A economia solidária e o trabalho associativo: teorias e realidades
Introdução
Este texto consiste em um balanço de estudos sobre Economia Solidária, um
fenômeno que vem se difundindo rapidamente no contexto de profundas
transformações por que vem passando o mundo do trabalho. Trata-se de discutir,
de um lado, o quadro teórico que os estudos sobre o tema vêm conformando tanto
em nível internacional, como nacional, e, de outro, a importância que o
fenômeno vem adquirindo nos dois casos.
Ele se articula, nesse sentido, a partir de três objetivos principais. Em
primeiro lugar, busca delimitar a discussão teórica sobre o tema, abarcando não
só os que a entendem como o prenúncio de um processo de transformação social,
mas também aqueles que têm uma visão mais crítica do fenômeno, enfatizando seu
caráter efêmero e pouco alentador no sentido de se configurar como uma
alternativa de geração de emprego e renda. Em segundo lugar, ele se debruça
sobre o exemplo argentino, uma das experiências mais interessantes de difusão
do cooperativismo como um fenômeno social expressivo nos primeiros anos da
presente década. Finalmente, o texto propõe uma análise da experiência
brasileira a partir de balanços nacionais. As considerações finais traçam
algumas conclusões sobre os estudos analisados, sublinhando a complexidade do
tema e a impropriedade de se pensar em termos dualistas seja no sentido de suas
potencialidades e virtualidades, seja no de seus limites e vulnerabilidades.
Economia solidária e cooperativismo
A difusão das experiências de economia solidária não pode ser pensada sem o
cuidado de inseri-las no quadro do conjunto de transformações que vêm
reconfigurando o social. De fato, é no quadro atual de crise do trabalho
assalariado1 que os estudiosos começaram a detectar desde os anos de 1980, mas
especialmente a partir da década seguinte, um conjunto de movimentos empunhados
por trabalhadores que perderam seus empregos e que não conseguiram se reinserir
no mercado de trabalho ou, ainda, por aqueles que sempre viveram na
informalidade. Centrando-se, especialmente, na formação de cooperativas de
trabalho e de produção e de associações de trabalhadores, nas quais se busca a
autogestão, tais experiências vêm sendo reconhecidas sob o nome de Economia
Solidária2 . É a essa discussão que este tópico se dirige, a partir de uma
reflexão centrada em quatro temas: (i) uma discussão teórica geral, buscando
circunscrever a temática e as questões que ela traz para os estudos atuais;
(ii) um exame das teorias que interpretam a economia solidária como uma forma
de transformação social; (iii) uma síntese das visões críticas da economia
solidária; e, finalmente, (iv) uma reflexão sobre os limites e as
possibilidades da economia solidária.
Discussão teórica
Antes de tudo, é importante sublinhar que não existe qualquer tipo de
unanimidade no que se refere ao conceito de Economia Solidária. Para alguns,
ele remete às experiências britânicas do início do século XIX, inspiradas por
Richard Owen, nas quais sobressai a idéia da transformação social das relações
de produção capitalistas e sua substituição pelos princípios socialistas de
igualdade e solidariedade, baseados na idéia de autogestão e de controle
operário sobre a produção (Singer, 2000b).
Para outros (Laville, 2006; França Filho, 2006) trata-se de um fenômeno novo,
que tem a ver com a crise da relação salarial que se abriu no último quartel do
século passado e que, embora retome experiências do século XIX como as
cooperativas e os empreendimentos autogestionários, adquire novos significados
no atual contexto econômico e social.
Juntamente com Chanial, Laville contextualiza a economia solidária na ampla
crise econômica e cultural que marcou o final dos anos de 1960, na qual se
incluem a exigência de uma maior "qualidade" de vida, a reivindicação de um
crescimento qualitativo e de uma política do nível de vida, "de levar em conta
as dimensões de participação nas diferentes esferas da vida social, de
preservar o meio ambiente, de mudar as relações entre os sexos e as idades"
(Chanial e Laville, 2006, p. 50). É nesse quadro que a década seguinte serà
marcada por uma renovação das atividades associativas que testemunham não só
uma alternativa à crise do emprego, mas também o desejo de "trabalhar de outra
maneira" (Idem, p. 51).
Outros ainda consideram tais experimentos como efêmeros e fugazes, que tendem a
se multiplicar em momentos de crise do capitalismo, para desaparecer logo em
seguida, em função das dificuldades que enfrentam para sobreviver em um
contexto capitalista, como a baixa capitalização, a falta de capacitação
técnica dos trabalhadores para gerir os negócios, a falta de comprometimento do
conjunto dos trabalhadores com os ideais cooperativistas, para citar apenas os
argumentos mais lembrados. Nesse sentido, seriam experiências destituídas de
importância social.
Essa discussão, que já se tornou clássica, especialmente entre os estudiosos de
esquerda, colocando em lados opostos renomados pesquisadores, como Rosa
Luxemburgo (1986), Webb e Webb (1914), Bernstein (1961) e o próprio Marx
(1979),3 ressurge no momento atual, tendo em vista a grande quantidade de
experiências que vêm se espalhando pelo mundo afora, em virtude das mudanças
que têm ocorrido no mercado de trabalho.
Essa difusão das experiências cria, ademais, um conjunto de movimentos de
economia solidária em nível nacional e internacional, colocando para os
estudiosos novos problemas que não haviam sido pensados anteriormente.
É nesse contexto que a discussão sobre os limites e as potencialidades do
cooperativismo se avivam e que novas teorias surgem para dar conta do fenômeno.
Em que medida essas novas experiências não poderiam ser tomadas no novo
contexto, tendo em vista a dimensão que o fenômeno vem tomando, como portadoras
de uma capacidade de transformação social?
Essa hipótese não pode deixar de considerar, entretanto, que os estudos sobre o
fenômeno ainda são poucos; que ele carece de avaliações mais confiáveis em
nível mundial, regional ou nacional e que as interpretações mais otimistas não
levam em conta um sem número de "falsas cooperativas", que em vez de
experiências de trabalho solidário funcionam como forma de flexibilização do
trabalho, a serviço do capital, nas quais os princípios de autogestão,
igualdade e solidariedade não estão presentes.
Por outro lado, vale pensar que muitas experiências, embora localizadas e
prenhes de dificuldades, que muito dificilmente poderiam apontar para um
projeto de transformação mais radical da sociedade, despontam como novas formas
de sociabilidade, nas quais setores mais vulneráveis da sociedade vêm
encontrando possibilidades de inserção social que lhes têm permitido recuperar
a dignidade e a auto-estima. Essas experiências poderiam estar apontando não
para uma transformação radical da sociedade em seu conjunto, mas para um tipo
de convivência com a produção capitalista (Gaiger, 2000, p. 189).
É a esse debate que este tópico do trabalho se dedica, buscando dialogar com a
bibliografia internacional. Talvez uma das primeiras questões a ser tematizada
consiste em lembrar que, sendo o contexto de expansão das experiências
associativas o de crise generalizada (crise ambiental, de um modo de
acumulação, do trabalho assalariado, de uma forma de estar no mundo), tais
experiências carregam consigo as disjuntivas de risco e possibilidade, de velho
e novo, emergindo, portanto, como portadoras a um só tempo de um conjunto de
potencialidades e de limites.
No que se refere ao passado, vale lembrar que essas experiências resgatam os
princípios estabelecidos pela cooperativa de Rochdale, criada em Manchester, em
1844, tais como: vínculo aberto e voluntário; controle democrático por parte de
seus membros (baseado no lema "um membro, um voto); participação econômica dos
membros (baseada, sobretudo, no direito à participação nas decisões sobre a
distribuição de proveitos); autonomia e independência em relação ao Estado e a
outras organizações; compromisso em relação à educação de seus membros;
cooperação entre cooperativas por meio de organizações locais, nacionais e
mundiais; e contribuição para o desenvolvimento da sociedade em que está
localizada. Nesse sentido, elas extrapolam o simples objetivo de alternativa ao
desemprego, adquirindo um nítido potencial emancipador.
Esses princípios ressurgem, contudo, reconfigurados no contexto atual, dando
margem a diferentes teorias que buscam explicar o fenômeno recente de expansão
do cooperativismo. A elas serão dedicados os próximos itens.
Os teóricos e defensores da economia solidária
Laville e o princípio da reciprocidade
Sob os auspícios do Crida, Jean Louis Laville tem sido um dos principais
teóricos da economia solidária. Vale destacar, em primeiro lugar, que sua
análise não se restringe às cooperativas, mas ao conjunto de "práticas que
contribuem para rearticular o econômico às outras esferas da sociedade, na
perspectiva de uma sociedade mais democrática e igualitária" (Guérin, 2005, p.
79). Tais práticas incluem a criação ou a manutenção de empregos; a produção e
a comercialização coletiva; a moradia coletiva; a poupança e o crédito
solidários; as trocas não monetárias; os serviços coletivos de saúde; a
proteção coletiva do meio-ambiente; a segurança alimentar; o apoio à criação de
atividades individuais ou coletivas; a criação de novos serviços. Embora as
cooperativas (de consumo, de trabalho, de produção e de crédito) constituam uma
das formas importantes por meio das quais tais práticas sociais se desenvolvem,
elas não são as únicas; de fato, há varias outras formas importantes como os
clubes de troca, a autoconstrução, o microcrédito ou o crédito solidário, os
jardins comunitários, as cozinhas coletivas, os serviços da vida cotidiana
(como cuidar de crianças ou idosos) (Idem, ibidem).
A economia solidária estaria emergindo como fruto ao mesmo tempo da crise da
sociedade salarial e do processo de terceirização da economia. Diante da
exclusão social provocada por esses fenômenos, ou da chamada nova questão
social, "o fenômeno da economia solidária se apresenta [...] numa perspectiva
de busca de novas formas de regulação da sociedade, sob a forma de auto-
organização social em torno de ações, ao mesmo tempo econômicas e políticas"
(Idem, p. 111).
