíduos, das pessoas, dos cidadãos ou crentes, e in fine o valor do Homem. Se a economia política clássica constitui-se como uma teoria do valor das mercadorias, o que a sociologia não soube fazer porque falhou em explicitar a questão do reconhecimento em torno da qual, entretanto, ela trabalha desde seu início, a questão fundamental mostra em que consiste o valor social das pessoas. Esta questão, portanto, é que alimenta o debate sobre a luta pelo reconhecimento.

Lutar para ser reconhecido não significa nada além do que lutar para se ver reconhecer, atribuir ou imputar um valor. Mas que valor? That's the question! Talvez seja possível avançar em direção à resposta detendo-se um instante na palavra respeito, que designa uma das três modalidades do reconhecimento, segundo Honneth. Trata-se do reconhecimento que deve ser distribuído igualitariamente a todos os membros da sociedade pela via do sistema jurídico- político. Ora, não é assim que a palavra é empregada pelos jovens dos subúrbios. Quando eles dizem "respeito", ou "respeito total", para significar precisamente o reconhecimento que eles atribuem a alguém, percebe-se que o termo se refere sinteticamente às três dimensões do reconhecimento hegeliano- honnethiano, e não apenas a uma. Seguramente, ter "respeito" a uma pessoa é frisar que ela foge à esfera do desprezo, do opróbrio ou do desdém e que ela soube acessar a esfera da visibilidade comum, ou que ela está mais visível aos olhos de todos os que importam. Mas também significa que o que ela fez ou o que ela é consiste algo excepcional, particular o bastante para valer mais do que o que fizeram ou o que são os outros. E, por fim, é também uma forma de dizer que a pessoa é amada justamente por isso. Empregada neste sentido, a palavra "respeito" subsume a estima e o amor para além do respeito legal, anonimamente devido a todos. De modo mais amplo e sintético, isto significa que reconhecemos na pessoa que respeitamos o mérito de ela haver realizado sua humanidade, uma certa concepção daquilo que faz a excelência humana ou, ainda, o humano por excelência. Quando Zidane, por exemplo, deu uma cabeçada em Materazzi na final da Copa do Mundo, os comentaristas hesitaram em dizer se ele tinha encerrado sua carreira de forma desprezível ou perdido boa parte do valor que acumulara ao longo de sua carreira gloriosa. Mas para todos os jovens da periferia estava claro que ele agiu como era preciso e que devemos respeitá-lo porque ele se comportou como um homem.

Adiantemos mais um passo. Àquele a quem dizemos "respeito" o que manifestamos definitivamente é gratidão por aquilo que ele fez e que ele é. Chegamos, então, a um terceiro significado essencial da palavra reconhecimento, pouco mencionado no debate mundial sobre essa questão, provavelmente porque esta terceira dimensão não é encontrada na língua inglesa ou alemã. Dar o reconhecimento não é apenas identificar ou valorizar, é também e talvez inicialmente provar e testemunhar nossa gratidão.

Basta levar a sério e refletir um pouco mais sobre esta terceira dimensão para (re)conectar as discussões atuais sobre o reconhecimento à sua dimensão antropológica tão presente no antigo debate. Dimensão que versava sobre a dialética do senhor e do escravo, e que curiosamente desapareceu da discussão contemporânea, como se pudéssemos, ou mesmo devêssemos, afastar toda a discussão sobre a essência da humanidade e, portanto, sobre o que forma o valor dos seres humanos. Como se cada um devesse ter direito a se fazer atribuir e reconhecer um valor, o qual não seria necessário dizer em que poderia consistir. Ora, se reconhecer é manifestar gratidão, então reconhecer é entrar no campo e no registro do dom e do contradom, tão magistralmente destacado e analisado por Mauss em Ensaio sobre a dádiva. Reconhecer é admitir que houve um dom, que somos devedores daquele que o fez e que permaneceremos interagindo com ele, convocados a dar quando chegada nossa vez. Reconhecer é, de certo modo, portanto, assinalar um reconhecimento de dívida, ou ao menos de dádiva.