Criticando o reducionismo que explica a ação econômica apenas pelo interesse
material e individual, Laville recupera o conceito de Polanyi (2000) de que a
economia é plural, constituída por uma diversidade de formas de produção, entre
as quais se encontrariam as baseadas na reciprocidade.4
As formas de produção baseadas na reciprocidade emergiriam, assim, como formas
de resistência ao mercado, resultantes de ações coletivas que, diferentemente
das filantrópicas, seriam capazes de promover a solidariedade democrática, a
democratização da economia. Tal poder de democratizar a economia, por sua vez,
se basearia, segundo o autor, em duas características da economia solidária,
qualquer que seja a forma particular de que ela se revista.
A primeira delas reside na importância das práticas de reciprocidades
entendidas não como um resultado da tradição ou uma virtude feminina, mas antes
como uma forma completa de agir economicamente. A economia solidária tem como
especificidade combinar dinâmicas de iniciativas privadas com propósitos
centrados não no lucro, mas no interesse coletivo. A razão econômica é
acompanhada por uma finalidade social que consiste em produzir vínculos sociais
e solidários, baseados numa solidariedade de proximidade; o auxílio mútuo e a
reciprocidade estariam, assim, no âmago da ação econômica (Idem, p. 80).
O recurso à reciprocidade consiste em tratar coletivamente problemas cotidianos
na esfera pública, em vez de cada um tentar resolvê-los individualmente na
esfera privada. Mas, como alertam França Filho e Laville,
[...] essa inscrição na esfera pública diferencia radicalmente a
economia solidária da economia doméstica. Não se trata, portanto, de
encorajar, através da economia solidária, um retorno à família, lugar
das solidariedades naturais. Os movimentos de êxodo rural ou de
profissionalização das mulheres revelaram que a saída da economia
doméstica representa uma liberação à qual nem se pensa em retornar
(2004, pp. 104-105).
Os serviços de proximidade baseiam-se, assim, nas práticas cotidianas das
populações, nas relações e nas trocas simbólicas que tecem a trama diária da
vida local, nas aspirações, nos valores e desejos das pessoas que são os
usuários (Idem, p. 105). Mas, embora se apóiem nos recursos familiares, eles
não visam a ratificar relações de subordinação no interior da família. Ao
contrário, reúnem pessoas preocupadas em "articular criação de emprego e
reforço da coesão social, ou geração de atividades econômicas, com fins de
produção do chamado liame social" (Idem, p. 112).
A segunda característica da economia solidária reside na elaboração de formas
de coordenação e de alocação de recursos alternativas à concorrência ou à
regulamentação administrativa representada pela coordenação estatal, por meio
de "espaços públicos de proximidade" que conduzem a uma co-construção da oferta
e da demanda (Guérin, 2005, p. 80).
Laville entende que diante da crise da sociedade salarial, a crise do emprego
não pode ser atacada isoladamente, mas deve ser pensada em conjunto com a crise
da socialização, o que o leva a, juntamente com França Filho, privilegiar três
preocupações: (i) a de assegurar a busca de uma repartição do emprego menos
desigual do que a realizada em detrimento de certos grupos sociais como as
mulheres, os jovens, os idosos, de forma a concorrer para o reforço dos
vínculos sociais; (ii) a de explorar todas as oportunidades de criação de
emprego, sob a reserva de que elas se façam em condições socialmente
aceitáveis; (iii) a de favorecer outras formas de trabalho além do emprego,
contribuindo com a socialização e o reconhecimento social (França Filho e
Laville, 2004, p. 88). Essas orientações devem ser tomadas na sua
complementaridade e, entre os vários objetivos que poderiam dar coerência à sua
articulação, os autores destacam:
[...] a relativização no seio da esfera econômica do lugar assumido
pela economia monetária [que] implica uma revalorização de diversas
formas de economia não-monetária, que não se reduzem às formas
dependentes representadas pela economia subterrânea e o trabalho no
câmbio negro (Idem, p. 90).
É precisamente no quadro da realização desse objetivo que a economia solidária
poderia, segundo os autores, encontrar o seu lugar.
A economia solidária teria para Laville uma natureza híbrida, na medida em que
não atua exclusivamente sob o princípio da reciprocidade; de acordo com ele,
ela recorre também a recursos monetários. Nesse sentido, ela seria responsável
por religar o econômico ao social, combinando a reciprocidade às lógicas
redistributiva e de barganha, visando a reforçar a auto-organização da
sociedade civil.
A democracia da economia consiste, portanto, para o autor, na emergência de uma
nova regulação que leve em conta a possível complementaridade entre os aspectos
redistributivos e de reciprocidade, promovendo um fortalecimento da sociedade
civil, o que não significa, contudo, uma substituição do Estado pela sociedade
civil. Antes, seria um retorno do Estado baseado numa mudança de interação
entre o Estado e a sociedade (Idem, p. 86).
Assim como Polanyi, Laville acredita na importância das práticas para informar
a existência e para analisar as perspectivas de conciliação entre igualdade e
liberdade. Nesse sentido, elas devem ser reconhecidas e analisadas a partir do
movimento econômico real e não de um projeto de reforma social construído pela
teoria aprioristicamente em relação ao seu aparecimento histórico.
De acordo com o autor, não se trata de escolher entre sociedade civil e Estado,
mas de "encarar uma democratização recíproca da sociedade civil e dos poderes
públicos" (Laville, 2006, p. 37), em que "a pluralização da democracia e da
economia entram em ressonância. A democratização recíproca da sociedade civil e
da ação pública é congruente com uma economia fundada na pluralidade dos
princípios econômicos e das formas de propriedade" (Idem, ibidem).
A questão que se coloca para Laville é, dessa forma, saber que instituições
seriam capazes de assegurar nos dias atuais a pluralização da economia para
inseri-la em um quadro democrático. Ou como expressa juntamente como Chanial,
"quais são as regulações públicas suscetíveis de favorecer um modelo de
desenvolvimento sustentável, tanto no plano social quanto no do meio ambiente,
e de se articular com os engajamentos cidadãos na economia?" (Chanial e
Laville, 2006, p. 53).
Isso significa para os autores a necessidade de um mundo institucional que
redesenhe os contornos da ação pública em matéria de economia, o que estaria
ocorrendo tanto no caso do Brasil, como no da França com a criação
respectivamente da rede de gestores públicos e da rede dos territórios para a
economia solidária, ambas criadas em 2002. Isso considerando que as mudanças
sociais não implicam absolutamente em alternativas revolucionárias e radicais,
em escolhas entre duas formas de sociedades contraditórias, mas se fazem por
procedimentos de construção de grupos e de novas instituições ao lado e por
cima das antigas.
Convém lembrar ainda que em seus estudos mais recentes, Laville tem dado um
importante destaque à relação que as experiências de economia solidária vêm
criando com o desenvolvimento econômico local, o que lhes estaria conferindo
uma relevante dimensão pública e política. Como afirma em trabalho publicado
com França Filho:
Em todo caso, as formas cooperativadas de produção, tratando-se de
economia solidária, conhecem uma preocupação crescente com a questão
do desenvolvimento local. Portanto, para além da sua ação no mercado,
cujo benefício social restringir-se-ia apenas ao grupo dos cooperados
internos [...] a tendência do movimento é aquela de valorização de
uma dimensão pública da sua ação mediante a ênfase nos impactos da
organização na vida local. É exatamente esta dimensão pública da
ação, ou seja, de um agir no espaço público, que confere à economia
solidária uma dimensão política fundamental (França Filho e Laville,
2004, pp. 18 e 19).
Nesse sentido, o devir da economia solidária depende da evolução das formas de
regulação pública (Laville, 2006, p. 39).
Coraggio e a economia do trabalho
Diferentemente de Laville, a reflexão teórica de Coraggio não se desenvolve em
torno do conceito de economia solidária, mas a partir do que ele chama de
economia do trabalho. Esta é entendida pelo autor como uma economia social que
vai além dos interesses individuais e que busca, primordialmente, a criação de
bens coletivos.
Este tipo de economia, baseada nas unidades domésticas, contemplaria um
conjunto de atividades, entre as quais as cooperativas e outras formas de ações
econômicas, incluídas por Laville na economia solidária, apareceriam juntamente
com o trabalho por conta própria e as atividades de produção de bens e serviços
que são consumidos pelas unidades domésticas sem passar pelo mercado. Tais
atividades incluem o trabalho de limpeza, da cozinha, de tomar conta das
crianças, na horta, do conserto e confecção de roupas, de construção de móveis,
da própria casa etc. (Coraggio, 2000, p. 98).
Para ele, a incapacidade do capitalismo atual de inserir o conjunto da
população trabalhadora em seus empreendimentos, bem como a limitação das
políticas públicas compensatórias em face do desastre social do desemprego e da
precarização do trabalho estariam levando a população excluída a buscar formas
de subsistência na economia doméstica, cuja lógica não é da reprodução do
capital, mas da reprodução ampliada da vida.
Retomando o conceito de empresa social utilizado por De Leonardis, Mauri e
Rotelli, Coraggio considera que é a partir da economia do trabalho, da economia
doméstica, que se poderia apoiar a empresa social: "os empreendimentos que não
só produzem mercadorias, mas que 'produzem sociedade' ou o social (formas
sociais, instituições, comportamentos) [...]. Tal tipo de empreendimento
'investe num único capital que possui: 'as pessoas' e isto começa por dar
créditos a elas, contraditoriamente à categorização de 'desvalidos", que lhes é
dada pelos programas compensatórios (Idem, p. 102). A reprodução ampliada da
vida significa, para o autor, a melhoria da qualidade de vida com base no
desenvolvimento das capacidades e das oportunidades sociais das pessoas.
Coraggio admite a possibilidade do desenvolvimento de relações de concorrência
ou até de exploração no interior dessa economia em vez de relações de
solidariedade. Ao mesmo tempo, entretanto, o autor acredita na possibilidade de
uma economia alternativa
[...] que se desenvolveria a partir da economia dos setores
populares, fortalecendo suas vinculações e capacidades,
potencializando seus recursos, sua produtividade, sua qualidade,
assumindo novas tarefas, incorporando e autogerindo os recursos de
políticas sociais de modo a fortalecer os laços sociais entre seus
membros, seus segmentos, suas micro-regiões; uma economia que
estruturalmente distribua com mais igualdade, que supere essas
tendências à exploração ou à violência, que seja um setor da
sociedade mais harmônico e integrado com outros valores de
solidariedade, com maiores recursos voltados para a cooperação (Idem,
p. 116).
É a partir dessas considerações que Coraggio acredita ser possível pensar em
uma estratégia de desenvolvimento de uma economia centrada no trabalho, uma
"outra economia" que, sem a pretensão imediata de substituir a economia
centrada no capital, seja capaz, no entanto, de disputar com ela (Coraggio,
2003, p. 13).
Embora o autor não considere que essa alternativa seja inexorável, ele a vê
como possível, na medida em que essa outra economia pode satisfazer diretamente
parte das necessidades das maiorias locais e competir exitosamente no mercado
nacional ou global, "gerando ocupações mercantis e os ingressos monetários
necessários para sustentar-se e ampliar-se sobre suas próprias bases de
interdependência" (Idem, p. 166).
Tal organicidade não se constituirá, contudo, naturalmente, mas "requer que se
invistam energias importantes no desenvolvimento, consolidação e alimentação de
redes que articulem, comuniquem e dinamizem a multiplicidade de empreendimentos
e microredes populares" (Idem, ibidem).
Apesar do mesmo otimismo de Laville com relação à possibilidade de uma
transformação social profunda, a partir de uma outra economia, haveria que se
considerar uma diferença importante de interpretação entre os dois autores no
que se refere à idéia do devir histórico. Enquanto para Laville a transformação
social aparece quase como uma decorrência natural do desenvolvimento das
experiências cooperativistas, para Coraggio ela aparece apenas como uma
possibilidade que não obrigatoriamente deverá ocorrer. Para ele, a
eventualidade de que ela venha a se concretizar está colocada na ação
sociopolítica, baseada em um programa que proponha "com audácia, mas
responsavelmente, tudo aquilo que pode ser feito para transformar a economia
dos setores populares num sistema de economia do trabalho" (Coraggio, 2000, p.
116).
Singer: economia solidária e socialismo
Uma das visões mais otimistas da economia solidária é a de Singer, que
considera os princípios cooperativistas como sendo não capitalistas.
Diferentemente de Laville e Coraggio, Singer vê um continuum entre as primeiras
experiências operárias de formação de cooperativas e as atuais e é nesse
sentido que as entende como um projeto em direção ao socialismo. De acordo com
suas palavras:
A economia solidária é o projeto que, em inúmeros países há dois
séculos, trabalhadores vêm ensaiando na prática e pensadores
socialistas vêm estudando, sistematizando e propagando. Os resultados
históricos deste projeto em construção podem ser sistematizados do
seguinte modo: 1) homens e mulheres vitimados pelo capital organizam-
se como produtores associados tendo em vista não só ganhar a vida,
mas reintegrar-se à divisão do trabalho em condições de competir com
as empresas capitalistas; 2) pequenos produtores de mercadorias, do
campo e da cidade, se associam para comprar e vender em conjunto,
visando economias de escala e passam eventualmente a criar empresas
de produção socializada, de propriedade deles; 3) assalariados se
associam para adquirir em conjunto bens e serviços de consumo,
visando ganhos de escala e melhor qualidade de vida; 4) pequenos
produtores e assalariados se associam para reunir suas poupanças em
fundos rotativos que lhes permitem obter empréstimos a juros baixos e
eventualmente financiar empreendimentos solidários; 5) os mesmos
criam também associações mútuas de seguros, cooperativas de habitação
etc. (Singer, 2000b, p. 14).
Para ele, a questão da autogestão é definitiva na caracterização desses
empreendimentos como experiências que se baseiam na igualdade e na democracia.
Nesse sentido, o cooperativismo constitui um modo de produção específico e as
empresas autogestionárias, "ensaios de empresas socialistas" (Singer, 2000a, p.
159). Retomando os princípios socialistas das cooperativas de meados do século
XIX, Singer interpreta o ressurgimento das cooperativas como um resultado da
crise do trabalho assalariado, do socialismo real e da social-democracia; tudo
isso teria resultado, segundo o autor, num deslocamento do foco dos movimentos
emancipatórios da tomada do poder do Estado para o fortalecimento da sociedade
civil (Pinto, 2006, p. 42).
Esse raciocínio permite que o autor mantenha seu otimismo e esperança em
relação ao cooperativismo, seja no que se refere à experiência internacional,
seja no que respeita à experiência brasileira:
É possível considerar a organização de empreendimentos solidários o
início de revoluções locais, que mudam o relacionamento entre os
cooperados e destes com a família, vizinhos, autoridades públicas,
religiosas, intelectuais etc. Trata-se de revoluções tanto no nível
individual como no social. A cooperativa passa a ser um modelo de
organização democrática e igualitária que contrasta com modelos
hierárquicos (Singer, 2000b, p. 28).
De acordo com ele, as cooperativas que vêm sendo formadas por universidades,
sindicatos e Secretarias Municipais do Trabalho, entre outras iniciativas,
deverão constituir uma vasta economia solidária no Brasil (Singer, 2000a, p.
150). Isso não quer dizer, contudo, que a economia solidária venha a se impor
sobre as outras formas de produção. Ao contrário, assim como para Laville e
Coraggio, Singer vê uma convivência entre diferentes formas de produção. A
economia brasileira estaria, nesse sentido, caminhando para uma economia mista
"com uma certa presença de Estado, uma presença de economia socialista ou
solidária forte, uma presença de produção simples de mercadoria e, quem sabe,
até, uma presença grande de economia doméstica" (Idem, p. 165).
Embora consciente do perigo de as cooperativas se transformarem em simulacro da
empresa capitalista, com normas igualitárias que não são levadas efetivamente
em consideração, Singer acredita no poder de desalienação que a própria prática
autogestionária confere a seus trabalhadores, assim como no poder de uma
educação crítica e desalienante contra a degenerescência que pode ocorrer pela
acomodação (Idem, p. 158).
Conforme as palavras do próprio autor:
A Economia Solidária não é uma receita que se aplica, dá certo e o
sujeito já pode esquecer, ir para outra. É uma luta contínua:
descobri que a luta pela democracia, pela igualdade provavelmente vai
prosseguir sempre [...]. Acho que a democracia tem, junto com o
cooperativismo, junto com as formas igualitárias, uma propensão à
degeneração, portanto, é preciso lutar contra essa degeneração, é
preciso regenerar essa democracia, eu diria, mais ou menos
periodicamente (Idem, p. 149).
Vale destacar que o pensamento de Singer se diferencia claramente do de Laville
e de Coraggio no que se refere à centralidade do cooperativismo na economia
solidária. Na verdade, tanto Laville como Coraggio apresentam uma visão mais
ampla desse conceito.
Embora considerem as cooperativas como a forma principal de expressão das
experiências de economia solidária, França Filho e Laville (2006) incluem
também as experiências de comércio justo (que visam a estabelecer relações
comerciais mais justas entre países do Norte e certos produtores do Sul); de
finança solidária (que visam ao fornecimento de crédito para pessoas que não
têm acesso ao sistema bancário, como o microcrédito, a poupança solidária etc.)
e de formas alternativas de trocas, não baseadas no dinheiro, como por exemplo
os clubes de troca.
Já Coraggio (2000), ao tratar das diferentes formas de economia popular,
considera que o cooperativismo não consiste no caminho único, nem no mais
importante para se chegar à outra economia.
A economia solidária do ponto de vista de seus críticos
Como era de se esperar, os críticos da economia solidária não têm dedicado a
ela a mesma atenção de seus defensores. O ponto principal que os unifica é o
descrédito na capacidade de que as cooperativas possam vir a significar uma
experiência social importante baseada em outros princípios que os capitalistas,
seja por sua necessidade de se inserir no mercado capitalista, seja pelas
dificuldades que enfrentam em termos tecnológicos, de capital, de mercado etc.
Castel, por exemplo, criticando o conceito de "serviços de proximidade" de
Laville considera que poucas realizações desse tipo são inovadoras ou
portadoras de futuro e que, ao contrário, elas são em geral pouco visíveis
socialmente, não logrando ultrapassar o estágio da experimentação (Castel,
1998, pp. 574-575). Embora reconheça que as atividades inseridas na chamada
"economia social" estão em vias de expansão, o autor acredita que essas
realizações "têm sua utilidade numa conjuntura catastrófica", mas não podem ser
pensadas como políticas de emprego.
Também Quijano (2002) arrola as dificuldades que as experiências de
cooperativismo enfrentam para sua disseminação. Discutindo a questão a partir
de um conjunto de estudos de caso reunidos no livro organizado por Souza Santos
(2002), o autor debate tais experiências a partir da problemática de se elas
podem ou não ser consideradas sistemas alternativos de produção. Embora peça
cautela tanto às expectativas sobre o seu potencial anticapitalista, como às
conclusões negativas apressadas sobre esse mesmo potencial, suas reflexões
sobre os casos estudados são desalentadoras, ao apontar que os empreendimentos
que conseguem sobreviver o fazem por meio de redes de relações comerciais e
financeiras no mundo empresarial;5 que em geral o número de trabalhadores tende
a diminuir em lugar de aumentar e ainda que, também em geral, a divisão interna
do trabalho não é muito diferente da empresarial (Idem, ibidem). De acordo com
o autor, as organizações da economia solidária
[...] surgem por iniciativa ou com o apoio de instituições de ajuda
assistencial aos "pobres" [...], subsistem e até parecem ajudar no
desenvolvimento da convivência social dos seus membros em direção a
uma ética de solidariedade. Mas quase todas elas desintegram-se logo
que é interrompida a ajuda financeira externa. E as muito poucas que
sobrevivem transformam-se em pequenas ou médias empresas dedicadas,
explícita ou conscientemente, ao lucro individual e sob o controle e
em benefício dos que administravam essas organizações (Idem, p. 496).