Reconhecer uma dívida econômica ou financeira é admitir a estimação do valor monetário do engajamento subscrito. Reconhecer uma pessoa é admitir seu valor social e lhe oferecer qualquer coisa em retorno. Em que consiste este valor? A resposta agora não é muito difícil de imaginar em sua generalidade. O que é reconhecido socialmente é a existência de um dom. Este valor, a substância do valor como teria dito Marx, é a capacidade da pessoa de dar, a relação que ela mantém com o universo da dádiva. Assim, é possível generalizar o que o etnólogo Claude Pairault escreveu em 1966 em uma monografia dedicada à aldeia de Iro no Chade: O prestígio de um chefe consiste notavelmente, para este homem e para os seus, não naquilo que ele possui em quantidade, mas no fato de que ele pode e sabe dar com liberalidade [...]. É realmente através da capacidade de dar que se mede o valor de um indivíduo: dar seu sangue para uma numerosa descendência, o sustento, as roupas e o alojamento a seus familiares ou a hóspedes inesperados, dar em contradom àquele de quem recebeu, e prover sem contradom imediato aquele que se apresenta com razão.4 Eis-nos aqui em processo de formular duas teses cardeais: 1. Reconhecer os sujeitos sociais, individuais ou coletivos é atribuir-lhes um valor.

2. O valor dos sujeitos sociais é medido por meio de sua capacidade de dar, o que, aliás, implica em reciprocidade.

Evidentemente, tão logo formuladas, essas duas teses revelam múltiplas questões e convidam a numerosas precisões. A questão mais geral e mais evidente é saber como o debate sobre o reconhecimento é transformado quando o reposicionamos no plano de uma teoria do valor das pessoas e quais novas conclusões podem ser tiradas a partir daí. Mais especificamente, seria necessário se perguntar se ele remete a uma reformulação da trilogia honnethiana conceitual ou se ele a esclarece de forma diferente. Mas tais questões poderão ser levantadas de forma útil após ter-se esclarecido a minima o sentido e o status dessas duas teses. Limitemo-nos aqui ao exame de duas questões suficientemente vastas: 1. Em que sentido é preciso compreender a dádiva e a capacidade de dar presentes na raiz do valor dos sujeitos? 2. Como pensar a própria idéia da medida do valor dos sujeitos? Sobre o dom, a capacidade de dar e a ação Estamos, no momento, em uma fase intuitiva: o valor dos sujeitos tem relação com o dom. Mas de qual dom se trata? Distingamos, a seguir, duas grandes séries de problemas.

A primeira é saber se o que faz o valor dos sujeitos é o conjunto de dons que eles efetivamente realizaram ou o conjunto de dons que eles são capazes ou suscetíveis de fazer, ou seja, suas potencialidades de dom. A potência ou o ato da dádiva? Uma primeira resposta possível é dizer que para os sujeitos individuais tudo depende da idade. O que é valorizado em uma criança ou em um adolescente são as promessas das quais ele é o portador, o que nós imaginamos que ele poderá "dar" mais tarde, ao passo que para o adulto maduro ou o idoso seu valor reside mais amplamente naquilo que ele efetivamente ofereceu.

Porém, sentimos que esta resposta não é inteiramente satisfatória. Na dualidade entre a capacidade de dar e o dom efetivo algo que excede a passagem do poder ao ato. No prazer que sentimos ao olhar para as crianças ou para os jovens não apenas a antecipação do que eles poderão oferecer no futuro, mas um prazer em relação ao que eles doam, e que esse dom não é da ordem dos presentes ou das realizações materiais. O que ele nos oferecem, então? Talvez a potencialidade do estado puro, a vida, a gratuidade, a beleza, a graça.

Eis o que deve nos incitar a distinguir duas grandes modalidades da dádiva. A primeira remete ao tipo de dádiva analisado por Marcel Mauss: o benefício dos presentes, ao mesmo tempo livre e obrigado, interessado e desinteressado, que sela a aliança entre os sujeitos, transformando os inimigos em amigos. A oferta de bens e de bondades. Chamemos este primeiro tipo o dom da aliança ou, ainda, o dom da generosidade (do qual a caridade é apenas uma modalidade particular).