Esse tipo de análise não o impede, contudo, de ressaltar experiências
importantes no sentido de propiciar novas formas de sociabilidade como a Self
Employed Women's Association (SEWA), organizada por Gandhi em 1918, que possui
hoje 250 mil associadas e que promove a organização de cooperativas em diversas
áreas de atividade e de cooperação técnica e administrativa (Quijano, 2002, p.
497). Referindo-se às cooperativas de coletoras de lixo associadas à SEWA,
Quijano salienta que se levarmos em consideração que elas congregam não "apenas
pobres, mulheres e trabalhadoras [...], mas também intocáveis,6 pode inferir-se
o extraordinário valor que para elas tem a associação em uma cooperativa e,
sobretudo, o fato de estarem associadas a uma instituição como a SEWA". O autor
refere-se aqui à melhoria da renda e das condições de trabalho, à proteção
contra os riscos de trabalho, à aprendizagem da leitura, da escrita e da
gestão. E, acima de tudo, à criação de um sentimento de auto-estima individual
e social dessas mulheres que acarreta, sem sombra de dúvida, "uma perspectiva e
um sentido novos para a sua própria existência" (Idem, p. 498).
Vale ressaltar, contudo, que ao mesmo tempo em que afirma que a preocupação em
promover uma economia solidária é respeitável, Quijano (Idem, p. 575) a
considera mais como uma declaração de intenções do que a afirmação de uma
política.
Economia solidária: uma hipótese sobre seus limites e possibilidades
Em suma, o que se deve reter, sobretudo, dessa discussão é a complexidade que a
caracteriza, assim como o contraste entre opiniões e teorias, criando uma zona
nebulosa de contradições e discordâncias, com muito poucos pontos consensuais.
Entre eles vale destacar para seus defensores a idéia de economia plural,
presente em Laville, Coraggio e Singer, que dá espaço para o surgimento de
formas de produção capazes de se relacionar com o mercado e o Estado a partir
de uma lógica diferente daquela baseada na acumulação capitalista: a lógica da
sobrevivência. Se a existência dessas outras formas de economia (economia do
trabalho para Coraggio; economia distributiva para Laville; economia socialista
para Singer) possuem potencial transformador que poderá levar a uma reforma
social mais substantiva é uma questão que fica em aberto. Até o momento, a
experiência concreta desses empreendimentos não nos autoriza grandes esperanças
seja pela subsunção de muitos deles à economia capitalista (como é o exemplo de
Mondragón), seja pelo enfraquecimento das experiências em momentos de ascensão
econômica (como é o exemplo da Argentina), seja ainda pela sua dificuldade de
se expandir de forma a mudar efetivamente a regulação social como esperam as
análises mais otimistas, como demonstram os vários exemplos internacionais,
tanto quanto o brasileiro.
Isso não significa, contudo, que essas experiências sejam carentes de
significado, especialmente para os atores nelas envolvidos. Ao contrário, nossa
hipótese principal, a qual buscaremos desenvolver adiante a partir da análise
dos casos concretos, consiste em considerar que, embora não sejam capazes de
promover uma transformação social mais significativa, elas são parte da nossa
história e vêm deixando marcas importantes em nossa sociedade ao promover a
solidariedade e a autonomia. Nesse sentido, emergem como formas de resistência
importantes à realidade atual do mercado de trabalho e adquirem um significado
extremamente relevante para os trabalhadores que nelas se inserem, despontando
como um elemento central à compreensão do novo momento do mundo do trabalho.
Ainda que elas venham a desaparecer no futuro, constituem um tipo de movimento
que deixará marcas, que ficará na história da classe trabalhadora, na memória
não só de seus atores, mas de toda a sociedade.
O exemplo argentino
Tomarei neste item a experiência argentina de recuperação de empresas quebradas
como um exemplo de resistência à crise do trabalho, vivida de forma extrema
pelo país nos três primeiros anos do novo milênio, o qual, embora tenha perdido
a importância social de que desfrutou naquele período, certamente deixou marcas
profundas naquela sociedade. Um exemplo concreto, portanto, dos limites e das
possibilidades da economia solidária.
Embora as primeiras empresas recuperadas despontem desde o início dos anos de
1990, o número de empreendimentos mantém-se mais ou menos estável até 1999,
subindo vertiginosamente a partir de 2000 e especialmente em 2001 e 2002 quando
quase 200 empresas recuperadas passam a existir no país. Este incremento
corresponde ao aprofundamento das dificuldades econômicas desde o início dos
anos de 1990, quando começam a tomar lugar as reformas estruturais
implementadas pelo governo Menem: abertura comercial, desregulação econômica,
privatizações e paridade cambial com um peso supervalorizado (Rebón e Saavedra,
2006, p. 14). A agudização das dificuldades deu lugar a um processo recessivo a
partir de 1998 e desembocou em uma profunda crise em 2001 (quando os credores
se negaram a seguir emprestando dinheiro à Argentina), que atingiu o seu auge
no primeiro trimestre de 2002, momento em que ocorreu uma virtual paralisação
da atividade econômica. De outubro de 1998 a novembro de 2002 a atividade
econômica caiu em relação ao mesmo mês do ano anterior em praticamente todos os
meses (Magnani, 2003, p. 37).
É nesse quadro que muitas empresas que haviam conseguido sobreviver às
dificuldades da década de 1990 entram em processo de falência. Ao mesmo tempo,
o mercado de trabalho é atingido por um assombroso aumento do desemprego, que
cresce de 6% em 1991 a 22% em 2002 e a sociedade passa a viver um profundo
processo de empobrecimento, englobando mais da metade da população, sendo que
em 1974 atingia apenas 5,8% dela (Rebón e Saavedra, 2006, p. 16).
Nesse contexto o clima de protesto toma conta do país com uma intensa
disseminação de manifestações de rua, cacerolazos, assembléias de bairro e
piquetes. Os piquetes consistiam em grupos de sin nada que ocupavam as ruas
reivindicando trabalho e subsídios de desemprego, construindo empreendimentos
autogestionários em seus bairros (Idem, p. 22) e criando uma situação favorável
para a expansão das recuperações de empresas a partir de uma sensibilidade
social que as legitimou aos olhos de uma boa parte da sociedade (Idem,
ibidem.). Conforme explicita Magnani,
[...] em muitas das ocupações que terminaram exitosas, as assembléias
de bairro foram importantes tanto do ponto de vista logístico, como
moral, já que lhes deram apoios para seguir a luta contra forças
muito superiores encarnadas geralmente em síndicos e juízes (Magnani,
2003, p. 39).
Esta relação com a comunidade deu-se de forma tão forte em alguns casos que
consolidou um sentimento de solidariedade entre as empresas recuperadas e a
comunidade por meio de práticas por parte das empresas que incluíram desde a
criação de centros culturais e de saúde até o apoio a movimentos de
desempregados7 e de aposentados.
A recuperação recorta vários setores da economia, embora se concentre em 2/
3 das empresas no setor industrial e 1/4 delas no ramo metalúrgico. No que se
refere ao tamanho, as empresas mais atingidas foram as de pequeno e médio
porte, o que faz com que as fábricas recuperadas não tenham um impacto
significativo na economia nacional. Seus efeitos sobre a sociedade, nesse
sentido, deveram-se mais a seus traços qualitativos do que quantitativos.
Embora a maior parte dos processos de recuperação tenha sido animada por algum
tipo de promoção (movimentos de empresas recuperadas8 , funcionários do Estado,
sindicatos e partidos políticos), o impulso inicial foi, na maioria dos casos,
o medo de ficar sem trabalho, mais do que qualquer ideário libertário ou
autogestionário (Rebón e Saavedra, 2006; Magnani, 2003; Fajn, 2004).
Segundo entrevista de Alejandro Lopez, trabalhador da cooperativa de cerâmicas
Zanon, surgida em março de 2002:
Tudo o que pensamos é que tínhamos que manter nossos familiares...
Fomos ver o governo, mas não nos deram nenhuma resposta... Batemos em
20 milhões de portas e nos fecharam 20 milhões. A única porta que não
estava fechada foi a vontade dos trabalhadores quando viemos
trabalhar. Por isso é que sempre destacamos essa decisão, inclusive
foi muito difícil decidir e foi uma questão de necessidade. Mas antes
disso, não foi uma decisão arbitrária de nossa parte, como dizer um
dia: 'Ocupemos e comecemos a produzir'. Não, foi uma seqüência.
Batemos em portas, não obtivemos respostas, não acontecia nada...
Então, tomamos a iniciativa. Tomamos esta iniciativa que hoje está
sendo tomada por outros companheiros como os do supermercado Tigre,
como Bruckman,9 como outras cooperativas, e estamos fazendo algo
concreto, estamos lutando contra o desemprego. É uma alternativa. É
uma alternativa concreta que os trabalhadores enfrentamos diante da
falta de resposta do governo e dos patrões (Magnani, 2003, p. 150).
Em alguns casos, contudo, esses ideários autogestionários foram se
desenvolvendo na luta e no contato com organizações de apoio que os professavam
de maneira mais explícita, como o MNER.
De acordo com Magnani, todavia, as fábricas recuperadas mantiveram sempre uma
preocupação muito grande com relação à sua autonomia, embora as relações dos
empreendimentos com o MNER e o MNFRT sejam de natureza distinta.10
Conforme assinalam Rebón e Saavedra, desde o primeiro movimento a questão
jurídica emergia sempre a partir da decisão dos trabalhadores de tomarem a
fábrica em processo de quebra. As estratégias postas em prática para viabilizar
a formação das cooperativas foram no início um jogo de tentativa e erro que,
pouco a pouco, se caracterizou como um aprendizado no interior do movimento
consubstanciado nos seguintes passos: tomada da empresa, formação da
cooperativa, negociação com o dono ou juiz visando à expropriação. A produção
reiniciava-se o quanto antes. Como explicitam os autores, "na maioria dos
processos de recuperação, os trabalhadores não questionavam o Estado, mas sim
pediam sua proteção e apoio" (Rebón e Saavedra, 2006, p. 56).
As relações com os distintos níveis de governo foram, no entanto, muito
diversas. No nível local, a cidade de Buenos Aires foi a que mais apoiou o
processo, chegando, em novembro de 1994, a promover a expropriação definitiva
de empresas que se encontravam nesta situação temporariamente, garantindo a
transferência da propriedade do imóvel sob condições creditícias favoráveis.
Situações favoráveis desenvolveram-se também nas províncias de Buenos Aires,
Rio Negro e Entre Rios, enquanto nas de Rioja, Neuquén e Santa Fé as empresas
encontraram forte oposição do governo provincial.
No âmbito do governo federal, houve uma posição bastante ambígua até a gestão
Kirchner. A partir de então, o governo criou o Programa de Trabalho
Autogestionado, na Secretaria de Emprego do Ministério do Trabalho, que passou
a promover um assessoramento legal e organizativo, além de facilitação de
créditos e apoio técnico e econômico para a implementação de projetos.
Para o movimento, contudo, a ação do governo federal foi muito incipiente: os
pedidos de uma lei de expropriação definitiva não foram atendidos e, apesar de
alguns gestos positivos, o governo nunca chegou a pensar na recuperação como
uma política de Estado (Idem, p. 59).
Os empreendimentos desenvolveram-se, assim, a partir de suas próprias forças e
em uma relação de oposição, distanciamento ou, na melhor das hipóteses,
indiferença com empresários, vários níveis do governo, partidos políticos e
sindicalistas. Estes últimos não conseguiram desenvolver qualquer linha de
apoio às cooperativas, optando no geral simplesmente por ignorá-las como se
fossem algo completamente alheio à sua prática.
No que se refere à viabilidade dos empreendimentos, não obstante, os estudos
sobre o tema revelam que, uma vez superados os problemas legais, as empresas em
geral funcionaram bem, conseguindo crescer, ampliar vendas, aumentar a retirada
dos cooperados, atingir novos mercados e inovar tecnologicamente. Ainda que não
tenham tido grande impacto no PIB (por seu porte em geral não muito grande),
muitas delas criaram novos postos de trabalho e dinamizaram bairros e pequenos
povoados, como a fábrica de tratores Zanello,11 que acabou empregando todos os
oficiais mecânicos, soldadores e torneiros da cidadezinha de Las Varillas,
reativando o comércio local (Magnani, 2003, p. 117).
Rebón e Saavedra (2006, p. 101), todavia, chamam a atenção para o fato de que
com a retomada do crescimento do país o movimento entrou em uma fase
descendente, anunciando seu fim. Os autores apontam para sua
institucionalização, concomitantemente a um processo de diminuição de sua
capacidade de mobilização e articulação social:
[...] por uma parte alguns de seus promotores, que anteriormente
lutavam nas ruas, fizeram da recuperação [de empresas] seu espaço de
ingresso na institucionalidade política. No outro extremo, muito
trabalhadores que já obtiveram a cobertura legal da empresa, e a
mesma já está funcionando relativamente bem, não vêem porque seguir
lutando por outros. Nesse sentido, pode se esperar que os movimentos
tendam a converter-se em pequenas corporações, em associações de
defesa de interesses privados, atuando mais como grupos de interesse
que canalizam demandas particulares do que como movimentos sociais
que se articulam com outros grupos na luta por objetivos mais amplos
(Idem, p. 102).
Isto não significa, contudo, que o movimento não tenha cumprido um papel
extremamente importante na história da resistência operária argentina (e
mundial) a uma crise profunda que jogou uma porcentagem extremamente expressiva
dos trabalhadores no desemprego e na miséria. Se o sonho de construção de um
novo país, presente em muitos experimentos (especialmente os vinculados ao
MNER), não se consolidou, a experiência foi importante por ter criado um número
significativo de postos de trabalho, nos quais os trabalhadores vivenciaram
experiências relevantes de trabalho participativo e democrático, as quais
deixaram marcas indeléveis não só em sua subjetividade como também na cultura
operária de uma forma ampla.
A economia solidária no Brasil
As experiências de cooperativismo no Brasil concentraram-se, até os anos de
1980, no meio rural.12 Nas cidades, seu surgimento deveu-se a um duplo
processo. De um lado, a crise econômica que se abre no início da década com seu
forte impacto sobre o desemprego será seguida de um processo de reestruturação
produtiva e econômica que especialmente, a partir da década de 1990, terá
fortes repercussões no mercado de trabalho com um significativo processo de
desestruturação do mesmo, evidenciado em todos os seus indicadores: diminuição
do trabalho industrial, aumento do desemprego e do tempo em que os
trabalhadores passam a levar para encontrar outras formas de colocação no
mercado de trabalho, aumento da informalidade, queda do valor real dos salários
etc. Tal desestruturação será uma conseqüência direta não só das baixas taxas
de crescimento econômico (quando não de retração), como também dos processos
que acompanham a reestruturação empresarial, tal como o enxugamento das
empresas e a decorrente terceirização e precarização das condições e das
relações de trabalho.
É nesse contexto que serão fortalecidas medidas voltadas à geração de emprego e
renda, entre as quais a economia solidária desponta como uma alternativa
importante. Vale lembrar também que, à semelhança do que ocorreu na Argentina,
a crise ensejou que os trabalhadores procedessem à recuperação de empresas que
entraram em processo falimentar, como forma de garantir seus postos de
trabalho.
De outro lado, a democratização do país nos anos de 1980 fortaleceu, no
movimento social brasileiro, um processo de discussão dirigido à questão da
democratização no mundo do trabalho, a partir do qual "trabalhadores de
diversos ramos de atividades iniciam a formação de cooperativas, movimentos
sociais passam a fomentar práticas de autogestão, universidades e outras
entidades começam a apoiar a criação de empreendimentos solidários" (Pereira,
2007, p. 18).
A organização desse movimento apoiou-se em quatro importantes iniciativas, que
podem ser consideradas como seus pilares fundamentais.
A primeira, a Cáritas Brasileira, entidade ligada à Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), possui desde o início dos anos de 1990 um conjunto de
incubadoras de cooperativas espalhadas pelo país, embora haja uma evidente
concentração das atividades da entidade no Sul, sobretudo no Rio Grande do Sul.
Em 1994 nasce a Anteag (Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de
Auto-gestão e Co-gestão), a partir da iniciativa de um determinado setor
sindical, com a finalidade de apoiar experiências já existentes, especialmente
em termos de assessoria técnica.
Também as Incubadoras Universitárias merecem destaque nesse quadro. A primeira
Incubadora Universitária surgiu em 1998, como uma iniciativa do Centro de Pós-
Graduação em Engenharia (Cope) da UFRJ. Ainda em 1998 foi fundada a Rede
Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP) com
o objetivo de difundir a experiência do Cope pelas universidades do país e de
vincular as incubadoras de forma interativa e dinâmica, fomentando a
transferência de tecnologias e conhecimentos. A Rede rapidamente favoreceu a
expansão das Incubadoras pelas universidades públicas brasileiras, congregando,
nos dias atuais, 37 incubadoras universitárias.
Por fim, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) possui três entidades que,
conjuntamente, fomentam a economia solidária: a Agência de Desenvolvimento
Solidário (ADS), a Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários
(Unisol) e a Cooperativa Central de Crédito e Economia Solidária (Ecosol).
A ADS foi criada em dezembro de 1999 "a partir de um intenso debate no
sindicalismo cutista sobre as novas configurações do mercado de trabalho e da
reestruturação produtiva no Brasil e a necessidade de constituir novos
referenciais de geração de trabalho e renda e de alternativas de
desenvolvimento, tendo como princípios fundamentais a Economia Solidária e o
desenvolvimento local sustentável" (ADS, 2004, p. 9). Sua ação está centrada no
planejamento e na articulação dos empreendimentos solidários, tendo como
estratégia básica a formação de complexos cooperativos por meio da vinculação
dos diversos atores e organizações econômicas dos territórios em torno de
objetivos e metas comuns (ADS, 2005, p. 14).
A ADS entende que a formação de redes de cooperação com base na consolidação de
parcerias entre os empreendimentos, as instituições financeiras e outras
organizações facilita o fluxo de informações: "os complexos cooperativos
possibilitam maior proximidade entre empreendimentos que, por sua vez,
contribuem para ampliar a produtividade e a capacidade de inovação" (Idem,
ibidem).
Segundo essa Agência, as maiores dificuldades que as experiências de economia
solidária enfrentam estão relacionadas com as condições de acesso aos mercados.
Nesse sentido, questões relativas à comercialização também adquirem
centralidade nos complexos cooperativos. As políticas de comercialização são
implementadas por meio da articulação de atores para a criação de sistemas
locais de comercialização, buscando caminhos para reduzir as assimetrias do
mercado e os custos de transação. A partir destas práticas - criando novas
instituições, adotando políticas de marketing e fomentando a organização de
espaços públicos e cooperativos para a comercialização de produtos e serviços
da economia solidária - a ADS tenta ampliar o acesso dos empreendimentos
solidários aos mercados (ADS, 2002, p. 42). A Agência possui parceria com
vários ministérios do Governo Federal, entidades nacionais e internacionais:
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MAD), Ministério da Educação (MEC),
Ministério do Trabalho e Emprego (MET), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas (Sebrae), Central Sindical Alemã (DGB), Organização
Intereclesiástica para a Cooperação e Desenvolvimento (ICCO) e Fundação Rosa
Luxemburgo Stiftung (RLS).