Isso levanta a questão de saber se o que é dado para selar uma aliança tem um valor intrínseco, se o bem ofertado prazer ao doador além da intenção pacífica e amigável que ele manifesta. É aqui que surge uma outra dimensão da dádiva, ligada à primeira, mas irredutível a ela. A criatividade do artista, a beleza ou a graça da criança ou da jovem mulher, o carisma do sujeito que supostamente sabe ou pode, tudo isso tem também relação com o dom. Mas trata-se de um outro tipo de dom. Não tanto daquilo que o sujeito dotado ou gracioso fez ou poderia fazer - mesmo quando desejamos que sua promessa se realize -, mas da dádiva que ele recebeu de um doador anônimo ou invisível, o dom dos deuses, das musas, da natureza, o dom da vida, o dom do que é assim. O dom que faz com que haja algo mais do que nada. Tal dádiva tem relação com o que a tradição fenomenológica chama de doação (das Ergebnis). Chamemo-lo, portanto, dom- doação. E coloquemos, de forma ainda bastante vaga e exploratória, que o valor dos sujeitos se situa e se determina em algum lugar na interseção entre o dom da generosidade5 e o dom-doação, de sua capacidade de dar e seus dons efetivos.

Um segundo resultado leva em conta o fato de que a palavra dom não é apenas muito polissêmica, mas que também remete a uma quase infinidade de campos e objetos possíveis. Pode-se dar quase tudo, ao menos em francês: a vida ou a morte, o amor ou os golpes, sua palavra ou uma advertência, pode-se dar uma opinião, um conselho ou bem a mudança da sua pessoa e de seu tempo etc. O verbo "dar" funciona em francês, mas também em alemão e em uma parcela menor em inglês, como uma espécie de quase-auxiliar. De emprego não tão geral quanto os verbos "ser" ou "ter", ele representa mais ou menos tanto quanto dizer ou fazer. Ora, se dar é dizer ou fazer, e, reciprocamente, se tudo o que se diz ou se faz pode ser considerado como dado, então nada o é especificamente, e dar é muito geral e indeterminado para criar um valor social. Seria necessário delimitar qual modalidade ou qual registro do dom cria o valor social além do dizer e fazer ordinários. A esse respeito é Marcel Mauss, com ajuda de Hannah Arendt, que nos esclarecerá.

A dádiva analisada por Mauss é algo híbrido: ao mesmo tempo livre e obrigado, interessado e desinteressado. Não é necessário, porém, se ater a essa concepção marcadamente híbrida. O dom apenas vale como tal, tem valor e valoriza quem doou, desde que a liberdade e a inventividade excedam a parte da obrigação, e que, aliás, a dimensão do desinteressamento, do para outros, seja mais importante do que a dimensão do interesse pessoal, do para si. É esse excesso da liberdade sobre a obrigação que forma e mede o valor do doador. O mesmo pode ser dito a partir do vocabulário de Arendt. O trabalho como tal não confere o valor social para o trabalhador por ser ele regido pela obrigação (necessidade) e pelo interesse pessoal vital. Na sociedade antiga, o valor era respeitado desde que fosse mantido escondido, privado e, mais provavelmente, desprezado. A obra - a mesma distância da obrigação e da liberdade, do para si e do para outros - é de certo modo socialmente neutra. Apenas a ação, a capacidade de fazer acontecer do novo, de gerar o possível, reveste o valor propriamente social.

Assim, vemos se esboçar uma primeira tipologia que faz eco aos debates atuais sobre o reconhecimento.

Consideram-se estimados e/ou amados aqueles que acessam o registro do dom, da doação e da ação - para os quais a parte da liberdade-generatividade e do para outros se impõe sobre a parte da obrigação e do para si - ou que se consideram suscetíveis de fazê-lo. Ou ainda, aqueles cuja ação testemunha um excesso da liberdade sobre a necessidade. Consideram-se respeitados aqueles para quem a liberdade e a necessidade se equilibram. Consideram-se desprezados ou invisíveis aqueles para quem a parte da necessidade se mostra maior do que a da liberdade.