A ADS vem atuando na formação de vários complexos cooperativos. Atualmente, há
27, sendo 13 na área agrícola (congregando 20 cooperativas e 8.124
trabalhadores) e 14 distribuídos entre as áreas de indústria, serviços, pesca,
reciclagem, comércio e artesanato (reunindo 177 empreendimentos e 8.115
trabalhadores).13 Alguns desses complexos abrangem empreendimentos em diversos
Estados como, por exemplo, o Complexo Cooperativo Têxtil, que articula atores
de diferentes partes da cadeia produtiva, visando à produção de têxteis
orgânicos de algodão e respeitando os princípios do comércio solidário. A
cadeia compõe-se de muitos segmentos: insumos para a agricultura; produção
agrícola; beneficiamento do algodão; fiação; tecelagem; acabamento (tinturaria
e estamparia); confecção e distribuição. Começando no Ceará (cidade de Tauá),
onde o algodão é plantado, passa por Fortaleza, onde ele é beneficiado, vai
para Nova Odessa e Santo André em São Paulo, onde é feita a fiação e a
tecelagem e termina em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde é realizada
a confecção e o acabamento (ADS, 2002, pp. 43-66).
A ADS considera, ainda, como um de seus objetivos a implementação de uma
política de organização sindical articulada à economia solidária, tendo a CUT
como condutora do processo. Tal política, desenvolvida por intermédio do
sindicato dos trabalhadores dos empreendimentos autogestionários, está voltada
para a luta conjunta contra o desemprego e a favor dos direitos trabalhistas,
sociais e previdenciários de todos os trabalhadores.
A Unisol foi fundada em 2000 com a finalidade de atuar na busca da melhoria
socioeconômica de entidades e empresas coletivas e de garantir a geração de
trabalho e renda com dignidade. A entidade surgiu inicialmente como Unisol-SP,
congregando doze empreendimentos solidários do estado de São Paulo. Em 2004 ela
já contava com mais de setenta empreendimentos; além disso, a existência de
várias cooperativas de outros estados que eram atendidas pela entidade fez com
que ela se transformasse em um complexo nacional: Unisol-Brasil. Hoje, de
acordo com seu diretor, ela possui 230 empresas filiadas, entre cooperativas
(65%) e associações (35%).14
As entidades filiadas pagam uma mensalidade a esta entidade e em troca recebem
assistência técnica, formação, assessoria em markentig e comercialização, e,
sobretudo, uma representação política. A Unisol também presta serviço de
financiamento aos empreendimentos filiados.
O principal projeto da entidade atualmente - Programa de Inclusão e Organização
Produtiva dos Empreendedores Cooperados - vem sendo desenvolvido com o Sebrae
em conjunto com 99 empreendimentos. O objetivo do programa é fortalecer os
empreendimentos, articulando-os entre si por atividade econômica; está dirigido
para alguns setores específicos, como construção civil, apicultura, confecção e
têxtil, metalurgia, artesanato e reciclagem.15 O programa pressupõe a
contratação de um técnico para acompanhar cada projeto.16
A Unisol já possui um centro de formação e está desenvolvendo uma parceria com
Mondragón e com cooperativas de Quebec para a construção de um Centro
Tecnológico.
Por fim, a Ecosol, criada em 2004, em parceria com o Sebrae, congrega um
conjunto de cooperativas de crédito que operam segundo os princípios da
economia solidária. Seu objetivo é promover a solidariedade financeira entre
associados, utilizando recursos poupados pelos cooperados que resultam na
geração de renda para empréstimos aos demais membros. A Ecosol propõe-se a
viabilizar a inclusão da população de baixa renda no sistema financeiro por
meio desses recursos, com o intuito de impulsionar o desenvolvimento das
regiões em que atua.
Com o governo Lula, a economia solidária ganha estatuto de política pública
federal, ingressando no Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Secretaria
Nacional de Economia Solidária (Senaes), criada por lei em maio de 2003.
Paralelamente, é criado o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), com a
finalidade de articular as experiências de economia solidária no território
nacional e representá-las junto aos governos e fóruns internacionais17
(Barbosa, 2007). O FBES trabalha diretamente com a Senaes e desdobra-se em
fóruns estaduais, buscando fornecer capilaridade ao movimento organizado de
economia solidária. Em vários estados já foram também criados fóruns municipais
e microrregionais, reunindo um conjunto de municípios (Singer, 2006, p. 202).
Esse conjunto de organizações aponta, no caso do brasileiro, para um quadro
mais amplo e mais diverso de experiências autogestionárias se compararmos à
Argentina, no qual as empresas incubadas ocupam um importante papel. Por outro
lado, ele representa, em parte, as diferentes visões que existem no país sobre
a economia solidária. Visões, no entanto, que envolvem um espectro muito mais
extenso, contemplando também concepções teóricas críticas às experiências
autogestionárias, tal como ocorre na discussão internacional.
As diferentes visões sobre a economia solidária no Brasil
Existe já um conjunto bastante amplo de pesquisas sobre os empreendimentos
solidários no Brasil. Em sua grande maioria trata-se de estudos de caso que vêm
apresentando dados preciosos para a reflexão teórica. Tendo em vista, contudo,
a dificuldade de trabalhar com um conjunto muito diversificado de casos,
centrarei a discussão em torno de alguns textos que fazem balanços mais gerais
de resultados de pesquisa, tais como os de Gaiger, (2000, 2004); Pinto (2006);
Lima (2002, 2007); Vieitez e Dal Ri (2001); Singer (2000a, 2000b, 2006). Alguns
outros estudos serão lembrados também na análise de pontos específicos.
Um primeiro aspecto a ser destacado é a diversidade do universo do
cooperativismo no país, que vai desde as "falsas" cooperativas, formadas pelas
próprias empresas como forma de rebaixamento de custos, até empreendimentos
verdadeiramente autogestionários, formados pelos próprios trabalhadores ou,
mais comumente, sob a iniciativa de alguma entidade de fomento, que buscam se
manter fiéis aos princípios cooperativistas. Diversos autores chamam a atenção
para o fato de que o quadro é bastante complexo e que a oposição entre falsas e
verdadeiras cooperativas não dá conta da realidade (Lima, 2007; Pinto, 2006),
tendo em vista que muitas delas nascem com o ideal autogestionário, mas vão
perdendo sua independência na medida em que começam a se vincular a redes
empresariais para poder sobreviver, abrindo um amplo espectro de distintos
níveis de dependência.
Para complexificar um pouco mais a questão, vale lembrar o estudo de Guimarães
et al. (2006, p. 318), que considera a possibilidade de uma evolução das
experiências no sentido inverso, ou seja, de um desenvolvimento dos
empreendimentos que caminharia no sentido da concretização da autogestão ao
longo do tempo. Essa pesquisa (realizada com 25 cooperativas em Santa Catarina)
evidencia que a autogestão deve ser analisada como uma categoria dinâmica, "num
crescendo ou continuum, partindo de formas embrionárias, até atingir
experiências concretas de autogestão no contexto organizacional, onde não
somente os meios de produção e o controle acionário da empresa passam para os
trabalhadores, mas também o controle da gestão, inserindo-se aí o controle
sobre o processo de trabalho" (Idem, ibidem).
Em segundo lugar, há uma certa unanimidade nos estudos em ressaltar as
dificuldades que os empreendimentos enfrentam. Essa visão perpassa toda a
bibliografia, abarcando desde os mais céticos até os mais entusiastas das
potencialidades do cooperativismo. A defasagem tecnológica, a falta de
recursos, a baixa escolaridade dos associados, o uso de mão-de-obra intensiva,
a fragmentação do trabalho, as longas jornadas que exaurem os trabalhadores, as
diferenciações na distribuição das retiradas, o pouco compromisso dos
trabalhadores com o ideal autogestionário são alguns dos aspectos assinalados
(cf. Vieitez e Dal Ri, 2001; Lima, 2007; Singer, 2000a; Guimarães et al., 2006;
Pinto, 2006).
Aprofundando a discussão, Guimarães et al. apontam, na pesquisa citada,
diferenças importantes entre as cooperativas originárias de falência de
empresas, as formadas por programas de fomento de ONGs ou órgãos governamentais
e as oriundas de iniciativas do movimento social. Segundo os autores, as
dificuldades das primeiras são bastante evidentes, tendo em vista o choque
cultural que vivem os trabalhadores com a brusca transformação das relações de
trabalho:
Habituados com uma estrutura rígida e autoritária, a passagem para
uma administração autogestionária no mesmo ambiente de trabalho
acarreta muitas dificuldades para a participação plena na tomada de
decisão, autonomia e controle do processo de trabalho (Guimarães et
al., 2006, pp. 308-309).
Nas organizações formadas por ONGs e órgãos governamentais, Guimarães et al.
destacam as relações de dependência dos empreendimentos para com os órgãos de
fomento, especialmente no que se refere à gestão, interferindo, algumas vezes,
até mesmo nos processos de tomada de decisão de forma democrática (Idem,
ibidem).
Já os empreendimentos originados de iniciativas dos movimentos sociais teriam
sido os que revelaram características mais evidentes de autogestão, "com
participação efetiva dos trabalhadores em todos os níveis decisórios [...] e
nos quais se verifica uma transformação mais evidente nas relações de trabalho"
(Idem, ibidem). Consoante os autores, o fato de terem tido origem em um esforço
coletivo em torno de uma causa comum, de conteúdo transformador e emancipatório
reveste-os de um cunho ideológico não encontrado nas demais experiências.
Nesse quadro, outros estudos também destacam alguns aspectos positivos das
experiências de economia solidária, no sentido de facilitar a sua viabilização.
Além dos já levantados por Guimarães et al., cabe ressaltar o destaque de
Gaiger a essa questão, ao sublinhar a facilidade de transferência de saberes,
menor rotatividade, maior estabilidade, maior comunicação entre os
trabalhadores, maior facilidade para identificar problemas no processo de
trabalho, maior envolvimento na busca de soluções, entre outros aspectos
(Gaiger, 2000, p. 184). Esse conjunto de elementos positivos poderia, em certas
circunstâncias, estabelecer o que o autor chama de círculo virtuoso do trabalho
cooperativo, em que "há um estímulo material, que redunda numa série de
atitudes positivas que acabam resultando numa diminuição de conflitos laborais,
o que, por sua vez, fortalece moralmente os trabalhadores" (Idem, p. 185).
Outra questão bastante discutida na literatura diz respeito ao papel das
políticas públicas, entendidas cada vez mais como um elemento central para o
bom desempenho dos empreendimentos.
França Filho (2006) apresenta uma reflexão bastante estruturada sobre o tema, a
qual ressalta o caráter recente das políticas. De fato, o autor considera que a
atual política pública brasileira de economia solidária encontra-se em processo
de construção, cujas metodologias ainda estão em fase de experimentação (Idem,
p. 260), apresentando uma significativa heterogeneidade. Esta expressa, para o
autor, os diferentes níveis de organização do próprio movimento de economia
solidária nos diversos contextos locais e regionais. Apesar dessa
heterogeneidade, França Filho sublinha uma importante mudança na visão
estratégica da política pública, ao substituir a preocupação com a simples
reprodução das condições de vida por "uma possibilidade de reprodução ampliada
do modo de vida, o que permite transformações institucionais efetivas nas
condições mais gerais de existência das pessoas num território" (Idem, p. 266).
Segundo ele,
[...] esta é também a visão estratégica da passagem de um estado de
subsistência das iniciativas empreendidas para um estado de
sustentabilidade, refletindo o salto estratégico necessário que
induzem tais políticas de uma condição de economia popular apenas,
para uma condição de economia popular e solidária (Idem, ibidem).
Nesse salto estratégico a política pública deslocaria sua ênfase das noções de
assistência e compensação para a de emancipação, passando a constituir-se como
uma política de "organização da sociedade", cujos resultados remetem ao médio e
longo prazos.
Também Gaiger sublinha a mudança de foco das políticas públicas nos últimos
anos, passando da promoção de empreendimentos com um caráter emergencial ou
paliativo, no sentido de prover condições mínimas de sobrevivência, para a
construção de alternativas duradouras e generalizáveis, focadas na busca de
novos formatos de geração e apropriação de tecnologias que visam à auto-
sustentação dos empreendimentos (Gaiger, 2000, pp. 176-177). Nesse sentido, as
políticas públicas desempenham um papel de enorme importância na viabilização
das experiências solidárias.
Outro estudo importante sobre políticas públicas de economia solidária é o de
Alves (2006), voltado para os municípios de Santo André, Diadema e São Bernardo
no ABC paulista e o de São Carlos. O autor destaca a política de Santo André,
que propõe uma nova forma de atuação do poder municipal ao considerar que o
município deve ter um
[...] papel de estimulador de projetos e ações demandadas e
concebidas pelos sujeitos sociais e para isto é necessário que ele
deixe de ser o autor e executor de projetos e ações. Para isto, é
necessário que haja envolvimento maior dos atores sociais, objetos
das ações na concepção da política, deixando de ser objetos das ações
para se tornarem sujeitos sociais (Idem, p. 275).
Para Alves, essa mudança na orientação da política pública é exemplar e deveria
servir de modelo a outros municípios na medida em que,
[...] somente quando a concepção da política é realizada pelos
próprios sujeitos, a política de economia solidária exercida pelo
poder público passa a ser uma política dos sujeitos sociais e, desta
forma, desaparece o problema da descontinuidade, decorrente da
mudança de orientação pública dos gestores municipais, provocada
pelas eleições (Idem, ibidem).
Observa-se, portanto, que não só a discussão sobre as políticas públicas, mas
também as próprias propostas de política voltadas para a economia solidária vêm
avançando significativamente no país, preocupando-se com sua continuidade, com
o fortalecimento do tecido social da sociedade civil organizada, entendido como
suporte das ações políticas (Girard, 2006, p. 287), e com as formas de
monitoração das mesmas que passam a se dirigir aos avanços qualitativos, como o
da organização política, das relações sociais, das atitudes individuais etc.
(França Filho, 2006, p. 266).
Esses progressos da política pública se consubstanciaram no Ciclo de Debates
sobre Desenvolvimento Econômico Sustentável e Economia Solidária, realizado
pela Rede de Gestores durante o ano de 2004, objetivando contribuir para "a
elaboração de uma política pública de economia solidária que seja estruturada
federativamente e que seja capaz de atuar no combate efetivo às causas
estruturais da pobreza e promover a inclusão e o desenvolvimento social"
(Schwengber, 2006, p. 293). Um dos avanços importantes da contribuição do Ciclo
de Debates está em compreender o fomento à economia solidária como uma política
de desenvolvimento, que não deve ser relegada às políticas de corte
assistencial; outra contribuição que merece destaque é a de que como política
de desenvolvimento, voltada para um público tradicionalmente excluído
socialmente, ela demanda ações transversais que articulem instrumentos das
várias áreas do governo, como educação, saúde, trabalho, habitação,
desenvolvimento econômico, tecnologia, crédito e financiamento, entre outras
(Idem, p. 294).
Apesar desses efetivos avanços, não se deve perder de vista o alerta de França
Filho sobre a fragilidade do marco institucional sob o qual as políticas
públicas ainda repousam, o que o deixa "em alguns casos muito dependente das
características e sensibilidade do gestor público responsável pela política"
(França Filho, 2006, p. 267).
Por fim, uma discussão central, e é nesse ponto que encontramos mais
discordância entre os estudos, refere-se ao potencial das cooperativas como uma
forma alternativa de organização que aponta para uma possibilidade de inserção
ocupacional democrática. As divergências quanto a esse tema apresentam-se já
nas diferentes maneiras a partir das quais os estudos abordam a realidade das
cooperativas. Enquanto alguns se debruçam principalmente sobre as cooperativas
de empresas (Lima, 2002, 2007),18 que em alguns casos chegam a ser induzidas
pelo próprio governo estadual, como no caso do Ceará, na área de calçados e
confecções, outros dirigem o olhar às experiências mais bem-sucedidas (Gaiger,
2000, p. 172), a partir da compreensão de que não se deve discutir as
potencialidades do fenômeno analisando o seu lado fraudulento, ou o lado que
fracassa. Sob essa perspectiva, Gaiger sustenta que a noção de eficácia para a
economia solidária não pode ser a mesma utilizada para pensar a trajetória de
uma empresa capitalista, já que os objetivos são diversos. Nesse sentido, o
autor retoma o conceito de reprodução ampliada da vida, formulado por Coraggio
(2000), para pensar o desempenho dos empreendimentos solidários. A questão
central que lhe interessa é saber como esses empreendimentos provêm a
reprodução ampliada da vida e não apenas a acumulação de capital (Gaiger, 2000,
p. 181).
Em texto mais recente, baseado em uma pesquisa de caráter nacional realizada em
nove estados do país, o autor ressalta que a economia solidária deve ser
pensada como uma experiência de emancipação do trabalho desumanizado e
desprovido de sentido, na restituição do trabalhador à condição de sujeito de
sua existência. Gaiger é cuidadoso, contudo, ao apontar não só que os
empreendimentos enfrentam dificuldades que, muitas vezes, os inviabilizam, mas
também que não há receitas que possam ser aplicadas a todas as experiências,
tendo em vista que o conjunto de empreendimentos existentes é muito variado do
ponto de vista de seus atores, suas escolhas organizativas, suas razões de ser,
suas formas de inserção na economia e suas possibilidades de influência no
entorno em que se localizam (Gaiger, 2004).
Há que considerar, ainda, que outras pesquisas abrangentes, como as de
Guimarães et al. e as de Vieitez e Dal Ri, chegaram a resultados menos
alvissareiros. Embora tenham encontrado um grupo de empresas que apresentam
mais características de autogestão (as originadas nos movimentos sociais,
conforme explicitamos anteriormente), Guimarães et al. acreditam que não se
pode utilizar a expressão organizações autogestionárias, mas apenas
organizações com características autogestionárias, "considerando-se a
impossibilidade de experiências autogeridas plenas no modo de produção
capitalista" (Guimarães et al., 2006, p. 318).
No mesmo sentido vão as conclusões de Vieitez e Dal Ri, baseadas em pesquisa
realizada em dezenove empresas autogestionárias, localizadas em vários estados
do país e ligadas à Anteag. Os autores também constataram nessas empresas
contradições relacionadas tanto com o não desenvolvimento da gestão coletiva de
forma plena e democrática, como com incompatibilidades entre as virtualidades
democráticas e socialistas da comunidade de trabalho e o seu caráter atual de
produção independente de mercadorias (Vieitez e Dal Ri, 2001, p. 145). Eles
advertem, ainda, para a possibilidade de evolução regressiva dos
empreendimentos no sentido de se reconverterem ao estatuto capitalista ou de
manterem uma gestão de quadros tecnocrata ou conservadora (Idem, p. 146).
Também João Roberto Pinto, em pesquisa realizada em treze empreendimentos
acompanhados pelo escritório da Anteag no Rio Grande do Sul (escolhidos como
uma amostra representativa dos 100, que constituem o universo dos
empreendimentos ligados à entidade no estado) chama a atenção para o caráter
incipiente dos mesmos, assim como para o fato de que, por estarem voltados à
recuperação ou à manutenção dos postos de trabalho, os trabalhadores mostravam-
se pouco preocupados com a troca de conhecimento e experiência, ou com o
estabelecimento de intercâmbios mercantis (Pinto, 2006, pp. 176-177).
Uma última questão refere-se ao significado das experiências para os próprios
trabalhadores nelas envolvidos. Os estudos que se referem ao tema apontam para
conclusões que corroboram nossa hipótese de que essas experiências sugerem
novas formas de sociabilidade para a recuperação da identidade e da dignidade
dos trabalhadores.