A questão, todavia, reside em saber quem julga o que é da ordem da ação, do dom, da doação ou da graça. E quem a mede, e de que maneira? Na medida do valor social Sobre essas questões evidentemente decisivas, limitar-me-ei a sugerir que os sociólogos teriam todo o interesse se finalmente levassem a sério a questão da formação e da medida do valor social dos sujeitos, inspirando-se no enorme trabalho analítico e conceitual efetuado pelos economistas desde o nascimento da economia política, a cerca de 250 anos.

Lembremos que uma das questões centrais que ressurge de maneira recorrente no debate contemporâneo sobre o reconhecimento é saber se reconhecer consiste em reconhecer como verdadeiro um valor preexistente, presente no sujeito, ou se é o próprio ato de reconhecer que cria seu valor. O valor reconhecido é intrínseco ou extrínseco? Substancial ou formal? "Natural" ou "construído"? Reconhecemos os debates sobre o valor que atravessaram toda a história da economia política, ao menos do final do século XVIII ao início do XX. O valor seria objetivo ou subjetivo? Consistiria de uma adição de custos de produção e in fine, como sintetizará Marx, no tempo de trabalho necessário à produção das mercadorias? Ou, ao contrário, ele residiria unicamente na utilidade subjetiva sentida pelo consumidor, utilidade in fine puramente arbitrária, como sintetizará Walras? A vantagem da primeira posição é fornecer um fundamento aparentemente racional e sistemático ao debate sobre o valor. Transponhamos, então, a teoria marxista do valor das mercadorias ao debate sobre o valor dos sujeitos. Pode-se dizer, portanto, que realmente um valor objetivo, significativo dos sujeitos, feito da soma dos dons de generosidade com os dos dons-doação, que tenham sido recebidos e efetuados.6 Da mesma forma, para Marx os preços de mercado a cada dia não correspondem necessariamente a este valor, mas se limitam a gravitar em torno dele. Assim como o valor das mercadorias não é capaz de se "realizar" se houver superprodução e escassez da demanda, podemos supor que o preço dos sujeitos sociais gravita habitualmente em torno de seu valor intrínseco, mas que pode nunca ser reconhecido se houver superprodução de certo tipo de sujeitos sociais que jamais serão capazes de "realizar", isto é, ver reconhecido seu valor. Poderia-se (ou deveria-se) somar a este turbilhão toda uma série de reflexões sobre os capitalistas do reconhecimento, esses que mobilizam para seu próprio lucro de reconhecimento as dádivas efetuadas por outros, os quais permanecem sob seu controle, ou também sobre os beneficiários do reconhecimento, equivalentes aos proprietários fundiários, os quais desfrutam de um patrimônio de reconhecimento instituído, ou, ainda, os comerciantes ou os financiadores do reconhecimento.

Tudo isso certamente parece muito sugestivo e esclarecedor. Mas seria necessário precisar cuidadosamente as condições e os limites dessa comparação.

Aos olhos dos clássicos e do próprio Marx, a teoria do valor não se aplica ao conjunto de bens, mas apenas às mercadorias produzidas industrialmente, e, como tal, teria sentido para o modo de produção capitalista. De qualquer maneira, essa teoria não é mais corrente. Ela tem um fundamento muito metafísico e parcialmente arbitrário: de que direito nos servimos para pensar o valor apenas do lado da produção e quase completamente abstrair o lado da demanda? Se quiséssemos produzir o equivalente sociológico de uma teoria marxista, objetivista do valor estendido ao valor dos sujeitos e fundamentado na hipótese de que o valor depende não mais do tempo de trabalho abstrato socialmente necessário, mas da capacidade de dar e das dádivas efetuadas, seria necessário superar dois obstáculos consideráveis: 1) O conceito de dom não é homogêneo, e o conceito de trabalho socialmente necessário é abstrato; 2) O dom, que é intrinsecamente ambivalente, é efetivo se for reconhecido como tal. É definitivamente o receptor, o donatário, que, mostrando sua gratidão, pagando com seu reconhecimento, atesta ser a dádiva um bem e não apenas uma fantasia de dom do doador.