João Roberto, por exemplo, apresenta achados nesse sentido ao explicitar que
para 63% dos trabalhadores (num total de 367 abordados pela pesquisa) "o
comportamento pessoal se alterou depois que passou a trabalhar no
empreendimento associado. Destes, 19% 'está mais tranqüilo e bem-humorado', 18%
'ficou mais responsável' e 16% 'se tornou mais cooperativo e solidário'". O
autor ressalta a valorização dos ganhos relativos ao próprio engajamento
associativo, citando a frase de um entrevistado: "porque resgatamos nossa
dignidade" (Idem, p. 171).
A pesquisa de Pereira (2007), levada a cabo em duas cooperativas da ITCP da
Unicamp, apresenta exatamente as mesmas conclusões. Embora alguns entrevistados
tenham dito que abandonariam a cooperativa se tivessem oportunidade de assumir
um trabalho no mercado formal, grande parte sublinha a satisfação com as
relações pessoais no interior do empreendimento, associadas a relações
familiares, de ajuda, de cooperação, de solidariedade, em contraste com as
experiências vividas anteriormente em empresas privadas. A autora destaca esses
aspectos, sublinhando a perspectiva de "libertação" vivida por algumas mulheres
em relação ao trabalho anterior como empregadas domésticas ou à situação de
donas de casa. (Pereira, 2007, p. 85).
Também Singer refere-se a esse sentimento, ao afirmar que em suas conversas com
os cooperados, eles dizem geralmente não pretender voltar ao trabalho
assalariado porque "já não agüentam mais trabalhar para patrão" (Singer, 2000b,
p. 28).
É importante considerar, entretanto, que esse fato não representa uma
unanimidade entre as pesquisas. Em seus estudos sobre cooperativas que
trabalham como terceirizadas de outras empresas no Ceará e no Rio Grande do
Sul, Lima afirma que, embora o trabalho cooperativado seja valorizado "por
permitir um cotidiano de trabalho mais tranqüilo e, enquanto estável, não
percebido como precário" (Lima, 2007, p. 151), o "ideal do trabalho assalariado
não foi substituído pela possível superioridade do trabalho autogestionário"
(Idem, ibidem).
Considerações Finais
A discussão bibliográfica apresentada aqui se debruçou sobre um conjunto de
aspectos relacionados com a economia solidária, voltando-se tanto para o debate
teórico sobre seus limites e potencialidades, como para políticas públicas
dirigidas à sua promoção, no caso brasileiro. As conclusões desse debate
apontam para uma realidade complexa e heterogênea, que inclui experiências
extremamente diversificadas de formas de assalariamento disfarçado até exemplos
bastante interessantes de complexos cooperativos que envolvem conjuntos
expressivos de cooperativas e de trabalhadores e que indicam experiências
sociais muito significativas.
Os estudos aqui discutidos e comentados levaram à hipótese de pesquisa que
consiste em entender os empreendimentos cooperativos vinculados à economia
solidária como alternativas de inserção social que, embora não tenham a
potencialidade de transformação social apontada por aqueles que as consideram
germes de uma nova sociedade, podem vir a ser experiências importantes de
resistência ao desemprego, apontando para novas formas de sociabilidade -
espaços abertos para a constituição de uma identidade coletiva dos
trabalhadores e para a recuperação de sua dignidade.
Ainda que esse tipo de inserção social não possa ser considerado uma tendência
de longo prazo, como testemunha a experiência argentina, ele pode se configurar
como uma reação dos trabalhadores ao desemprego aberto pela nova realidade do
mercado de trabalho. Trata-se, nesse sentido, de uma experiência de mobilização
e organização dos trabalhadores que, baseando-se em princípios democráticos,
pode ser capaz, em alguns casos, de deixar marcas significativas não só na vida
daqueles que a experimentam concretamente, como também na sociedade em seu
conjunto.
Notas
1 Vários são os estudos sobre a atual crise do trabalho. Como não é este
exatamente o objetivo deste texto, remeto o leitor a algumas análises já
consagradas sobre o tema, como Castel (1998) e Hirata e Preteceille (2002),
entre outros.
2 A expressão Economia Solidária foi criada na França, no início de 1990,
"fruto, sobretudo, das pesquisas desenvolvidas em Paris no Crida (Centre de
Recherche et d'Information sur la Democratie et l'Autonomie), sob a coordenação
de Jean Louis Laville, visando a exatamente dar conta da emergência e do
desenvolvimento do fenômeno da proliferação de iniciativas e práticas
socioeconômicas diversas, as chamadas iniciativas locais na Europa" (França
Filho e Laville, 2004, p. 109).
3 Rosa Luxemburgo sustentou uma acirrada polêmica com Bernstein sobre o tema;
enquanto o último foi um defensor das experiências cooperativistas como um
caminho para o socialismo, a primeira alertava para o duplo perigo que elas
enfrentavam: ou se tornavam exitosas e entravam na lógica do capitalismo, ou
mantinham seus ideais de solidariedade e autogestão e acabavam sucumbindo à
concorrência capitalista. O mesmo argumento foi defendido pelo casal Webb,
dando origem à tese da degenerescência das cooperativas. Já Marx manteve uma
posição ambígua com relação ao tema, destacando ao mesmo tempo a importância
das cooperativas como possibilidade de um novo modo de produção e os riscos de
elas se transformarem em instrumento de auto-exploração operária.
4 Polanyi identifica quatro princípios de comportamento econômico que operam em
nossas sociedades como fatores de organização da produção e distribuição da
riqueza: (i)os princípios do mercado, que permitem o encontro entre oferta e
demanda de bens e serviços com fim de troca por meio da fixação de preços; (ii)
os da redistribuição, a partir dos quais a produção é remetida a uma autoridade
central (o Estado) que tem a responsabilidade de reparti-la; (iii) os da
reciprocidade, que correspondem à relação estabelecida entre os grupos ou
pessoas a partir de doações ou préstimos mútuos, cujo sentido está na vontade
de manifestar um liame social entre as partes envolvidas; e (iv) os da
domesticidade, a partir dos quais as pessoas produzem para o seu próprio uso,
provendo as necessidades dos membros do grupo (Pinto, 2006, p. 46; França Filho
e Laville, 2004, pp. 32-33). As atividades comandadas pelos princípios da
domesticidade e da reciprocidade constituiriam a economia não monetária,
enquanto as de mercado e redistributivas fariam parte da economia monetária
(Pinto, 2006, p. 46).
5 "As que não conseguem, desaparecem de cena", assinala Quijano (2002, p. 493).
6 Os/as intocáveis constituem a classe mais oprimida e socialmente desprezada
da sociedade indiana.
7 Houve casos, por exemplo, em que o apoio dos desempregados à recuperação da
empresa implicou na inserção de muitos deles na empresa quando de sua
consolidação e crescimento (Magnani, 2003).
8 Em 2001 surge o MNER (Movimiento Nacional de Fábricas Recuperadas) e, em
2003, o MNFRT (Movimiento Nacional de Fábricas Recuperadas por los
Trabajadores), como uma cisão do MNER. A partir de 2005 o MNER entra em uma
grave crise.
9 Trata-se de uma fábrica de confecção recuperada.
10 O estudo de Magnani aponta para uma relação de poder mais concreta das
empresas recuperadas com o MNFRT do que com o MNER. Tendo em vista, entretanto,
o caráter menos ideológico do primeiro movimento, sua interferência se exerce
mais no sentido de encarregar-se dos problemas legais das empresas. De todo
modo, ele pode significar um risco para os empreendimentos, na medida em que
pode levar os trabalhadores por caminhos não desejados por eles mesmos
(Magnani, 2003, p. 56).
11 Esta cooperativa possuía um capital misto que contemplava, além do seu
próprio, capitais privados e do Estado.
12 Isso não significa, entretanto, que não tenha existido até então nenhuma
experiência importante de cooperativismo no meio urbano. Rizek e Pereira
lembram, por exemplo, que a própria cidade de Osasco teve sua origem ligada a
um grupo de operários anarquistas que, depois de demitidos da vidraçaria Santa
Marina devido à participação em um movimento grevista, tentaram criar uma
empresa na região que veio a se constituir como a cidade de Osasco. O bairro
Rochdale provavelmente teve esse nome como herança deste movimento (Rizek,
1988; Pereira, 2007, pp. 17-18).
13 Dados disponíveis no site http://www.ads.org.br/downloads.asp, consultado em
20/5/2008.
14 Segundo entrevista realizada com o diretor da Unisol, as associações são
grupos de trabalhadores que ainda não conseguem se organizar como cooperativa.
Mas, de acordo com a legislação, a associação não está voltada para fins
comerciais ou produtivos, como as cooperativas, mas à promoção, à educação e à
assistência social. A atividade comercial só pode ser realizada para a
implementação de seus objetivos sociais. Os associados não podem ser
remunerados, salvo se estiverem envolvidos com atividades necessárias ao
cumprimento da função associativa, caso em que devem ser contratados como
empregados da associação.
15 A reciclagem é o setor mais presente entre as empresas filiadas à Unisol.
16 A Unisol possui atualmente vinte técnicos contratados para o acompanhamento
de projetos.
17 De acordo com o Atlas da economia solidária realizado pela Senaes, ela
contempla um conjunto de quase 20 mil unidades no país, entre cooperativas e
associações.
18 As cooperativas de empresa, incentivadas pelos próprios empresários, como
forma de evitar o pagamento dos direitos trabalhistas, se difundiram de forma
extremamente significativa pelo país, sobretudo até 2003. Nos últimos anos, em
função de uma fiscalização mais efetiva dos órgãos do governo sobre esse tipo
de prática, seu crescimento arrefeceu, embora elas continuem constituindo um
fenômeno altamente disseminado. Todavia, como conformam experiências que não se
enquadram no âmbito da Economia Solidária, elas não serão discutidas aqui.