Grande é, portanto, o impulso de tender para em uma teoria subjetivista e empírica do valor, livrando-se do problema ao afirmar que nada existe com tal valor, nem bens nem sujeitos, mas unicamente preços, indefinidamente variáveis de acordo com o humor das flutuações diárias. Os sujeitos não valem nada mais do quantum de reconhecimento que lhes é permitido em certo momento, por exemplo nos famosos quinze minutos de fama prometidos a todos por Andy Warhol. Não nenhum valor intrínseco a se reconhecer, apenas um reconhecimento criador de valor,7 que deve ser obtido ou imposto. Tal posição, radicalmente empírica e construtivista, pode seduzir. Ela parece permitir fazer a economia de sutilezas conceituais e metafísicas sem fim; e, reconheçamos, é coerente com certas tendências atuais. Não apareceria no plano de fundo do debate contemporâneo sobre o reconhecimento que todo o mundo tem direito a ele? Ora, essa idéia pode se estender em dois sentidos diferentes. Ou significa que todo o mundo tem, a princípio, igualmente direito ao reconhecimento, o que a torna não criticável; ou insinua que todo o mundo teria direito a um reconhecimento igual, o que implica necessariamente em uma rejeição de toda a problemática do valor dos sujeitos. Para salvaguardar a perspectiva de um reconhecimento dos sujeitos à igualdade é realmente necessário postular o caráter arbitrário, flutuante e indeterminado do que é reconhecido.

Esta solução talvez seja bastante sedutora, mas são nítidos os enormes problemas que acarreta. Para ser breve, ela é absolutamente antitética com o projeto de alimentar uma filosofia social crítica de onde, portanto, ela parece proceder. Se, de fato, o objeto do reconhecimento é um puro constructo, arbitrário, então a própria idéia do reconhecimento se esvai tão logo pretenda ultrapassar a afirmação do direito igual ao reconhecimento jurídico, que nada mais é senão o respeito à igualdade dos cidadãos. Mais especificamente, esse construtivismo-desconstrutivista radical se casa facilmente com a universalização da norma mercantil. Ele leva a pensar a sociedade sob o modelo de um gigantesco mercado do reconhecimento organizado de modo especulativo. Da mesma forma que no âmbito de um capitalismo especulativo, regido por novas normas contábeis não mais constatativas, mas criadoras e auto-realizadoras, não existiria mais nenhum valor fundamental, nenhum valor intrínseco das empresas ou das ações, nada essencial, mas unicamente o valor mercantil ou bursátil, determinado pela antecipação de antecipações, assim como todo valor social de dissolução se liquefaria, diria Baumann, em uma série de estimativas instantâneas e fugazes. Supostamente libertador, o discurso do reconhecimento tornar-se-ia um perfeito vetor de alienação.

Evidentemente, precisamos nos ater às duas pontas da corrente, aprendendo a racionalizar do ponto de vista do que poderíamos denominar uma teoria reflexiva do valor social, ou seja, uma teoria que mostra: 1) que de fato o que é reconhecido deve se relacionar à dádiva; 2) que o dom e as posições de doador e donatário são construções historicamente variáveis; e 3) que além ou aquém dessa variabilidade existe certa universalidade transcultural que dosa valores do dom e da doação.

Conclusão De todo o percurso efetuado aqui, sem dúvida é possível reter três idéias principais.

A primeira diz respeito à conveniência de se acrescentar um terceiro componente aos dois sentidos mais comuns da palavra reconhecimento. Além da identificação e da valorização, convém levar em conta a gratidão, o reconhecimento de uma dádiva.8 A forma como essas três significações se combinam aparece muito claramente quando refletimos sobre o impacto do filme Indígenas, de Rachid Bouchared.9 De um lado, esse filme contribui para o reconhecimento de um fato objetivo: a forte participação dos "africanos" na liberação da França em 1944- 1945. Certamente, o objetivo é aumentar, assim, o valor de seus descendentes em relação a eles e aos franceses de descendência, mas o meio utilizado é uma inversão da dívida. Pouco tempo depois de o parlamento ter votado uma lei reconhecendo as "benfeitorias da colonização" - e mesmo se ela fosse definitivamente revogada -, o filme mostra como as crianças advindas da imigração tinham direito à gratidão dos "gauleses", pois eles deram tanto quanto receberam. As lutas pelo reconhecimento são, em última instância, lutas para se atribuir uma posição de doador (e de credor).

A segunda, pouco desenvolvida aqui, mas que o exemplo desse filme evidencia, é que as lutas pelo reconhecimento misturam estreitamente reconhecimento individual e reconhecimento coletivo. Mais precisamente, nessas lutas, aliás como em toda ação social, os sujeitos intervêm paralelamente, mas em proporções e segundo modalidades variáveis, como indivíduos, pessoas, cidadãos/crentes ou representante da humanidade. Essas quatro faces do sujeito são ao mesmo tempo complementares e contraditórias.

Finalmente, para nuançá-las e em seguida dialetizá-las, parece desejável distinguir duas grandes versões possíveis do discurso do reconhecimento. A primeira, que permanece prisioneira de uma axiomática do interesse, apresenta o reconhecimento como um bem desejável, apropriável e redistributível. As teorias da justiça que pensam o reconhecimento nesses termos se expõem ao risco da auto-refutação e da recuperação pela valorização mercantil e jurídica na concorrência das vítimas. Parece desejável, portanto, participar da construção de um segundo tipo de discurso sobre o reconhecimento, que não o considera um objetivo de tipo instrumental, mas um alvo de sentido para os próprios olhos e os dos outros, desconectando provavelmente tal discurso das teorias da justiça.

Nesta ótica, uma sociedade justa, ou mais simplesmente e mais plausivelmente uma sociedade decente, não é aquela que distribui o reconhecimento, mas que contribui para que seus membros dêem valor aos próprios olhos e aos dos outros, ou seja, uma sociedade que aumenta nos indivíduos a capacidade de doação.

Recuperamos então, ligeiramente reformuladas e "maussizadas", as teses centrais de Amartya Sen sobre o empowerment, que poderíamos traduzir como capacitação e, mais especificamente, como capacitação para a dádiva. Por um progresso inesperado, o discurso do reconhecimento encontra-se com a teoria das capabilities.

Notas 1 Publicado no Brasil pela Editora Loyola, em 2006.

2 Esta questão lembra a objeção de Moore ao utilitarismo clássico. Para poder afirmar que o bem é o que maximiza a felicidade seria preciso ainda saber definir o bem como tal, sob o risco de cair em um círculo vicioso.

3 Para manter a linguagem hegeliana, poderíamos dizer que o Direito distribui um reconhecimento universal, a estima social, um reconhecimento particular, e o Amor, um reconhecimento singular.

4 Claude Pairault, Boum-le-Grand, village d'Iro, Paris, Institut d'ethnologie, 1966, p. 313, apud Jean Gabriel Fokouo, Donner et transmettre, Lit, Zürich, Münster, 2006, p. 11 [grifo nosso]).

5 É preciso também acrescentar, para evitar todo simplismo irênico, que o dom da generosidade tem valor na medida em que seu autor tiver podido não dar, ou dar malefícios. O guerreiro e o criminoso assim também têm uma escala de valor própria.

6 O valor inicial dos sujeitos (equivalente ao valor da força de trabalho) é formado pelo conjunto dos dons recebidos. A partir destes, eles efetuam (ou não) novos dons vivos, graças aos quais eles se valorizam.

7 Ao contrário de um reconhecimento constatativo.

8 E da mesma forma, como mostra A. Honneth, uma espécie de primazia hierárquica do reconhecimento-valorização sobre o reconhecimento-identificação, uma vez que é possível ver aquilo que damos importância; assim como , sem dúvida, uma primazia hierárquica do reconhecimento-gratidão sobre o reconhecimento-valorização, no sentido de que apenas podemos valorizar alguma coisa ou alguém por meio da gratidão.

9 Filme de 2006, dirigido por Rachid Bouchared, que demonstra como a França, que em 1943 estava com o exército destroçado, incorporou na defesa da "pátria- mãe" os "indígenas", oriundos da África [N. E].

* Tradução de Maíra Albuquerque e revisão de Paulo Henrique Martins.


Download text